Ainda com traços natalícios e já a antecipar a Páscoa, celebramos hoje a Festa da Apresentação do Senhor. A Festa liga-se ao Natal porque o Menino, acabado de nascer, é levado por José e Maria para ser purificado, ou seja, consagrado ao Senhor, no cumprimento da tradição judaica. Mas liga-se também à Páscoa porque será na cruz que Jesus será por inteiro consagrado ao Pai, na oferta da sua vida pela salvação da humanidade. As duas pombinhas (ou rolas) oferecidas em sacrifício antecipam o sacrifício da própria vida do Filho na cruz: «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito» (Lc 23,46). Entrega acontecida na maior obscuridade interior e exterior: «as trevas cobriam toda a região». Entre duas noites que celebram a luz («o povo que andava nas trevas viu uma grande luz» (Is 9,2), como se lê na noite de Natal, e «eis a luz de Cristo» que se proclama na Vigília Pascal), temos hoje também a celebração de Cristo «luz dos povos», significada nas velas que acendemos no início da eucaristia. Porque celebrar Cristo é sempre celebrar a luz que nos ilumina, luz pessoal, íntima, e luz que se oferece a todos.

Lucas coloca o leitor no cenário solene do Templo de Jerusalém, lugar frequentando várias vezes por Jesus. Neste lugar expressão máxima no funcionalismo religioso e da autoridade sacerdotal, as personagens da narrativa são todas leigas. Leigos são o Menino e os pais, sem nenhuma pertença às famílias sacerdotais; são gente humilde da periférica e distante Nazaré. Leigo é Simeão, cujo nome significa «Escuta»; ancião profeta que viveu na esperança de ver, diante de si, a salvação a tomar carne. Leiga é a profetiza Ana, que significa «Graça», viúva de 84 anos, que faz da sua vida uma contínua liturgia existencial. Simeão e Ana, as vozes da profecia, esperança que espera o futuro, para além de qualquer evidência. Vozes proféticas laicais que interpretam os acontecimentos à luz do Espírito. Gente que mergulha em Deus e na sua Palavra, que vê a presença de Deus na normal apresentação de um Menino, e nesse Menino o acontecer da salvação prometida.

José e Maria apresentam-se no templo com seu filho Jesus, bebé. Fazem-no no rigoroso cumprimento da lei judaica: cada primogénito (cada menino) acabado de nascer é consagrado ao Senhor: porque um filho não é propriedade dos pais, é dom que lhes foi dado. Os rituais judaicos que cumprem, assinalam isso mesmo: aquela criança não é sua, pertence ao Senhor. Eles, pais, são cuidadores e protetores do Menino que não é seu (pertence ao Senhor). Nos braços de José e Maria, o Menino cresce em graça e sabedoria, descobre o mundo e a si mesmo no amor dos pais, amor fecundo que deixa crescer em liberdade, que respeita o mistério e a promessa imprevisível que é uma criança a crescer. Quanto nos inspira a pedagogia de José e Maria, a nós, cuja relação com os filhos não está isenta de traços possessivos.

No templo dá-se o encontro entre passado e futuro num presente jubiloso. O velho Simeão, naquele dia, por um impulso do Espírito, decide sair de casa. Possivelmente violentando o seu corpo de dores pelas artroses, deslocando-se com dificuldade, desarticulado, cambaleante… Sentiu interiormente um apelo não podia recusar: «O Espírito Santo revelara-lhe que não morreria antes de ver o Messias do Senhor; e veio ao templo, movido pelo Espírito». Simeão é um esperante, um expectante. Velho, em seu corpo gasto pelo tempo, mas com uma esperança menina: «homem justo e piedoso, que esperava a consolação de Israel». Toda a sua esperança se configura na fragilidade daquela criança indefesa e desprotegida que acolhe em seus braços. O Menino dá carne à esperança de Simeão, esperança que o fez viver e esperar, atravessar falências, deceções e crises. Esperança de que não morreria sem os seus olhos (talvez já marcados pela cegueira) verem e suas mãos tocarem o Messias, a esperança de Israel. É a esperança que dá vida à vida. Enquanto há esperança, há vida, podemos dizer, invertendo o provérbio.

O gesto de Simeão é de comovente ternura. Seus olhos brilham de fogo ao elevar nos braços o Menino. Bendiz a Deus por receber em suas mãos o rosto criança da sua esperança: «Agora, Senhor, segundo a vossa palavra, deixareis ir em paz o vosso servo». Pode morrer porque os olhos viram, suas mãos tocaram a esperança de Israel e a luz das nações, a carne de um Deus Menino, débil, indefeso, que se oferece como consolação, vida, futuro, luz: «os meus olhos viram a vossa salvação, que pusestes ao alcance de todos os povos». Um Menino nos é dado, salvação ao vivo, em carne, que podemos tocar, acolher, agradecer. Salvação ao alcance de todos. A esperança viva de Simeão alcança um rosto, uma evidência. E essa esperança tem rosto: é um Menino com promessa de futuro: «luz para se revelar às nações e glória de Israel, vosso povo».

Mas aquele Menino, sendo o cumprimento da esperança de Simeão (e de todo o Israel), é ainda uma esperança-criança, uma promessa por cumprir. A esperança, mesmo quando vê a evidência da carne da sua espera, não acaba, projeta-se no futuro, alcança novos horizontes, vê mais longe. Aquela criança é ainda uma esperança frágil, mas é uma promessa que faz viver e continuar a esperar. Simeão pode morrer em paz, consolado, porque a sua esperança não foi em vão, alcançou rosto e forma no Menino. Mas não acabou, apenas se renovou. A esperança de Simeão continua viva em nós, a alimentar e a renovar a nossa própria esperança, a nós cristãos perplexos, e talvez desorientados, perante a fragmentação e as loucuras bélicas do mundo contemporâneo.

Simeão e Ana são testemunhos da espera (da esperança viva) que não se deixa vencer pelo desgaste do tempo, pelos impasses e pelas contradições dos acontecimentos. Talvez tenham esperado contra toda a esperança, resistindo à tentação de se renderem ao desespero do nunca mais acontece, do tudo é vão, a realidade não muda, o mundo vai de mal a pior. Aqueles anciãos permanecem jovens porque souberam esperar, não se renderam a leituras fatalistas e desesperadas da vida. Para eles sempre houve futuro, para além do que podiam ver, tocar, pressentir, esperar no imediato. A esperança é a chama interior que nos faz viver para além do imediato, que nos leva a atravessar o tempo desconhecido, obscuro, incerto, imprevisto, como aquele que estamos a viver, sem nos deixarmos vencer pelo horror dos acontecimentos, ou pela confusão dos ruídos e das vozes polarizadas. A esperança é a âncora do coração que nos enraíza no coração de Deus para atravessarmos com Cristo, nesta barca frágil que é a humanidade, as tempestades da história. Recordamos a frase que nos inspira neste ano jubilar: «A esperança não engana porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações».

Simeão e Ana, profetas leigos (e a idade não inibe a voz profética) vêem a salvação a acontecer diante dos seus olhos naquele Menino apresentado no templo. E isso é um ato de fé que é também de esperança, e de palavra publicamente anunciada. Eles vêem a salvação a acontecer no hoje da história, na carne de Cristo que tocam com suas mãos. E todos nós somos testemunhas de Cristo, luz das nações que ilumina o nosso agir e dá consistência à nossa esperança.

Pe. António Martins, Festa da Apresentação do Senhor