Dezembro
2015/12/31 - Vigília da Paz
Vigília da Paz na Capela do Rato.
2015/12/25 - Advento / Natal 2015
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2015/12/16 - Deus - conversas de Maria João Avillez com João Taborda da Gama
Como João Taborda da Gama “saiu do armário” e entrou na Igreja
Foi já na Faculdade de Direito, onde procurou e não encontrou a infalibilidade das leis, que João Taborda da Gama começou a ler a Bíblia, uma versão em inglês que tinha lá em casa. E por aí começou o processo conversão deste especialista em Direito Fiscal que também é comentador e que em Novembro fez parte do Governo por três semanas. Um processo de conversão que que demorou alguns anos, que o levou a encontrar o seu lugar na Igreja Católica e que contou no último Conversas sobre Deus, que teve lugar esta semana na Capela do Rato, em Lisboa.
Nascido em 1977, filho do socialista Jaime Gama, ex-ministro e ex-presidente da Assembleia da República, e da professora Alda Taborda, João tinha em casa uma “atitude neutra” em relação a Deus. Filho único, criado no Lumiar, tem “poucas lembranças de reflectir sobre a existência de Deus na infância e adolescência”. Como contou na conversa com Maria João Avillez, não foi baptizado em bebé, mas os pais ainda “fizeram alguns esforços” e um deles foi inscrevê-lo na catequese, de onde foi expulso com um primo por apresentarem uma versão pouco canónica da Avé Maria.
“Não me apareceu Jesus Cristo de cachecol do Sporting, nem uma luz ou um trovão”, gracejou na noite de quarta-feira. Aos 21, 22 anos começou a ler a Bíblia. “Aquilo que li, sobretudo no Novo Testamento – as parábolas e os desafios de Jesus – começou a fazer cada vez mais sentido”, contou João Taborda da Gama. Depois, começou a sentir necessidade de aprofundar o conhecimento cultural e histórico, começou a interessar-se pela pessoa histórica e política de Jesus.
“Às tantas, esse processo interior começou a ser racionalizado” e teve uma pessoa – “há sempre uma pessoa nestas histórias” – que o ajudou no caminho que, rapidamente, percebeu que o levaria à Igreja. “Muito cedo, no meu processo de conversão, percebi que não seria só um processo interno da minha relação com Deus. A dúvida era: ‘eu não conheço a Igreja, será que a Igreja tem lugar para mim’”, recordou, definindo o seu percurso como “muito sereno”.
Renascença – para ler o artigo completo e ouvir a gravação clique aqui.
2015/12/14 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2015/12/13 - Chamamento à alegria (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
Em tempo do Advento, em pleno tempo do Advento, nós sentimos este chamamento à alegria. A alegria, que parece uma coisa fácil, parece um mandamento simples de cumprir. Contudo, a alegria é um mandamento exigente. Os judeus diziam mesmo que de todos os Dez Mandamentos aquele mais difícil de cumprir era o mandamento da alegria, que mandava guardar as festas.
A alegria não é simples. E não é simples porquê? Porque a alegria muitas vezes é fugaz, sentimos que há uma grande preparação mas depois a alegria não permanece. E isso acontece, por exemplo, com o Natal, um certo Natal. Prepara-se tanta coisa, tanto caminho, tanta compra, tanto desejo para o Natal e depois o Natal são aquelas escassas horas que depressa passam, e depois mergulham num contraciclo, numa melancolia, porque afinal tivemos tanta espectativa e depois o Natal não realizou, não se satisfez aqueles desejos mais fundos que estiveram no nosso coração. A alegria é, por isso, uma coisa fugaz.
Depois, muitas vezes a alegria não depende de nós, ou sentimos que não depende só de nós. Podemos querer a alegria mas as situações, às vezes, são marcadas pelo sofrimento ou temos de comungar o sofrimento dos outros e isso não é possível. Ou então pensamos na alegria como um estado de isenção, é porque não nos dói nada que estamos alegres, é porque não nos falta nada que estamos bem, é porque tudo corre conforme imaginamos que nós vivemos a alegria. Ora, isso nunca acontece, ou raramente acontece, porque nós não fazemos uma experiência da vida neutral, é sempre marcada por uma questão, por uma sombra, por uma notícia que chega, por uma contrariedade, por uma contradição e parece que a alegria não é possível.
Contudo, como diz S. Paulo na Carta aos Filipenses, o Senhor pede para celebrarmos a alegria: “Alegrai-vos, de novo vos digo: alegrai-vos.” Então, isto que parece ao mesmo tempo acessível e tão difícil é um mandamento que vem até nós. Porque é que nos havemos de alegrar? Qual é o grande motivo de alegria que nós temos? O grande motivo de alegria é aquele que o profeta Sofonias hoje nos diz, e que também nos é repetido pela boca de João Batista: o motivo da nossa alegria é porque Ele está no meio de nós. É porque Aquele que nasce é o Deus connosco, é Aquele que, de facto, habita já a nossa própria experiência, mesmo na sua fragilidade, mesmo no que ela tem de mais precário, provisório, opaco, exigente, contraditório. Deus está connosco, há uma aliança que o presente já celebra. Nós podemos tocar a presença de Deus.
Um grande teólogo cristão do século XX e um grande mártir da fé cristã, Dietrich Bonhoeffer, dizia isto: “Deus, como é que vem ao encontro do homem? Deus vem ao nosso encontro não apenas num “Tu”. Não é um “tu”, como encontramos na rua, como encontramos uns com os outros. Deus vem não apenas como um “tu” mas Deus vem como um “isto”.” Isto é, Deus vem como esta vida que nós temos para viver, no meio dela o Senhor está. O tempo do Advento é também o tempo de um reconhecimento de que Ele está connosco, de que Ele está presente, de que Ele já está no meio de nós. E essa é a razão profunda da nossa alegria.
Como fazer isso? Penso que com uma disponibilidade para acreditar, com uma capacidade de ver não apenas com os olhos mas também ver com o coração, com uma capacidade de esperar, de esperar e muitas vezes esperar contra todas as evidências, esperar contra toda a esperança como diz S. Paulo. Confiar Nele, descobrindo-O, tateando-O, presente na vida que nós vivemos. E isso faz-nos perceber o repto que também nos é dito pelas leituras de hoje: “Não vos preocupeis, não temais.”
Nós vivemos, muitas vezes, o tempo do Natal como uma sobreocupação: é uma quantidade de tarefas e andamos como formigas, atarefadíssimos a preparar isto, a preparar aquilo, preocupados com isto e com aquilo. E, no fundo, a grande palavra é não preocupar-se. A grande tarefa é, de facto, acolher, desenvolver essa arte de acolhimento no seu coração, essa capacidade de perceber que o dom é mais do que a preocupação, do que o tráfico mecânico que nos empurra para isto e para aquilo num consumismo que nos consome.
O Natal verdadeiro passa por conseguir aquela paz de que nos fala também S. Paulo na Carta aos Filipenses. Como ele diz numa fórmula tão bela: “E a paz de Deus, que está acima de toda a inteligência, guarde os vossos corações e os vossos pensamentos em Cristo Jesus.” O objetivo de um cristão no Natal é precisamente avizinhar-se desta paz. Mais do que todas as preocupações que prendem o nosso coração, que o cristalizam, que o capturam muitas vezes em corridas que não levam a nada. Perdermos o medo para podermos acolher esta paz que vem de Deus e que excede tudo aquilo que podemos desejar, aquilo que podemos querer.
O Natal é assim um tempo de acolhimento, um tempo para a hospitalidade de Deus, um tempo para recebermos a sua alegria. É um tempo interior o Natal, é um tempo espiritual. Por isso, mais importante que todo o resto é este caminho interior que cada um de nós faz, no reconhecimento de que Deus vem no “isto” que é a nossa vida, que é aquilo que vivemos, que é o presente do mundo, que é a hora atual da pequena história de cada um de nós e da grande história da vida.
Mas, ao mesmo tempo, o Natal também se reconhece na pergunta que por três vezes ouvimos hoje ser feita a João Batista: “Que devemos fazer?” Perguntaram as multidões, perguntaram os publicanos, perguntaram os soldados: “Que devemos fazer? Que devemos fazer?” O Natal também é um fazer, mas o que é que devemos fazer? Se calhar já estamos a fazer muitas coisas, já temos um programa de ação que faz o dia transbordar, não cabe no dia tudo o que temos para fazer. E, contudo, fica a pergunta: que devemos fazer?
Será que nós estamos a fazer a coisa certa? Será que nós estamos a fazer aquilo que Deus espera que façamos? Será que nós paramos para escutar o que Deus nos pede que façamos? Será que tudo aquilo que fazemos não é uma desculpa, não é um adiar da única coisa que Deus nos pede, neste Natal, que nós façamos? Que devemos fazer? É uma pergunta que também nos prepara, nos prepara para o Natal.
Queridos irmãs e irmãos, continuemos este caminho com ânimo. Hoje acendemos a terceira vela, vamos rezar na ação de graças a oração de S. José, a figura do presépio que nos acompanha neste domingo em comunidade. Vamos pedir para que, passo a passo, dia a dia, nós sejamos capazes de mergulhar mais profundamente no mistério de Deus. E, assim como somos, pobres, inacabados, mas também inquietos, dispersos, encontremos no Menino que nasce uma possibilidade de unidade interior, uma cura das nossas feridas, das nossas mazelas, uma confiança reaprendida, uma esperança que em nós fica a brilhar como a estrela do presépio.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III do Advento
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2015/12/12 - Atelier RESPIRA, para pais e filhos
RESPIRA é um conto ilustrado para pequenos e grandes. É a história de um menino que não consegue dormir, porque a sua cabeça não pára de pensar, e da sua mãe que decide ensiná-lo a respirar.
Ele pensa que já sabe respirar. Todos pensamos que sabemos respirar, porque para respirar não é preciso saber muito. Mas poucos paramos realmente para ver como respiramos.
Nascemos com uma inspiração, morremos quando expiramos pela última vez. No dia-a-dia continuamente inspiramos e expiramos, e nestes dois movimentos está a essência da própria vida: receber e dar. É o equilibro entre estes dois gestos que nos permite seguir em frente sem nos sentirmos sufocados ou desgastados.
Nas diferentes tradições religiosas Deus (ou o Transcendente) é comparado muitas vezes ao vento, à brisa, ao sopro que dá vida. Tomar consciência da respiração é também conectar com a Vida que respira em nós, com o Deus que nos dá vida.
A partir de exercícios muito simples e visuais poderemos ensinar os mais pequenos a respirar como uma onda do mar, como uma árvore que cresce, como o vento que sopra as nuvens, como um gato ou um pássaro, um sino ou um balão… Sem se darem conta, as crianças estarão repetindo exercícios do ioga, do Tai Chi ou do Chi Kung, realizando respirações abdominais ou visualizações conscientes.
Quando nos centramos por uns momentos na respiração deixamos de pensar no passado ou no futuro, no que nos assusta ou no que nos irrita. Estamos aqui e agora, em conexão profunda com a Vida. Controlamos as nossas emoções e serenamos o nosso corpo agitado. Aprendemos a ver as coisas que nos rodeiam tal como são.
Este tempo de Advento, de espera, pode ser uma boa ocasião para nos prepararmos interiormente para acolher o Mistério, para entrar devagarinho no silêncio e centrarmo-nos no essencial.
RESPIRA é o segundo livro da nova coleção infantil Pequena Fragmenta, que Inês Castel-Branco apresentará em Lisboa no sábado dia 12, às 18h, na Livraria Ferin, acompanhada pelos jornalistas António Marujo e João Miguel Tavares. (www.fragmenta.pt)
2015/12/09 - Deus - conversas de Maria João Avillez com Henrique Monteiro
Dá “muito trabalho” ao maçon Henrique Monteiro explicar que não é católico
Na Conversa sobre Deus desta semana, o jornalista e escritor Henrique Monteiro explicou porque é que não é católico, mas defendeu uma visão crente do mundo e as raízes cristãs da Europa.
Um dia, à mesa, em casa de Maria João Avillez, como se pedisse “passa-me o vinho” ou “dá-me o pão”, Henrique Monteiro disse “Eu pertenço à maçonaria”. A história foi contada pela anfitriã na sessão desta semana das Conversas sobre Deus, em que o jornalista e escritor se assumiu como crente, contou como foram “ínvios” os seus caminhos até Deus e mostrou um conhecimento vasto da Bíblia.
Numa hora de conversa interessante e, em muitos momentos, divertida, Henrique Monteiro começou por deixar bem claro que não é católico, pelo que “muitas coisas” lhe “passam ao lado”. Não sabia, por exemplo, que o Jubileu da Misericórdia tinha começado na véspera. Mas, acrescentou: “A maior parte das vezes dá tanto trabalho explicar porque não sou católico que digo que sou.”
Ali, na Capela do Rato, frente a católicos, considerou, contudo, que tinha a audiência certa para explicar porque é que não é católico. E não é porque há “coisas” da doutrina católica em que não consegue acreditar “no fundo do coração”. Coisas como a transubstanciação ou a virgindade de Maria.
Renascença – para ler o artigo completo e ouvir a gravação clique aqui.
2015/12/08 - Deus é o parteiro das nossas almas (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
Eu já falei aqui, penso que muitos conhecem, até já leram os diários e as cartas desta autora, Etty Hillesum. Etty Hillesum era uma rapariga judia, da burguesia de Amesterdão, que vivia uma vida um bocadinho dispersa. Tinha muitos talentos mas não sabia bem o que é que a vida havia de ser. Estudou Direito, depois abandonou Direito, gostava muito de literatura mas não sabia se era para ser professora, se queria ser escritora. Estava assim naqueles momentos da vida em que podemos ser tanta coisa e não sabemos bem qual é a nossa vocação.
Ela era judia de nascimento e de família, mas era também muito secularizada. A religião era uma tradição familiar, não era uma experiência vital para ela. E isto passava-se no período antes da Segunda Guerra. Quando começa a emergência do nazismo na Alemanha começam a chegar à Holanda muitos judeus fugidos da Alemanha e, entre eles, chegou um psiquiatra, discípulo de Jung, chamado Julius Spier. Era um homem com uma grande capacidade de perceber a linguagem simbólica, a linguagem da vida, um homem com um sentido religioso muito natural. Etty Hillesum conhece-o, primeiro como paciente, e depois mantêm uma relação amorosa. Este encontro vai mudar a vida de Etty Hillesum. Porquê? Porque, no fundo, ele vai, de certa forma, abrir a alma dela para a história que viria. Ela não sabia qual era o seu destino, qual era a sua vocação. Depois vai perceber que a sua vocação é dar a vida pelos outros. Depois oferece-se como enfermeira voluntária para o campo de concentração, e depois fica prisioneira e morre no campo de concentração. É uma história que nós podemos ver como uma história terrível, numa das horas mais negras do século XX, mas ao mesmo tempo é uma das histórias mais extraordinárias. Porque aquela mulher no campo de concentração, no meio da miséria, no meio da lama, rezava de madrugada na latrina do campo de concentração porque era o único lugar onde estava sozinha. Ela criava duas flores no meio do lixo porque ela precisava de beleza. Mas, no meio do tormento inimaginável que nós sabemos ser o de um campo de concentração, e isto é um escândalo, aquela mulher foi feliz. Etty Hillesum foi feliz, no meio daquela coisa medonha.
Ela no seu diário falando deste Julius Spier, deste primeiro encontro, usa uma expressão muito bonita, e foi por causa dessa expressão que me lembrei de falar dela hoje. Ela diz: “ Ele foi o parteiro da minha alma, o parteiro da minha alma, porque me preparou para um grande amor. O amor que eu vivi com ele preparou-me para um grande amor.”
Nós precisamos de parteiros para o nosso corpo, para nascermos, mas depois, ao longo da nossa vida, precisamos de parteiros para a nossa alma que nos ajudem a nascer. E muitas vezes nós somos instrumentos de Deus na vida uns dos outros, para sermos parteiros da vida uns dos outros.
Ainda ontem, por exemplo, fui ver o filme do Nanni Moretti “Minha mãe”. Um filme que eu recomendo muito e que, do meu ponto de vista, não é um filme sobre a morte da mãe mas é um filme sobre a transmissão da vida – como é que aquela mulher em fase terminal, numa cama do hospital, consegue transmitir vida à mistura com muitas lágrimas, com muito sofrimento, com muita dor. Ela transmitiu vida. Ela transformou a vida de cada um, transformou a vida da sua neta que passou a olhar para o latim de outra maneira, transformou a vida da sua filha, transformou a vida do filho. Aquela mulher na cama do hospital a morrer, a descobrir-se numa situação dramática, estava a ser a parteira da alma deles todos.
Não temos de imaginar uma situação ideal para pensarmos no nascimento e na transformação que acontece na nossa vida e na vida uns dos outros. Deus é o parteiro da nossa alma, Deus é o parteiro da nossa alma.
Hoje nós celebramos a Imaculada Conceição de Maria. O que é isso? É dizer isto: Deus preparou Maria para a história de amor e de dor, porque as histórias de amor são também histórias de dor, Deus preparou Maria para a sua história. Deus preparou-a para que ela pudesse ser mãe, para que ela pudesse ser mãe daquele Filho, para que ela pudesse entrar como protagonista no interior daquela história, uma história fascinante e exigentíssima como nós percebemos a olho nu olhando para o presépio.
Olhamos para o presépio e percebemos que aquela história não é uma história simples de viver, não é uma história simples de protagonizar. Como as nossas histórias não são simples de viver. O que nos é dado para viver não é simples, não é evidente. Mas Deus é parteiro da nossa alma, Deus prepara-nos, Deus prepara-nos para podermos viver o que nos é dado viver, e que muitas vezes nós não escolhemos, mas vem a o nosso encontro, é-nos anunciado.
Muitas vezes é-nos anunciado por um Anjo, outras vezes é-nos anunciado por um médico, outras vezes é-nos anunciado pelo nosso chefe, outras vezes é-nos anunciado por um irmão, por um amigo, outras vezes é anunciado por alguém de quem não gostamos, mas é-nos anunciado, é-nos anunciado. E nesse anúncio percebemos que alguma coisa na nossa vida se transforma. Mas é importante nós sentirmos, e é o motivo desta festa, sentirmos que Deus está-nos a preparar, está a preparar a nossa alma para tornar possível.
É muito belo o diálogo de Maria com o Anjo. Porque, no diálogo dela, nós temos as três etapas de todos os processos de nascimento da alma ao longo da nossa vida.
A primeira etapa é a etapa da surpresa, da surpresa. E uma surpresa que não é só surpresa é mixed feelings, tantos sentimentos ali: é surpresa, e é medo, e é desconcerto. Mas o que é isto? Um espanto. Mas, comigo? Mas, não houve engano? Mas, não se enganaram? É essa a primeira reação. Maria ficou perturbada com as palavras, mas a palavra do Anjo é a palavra que é dita a cada um: “O Senhor está contigo, o Senhor está contigo.” Podemos ficar perturbados, assustados, desconcertados mas é importante sabermos isso: naquele momento o Senhor está contigo, o Senhor está contigo.
O segundo momento é o momento da dúvida radical. Maria diz: “Mas como é que isso pode ser? Como é que isso é possível? Eu não vejo, eu não vejo como possa prosseguir.” Quando o Anjo lhe diz: “Não, a tua história vai prosseguir. Tu vais ser mãe, vais crescer, vais dar à luz, vais conceber, vais maturar.” Ela diz: “Eu não vejo como isso seja possível.” Porque entre aquilo que somos chamados e o conhecimento das nossas possibilidades e das nossas forças há um intervalo, há uma distância. E o que sentimos é a nossa fragilidade, a nossa incapacidade de corresponder. Porque o que nos é pedido é sempre um salto.
Por isso, a terceira palavra é: Maria ficou desconcertada, ficou assustada, Maria deitou contas à vida e disse: “Isso não vai dar. Isto não vai dar certo porque eu não sou capaz, e não estou a ver como é que isso aconteça.” E depois Maria confia, Maria abandona-se, Maria diz: “Faça-se em mim segundo a tua palavra.”
Este abandono confiado de quem, perante a vontade de Deus e perante os mistérios que Deus revela na nossa vida, se entrega, avança, diz que sim, confia. Mesmo não tendo a evidência, mesmo contando com a sua fragilidade, a sua vulnerabilidade, Maria confia.
E diz uma coisa muito importante, Maria diz: “Faça-se em mim, faça-se em mim.” Quando dizemos: “Deus é o parteiro da minha alma”, não é uma coisa que está acontecer através de nós, é uma mudança em nós, é uma vida em nós, somos nós que estamos em jogo, é alguma coisa que vai acontecer em mim. “Faça-se em mim segundo a tua palavra.” Então não é uma coisa que passa por nós, é uma coisa em nós, em nós.
Quando celebramos a Imaculada Conceição, podemos encarar esta festa de muitas maneiras: falar dos privilégios de Maria, falar da isenção de Maria. Eu penso que o mais importante é perceber que Deus prepara Maria, Deus prepara-a para a sua história singular como Deus nos prepara para as nossas histórias singulares, porque Ele é, de facto, o parteiro das nossas almas, Ele assiste ao nosso nascimento.
O importante é cada um de nós poder percorrer estas várias etapas, que são as etapas do nosso percurso, da nossa trajetória de fé, da biografia da nossa fé. Percorrermos estas três etapas e, no final, colocarmo-nos com a atitude de Maria. Porque é a atitude desta mulher que não sabe como mas confia, mas que acredita que aquilo que aos nossos olhos, tantas vezes e de muitos modos, nos parece impossível a Deus é possível, a Deus é possível. E, no fundo, é esta confiança naquilo que só em Deus é possível, só em Deus é possível.
Nós, nas duas leituras anteriores, tivemos o livro do Génesis, que é a construção de um embaraço, de um obstáculo, de uma falta original, e depois temos a leitura da Carta de S. Paulo aos Efésios que é dizer: “Não, nunca nos faltou a bênção de Deus, a santidade é uma chuva que nos inunda, que nos molha, Deus está sempre, desde o princípio, vede com que admirável amor o Pai do céu nos abençoou com todas as bênçãos espirituais.”
Quer dizer: nunca nada nos faltou, Ele esteve sempre connosco. Nós só compreendemos isto por debaixo da pele, por debaixo, às vezes, de muitas dúvidas, por debaixo de muito estremecimento, por debaixo de muito questionamento. Mas é importante sabermos isso, que Ele esteve sempre connosco, que nós somos seus filhos e que nós somos seus herdeiros. E que muitas vezes no limite, na dificuldade, no questionamento radical Deus transmitiu-nos alguma coisa.
Como aquela mãe do filme do Nanni Moretti, na cama do hospital ela transmitiu tanta vida àqueles filhos porque cada um pode recomeçar, reconstruir a sua história em relação com aquilo que estava a acontecer, em relação consigo mesmos, fazendo um balanço novo da sua própria história. Deus é o parteiro da nossa alma. O tempo do Advento é um tempo que fala disto, de gravidez, de espera e de parto. É por isso, perante o nascimento, perante o nosso nascimento que nós estamos colocados.
Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade da Imaculada Conceição
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2015/12/08 - Leitura comentada da 1ª Carta de João
Na abertura do Ano Santo da Misericórdia, Luís Miguel Cintra lê a 1ª Carta de João, a que se seguirá um comentário sobre a mesma com o ator e o Pe. José Tolentino Mendonça. Será no dia 8 de dezembro, às 21h30, na Capela do Rato.
2015/12/06 - Preparai, aplanai, endireitai (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
É muito forte este oráculo de Isaías, que nos apresenta uma imagem topográfica, geográfica. É como se fosse um movimento das terras. É como se fosse um aplanar, retirar altura aos montes, aplanar o próprio vale. Isto é: mover a terra da forma como nós a conhecemos para que toda a carne possa ver a Salvação de Deus.
Por trás do oráculo há esta convicção de que a Salvação de Deus se pode ver, que todos a podem ver. E que, no fundo, a nossa própria topografia, os montes que fazemos, os vales, os abismos, as colinas muitas vezes são obstáculos para que a Salvação de Deus se possa ver, se possa provar, se possa experimentar. E então este imperativo profético: “Preparai, aplanai, endireitai.” Este imperativo é em nome dessa convicção adventícia de que é possível ver a Salvação de Deus, de que é possível.
Mas isso passa por um refazer, um reconfigurar da nossa vida, da vida que nós diariamente construímos. Há uma reconfiguração que o Natal nos pede. Isto é: a vida de cada um de nós é também chamada a reconfigurar-se, a ganhar uma nova forma. Sermos um novo território com aquilo que já somos, com aquilo que caminhamos, com aquilo que possuímos mas darmos uma volta, constituirmos uma alternativa – é o desafio que o Advento nos deixa.
O Advento não é para confirmar, é para alavancar, para reconfigurar, para transformar a nossa vida. É muito significativo o modo como o narrador de S. Lucas dá um salto. Começa por aquele endereço histórico no tempo de Tibério, no tempo de Pilatos, no tempo de Herodes, no tempo de Filipe, no tempo de Lisânias, apareceu João Batista no deserto. Isto é: no tempo dos reis, no tempo do mundo formatado com a autoridade de todos os tempos, Deus aparece como um anúncio que é feito no deserto. Isto é: como uma alternativa, como num lugar outro, num ponto de fuga em relação à nossa vida.
Também naquilo que vivemos há um deserto. Isto é: há uma outra possibilidade, há um outro lugar a partir do qual podemos reconstruir a nossa vida. É muito belo que as leituras de hoje falam todas disso mas partindo de duas experiências diferentes.
O Advento pode-se viver como um regresso, como um regresso. É isso que nos fala o profeta Baruc. Israel está no exílio e Israel vai ser trazido para a terra. Então, nós, em cada Natal, somos arrancados dos nossos exílios e somos feitos retornar, somos feitos voltar ao centro. Nós todos sabemos o que é a experiência do exílio, todos conhecemos porque todos vivemos no concreto, na vida, uma situação de exílio existencial, de exílio interior.
Há aquele poema de Sophia de Mello Breyner Andersen:
“Numa disciplina constante procuro a lei da liberdade
medindo o equilíbrio dos meus passos.
Mas as coisas têm máscaras e véus com que me enganam,
e, quando eu um momento detida me esqueço, a força
perversa das coisas ata-me os braços e atira-me,
prisioneira de ninguém mas só de laços, para o vazio
horror das voltas do caminho.”
Todos nós sabemos o que é estar prisioneiro de ninguém. Prisioneiro de ideias, prisioneiro de fantasmagorias, prisioneiros de coisas não cumpridas, prisioneiros não da verdade mas só de laços no vazio horror das voltas do caminho.
Pois o Senhor faz-nos voltar e este é também um tempo para sermos resgatados do exílio e sentirmos que Aquele que vem, Aquele que nasce na manjedoura, este Deus feito homem resgata a nossa vida dos seus exílios, das suas prisões, traz-nos colo com a alegria, com a consolação. Porque a palavra que Baruc diz a Jerusalém é: “Levanta-te, levanta-te dos teus escombros, das tuas ruínas, olha, vê a glória de Deus.” Então, de facto, um modelo é sentirmos que temos de voltar. E se calhar cada um de nós no seu coração sente: “Não, eu tenho de voltar, eu tenho de reavivar a chama, eu tenho de voltar a ser, eu tenho de voltar a sentir, tenho de voltar a dizer «sim» com mais convicção.” Então é como que um acordar, como que um regressar a casa, o próprio Natal. Não a casa de uma infância idealizada, mas a casa que é o coração de Deus. Temos de voltar.
Mas há um outro paradigma que é dado pela carta aos Filipenses. A comunidade de Filipos é um caso interessante na história de S. Paulo, porque se calhar é aquela comunidade à qual Paulo ficou afetivamente mais ligado. Há ali uma história de amizade muito bonita. Os Filipenses ajudaram imenso Paulo de todos os pontos de vista. Paulo estava preso e os Filipenses fizeram tudo para lhe garantir o sustento, a proteção. Há ali uma bela amizade que se vê explicitada quando Paulo agradece aos Filipenses na carta que lhes escreve.
Mas Paulo diz uma coisa: “A fé que eu semeei em vós e que já mostraste provas tão importantes, ela ainda é uma semente. Então é preciso crescer, é preciso continuar a crescer. Por isso, peço que a vossa caridade cresça cada vez mais em ciência, em discernimento para que vos torneis dignos do dia de Cristo.”
Então, se calhar, além da imagem do regresso há também esta imagem do crescimento, há uma semente no coração de cada um de nós. A nossa relação com Deus, o nosso desejo de Deus, o sim que já dissemos a Jesus é uma semente, mas este é o tempo para crescer, este é o tempo para sentir: “Eu posso fazer mais, eu posso comprometer-me mais, eu posso conhecer melhor, eu posso crescer em ciência, em discernimento, em oração.” Este é o tempo do grande apelo a uma maturação da fé, porque Deus faz-se pequenino para que cada um de nós possa crescer e possa verdadeiramente acolhê-lo.
Mas estas duas imagens são imagens para aqueles que já estão dentro, para aqueles que já foram tocados pelo mistério da fé. Quer os que regressam dos seus exílios, quer aqueles que são chamados a desenvolver aquilo que já lhes foi dado. Já estão dentro, já foram tocados, já conhecem a Salvação de Deus, têm é de despertar, têm é de fazer mais, mas já estão dentro.
Mas há um outro modelo que o Advento não deixa de fora: são aqueles que ainda não foram tocados pelo mistério da fé e que guardam no seu coração a fome de Deus. É importante rezar por aquilo que Deus pode fazer no coração de cada homem, no seu mistério, acreditando nesta palavra que vem no oráculo do profeta Isaías e que se torna uma chave no Evangelho de S. Lucas: “Toda a carne verá a Salvação de Deus.”
Esta universalidade da Salvação é alguma coisa pela qual nós somos responsáveis, pela qual nós temos de rezar. Temos de sentir no nosso coração o desejo muito grande de que Deus possa, do modo como Ele quer, da maneira que só Ele sabe, da forma como só Ele pode, possa iluminar cada coração, cada vida. E rezar pelo mistério da fé que existe em nós e existe nos outros de forma sempre diferente, de forma sempre única, para que Deus possa, como diz S. Paulo: “Ser tudo em todos.”
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo II do Advento
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2015/12/06 - Poesia em tempo de Advento
O poeta João Moita fará uma leitura de poemas do seu último livro «Fome», na Capela do Rato, dia 6 de dezembro, domingo, às 10h30. João Moita nasceu em Alpiarça em 1984. Publicou O vento soprado como sangue (Cosmorama, 2009), Miasmas (Cosmorama, 2010) e Fome (Enfermaria 6, 2015). Traduziu uma antologia do poeta espanhol Antonio Gamoneda, Oração Fria (Assírio & Alvim, 2013).
2015/12/02 - Deus - conversas de Maria João Avillez com Carminho
“Deus está antes do dom” e o de Carminho é “abrir portas”
Nas “Conversas sobre Deus”, moderadas por Maria João Avillez, a fadista Carminho falou do seu dom, explicou que a sua vocação não é cantar e confessou que quis ser carmelita.
“Nasce-se artista”, garantiu Carminho numa conversa numa noite fria em que a Capela do Rato se encheu para ouvir a fadista, não a cantar, mas a percorrer as suas memórias de infância e juventude e a mergulhar na sua fé.
Depois de batalhar com o microfone, Carminho foi respondendo às perguntas que a jornalista Maria João Avillez lhe colocou. Sobre a “luz da sua voz”, a fadista falou de um “dom” e explicou que tinha uma “bênção” de ter descoberto a sua vocação. Mas desenganem-se os que pensam que essa vocação é o fado. Carminho afirma que “a vocação não é cantar” e explicou que a sua vocação está na forma como, através do canto, chega aos outros e conclui: “A minha vocação é abrir portas”.
Questionada sobre se estava a falar de Deus, Carminho disse que sim porque “Deus está antes do dom, o dom foi dado por Ele”. Esta pré-existência manifesta-se através de “pistas” e é preciso “cruzar informação”. A fadista diz não acreditar em coincidências e sublinha que é preciso ler a Palavra de Deus.
Das memórias de juventude, Carminho recordou uma viagem que a levou por paragens tão distantes como a Índia, Timor ou Brasil. Da passagem por Calcutá lembrou que “quis ser carmelita” e riu-se ao concluir que “iria infernizar o Carmelo”. Foi na Índia que se encontrou consigo própria, foi essa a grande revelação dessa viagem que deixou sementes das quais disse ainda hoje estar “a colher frutos”.
Renascença – para ler o artigo completo e ouvir a conferência clique aqui.
Carminho: Deus é como uma «montanha russa»
Deus é como uma «montanha russa» que desinstala e desafia a ir mais longe, afirmou a cantora e compositora de fado Carminho, no ciclo de conversas sobre Deus organizado pela comunidade da capela do Rato, em Lisboa.
Entrevistada esta quarta-feira pela jornalista Maria João Avillez, em diálogo de que reproduzimos alguns excertos no vídeo publicado logo após este texto, a fadista reconhece que é uma «grande bênção» ter descoberto a «vocação».
Carminho entende que essa «vocação» vai para além do canto, embora a ele recorra, tendo como propósito final dar paz e alegria ao próximo, que tanto pode ser um menino de rua como o público que assiste aos seus espectáculos.
A volta ao mundo, e em particular o voluntariado que prestou na cidade indiana de Calcutá, com as Missionárias da Caridade, foi um dos principais temas da conversa.
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura – ler o artigo completo aqui.
Novembro
2015/11/29 - Uma porta que se abre (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
O Santo Padre está, como sabemos, a realizar uma visita apostólica ao Continente Africano, visitando três países : começou pelo Quénia, passou pelo Uganda e agora chegou à República Centro-Africana. Um pequeno país, com cerca de cinco milhões de habitantes, mas completamente devorado pela violência e, em grande medida, uma violência e uma perseguição de natureza religiosa. O Santo Padre recebeu múltiplos avisos e sinais para não se deslocar àquele país, dizem que é a visita mais perigosa de sempre de um Papa, mas ele arriscou e, esta manhã, chegou já à República Centro-Africana.
Estamos a falar dessa visita porque o Santo Padre decidiu antecipar o gesto de abertura do Ano Santo numa semana. Pela primeira vez, a Porta Santa, a primeira Porta Santa a ser aberta, não será como é tradicional, a porta da Basílica de S. Pedro, mas será a porta da Catedral de Bangui, capital da República Centro-Africana. De maneira que, de certa forma, com esta antecipação é também o Ano Santo que começa. Começa, não no centro da cristandade, não no centro simbólico, mas numa periferia. E numa periferia cheia de complexidade, ferida pelo maior sofrimento. Ali há uma porta que se abre.
E nós, cristãs e cristãos, começamos a viver este Advento sob o signo do Ano Santo, sabendo que no coração deste Advento começa o Ano Santo, o Ano da Misericórdia. É-nos oferecido precisamente este símbolo: o símbolo de uma porta, de uma porta que se abre. É importante, cada um de nós sentir que esta porta que se abre na Catedral de Bangui, na Basílica de S. Pedro, que se vai abrir na Sé Patriarcal de Lisboa, esta porta antes de tudo tem de se abrir no coração de cada um de nós. É na nossa vida, é no fundo da nossa alma, é no concreto escaldante da realidade que somos e vivemos que uma porta se tem de abrir.
Temos de abrir uma porta onde possivelmente está um muro, temos de abrir uma porta onde possivelmente tudo está barricado, temos de abrir uma porta onde está o silêncio, onde está o vazio, onde está a solidão. Temos de abrir aí uma porta.
O tempo do Advento deste ano é por isso um grande desafio a cada um de nós a abrir uma porta para Aquele que vem, para Aquele que bate à nossa porta, segundo a belíssima imagem do Livro do Apocalipse: “Eis que Eu estou à porta e bato, se alguém me abrir Eu entrarei, cearei com ele e ele comigo.”
É fundamental, queridos irmãs e irmãos, que cada um de nós sinta isso, que Jesus está à nossa porta e bate, que este é o tempo da nossa libertação, que esta é a oportunidade concedida à nossa vida, que o tempo do Advento que nos prepara para o Natal é uma espécie de alavanca da nossa humanidade. Deus vem ao nosso encontro para que nós possamos ir ao encontro de Deus.
Deus humaniza-se para que a nossa vida se divinize um pouco mais. Para que cada um de nós receba, na sua carne humana, nesta vida de argila, de barro, de sangue, de sonhos, de lágrimas, para que cada um de nós receba com mais intensidade o sopro do Espírito. Esse Espírito que vem de Deus e vem do Filho que está junto do Pai, esse Espírito que em nós testemunha que Jesus está vivo, que Ele caminha connosco, esse Espírito que em nós nos prepara para o grande encontro com Cristo. Este tempo do Advento, sendo uma oportunidade, é por isso um tempo muito espiritual.
Nós, atravessando as ruas da cidade, entrando num centro comercial, já encontramos o Natal feito. E, sem dúvida, sentimos mixed feelings, sentimo-nos divididos. Por um lado, ainda bem que a cidade dos homens e que o comércio dá atenção a estas coisas e perpetua os símbolos cristãos. Mas, por outro lado, aquilo é tão pouco se não for acompanhado por um caminho de humanidade, de consciência, de um abrir de portas, de um abrir de portas mais profundo que a simples reativação ou intensificação do comércio.
O tempo do Advento é, por isso, para nós, uma responsabilidade. É um tempo de profundidade, um tempo de intimidade com Deus, um tempo para crescermos interiormente, um tempo para acender uma luz, e também ficar a olhar e preparar o nosso coração para Aquele que vem. Um tempo de esvaziamento, não um tempo para encher de todo o ruído simbólico. É um tempo de disponibilidade para acolher o Deus que vem.
Pensando nesta porta que cada um de nós é chamado a abrir, eu diria que temos de encontrar uma porta em três níveis da nossa vida.
Primeiro: encontrar uma porta na nossa relação com Deus, abrirmos a porta. Às vezes Deus está perto, mas está do outro lado da porta. Tem de haver uma porta que se abre na nossa espiritualidade, e abre-se porque nós sentimos aquilo que hoje o Evangelho nos diz: sentimos a promessa de Deus como uma promessa que nos é feita.
É muito belo porque, desde o profeta Jeremias até ao Evangelho de S. Lucas, todos falam no futuro, todos fazem uma promessa: “O Senhor vem ao teu encontro, levanta os teus olhos, levanta a tua cabeça porque o tempo está próximo, porque o Senhor vem ao teu encontro.” Quer dizer, há uma promessa de vida feita a cada um de nós.
A nossa vida não está capturada pela fatalidade. Eu não posso dizer: ”Bem, agora já não vai acontecer nada de novo, agora estou perdido, agora já sei como é, agora isto já perdeu toda a graça, agora já perdeu todo o mistério.” Não, a nossa vida é sempre cheia de graça, a nossa vida é sempre visitada pelo mistério. Nós somos visitados por anjos como Maria foi visitada, nós somos seres visitados pela promessa incondicional do amor de Deus na nossa vida.
Por isso, o tempo do Advento é também um tempo para nos sentirmos visitados, prometidos, prometidos à alegria, prometidos ao encontro, prometidos à plenitude e não simplesmente prisioneiros de uma vida rasa, de uma vida medíocre, de uma vida afundada nas suas complicações que já não vai levantar voo nunca. Não, nós vamos levantar voo, nós vamos levantar voo. E vamos levantar voo precisamente na medida em que abrirmos a nossa porta a este encontro com Deus.
Por isso o imperativo de Jesus: “Vigiai e orai.” Este tempo do Advento seja para cada um de nós um tempo para vigiar. Vigiar é um tempo para a atenção, para olhar verdadeiramente porque Deus passa pela nossa vida todos os dias, de tantas formas. O problema é que nós ao fim do dia, ou a meio do dia, não perguntamos mais vezes: como é que Deus hoje passou pela minha vida? Através de que pessoas? Através de que acontecimentos? Através de que pensamentos? Deus passou de forma muito concreta, muito viva, pela minha vida.
Nós temos de fazer esta pergunta porque Ele passa, Ele passa continuamente pela nossa vida e quando passa não nos deixa iguais, transforma-nos se nós abrirmos a porta.
Portanto, dedicarmos a Deus uma atenção, uma vigilância espiritual, termos o nosso coração iluminado, deixarmos uma luz acesa dentro do nosso coração ao Deus que vem.
E depois, a oração. Este é um tempo para multiplicarmos a oração, a oração em família. Por exemplo, juntamente com as crianças, junto do presépio, em cada noite, poder fazer um caminho até Jesus. E cada um de nós, mesmo vivendo sozinho, encontrar com a ajuda dos símbolos uma forma de fazer um caminho na oração, em que rezamos com as palavras tradicionais, com palavras novas, com gestos. Com símbolos encontrarmos uma forma de fazermos um caminho juntos, crescendo na oração.
Nós também aqui, em comunidade como é habitual, com a ajuda do artista plástico Rui Aleixo, vamos fazendo esses caminho em cada domingo do Advento: temos uma imagem e temos uma oração para rezarmos aqui e rezarmos ao longo da semana. Este caminho é um caminho em, que dia a dia, nós construímos o presépio, construímos o lugar para Ele vir, abrimos a porta do nosso coração. Mas sobretudo através da oração, que é aquele momento que nos dá a consciência de que estamos diante de Deus. Eu mulher, eu homem, eu criança, eu doente, eu sénior, eu com saúde, eu ativo, eu na reforma, eu estou diante de Deus. Diante de Deus com a minha pobreza, a minha esperança, eu estou diante Dele. Por isso abro as minhas mãos, abro o meu coração, abro a porta da minha vida.
Depois, uma porta importante para abrir é a porta connosco mesmos, a porta com a nossa vida. Sentirmos que a palavra que Jesus diz, “Levantai-vos, erguei a nossa cabeça”, é uma palavra para nós que muitas vezes ficamos a olhar para os nossos sapatos, quando não a olhar para o nosso umbigo, em vez de abrirmos a porta, em vez de abrirmos uma janela, em vez de olharmos mais longe. Este é o tempo para levantarmos a cabeça.
Isto é, para sentirmos que a esperança é maior, que o chamamento de Deus é maior, que a força de Deus é maior. E se estendermos a nossa mão frágil, se pusermos a nossa mão frágil do outro lado da porta a mão de Deus virá ao nosso encontro.
Sentirmos isso na vida de cada um de nós, e sentirmo-nos chamados ao acolhimento, sentirmo-nos protagonistas desta história. Nós não somos espetadores da Salvação, nós somos artesãos, criadores, artífices, coprotagonistas da Salvação. A Salvação escreve-se com as nossas vidas, com os nossos nomes, com o nosso temperamento, com as oportunidades que cada um de nós tem, e sabe quais são. A Salvação escreve-se aí.
Por isso, este tempo é um tempo também de agitação, é um tempo também para fazer alguma coisa, é um tempo também para sacudir rotinas, é um tempo também para cada um de nós fazer um pouco mais do que aquilo que faz, sabendo o essencial, não perdendo de vista o essencial, que é sempre a verdade mais profunda, que é sempre a autenticidade, que é sempre o abraço que nós sentimos que Deus nos dá e que nós somos chamados a dar aos outros. Porque a terceira porta que nós temos de abrir é esta porta para os outros. Sentindo que a nossa vida é não só uma obra dos outros, mas nós somos dom para os outros.
Nós estamos aqui, queridos irmãs e irmãos, à volta da Eucaristia. A Eucaristia é uma forma sacramental de dizer isto: “A vida é dom.” Nós servimos de alimento aos outros, nós somos o pão que os outros comem, nós somos o vinho da festa que os outros bebem, nós somos a palavra que segura a vida dos outros e é como um fio de luz na noite escura da vida. Nós somos isso uns para os outros e é quando a nossa vida é pão partido, que se distribui e se reparte, que a nossa vida se torna expressão da vida de Jesus, que a nossa vida também se torna Eucaristia.
Queridos irmãos, nós não estamos aqui em Eucaristia, não estamos a começar este tempo belíssimo do Advento para sermos pão que fica no saco e endurece de um dia para o outro, nós estamos aqui para ser dádiva, para aprender de Jesus o que é tornar a nossa vida dom.
O tempo do Natal, tradicionalmente, é um tempo de presentes, é um tempo de pensar nos outros. É muito importante pensar na forma dos presentes e naquilo que os presentes significam, dando, de facto, um sentido. Porque é tão fácil entrar na corrida, é tão fácil entrar no movimento cego, no tráfico sonâmbulo que o comércio nos impõe. O que quer que se venha a fazer, o que quer que cada um sinta no seu coração, qualquer que seja o modo de cada um exprimir o seu afeto, o seu dom, é importante que seja profundo, que seja autêntico, que seja iluminado por Jesus – que seja um abrir de porta, porque às vezes os presentes funcionam como fechar a porta: “Olha, toma lá e não me chateies. Toma lá, e já está. Toma lá e já cumpri a minha obrigação anual.” ou então “Toma lá e dá cá.” Abrir realmente uma porta, escancarar esta porta da misericórdia, neste Ano Santo.
Não podemos esquecer isso: este Advento tem de ser marcado pela palavra misericórdia, por aquilo que a misericórdia significa. Porque Jesus nasceu porque Deus teve misericórdia de nós e deu-nos o que Ele tinha de mais precioso: o Seu próprio Filho. Este Natal cada um é chamado a abrir uma porta santa na sua vida mas fazendo misericórdia, oferecendo misericórdia. Fazendo da misericórdia a nossa arte, a nossa ciência, a nossa sabedoria.
Pe. José Tolentino Mendonça, I Domingo do Advento
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2015/11/26 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2015/11/25 - Deus - conversas de Maria João Avillez com Pedro Mexia
“A Bíblia está cheia de instruções que não compreendemos”
A “Conversa sobre Deus” desta semana passou por vários poemas, filmes, livros, citações de vários autores, com predominância para Kierkegaard e T.S. Elliot. E por muitas referências ao Livro de Job, um livro sapiencial do Antigo Testamento que conta a história de um homem que mantém a fé em Deus, apesar de todas as duras provas a que é sujeito. Com este livro, o cronista e poeta Pedro Mexia aprendeu que Deus não dá as respostas a todas as perguntas.
“Nós esperamos respostas de Deus, mas há muitos livros que não são satisfatórios no sentido imediato de quem procura um Manual de instruções”, disse Pedro Mexia na conversa com Maria João Avillez, esta quarta-feira, na Capela do Rato, em Lisboa. E acrescentou: “A Bíblia está cheia de instruções que não compreendemos.”
Mas essa dimensão de incompreendido, de mistério é central na vivência cristã do ensaísta, para quem o cristianismo “é uma relação com o transcendente e não apenas um conjunto de regras, de crenças, de códigos éticos”.
“O cristianismo a que se retira a dimensão metafisica é um edifício respeitável, mas não passa de uma espécie de ONG”, disse Mexia, depois de explicar que “entre os homens de boa vontade” há a tendência para olhar para os crentes e pensar ou dizer “isto são tudo umas ‘patranhas’, mas, se estas pessoas são melhores por causa disto, ainda bem”. Essa não é contudo a sua visão. “Isso pode ser fonte possível de diálogo entre crentes e não crentes, mas não me diz muito”, afirmou o convidado desta semana, que, à semelhança de Fernando Santos, na semana passada, gosta de citar São Paulo e a máxima: “Se Cristo não ressuscitou é vã a nossa fé.”
Pedro Mexia reconheceu que o seu catolicismo é, em parte, fruto de um “percurso familiar”, mas não só, pois muita gente que conhece e que fez o mesmo percurso não tem hoje fé e saiu da Igreja. “Há uma certa transmissão de valores e de hábitos, nos quais, no meu caso, o catolicismo fazia parte, mas há um momento em que tem de se ficar em pé na bicicleta, sem as rodinhas da transmissão familiar”, disse. Ou seja, há um momento de decisão pessoal, acredita este cronista, que diz ter “uma espécie de pudor religioso” e prefere “viver a fé como um assunto íntimo”.
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2015/11/18 - Deus - conversas de Maria João Avillez com Fernando Santos
Fernando Santos: «Ser católico é uma exigência muito forte»
«Sempre falei com Deus ao longo da minha vida», confessou esta quarta-feira o selecionador nacional de futebol, Fernando Santos, para quem «ser católico é uma exigência muito forte».
Antes de ser dado o apito inicial para a conversa com a jornalista Maria João Avillez, no âmbito do ciclo de encontros sobre Deus organizados pela comunidade da Capela do Rato, em Lisboa, já os repórteres o esperavam na zona mista para obter uma reação à crítica que o Futebol Clube do Porto lhe lançou devido à utilização de jogadores no jogo particular com o Luxemburgo, disputado na terça-feira.
«Não vou falar sobre essas questões, hoje vou falar sobre questões de fé, que é muito mais interessante», respondeu. Foi assim, como um aquecimento, que começou o testemunho de Fernando Santos, de que apresentamos alguns excertos, no vídeo abaixo publicado.
Rezar é a primeira coisa que faz quando acorda, e pouco depois segue-se a leitura dos trechos bíblicos proclamados na missa do dia, em que procura participar, quer esteja em Portugal ou no estrangeiro. Um compromisso que suscita curiosidade, pois não é todos os dias que se está ao lado, na Eucaristia, do selecionador nacional.
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Fernando Santos. Uma fé alimentada na Eucaristia
É junto ao sacrário que mais gosta de rezar, é na Eucaristia que alimenta a sua fé, é em S. Paulo que encontra as palavras para dar testemunho – é assim a fé testemunhada por Fernando Santos, seleccionador nacional de futebol, em mais uma sessão das Conversas sobre Deus, iniciativa que decorre semanalmente na Capela do Rato, em Lisboa, moderada por Maria João Avillez.
A conversa começou com a jornalista a contar que, há uns anos, numa missa semanal em Cascais, se cruzou com Fernando Santos. “Pensei ‘Que estranho!’ Percebi que só podia ser sinal de uma relação não rotineira com Deus”, contou Maria João Avillez. “Percebi que preciso alimentar a fé. Percebi que podia alimentar a fé na Eucaristia”, disse Fernando Santos, contando que, desde 1994, a primeira coisa que faz é rezar e ler as leituras da missa do dia.
Para o seleccionador nacional, ser católico é “uma exigência muito forte”, é “acreditar em Cristo vivo que ressuscitou” e dar testemunho disso é como que uma militância: “Não podemos deixar de dar testemunho independentemente da profissão que tenhamos.”
Fernando Santos contou que nasceu numa família cristã, mas que não tinha prática religiosa. Andou na catequese, foi crismado, mas depois foi-se afastando. “Sabia que havia Deus, não mais do que isso”, recordou. Mas nunca deixou de rezar ao Anjo da Guarda.
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2015/11/16 - O pacto das catacumbas
Publicações: 50 anos depois do «Pacto da Catacumbas», Papa Francisco trouxe «novo impacto na vida da Igreja»
O cardeal-patriarca de Lisboa afirmou que recordar «O Pacto das Catacumbas» é dar “um novo realce e novo impacto na vida da Igreja”, 50 anos depois deste compromisso.
“O pacto com o radicalismo evangélico em torno da pobreza que teve e nos deixou é, mais uma vez, um daqueles estímulos que quase ciclicamente é dado à Igreja toda para voltarmos ao princípio que nos define como cristãos”, explicou à Agência ECCLESIA D. Manuel Clemente, que apresentou a obra esta segunda-feira, na Capela do Rato.
O livro ‘O Pacto das Catacumbas’, de Xabier Pikaza e José Antunes da Silva, recorda os 40 bispos que se reuniram nas criptas de Santa Domitila, Roma, a poucos dias do final do Concílio Vaticano II, em novembro de 1965.
O cardeal-patriarca de Lisboa disse que este compromisso que os bispos firmaram, de «viver um estilo de vida simples e a exercer o seu ministério pastoral de acordo com critérios evangélicos», é ainda “um bom sinal do Concílio Vaticano II”.
“Muito inserido numa certa linhagem correspondendo ao apelo do Papa João XXIII. Os pobres sociologicamente falando e a pobreza em sentido mais englobante ganharam uma grande prevalência e mesmo na tradição católica deixaram de estar tão ligados ao trabalho de algumas congregações religiosas”, recordou D. Manuel Clemente.
O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa sustentou que a “encarnação” deste pacto hoje é o Papa Francisco.
“Creio que para mim, como para todos os meus colegas do episcopado, é uma figura muito estimulante e desafiante para esse radicalismo evangélico. Creio que a melhor figuração do pacto, 50 anos depois, é a pessoa e protagonismo eclesial do Papa Francisco”, desenvolveu o cardeal-patriarca de Lisboa.
A nova publicação, da chancela da Paulinas Editora, foi apresentada na Capela do Rato e o seu capelão destacou que este pacto “é de facto evangélico” porque o bispos procuram fazer um “corte profético”, até com direitos adquiridos.
Agência Ecclesia – ler artigo completo aqui
Cardeal-patriarca apresenta “O pacto das catacumbas – A missão dos pobres na Igreja”
O cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, apresenta esta segunda-feira, na capital, o livro “O pacto das catacumbas – A missão dos pobres na Igreja”, coordenado por Xabier Pikaza e José Antunes da Silva.
«No dia 16 de novembro de 1965, quando o Concílio Vaticano II já se aproximava do fim, 40 bispos reuniram-se nas catacumbas de Santa Domitila, em Roma, para celebrar a Eucaristia e assinar um documento em que expressavam o seu compromisso pessoal com os ideais do Concílio: viver um estilo de vida simples e a exercer o seu ministério pastoral de acordo com critérios evangélicos», explica o texto de apresentação do volume, publicado pela Paulinas Editora.
O “Pacto das Catacumbas” é «um compromisso pessoal de cada um daqueles bispos, mas é também, simultaneamente, um desafio para toda a Igreja e um instrumento para aferir a sua fidelidade ao Evangelho», continua a nota, acrescentando que a iniciativa remonta a três anos antes, no «momento em que se constituiu o chamado grupo “Igreja dos pobres”, na sequência do apelo radiofónico de João XXIII».
«Perante os países subdesenvolvidos, a Igreja mostra-se como aquilo que ela é e quer ser: a Igreja de todos e, sobretudo, a Igreja dos pobres», afirmou o papa que convocou o Concílio Vaticano II, a 11 de setembro de 1962, cerca de três meses antes do início dos trabalhos conciliares. Desde então, o grupo reuniu-se quase semanalmente para refletir sobre o que acontecia nas assembleias plenárias à luz do tema “Igreja dos pobres”.
Na crónica que assina semanalmente no jornal “Expresso”, José Tolentino Mendonça acentua que «a força profética e política dos 12 pontos desse pacto», assinado fará esta segunda-feira 50 anos, «e a exemplar fidelidade dos seus protagonistas» fazem desse acordo «um dos documentos fundamentais para entender algumas das horas mais luminosas do catolicismo contemporâneo».
«Que se propunham os bispos? A revolução da simplicidade.» A lista é longa, mas significativa: «Deixar os palácios episcopais e viver em casas iguais às das suas populações. Renunciar aos sinais exteriores de riqueza e à riqueza em si. Não possuir imóveis nem contas bancárias em seu nome. Confiar a gestão financeira e material das dioceses a comissões de leigos competentes e cônscios do seu papel apostólico; recusar-se a ser chamado, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder, preferindo ser chamado com o nome evangélico de padre».
Para Tolentino Mendonça, o pacto das catacumbas «recorda que o Deus em que os cristãos creem não plana acima das questões escaldantes da história: Ele aparece claramente comprometido com a justiça e uma ordem social de equidade, manifestando-se a favor dos mais pobres».
A sessão de apresentação do livro, de que oferecemos seguidamente um excerto, decorre na Capela do Rato, em Lisboa, às 18h30
Uma espiritualidade a partir do pobre para toda a Igreja
Maria Clara Bingemer
In “O pacto das catacumbas”
Ser pobre com os pobres: uma conversão pessoal
No texto assinado pelos bispos, há diversos elementos que dizem respeito a uma conversão pessoal, a uma mudança dos aspetos pessoais da vida de cada um. Em que consiste essa conversão?
Em primeiro lugar, em «ser como as pessoas», ou seja, em ser o mais humano possível, o mais parecido e semelhante a todos os irmãos e irmãs em humanidade, de um modo próximo e fraterno. Assim, segundo os signatários do Pacto, por exemplo, o episcopado deixa de ser uma dignidade que afasta e que requer elementos vivenciais de conforto e até de luxo, para se tornar a vida simples e humilde de um servo dos demais.
É isso que exprime claramente o ponto 1 do texto, ao dizer: «Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo o que daí deriva. Cf. Mt 5,3; 6,33s; 8-20.» Estamos perante uma opção de vida. Trata-se de abandonar os palácios episcopais para ir viver numa casa simples, como a maioria das pessoas; deixar para trás as refeições finas e requintadas, para se alimentar simplesmente, como a imensa maioria das pessoas; de usar os transportes públicos, em vez de veículos particulares.
Esse parágrafo implica uma determinação forte e profunda que leva realmente a uma mudança de vida de modo radical e profundo. E há muitos outros detalhes noutros parágrafos do Pacto que apontam para essa conversão radical e para essa vivência no mais profundo de cada um de uma espiritualidade evangélica de estar próximo e de viver como os pobres.
Por exemplo, a renúncia abarca não só a posse de bens, mas inclusivamente a aparência de riqueza no vestuário, nos símbolos usados (como a cruz peitoral, o báculo e a mitra). Isso implica que a figura do bispo já não deva ser uma figura que se impõe pelo seu aspeto, mas que se confunde com a gente simples. Nesse sentido, os bispos sentem-se chamados a ser como os primeiros Apóstolos, de quem são sucessores, e a não ter «ouro nem prata», mas Jesus, o Nazareno, como galardão e ornamento.
Quanto à posse de bens, o Pacto explicita que os seus signatários não possuirão bens «móveis ou imóveis», ou seja, não serão proprietários de nada, como os pobres do seu povo, que não têm onde reclinar a cabeça e que, por vezes, são forçados a ver a pobre casinha, que construíram com as suas próprias mãos, destruída por chuvas torrenciais, inundações, fogo, tempestades ou outras catástrofes. Afastam-se, de igual modo, do sistema financeiro capitalista em que vivem, quando declaram a sua renúncia à posse de contas bancárias e tudo o que das mesmas deriva: crédito, dinheiro fácil, multibanco, etc. Por fim, tudo aquilo que dá segurança num sistema que valoriza o dinheiro acima de todas as coisas, e que os pobres jamais poderão ter. Contudo, entendem, de forma realista, que por vezes talvez tenham de possuir algum bem. No entanto, nada deverá figurar em seu próprio nome; pelo contrário, sempre em nome da diocese ou das obras sociais ou caritativas.
Para fundamentar essa decisão de viver ao contrário do mundo e do sistema em que estão inseridos, citam os textos bíblicos de Mt 6,19 e Lc 12,33s, recomendando estes que não se acumulem tesouros aqui na terra, pois ficarão expostos à ação predadora do tempo e dos ladrões. É preferível vender o que se possui e dá-lo em esmola. O tesouro de um discípulo e apóstolo de Jesus Cristo deve estar no Céu, ou seja, no Reino do Pai. Só aí não se gastará, não se esgotará nem será destruído. Ou seja, deve ser oferecido, dado, aos que precisam, pois é aí que o quer Deus. Onde está o tesouro, aí também está o coração, e o coração de um pastor deve estar com as suas ovelhas, ser sensível às suas necessidades e solícito em assisti-las e satisfazê-las.
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2015/11/15 - O sentido do provisório (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
A aproximação do final do ano litúrgico, que se conclui no próximo domingo com a festa de Cristo Rei, lembra-nos uma verdade que muitas vezes, engolidos pela experiência do tempo, nós esquecemos. Essa verdade é que a experiência cristã é também uma experiência apocalíptica.
Isto o que é que quer dizer? Quer dizer que a experiência cristã olha para o mundo enquanto construção, enquanto representação – esta construção e esta representação que nós conhecemos como provisórias. O cenário do mundo é passageiro. Isto é, tudo aquilo que nós vemos, que nós construímos, que nos serve como lei, como regra, como norma, como cultura, tudo isso tem uma dimensão provisória.
É como se vivêssemos nas verdades penúltimas. E depois, haverá as verdades últimas. Quer dizer, este cenário do mundo, esta ordem do mundo, tem de se confrontar com a verdade definitiva, com o Absoluto, com aquilo que não passa. Esse confronto, esse diálogo do provisório com o Absoluto, é um diálogo que faz estremecer o provisório, que mostra a insuficiência do provisório. Mostra como as nossas obras, as nossas construções, aquilo que nos apaixona, aquilo que nos parece a coisa mais importante e mais prioritária, muitas vezes é relativizado por uma outra ordem, essa sim mais importante.
A verdade é que nós no dia a dia esquecemo-nos muito disso e vivemos como se este formato do mundo fosse para sempre, como se as construções que vemos fossem durar eternamente, como se a nossa cultura, os nossos hábitos, passassem a ser uma regra para todos os homens de todos os tempos e de todas as gerações, e não é assim.
Muito daquilo que nós hoje absolutizamos é absolutamente provisório e será superado, será transformado. Porque isso tem a ver com as coisas penúltimas. E é o confronto, sempre necessário, com a verdade última, com a finalidade última, com aquilo que é eterno, que dá um verdadeiro sentido e uma verdadeira dimensão àquilo que nós vivemos, àquilo que nós somos, àquilo a que nós aspiramos.
Nesse sentido, o Cristianismo é, não apenas foi, uma religião apocalíptica. Porque ele não olha para aquilo que hoje nós temos e aquilo que hoje nós somos como definitivo – isso está em superação, isso será criticado, renovado, reavaliado, no encontro com o Eterno. Ser cristão é saber também isso, é olhar para o mundo, olhar para o presente, olhar para nós próprios, para o nosso próprio mundo, para o nosso próprio presente, e não perder uma dimensão crítica.
Isto é, perceber que isto é o que pode ser agora, ou isto é o que temos agora, mas nem sempre será assim. O último juízo, o último olhar, a última validação, a definitiva, será de Deus. E isso dá-nos um sentido de humildade muito grande. Eu não posso viver a absolutizar as coisas, tenho que manter o sentido do provisório, o sentido do crítico, o sentido da humildade. Sabendo que é assim agora mas poderá ser de outra forma. É o que eu penso, mas eu tenho que me submeter ao juízo de Deus e ao pensamento de Deus. É agora a Lei universal mas só Deus verá, só Deus decidirá o que é que há de restar de tudo isto que agora nós somos e nós vemos.
Para nós cristãos, o critério último de validação é aquele que Deus nos dá na pessoa de Jesus Cristo. Jesus, a sua vida, torna-se o critério da eternidade. Por isso é que nós vemos esta linguagem apocalíptica que diz: “Tudo cairá, tudo soçobrará, o sol já não será o sol, a lua já não será a lua, já não receberemos a luz, as estruturas do mundo todas se alterarão, virão os anjos de Deus e alterarão aquilo que nós vemos de uma forma radical, colocando tudo em causa.” É uma linguagem simbólica muito forte para dizer isto: o nosso presente, o nosso instante precisa ser criticado, iluminado pelo eterno.
Nós temos de construir uma vida que não seja uma vida fechada, trancada, intransigente na sua própria lógica, como se nós tivéssemos a vida na mão, como se nós fossemos os decisores finais. Não somos. Temos de fazer uma vida que ao mesmo tempo não seja uma vida cínica. Isto é, nós não vivemos no mundo desacreditando no mundo, nós não vivemos não gostando da vida, não gostando dos outros porque o nosso coração está noutro lado. Não é isso. Nós amamos a luz do mundo, nós amamo-nos uns aos outros, nós queremos construir alguma coisa com sentido. Sabemos que o Reino começa a ser vivido aqui, mas também sabemos que a chave do sentido não está na nossa mão. Sabemos que a estrutura do mundo é provisória nas suas formas, e sabemos que o último juízo, a última palavra, é a Palavra de Deus.
E isso, a começar por nós próprios, dá-nos uma liberdade muito grande, um desprendimento muito grande. Olhamos para o mundo sabendo aquilo que depois S. João há de lembrar, repetindo o dito de Jesus: “ Nós estamos no mundo mas não somos do mundo.” Este estar e não pertencer completamente, não coincidir completamente, obriga-nos a uma dimensão profética, a uma dimensão crítica em relação ao que temos, em relação ao que somos, em relação ao que fazemos no próprio tempo.
Mas viver criticamente o presente, abrir-se à alternativa de Deus, abrir-se ao juízo de Deus perceber que nós habitamos o tempo do fim leva-nos a duas coisas fundamentais que hoje as leituras também nos lembram.
Primeiro, leva-nos a um centramento na pessoa de Jesus. Nós estamos a ler, domingo a domingo, a Carta aos Hebreus que é um texto político muito forte, muito contundente e que diz, no fundo, o seguinte: Cristo é a superação da ordem política, da ordem religiosa, da ordem social, cultural como nós a conhecíamos. Jesus supera, Jesus é a própria alternativa ao que nós absolutizamos.
Isso obriga-nos também a deixar cair tanta coisa, a relativizar tanta coisa. Porque Jesus não apenas superou o Sacerdócio antigo, Jesus vai sempre à frente. Isto previne-nos da tentação de às vezes aprisionarmos Deus na nossa lógica, capturarmos Jesus – nós é que sabemos o que Deus pensa, nós é que sabemos o que Jesus julga. Não, nós não sabemos e o que sabemos é que Ele supera, que o juízo de Deus é sempre maior que o nosso.
Nesse sentido, nós crentes não nos substituímos a Deus. Ser crente não é ser dono de Deus, é ser um servidor humilde, é ser um enamorado de Deus, é ter a paixão, sentir o amor em si. Adorar quer dizer amar muito, mas amar não é prender, não é limitar Deus. Pelo contrário, é com a nossa pobreza, colocando-nos a nós próprios no lugar, ampliarmos o amor de Deus, ampliarmos a misericórdia de Deus.
Nós estamos às portas de começar o Ano Santo da Misericórdia, e um dos apelos do Papa Francisco tem sido esse continuamente: “A Igreja não pode ser um funil para a misericórdia de Deus.” Nós não podemos afunilar a história e as vidas dos outros numa lógica muito certinha, muito racional, muito prudente mas onde não se faz a experiência da misericórdia. Nesse sentido, é preciso cada um de nós deixar nas relações uns com os outros, na forma como estamos na vida, como estamos no mundo, como estamos perante nós próprios, Deus ser Deus.
Tu, cristão, deixas, permites que Deus seja Deus? Permites na tua vida, no teu comportamento, na tua maneira de falar, de julgar, de reagir aos acontecimentos? Permites que Deus seja Deus? Ou te colocas tu no lugar de Deus como se soubesses, como se esgotasses o pensamento de Deus?
Ora, a misericórdia, o Ano Santo da Misericórdia, pedem que olhemos para Jesus como Aquele que ultrapassa, como aquele que supera. Mas também como Aquele que nos supera. A misericórdia de Cristo é maior que a minha misericórdia. Seria terrível se a misericórdia de Cristo se esgotasse na pequenina, na ínfima provisão de misericórdia que eu trago. A sabedoria de Deus é maior do que a minha sabedoria. Seria uma tragédia absoluta se eu representasse a sabedoria de Deus, ou se eu pretendesse isso.
Aceitar que Jesus nos supera, que Jesus é maior que o nosso coração, que é maior que as nossas palavras. Isso obriga-nos a uma contenção, a uma liberdade muito grande e à liberdade mais difícil que é a liberdade face a nós próprios – face ao nosso eu, às nossas certezas, aos nossos tiques. Ganhar essa liberdade e perceber: Cristo é maior, Cristo é maior e eu tenho de me confiar a Ele, tenho de aceitar que Ele me supera, que Ele vai à minha frente. Tenho de ser discípulo, não mestre de Jesus, tenho de ser Seu discípulo – vivermos aceitando que Jesus nos supera.
De certa forma, aceitar que o Espírito Santo é maior do que a Igreja, que o mistério de Deus é maior do que aquilo que nós sabemos acerca Dele – essa é a verdadeira dimensão mística – e percebermos que somos servidores da sua compaixão, servidores da sua misericórdia.
Um segundo aspeto, que nos lembra o profeta Daniel. É dizer “Num tempo em que a provisoriedade, a fragilidade, a vulnerabilidade do mundo se acentuam.” (e nós olhamos para o nosso mundo e percebemos isso), o que é que está a emergir com esta violência toda? É a insuficiência do mundo, é a sua ferida, é a sua dor, é a sua guerra, é o seu desencontro, é a sua incapacidade de fazer pontes, é a sua loucura. Mas num tempo como este qual deve ser a nossa atitude? A que é que cada um de nós é chamado? O profeta Daniel lembra-nos o chamamento fundamental dizendo: “Os sábios resplandecerão como a luz no firmamento, e os que tiverem ensinado a muitos o caminho da justiça brilharão como estrelas por toda a eternidade.”
Então, o que é que nos é pedido? Uma grande sabedoria, uma grande sabedoria. Este tempo que nós vivemos, um tempo tão difícil, com desafios tão exigentes, com cenários tão contraditórios, tão paradoxais, este é o momento de sabedoria. Não é o momento para perdermos a cabeça, mas é o momento para arrumarmos a cabeça, é o momento para fazermos um verdadeiro discernimento espiritual, é o momento para nos firmarmos naquilo que é importante, é o momento para buscarmos uma prudência que não é só nossa mas também vem de Deus.
Uma verdadeira sabedoria total, que não é apenas a sabedoria que a ciência, que o conhecimento nos dão, mas é também uma sabedoria humana, uma sabedoria espiritual. Este é o momento em que o mundo precisa de homens sábios, de mulheres sábias que no pequenino da vida, no pequenino da história e no grande, possam apontar caminhos de sabedoria.
Os caminhos de sabedoria que sejam ensinar a muitos o caminho da justiça. É essa capacidade de transmitir: transmitir valores, transmitir esperança, transmitir este sentido profundo de uma justiça que sem a caridade é sempre incompleta, fica sempre aquém da sua missão. Mas aqueles que souberem transmitir e ensinar uma justiça assim, esses permaneceram na eternidade como estrelas acesas no céu.
Queridos irmãs e irmãos, o cenário do mundo é passageiro. O mundo é agitado por uma violência muito grande. Nós sabemos que o mundo, na sua construção, é provisória, e tem de ser criticado por aquilo que é eterno, que é o que Deus nos mostra, este amor radical que Deus nos mostra na vida de Jesus Cristo.
Mas é-nos confiada uma missão, e essa missão resume-se bem nas palavras que hoje Daniel nos lembra: vivermos com sabedoria, procurarmos uma sabedoria do alto para a nossa vida. Não ficarmos a reagir apenas às nossas emoções, procurarmos uma verdadeira sabedoria e ensinarmos a muitos uma justiça que seja verdadeiramente justa, transformadora, iluminadora do mundo.
Porque, aquilo que nós fazemos com amor, aquilo que nós investimos de amor, de sagueza, de fraternidade, isso não é abalado, isso não passa, isso é o princípio da eternidade que nós colocamos no aqui e no agora da turbulência do mundo.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXXIII do Tempo Comum
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2015/11/11 - Deus - conversas de Maria João Avillez com Maria de Belém
«A Doutrina Social da Igreja é uma interpelação permanente», diz Maria de Belém
Maria de Belém, candidata à Presidência da República, considera que as propostas da Igreja católica no domínio social constituem uma «interpelação permanente», especialmente numa época em que a «instrumentalização» das pessoas é «absolutamente esmagadora».
A Doutrina Social da Igreja foi um dos temas mais amplamente tratados na conversa que a antiga Ministra da Saúde manteve com a jornalista Maria João Avillez, esta quarta-feira, no âmbito do ciclo de conversas sobre Deus, organizado pela comunidade da Capela do Rato, em Lisboa.
Na intervenção, de que apresentamos alguns excertos no vídeo abaixo publicado, Maria de Belém sublinhou a importância do ensinamento da Igreja em domínios como o direito ao trabalho, remuneração justa e propriedade.
«Os textos da Doutrina Social da Igreja ajudam-nos a perceber que estamos a regredir», vincou, após expressar a sua surpresa pelo facto de aquele corpo de documentos, com mais de um século, ser largamente desconhecido, inclusive em meios onde não o esperaria.
Questionada sobre o Sínodo dos Bispos, que em outubro debateu, no Vaticano, a questão da família, Maria de Belém afirmou que aguarda com «esperança» os resultados da assembleia, em particular a previsível exortação apostólica que o papa Francisco irá assinar.
A candidata presidencial está consciente de que a pluralidade de perspetivas na Igreja impõe que eventuais mudanças possam demorar: «O tempo tem o seu tempo», referiu, acrescentando que «o tempo longo também é necessário».
A Igreja tem errado ao preocupar-se mais com a «forma» do que com a «substância», além de que poderia estar muito mais presente na vida das pessoas, acentuou Maria de Belém, para quem o papa Francisco foi eleito num momento de «necessidade» e «oportunidade».
Das visitas que fez ao Vaticano quando era titular governamental da pasta da Saúde, no contexto dos encontros organizados pela Pastoral da Saúde, Maria de Belém guarda a imagem do papa João Paulo II como prisioneiro de um sistema, pelo que saúda a decisão tomada por Francisco de não habitar o apartamento reservado aos pontífices, no Palácio Apostólico.
Para Maria de Belém, o atual papa é uma «figura extraordinária» que está a tentar corrigir «erros colossais», ao mesmo tempo que, mesmo enfrentando «riscos», tem transmitido «mensagens muito fortes».
A relação com Deus, os excertos evangélicos marcantes, a ligação entre fé e política, a liberdade de escolha no domínio da religião e a espiritualidade foram também temas abordados por Maria de Belém neste encontro (cf. Artigos relacionados).
O ciclo de conversas com Deus prossegue na próxima quarta-feira, às 21h30, com o selecionador nacional de futebol, Fernando Santos.
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
Maria de Belém: «Sou profundamente cristã»
Maria de Belém, candidata a Presidente da República, declarou-se esta quarta-feira «profundamente cristã», no ciclo de encontros sobre Deus organizado pela comunidade da Capela do Rato, em Lisboa.
Na conversa com a jornalista Maria João Avillez, de que apresentamos em vídeo alguns excertos, a ex-Ministra da Saúde evocou as memórias de Deus na sua casa de infância, realçando a importância da figura do anjo da guarda.
Para Maria de Belém, a vivência da religião implica responsabilidade no agir, proteção, amor e afeto, sendo uma realidade «natural» com que convive «permanentemente»: «Deus é como o ar que respiro».
«Todas as decisões importantes da minha vida passam pela invocação de um poder superior a mim», afirmou quando questionada se Deus entrou na decisão de se candidatar à Presidência da República.
Ainda jovem, ouviu o reitor da igreja da Lapa, no Porto, a falar da ressurreição de Lázaro; ficou-lhe para sempre aquela interpretação, que configurou a sua relação com o catolicismo, marcada por dar prioridade à «razão e emoção» relativamente às normas da Igreja.
«Vou à missa quando acho que devo ir», afirma, acrescentando: «A minha religião é sentimento». Reza com as suas palavras, mas também com o Pai-nosso e a Avé-Maria, orações que aprecia especialmente.
A educação cristã sensibilizou-a para o cuidado pelos «humildes». Diz que a sua «prática de fé é mais feita de ação do que de formalismos» e afirmou a convicção de que «o mundo estaria muito melhor» se houvesse mais preocupação com a «substância» do que com as «rotinas».
Vive marcada pela narrativa evangélica do devedor que foi perdoado e que, como credor, recusou o perdão, atitude que diz testemunhar com frequência. Gostaria de não perder a sensibilidade para a justiça e para a injustiça.
Procura fugir aos conflitos entre a fé e o desempenho de cargos públicos e defende que não deve «exibir» as suas crenças religiosas. Desconfia de quem vai à Missa apenas para ser visto.
Tem a certeza de que a fé não lhe vai impor limites ao mandato de Presidente da República, se for eleita. Nos momentos de decisão, manda a consciência, mas no jogo político sabe que não chega para determinar os destinos do país.
O papa Francisco, o Sínodo dos Bispos sobre a Família e a Doutrina Social da Igreja foram também temas refletidos por Maria de Belém. Proximamente oferecemos uma síntese em vídeo dessas intervenções.
O ciclo de conversas com Deus prossegue na próxima quarta-feira com o selecionador nacional de futebol, Fernando Santos.
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
O Deus natural, sentimental e privado de Maria de Belém
“A Santa Madre Igreja é organização e a minha religião é sentimento” foi com esta frase e uma referência a Antero de Quental que Maria de Belém Roseira, ex-ministra e ex-presidente do PS, resumiu a sua fé e a sua relação com Deus.
No Conversas com Deus desta semana, na Capela do Rato, a agora candidata presidencial falou de religião e de política, dando testemunha de uma vivência de fé individual e de uma relação com Deus que diz ser “natural”, mas que tem dificuldade em “transformar em algo de figurativo”.
Na conversa dirigida por Maria João Avillez, Maria de Belém contou que nasceu numa casa de “católicos praticantes e onde a educação religiosa fazia parte da educação”, mas preferiu definir-se como “profundamente cristã” e disse que acredita no cristianismo “não só como religião, mas como filosofia de vida”.
Aprendeu da mãe “preocupar-se com as pessoas humildes porque as poderosas não precisam” e na família era muito valorizado o conceito do anjo da guarda como sinal de uma “relação de protecção”. Mas questionada sobre quando passou dessa vivencia mais infantil da fé para uma relação adulta com Deus, a candidata presidencial assumiu que tem alguma dificuldade em responder.
“A relação com Deus é uma relação em função de uma ordem universal. Há qualquer coisa que existe, mas que tenho dificuldades em transformar em algo figurativo. É algo como o ar que respiro, é natural, quase não sinto”, afirmou Maria de Belém, que, ao longo de quase uma hora de conversa, foi desfiando uma visão de Deus mais próxima dos conceitos New Age (designação genérica para correntes de espiritualidade que misturam conceitos espirituais e psicológicos e uma simbiose com o meio envolvente e com a natureza) do que do Deus Uno e Trino da Igreja Católica.
“Não sou dogmática”, afirmou várias vezes a ex-ministra da Saúde, acrescentando: “A minha prática de fé é mais feita em acção do quem em formalismo, sou mais sentimento do que forma, sou muito mais acção e substância do que forma.”
2015/11/10 - MRAR - Os anos de ouro da arquitetura religiosa em Portugal no século XX
A Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa (FAUL) atribuiu esta terça-feira o Prémio Professor Manuel Tainha a João Alves da Cunha, que no ano letivo de 2013/14 obteve a melhor classificação em Dissertação no Doutoramento em Arquitetura.
A investigação do membro do Grupo de Arquitetura do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura foi recentemente publicada com o título “MRAR – Os anos de ouro da arquitetura religiosa em Portugal no século XX”.
A obra da Universidade Católica Editora, que vai ser apresentada a 10 de novembro, às 18h30, na Capela do Rato, em Lisboa, pelos prefaciadores, João de Almeida, Diogo Lino Pimentel e José Manuel Fernandes, «procura dar a conhecer a história do Movimento de Renovação da Arte Religiosa (MRAR), fazendo um retrato detalhado da sua ação nas décadas de 1950 e 1960», refere a sinopse.
«Desejando tornar mais próximo e compreensível o percurso histórico deste movimento, considerou-se que a abordagem no estilo narrativo seria a mais adequada. Os acontecimentos estão deste modo apresentados e articulados segundo uma ordem cronológica, recorrendo-se frequentemente à citação de comentários, pensamentos e ideias expressas então, como forma de garantir a riqueza do discurso original», acrescenta a nota.
No texto intitulado “As origens do MRAR”, o arquiteto João de Almeida começa por recordar que conheceu João Alves da Cunha em 2001, quando entrou como estagiário no seu ateliê.
«Cedo se tornou um excelente colaborador e por lá ficou até 2008. Aproximou-nos o seu interesse pela história da arquitetura sacra em Portugal, já que sabia que eu fora nos anos 50 um dos fundadores do Movimento de Renovação da Arte Religiosa, tema por ele escolhido para a sua recente tese de doutoramento, agora publicada em livro, e que ao longo dos anos foi objeto dum estudo exaustivo e muito aprofundado», assinala João de Almeida.
Por seu lado, Diogo Lino Pimentel, igualmente ligado à génese do MRAR, salienta, também à entrada da obra, que «a natureza, o alcance e a projeção» do movimento «estavam por tematizar, analisar e estudar».
O primeiro responsável pelo Secretariado das Novas Igrejas do Patriarcado de Lisboa acentua, ainda, que a investigação vem «colmatar essa falta», motivando «a avaliação do estado atual das artes na Igreja»: «A tese tornada livro interpela algum “adormecimento” pós-concílio, responsável por certa degradação dos termos plásticos, musicais e arquitetónicos em que se exprime a liturgia».
Para Diogo Lino Pimentel, «a par de escassas obras singulares de inegável mérito e qualidade, e de um reconhecível progresso do comportamento e da gestualidade rituais, a liturgia sofre de amputação plástica, por carência artística».
«Os artistas e criadores desinteressaram-se da Igreja e esta desinteressou-se dos artistas. A Igreja, liturgicamente exigente, esqueceu que a liturgia, para além de usar e cuidar a palavra, fala pelas artes visuais e musicais», sustenta.
José Manuel Fernandes, professor catedrático em História da Arquitetura na FAUL, assinala que a tese «consagra em termos científicos – e de forma brilhante» o reconhecimento do MRAR «como um instrumento que historicamente, nos anos de 1950 e de 1960, soube introduzir a plena modernidade nas artes e na arquitetura do campo religioso em Portugal».
O co-orientador da tese, com o arquiteto Nuno Teotónio Pereira, escreve que João Alves da Cunha analisa, descreve e mostra a «fascinante, rica e atribulada sequência de factos e obras, ocorridos no “momento crítico” do Portugal dos meados do século XX”, ligados ao MRAR.
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura – ler artigo completo aqui.
2015/11/09 - Conversas à Capela – Sínodo sobre a Família: que caminhos?
Para nos ajudar nesta reflexão, convidámos Karin Wall, socióloga da família do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e o jornalista António Marujo, que acompanhou os últimos dias da assembleia sinodal. O padre José Tolentino Mendonça participará também no painel.
2015/11/08 - Crer é arriscar crer (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
O que é que a fé nos ensina? A que é que a fé nos leva? A onde é que ela nos conduz? A que gestos? A que atitudes? A que horizontes novos a fé nos coloca?
A fé contemplada no Evangelho é, sobretudo, uma arte do risco, uma arte de arriscar. Crer é arriscar crer, como amar é arriscar amar. Arriscar crer. Lembro-me de dois comentadores dos textos bíblicos, de pontos de vista diferentes, que sublinham precisamente isso e nos podem ajudar hoje a lermos a Palavra de Deus como um desafio para as nossas vidas.
O primeiro é uma psiquiatra e psicanalista, Françoise Dolto, que analisa uma das parábolas mais complicadas, um verdadeiro quebra-cabeças do ponto de vista moral, contada por Jesus que é aquela do administrador infiel. Aquele homem que era corrupto e sabendo que ia ser despedido começa a chamar os clientes do seu patrão a dizer “Olha, eu favoreço-te nisto: tu deves cinquenta, escreve aqui quarenta.”, para que ainda conseguisse, depois de ser despedido, uma boa aceitação junto daquela rede de fornecedores. Jesus conta esta parábola elogiando a esperteza do administrador infiel. Para nós que a ouvimos é um verdadeiro quebra-cabeças, porque como é que se pode elogiar a esperteza daquele ‘Chico esperto’?
Contudo, no comentário, na interpretação que Françoise Dolto faz, ela valoriza sobretudo a tomada de iniciativa. Aquele homem perante uma situação limite, que é o facto de ser despedido e a sua vida mudar radicalmente, ele faz alguma coisa, ele arrisca. Faz uma idiotice, continua no mesmo, mas ele arrisca. E o que ela sublinha é isto: o que Jesus nos ensina é a arriscar. Não arriscar fora da lei, ou fora da moral, fora da ética, mas valorizar o risco.
Na mesma linha, o escritor Chesterton valorizava aquela palavra de Jesus que é dizer: “Se queres seguir-Me renuncia a ti mesmo, toma a tua cruz todos os dias e segue-Me, porque quem quiser salvar a vida há de perdê-la, e quem aceitar perder a vida por Mim e por causa do Reino há de salvá-la.” Ele diz: “Esta Palavra podia estar inscrita num clube de socorro a náufragos.” É assim, o nosso barco está a naufragar. Temos duas escolhas: ou permanecemos no barco, temerosos, e arriscamos também o naufrágio, ou, sem ter certezas mas obedecendo ao chamamento da vida, ao risco da vida, nós atiramo-nos, e atiramo-nos ao mar largo. Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á. Se permanecemos agarrados ao navio perdemos a nossa vida. Mas é aceitando o risco de poder perder a vida que a salvamos verdadeiramente.
A fé é isto. Porque a fé não é caminhar num território cheio de garantias, onde está tudo certo, está tudo assegurado e a consequência mais lógica mais racional que eu tiro é esta, e é por isso que a sigo. Não, a fé não é do território da lógica. Santo Agostinho dizia: “É absurdo, por isso eu creio.” A fé muitas vezes é tomar a iniciativa da confiança, do abandono no meio de situações que são o absurdo, que são o contrário da lógica, o contrário da razão. Mas a fé é viver o risco de acreditar. Não é somar 2+2 são 4. Não, as contas da fé são sempre tudo ao contrário, tudo ao inverso. A fé implica sempre esse salto, esse abandono confiante. Crer é o risco de crer.
A mesma coisa nós podemos dizer do amor. O amor não é um caminho feito na evidência, não é um caminho feito na certeza de que vai ser assim ou vai ser de outra forma, tudo muito assegurado. O amor é a ousadia de amar, é a ousadia de atirar-se à frente.
Temos nas leituras de hoje dois exemplos de amor. De amor diferente, mas de amor enquanto dádiva, enquanto oferta de si, que é no fundo aquilo que concretiza o amor. Aquela viúva de Sarepta a quem o profeta Elias pede hospitalidade, e pede alguma coisa de comer, ela não tem mais nada, não tem mais farinha, não tem mais óleo na almotolia. Contudo, ela amassa a última amassadura e partilha com aquele estrangeiro, com aquele estranho que lhe pede de comer. E diz: “Depois venha o que vier.” No fundo, ser capaz de dar o último pão, é o risco de amar. Depois? Depois, não sei o que vai acontecer. Depois já não é uma coisa que eu controlo, já não está dentro das minhas possibilidades. Mas é esse risco de amar, é esse risco que torna o gesto daquela mulher um gesto de amor verdadeiro, um gesto também de fé.
A mesma coisa nesta viúva pobre que está perante o tesouro do Templo. Os outros dão do que lhes sobra, aquela mulher deu uma pequenina moeda e Jesus chama a atenção dos discípulos dizendo: “Ela deu mais do que todos os outros, porque todos os outros deram do que lhes sobrava, ela deu tudo quanto tinha para viver.”
E é, no fundo, isto que nos é pedido a cada um de nós. Se calhar este não é um discurso para o dia a dia, se calhar no dia a dia nós conseguimo-nos gerir e safar com a visão habitual, não é preciso um grande risco, deixarmo-nos levar, deixarmo-nos embalar pela própria vida. Mas há momentos na vida de cada um de nós, há ocasiões, há dias, há oportunidades em que aquilo que se decide é verdadeiramente pelo risco de acreditar, pelo risco de amar. E são esses dias, essas oportunidades, essas horas da nossa vida que nos estruturam, que fazem a diferença, que marcam o caminho.
Pensemos no que Jesus nos diz. Jesus olha para o gesto da viúva e diz: “Ela deu mais do que todos porque deu uma moedinha que era tudo quanto tinha.” E a nós pensamos: “Muito bem. Muito bonito. Mas se toda a gente desse só uma moedinha não se conseguia manter o tesouro do Templo, não se conseguia fazer todas as atividades que o Templo tem para fazer, não se conseguia construir, manter a beleza do Templo.”
E é aqui que Jesus faz uma transformação do nosso olhar, é aqui que o Cristianismo aparece como um discurso diferente, que nos modifica por dentro naquilo que nós consideramos importante, naquilo a que nós damos realmente valor, naquilo que nós consideramos decisivo. Na Carta aos Hebreus (esse texto do final do primeiro século da era cristã, que já é escrito depois do Templo de Jerusalém ter sido destruído, o sacerdócio extinto, os sacrifícios apagados) este autor cristão vai rever a vida de Cristo, a Sua mensagem, o Seu gesto, a Sua poética do ponto de vista do Templo. E vai dizer: “Mais importante do que o Templo, mais importante do que a linhagem sacerdotal, mais importante do que os sacrifícios é o próprio Cristo enquanto pessoa, no que Ele é.”, “Não construíste para mim um Templo mas deste-Me um corpo, fizeste de mim Sumo-sacerdote.”
É este investimento na existência, este investimento na pessoa que faz a diferença. Quem olha para este discurso de Jesus e o aceita, tem de viver de uma maneira diferente, tem de viver de uma forma diferente.
Esta semana, o Papa Francisco teve duas palavras consecutivas, uma numa entrevista a um jornal holandês a dizer que quem é discípulo de Cristo não pode viver à grande e à francesa. Isto é, tem de levar uma vida frugal – tenha o dinheiro que tiver, as condições que tiver, mas tem de levar uma vida frugal, uma vida exigente. Não pode viver uma vida como se não existisse à volta de si pobreza, necessidade, carência. Não pode viver uma vida só em função do seu narcisismo, da sua vontade e do seu prazer. Tem de viver uma vida frugal.
Este desafio a uma vida essencial é um desafio que é feito a todos, a todos os cristãos que, no fundo, percebem que o importante não é construirmos, não é fazermos, embora tudo tenha o seu lugar. Mas o fundamental é sempre a pessoa.
E ainda ontem, na Praça de S. Pedro, o Papa Francisco fez um discurso muito importante à Associação de Providência, à Caixa de Providência Italiana, onde falava do trabalho, do valor do trabalho, do valor do repouso, de garantir as condições não só do trabalho mas depois também da reforma como direitos humanos fundamentais. Dizia: “Não podemos perder de vista o imperativo fundamental que é a pessoa humana, que é a pessoa humana.”
É claro, se nós privilegiamos a pessoa humana diz-se: “Ah! Mas como é que vai ser os mercados! Como é que vai ser isto? Como é que vai ser aquilo?” Temos de encontrara um equilíbrio, temos de encontrar novos caminhos, temos de encontrar novas possibilidades na nossa sociedade. A Doutrina Social da Igreja nasceu precisamente num contexto de fatalismo, em que com a Revolução Industrial o valor do trabalho e o valor da pessoa humana eram absolutamente relativizados. A Doutrina Social da Igreja nasceu como a tentativa de encontrar um outro caminho, uma outra possibilidade em que o fundamental não era perdido de vista.
Hoje nós vivemos numa grande mudança da história, nós sentimos isso. Somos determinados por entidades que não sabemos quem são, tudo parece que tem de ser de uma maneira só. Se calhar também aqui precisamos de voltar à Doutrina Social da Igreja e perceber isto: o valor da pessoa humana.
É o modo de olharmos e de acolhermos no nosso coração a Palavra de hoje de Jesus que nos faz ver uma mulher pobre e dizer: “Ela deu mais do que todos.” A tradição da Igreja tem sido esta desde o princípio. Por exemplo, quando o imperador prendia os primeiros cristãos e lhes dizia: “Ide buscar o tesouro da Igreja.“, S. Lourenço, que era o administrador da comunidade de Roma, foi preso e mandaram-no: “Olha, vai buscar o tesouro da comunidade para resgatar os cristãos.” E S. Lourenço foi buscar os pobres e disse: “O tesouro da igreja são os pobres.”
Então, isto para nós, cristãos, é um desafio constante. O que é o nosso tesouro? O que é o nosso tesouro? O que é que nós consideramos que é dar mais? Que é dar mais? Há de facto uma visão, uma visão que o próprio Jesus nos ensina a construir. Uma visão onde a pessoa humana está no centro, a pessoa humana com a sua fragilidade, a sua dificuldade.
Às vezes penso em como podemos ser super exigentes para uma pessoa mais frágil, mais fraca, mais vulnerável. E achamos: “Ah! Mas ela não faz nenhum esforço.” Às vezes o pequenino passo que ela faz, e que para nós nos parece insignificante, é mais do que todos os esforços e todos os passos que nós podemos dar ou pensar que damos. Por isso, há aqui uma conversão do olhar, uma conversão do olhar. Crer é o risco de crer, amar é o risco de amar.
Hoje, as leituras da Palavra de Deus colocam-nos perante o risco de amar. É um risco que, aos diversos níveis, implica uma conversão para cada um de nós. Porque preferimos muito mais um amor assegurado, um amor garantido, um amor consolidado, um amor isto, um amor aquilo, um amor que nos compense. E este risco de amar por amar, que está no cerne do Evangelho, é alguma coisa que constitui de facto um chamamento para cada um de nós. Um chamamento, um desafio exigente, mas também uma oportunidade.
Porque às vezes penso na maravilha do olhar de Jesus, nas coisas que Ele reparava. É como se Ele escrevesse a história do mundo de outra forma, de outra maneira. E no fundo, bem-aventurados os que têm o olhar puro, porque são capazes de identificar a presença do Reino, a chegada do Reino nas coisas mais pequenas e que para os outros são invisíveis.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXXII do Tempo Comum
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2015/11/04 - Deus - conversas de Maria João Avillez com Marcelo Rebelo de Sousa
«Não há nada em que o ser-se cristão diminua o ser-se governante», defende Marcelo Rebelo de Sousa
Marcelo Rebelo de Sousa considera que «não há nada em que o ser-se cristão diminua o ser-se governante», ou outra atividade, e defende que não se é mais nem menos do que outras pessoas por se ser cristão.
A posição do candidato a Presidente da República foi recolhida na intervenção que proferiu na última quarta-feira, no ciclo de encontros sobre “Deus”, organizado pela comunidade da Capela do Rato, em Lisboa.
Na conversa que manteve com a jornalista Maria João Avillez, de que reproduzimos excertos no vídeo abaixo publicado, Marcelo Rebelo de Sousa especificou que ser cristão não limita o exercício do cargo de Presidente da República, caso seja eleito.
Questionado por uma das pessoas presentes na sessão, o ex-comentador afirmou que ser cristão não constitui uma mais-valia na Presidência, embora implique uma responsabilidade acrescida.
O jurisconsulto sustenta que não há qualquer drama no facto de os cristãos serem uma minoria, pelo menos na região de Lisboa, e relata a estranheza de dois jornalistas a quem ofereceu pagelas relativas ao Batismo de dois dos seus netos.
Na conversa, Marcelo Rebelo de Sousa pronunciou-se também sobre aqueles que considera os maiores desafios da Igreja católica em Portugal: a juventude, a comunicação social, a cultura, cujos debates têm passado à margem do mundo católico, e o setor social.
O ciclo de encontros na Capela do Rato prossegue esta quarta-feira, às 21h30, com Maria de Belém, igualmente candidata à Presidência da República.
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
Marcelo Rebelo de Sousa: «Rezo o Terço todos os dias»
«Deus é para mim a razão de ser da vida», afirmou esta quarta-feira, em Lisboa, Marcelo Rebelo de Sousa, candidato à Presidência da República para quem a figura mais importante a seguir a Cristo é Maria.
«Rezo o Terço todos os dias», declarou o professor catedrático no ciclo de conversas sobre Deus organizado pela Capela do Rato, que na próxima quarta-feira recebe a candidata presidencial Maria de Belém Roseira.
Para o antigo jornalista, a quem não passa pela cabeça deixar de rezar diariamente a oração a Nossa Senhora, mediadora, misericordiosa, com capacidade de apagamento, o Terço «não é um mandamento» mas é «como respirar».
Na intervenção, de que apresentamos excertos no vídeo abaixo, o ex-comentador vincou por diversas vezes que a sua perspetiva de encarar a fé implica necessariamente uma relação comunitária que una oração e ação, como foi o caso do “Grupo da Luz”, que congregou figuras hoje bem conhecidas.
A vida eterna que começa já na Terra com pequenos gestos em favor do próximo, o exame de consciência às quatro ou cinco horas da manhã, as aparições em Fátima, a oração que se cruza com a vida e a perspetiva de Deus enquanto Trindade foram também questões mencionadas por Marcelo Rebelo de Sousa.
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
Marcelo. Um Presidente cristão “tem uma responsabilidade acrescida”
O candidato presidencial Marcelo Rebelo de Sousa considera que o facto de um Presidente da República ser cristão em nada o limita no exercício do cargo. Dá-lhe, sim, mais responsabilidade.
“Eu acho eu é errado dar uma resposta deste teor: era bom que o Presidente fosse cristão, porque se fosse cristão, além das qualidades todas que têm os outros, tem mais uma. Isso não existe. Eu diria o contrário. Tem uma responsabilidade acrescida por ser cristão. Nós, por sermos cristãos, não temos mais direitos. Se temos alguma coisa é mais deveres. Quem mais recebe, mais tem de dar”, defendeu na quarta-feira à noite, durante o debate “Conversas com Deus”, que decorreu em Lisboa.
Marcelo Rebelo de Sousa respondeu a perguntas na Capela do Rato. Durante o evento, o candidato a Belém falou ainda sobre aborto e eutanásia.
Ser cristão pode limitar o cargo de chefe de Estado? “Nada”, respondeu. “Vivemos num país com uma Constituição – eu fui constituinte, portanto conheço-a bem – que consagra a liberdade religiosa. Significa que não há um Estado confessional, mas também não há um Estado que seja contrário à liberdade religiosa”, começou por explicar.
“A liberdade religiosa não é só a liberdade de culto, é também a liberdade de vivência da fé, nos lugares de culto e fora dos lugares de culto. Como dizia a Sophia de Mello Breyner, vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”, concretiza, dizendo também que denunciar a injustiça na sociedade é um imperativo cristão.
2015/11/01 - Bem-aventuranças, programa da existência cristã (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
Se fizéssemos aqui como se fazia na catequese à antiga, que era uma espécie de exame de resposta rápida, e perguntássemos quantos são os mandamentos, eu acho que não havia dúvida, todos passávamos ao exame e dizíamos: “Os mandamentos são dez.” Mas se nos perguntassem quantas são as bem-aventuranças, eu não sei se nós conseguíamos ter aqui uma maioria que passava ao exame. E se nos perguntassem mais, se nos perguntassem “Então diga quais são as bem-aventuranças?”, aí então a dificuldade seria maior.
Isto diz muito de um desacerto, de um desencontro, porque as bem-aventuranças são a página mais importante do Evangelho. Santo Agostinho dizia que era o Evangelho breve, que era a síntese de todo o Evangelho. E não faltam, na tradição cristã e não só, autores que dizem: “As bem-aventuranças são o resumo de tudo.” É o resumo de toda a justiça, de todo o amor, de tudo aquilo que um cristão é chamado a fazer. Gandhi, que não era cristão, apaixonou-se pelas bem-aventuranças quando estudava e disse que se se perdesse toda a literatura do Ocidente e apenas permanecesse esta página das bem-aventuranças nós tínhamos o fundamental de tudo aquilo que foi dito, foi escrito, foi buscado, foi sonhado de melhor pela própria Humanidade.
Contudo, dá-se este caso: nós, católicos, sabendo isto, não fazemos da bem-aventurança o programa da nossa vida. E a palavra “programa” é uma palavra muito exata, porque as bem-aventuranças são o programa da vida de Jesus e são o programa da existência cristã. Lendo cada uma destas bem-aventuranças (a pobreza em espírito, a humildade, a capacidade de chorar com os que choram, o ter fome e sede de justiça, a misericórdia, a pureza de coração, a obra da paz, a construção da paz, a capacidade de sofrer por amor da justiça, de ser insultado em vez de insultar, de ser perseguido em vez de perseguir, de dizer a verdade mesmo em seu prejuízo, mesmo que outros mintam a propósito de nós) nós percebemos que cada uma delas desenha o rosto de Jesus.
As bem-aventuranças o que é que são para nós? São a biografia de Jesus, a autobiografia de Jesus. Nós vemos Jesus a viver, Jesus a agir, Jesus a ser. E quando Jesus nos diz “Se tu quiseres estar comigo, se tu quiseres ser cristão faz uma coisa: toma a tua cruz todos os dias, e segue-Me”, nós dizemos “Mas isto é uma coisa muito abstrata”.
O que é que é seguir Jesus? Como é que isso se faz de forma concreta? Como é que eu me oriento? Que mapa, que guia, eu posso ter? Que lei? Que decálogo? Que norma? Que código eu posso escrever, não na frieza da pedra, mas no ardor do meu coração? O que é que eu posso tatuar dentro de mim?
Não tenhamos dúvidas, as bem-aventuranças são aquilo que nos ensina no quotidiano, no dia a dia, nas pequenas e nas grandes coisas, nos momentos definitivos e nos momentos provisórios, precários ou ordinários. Aquilo que verdadeiramente nos guia, a mão estendida de Jesus no concreto da nossa vida, são as bem-aventuranças.
Por isso era tão importante que cada um de nós as redescobrisse e que esta festa de Todos os Santos fosse para nós um desafio muito grande a ir procurar as bem-aventuranças. Na versão de S. Mateus, que nos dá a versão mais completa, são oito bem-aventuranças. O decálogo são dez mandamentos, mas as bem-aventuranças, a Palavra de Cristo, o resumo daquilo que Cristo nos pede são oito coisas, oito bem-aventuranças.
Era importante cada um de nós as ter escritas, escrever. Uma proposta seria cada um de nós, nesta semana, escrever pela sua própria mão as bem-aventuranças, copiarmos, fazermos uma cópia das bem-aventuranças. E pouco a pouco, as rezarmos, as decorarmos, fazermos delas as metas da nossa vida, as metas que dia a dia nós procurássemos que fossem conformadoras da mulher e do homem que nós somos, e pouco a pouco sentíssemos que elas eram a nossa inspiração, que elas são a nossa vida.
Não é por acaso que as bem-aventuranças são oito. S. Mateus, que escreve talvez o Evangelho mais judeu, mais hebraico, porque o escreve num momento em que no interior do Judaísmo se empurrava para fora os cristãos, dizendo “Vocês não são judeus, vocês são uns judeus muito atípicos por isso não podem estar na Sinagoga”, escreve o Evangelho a explicar o que é o Cristianismo também para os judeus. Nesse sentido, todos os números que nos aparecem no Evangelho de S. Mateus não são apenas números, são símbolos, é a guemátria. Quer dizer, os números servem para dizer verdades simbólicas, servem para estruturar de uma forma iniciática o próprio caminho.
Porque é que as bem-aventuranças são oito, na versão de S. Mateus? Porque Jesus ressuscitou no oitavo dia. O oito, para nós, é o símbolo do Tempo Novo, do Tempo Pascal. Depois do Tempo, abre-se um outro tempo: o tempo da vida ressuscitada, da vida levantada pelo próprio Deus, da vida garantia pelo próprio Deus contra toda a morte que nos sitia, toda a morte que nos ameaça. Então, são oito as bem-aventuranças, sinal que há uma época nova da história que se abre com elas.
Bismarck, com o seu sentido prático, dizia que com as bem-aventuranças não se consegue conduzir um país. Eu não sei se se consegue ou não conduzir um país, mas sei que se consegue conduzir uma vida, conduzir uma existência, conduzir um modo de viver, conduzir um estilo de viver.
Nesta festa de Todos os Santos o que é a santidade para nós? Podemos pensar ”A santidade é uma coisa muito distante, é uma coisa muito bela mas também muito inalcançável, muito inatingível.” Não, a santidade é a coisa mais quotidiana que existe, é a coisa mais banal que existe, é a coisa mais trivial que existe. A santidade, todos nós a praticamos, todos nós a passamos uns para os outros.
O que acontece é que nós valorizamos tantas coisas na vida, mas não valorizamos o modo humilde, o modo escondido, o modo simples como a santidade, que é uma contaminação da vida de Deus em nós, do espírito das bem-aventuranças em nós, passa de uns para os outros. Como é que cada um de nós, chamado por Deus a ser santo, há de concretizar isso nas suas vidas? Não com o desejo de ser santificado ou canonizado, não é isso. Não é que eu quero ser modelo para os outros, não é isso, mas é procurar tornar a minha vida próxima da vida de Cristo, semelhante à vida de Cristo. Aquilo que S. Paulo dizia: “Escondermos a nossa vida com Cristo, em Cristo.” O ser cristão é isso.
Na Carta de S. João, S. João usa a palavra semelhança e diz assim: “A meta da nossa vida é tornarmo-nos semelhantes a Deus.” Como é que isto se consegue? Vivendo numa tensão, numa abertura permanente, num processo de renovação, de purificação, de transformação interior. Mas o objetivo não é ficarmos como estamos, é tornarmo-nos semelhantes a Deus, é passarmos para uma outra ordem da realidade. Porque Cristo fez-se homem para divinizar o humano, para tornar o humano capaz de Deus. Cada um de nós é capaz de Deus. Capaz de imitar, capaz de se tornar semelhante, capaz de expressar, capaz de ser a boca de Deus, as mãos de Deus, o olhar de Deus, a presença de Deus no meio do mundo. E isso acontece pelo caminho prático, pelo caminho simples das bem-aventuranças.
Vamos hoje fazer este compromisso de descobrirmos as bem-aventuranças, cada um de nós descobrir as bem-aventuranças. Está no capítulo 5 de S. Mateus. Abrir o capítulo 5, copiar as bem-aventuranças, ler as bem-aventuranças, decorar, mas sobretudo viver. Mais importante do que o decorar é viver. Porque esta é de facto a nova Lei, que não é uma Lei mas é uma inspiração para as nossas vidas.
Que esta pobreza de espírito, de coração, que esta humildade, que esta capacidade de chorar com as dores dos outros, a compaixão, que esta fome e sede de justiça, isto é, com o não nos conformarmos com a forma do mundo, mas o desejarmos um mundo melhor, um mundo transformado, mais justo, que esta prática da misericórdia, sermos misericordiosos uns com os outros, que esta pureza de coração, que esta promoção da paz, que esta capacidade de sofrer por aquilo que acreditamos por amor a Jesus seja de facto uma realidade na nossa vida.
O Karl Rahner, que foi um dos maiores teólogos do século XX, dizia “É errado dizermos que somos cristãos. Isso é errado porque parece que já está tudo feito, já está tudo acabado. Nós desejamos ser cristãos, nós estamos à procura, estamos a tentar ser cristãos.” E, no fundo, isso é uma grande verdade para nós. Nós estamos aqui, não para celebrar aquilo que já somos, aquilo que já trazemos, estamos aqui num processo, num caminho, somos a Igreja peregrina, a Igreja que caminha.
E o que é a Igreja peregrina? É a Igreja constituída por mulheres e homens que, na vida de todos os dias, não desanimam, não desistem. É a Igreja corpo de pecadores, que não desistem de acreditar, não desistem de aprofundar. Caindo não desistem de levantar-se, rompendo não desistem de religar, afastando-se, estando afastados de Deus, não desistem de voltar a Ele, um dia. Isso é a Igreja a caminho, a Igreja peregrina.
Que o espírito das bem-aventuranças seja como esta chuva benigna que cai sobre nós e alaga de esperança e de amor as nossas vidas.
Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade de Todos os Santos
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Outubro
2015/10/27 - Deus - conversas de Maria João Avillez com Assunção Cristas
«Peço ao Espírito Santo para me ajudar a escolher as palavras»
«Peço ao Espírito Santo para me ajudar a escolher as palavras necessárias para chegar ao coração das pessoas», revelou esta terça-feira a Ministra da Agricultura e do Mar, Assunção Cristas.
A seguir ao encenador Jorge Silva Melo, a jurista foi a segunda convidada do ciclo de conversas sobre Deus, com a jornalista Maria João Avillez, organizado pela Capela do Rato, em Lisboa.
Depois de recordar os primeiros passos na fé, transmitida «na ternura dos afetos familiares», Assunção Cristas evocou a infância, especialmente no período natalício, com mais Menino Jesus e menos Pai Natal, e no colégio.
«Meninas, onde está a caridade?» era uma pergunta recorrente da Mãe, que também a sensibilizou, assim como às três irmãs e um irmão, para a necessidade de fazer render os talentos.
Detendo-se no Deus Trindade, Assunção Cristas contou como a sua visão de Deus Pai, Filho e Espírito Santo evoluiu com a idade, sublinhando a proximidade com Jesus, «companheiro de vida», e o Espírito Santo.
Qualifica a relação com Deus como natural e marcada pelo desejo, embora não faltem momentos de dúvida, e talvez por isso afirma: «O que peço mais para a minha família é fé».
Do envolvimento na argumentação contra o aborto até ao Governo percorreu um caminho inspirado por Jesus, que a ajudou a pesar os prós e contras de entrar na política, que classifica como uma das formas mais nobres de serviço público.
Após destacar o primado da consciência na ação governativa, Assunção Cristas referiu-se ao modo como fala aos filhos de Deus e da política, terminando a conversa, de que apresentamos excertos em vídeo, a falar sobre o seu «bom combate».
O ciclo prossegue na próxima quarta-feira, às 21h30, com Marcelo Rebelo de Sousa.
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
“Inspirei-me em Jesus, que nunca teve medo de se meter com gente pouco recomendável”
“Faz parte de ser católica aceitar outros caminhos” e, por isso, quando se colocou a Assunção Cristas a proposta de seguir o caminho da política, a agora ministra fez o que costuma fazer na vida: procurar em Jesus Cristo o exemplo e a fonte de discernimento. E não teve medo das más companhias. “Inspirei-me em Jesus que nunca teve medo de se meter com gente pouco recomendável”, afirmou a ministra da Agricultura na segunda sessão das Conversa sobre Deus, na Capela do Rato, em Lisboa.
A conversa, moderada por Maria João Avillez, começou pela infância da dirigente do CDS, quando “a fé foi transmitida na ternura dos afectos familiares”. Um tempo em que a avó assumiu um papel de transmissora de fé e de tradição, em que o que valia era o Menino Jesus e o Pai Natal só foi aceite como “ajudante”, e a mãe teve sempre como que um papel de alerta de consciência, com o “hábito de chamar a atenção para a responsabilidade na aplicação dos talentos” e para a prática da caridade.
Depois, no Colégio do Bom Sucesso, Assunção Cristas foi evoluindo para a imagem de “um Deus amigo, acolhedor, que perdoa todos os nossos pecados”.
“Ao longo do tempo e da vida, fui tendo uma relação diferente com as três pessoas da Santíssima Trindade”, afirmou a ministra, assumindo que “foi o Espírito Santo o que chegou mais tarde”, já na adolescência e muito por influência de um professora de Físico-química.
Para Assunção Cristas, Jesus é “um companheiro de vida, um exemplo e um filtro de acção” e o Espírito Santo é “um companheiro mais íntimo” a quem pede “muita sabedoria, iluminação e discernimento”, a quem recorre sempre que fala em público para que lhe dê as palavras que cheguem ao coração de quem a ouve. “Deus é o Pai, aquele que desejo, aquele que está à nossa espera e um dia vou poder aninhar-me no colo d’Ele. Deus alimenta-nos num desejo de chegar a Ele”, continuou a ministra, que não se imagina sem fé.
Fé como “caminho de felicidade e alegria”
Claro que tem dúvidas, assumiu Assunção Cristas perante o auditório, que claro se questiona se tudo isto não passa de uma ilusão. Não importa, responde: “Se nada disto for verdade, eu sou muito feliz assim.”
Por isso, e porque acredita e experimenta que “a fé é, de facto, um caminho de felicidade e de alegria”, o que mais pede para a sua família é a fé.
2015/10/25 - "Levanta-te, que Ele está a chamar-te" (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
Nos Evangelhos temos a presença da cegueira que Jesus cura como sinal daquela transformação que Ele faz acontecer nas nossas vidas. É muito interessante o lugar e o cuidado com que os evangelistas colocam estas cenas de cura da cegueira no próprio Evangelho.
Por exemplo, no Evangelho de Marcos, que hoje nós lemos, há a cura de um cego no início e no fim de uma secção muito importante, central, que é a secção chamada do caminho. É aquele intervalo entre a missão de Jesus em Galileia e a Paixão de Jesus em Jerusalém, em que Jesus no caminho está apenas com os discípulos. É um período muito importante, muito favorável de formação, de iniciação dos próprios discípulos.
No início e no fim desta secção do Evangelho de Marcos está a cura de um cego, quer dizer: todos nós precisamos de ser curados por Jesus, precisamos que Ele nos dê uma visão nova sobre a realidade, precisamos que Ele nos ajude a vencer a trave, a parcialidade, a dificuldade que nós temos em ver claro. Jesus é o mestre de uma visão nova, de uma visão renovada.
Nós hoje temos o encontro de Jesus com o cego de Jericó chamado Bartimeu, Timeu. É um nome simbólico que é dado a este cego, porque Timeu quer dizer precioso. Este cego colocado à beira do caminho não deixa de ser um filho precioso. É interessante que o cego aparece-nos numa situação de exclusão. Ele está colocado à margem, à margem do caminho, pedindo esmola, e há aqui uma dupla exclusão: por um lado ele é cego, e por outro lado ele é um pobre. Enquanto a multidão passa, escorre-se pelo caminho que vai de Jericó a Jerusalém, este homem permanece, fixo à beira do caminho, como se estivesse ali pregado por um destino cruel.
E quando Jesus passa este homem sente que é a sua oportunidade, sente que é a sua hora, sente que a sua vida se pode jogar por inteiro naquele encontro com Jesus e nada o cala. Ele começa gritando: “Jesus, Filho de David! Tem piedade de mim!” Este homem cego é um exemplo para nós crentes porque, ao contrário dele, muitas vezes a questão de Jesus na nossa vida não é que não seja uma questão importante, mas não é a questão decisiva. Nós não apostamos tudo o que temos, tudo o que somos, no encontro com Jesus. Nós não sentimos ainda que a nossa vida está nas Suas mãos, e depende completamente de uma palavra, de um olhar que Ele lançar sobre a nossa vida.
O cego é um exemplo para nós crentes no sentido de que temos de vencer esta fé negociada, esta fé do mais ou menos, esta fé que não é quente nem é fria, esta fé morna, que é o contrário da verdadeira fé que faz o encontro com Jesus, que faz o milagre acontecer na nossa vida, na nossa história. Aquele homem grita com Jesus e nada nem ninguém o pode calar. É um exemplo da fé.
Os grandes exemplos de fé que o Evangelho nos dá são paradoxais porque são os doentes, são os pobres, são os pecadores, são aqueles marginalizados os grandes mestres da nossa fé. Porque eles dizem-nos a atitude fundamental que deve ser a de um crente, que é de sentir que a relação com Jesus é uma relação absolutamente decisiva, é uma relação onde tudo se joga e tudo se perde. É uma relação onde nos lançamos com tudo aquilo que somos, com a integralidade do nosso destino. E nada pode travar o movimento deste homem até que Jesus para e diz: “Chamai-o, chamai-o.”
É uma forma muito interessante e que nos aparece diversas vezes em ações que Jesus desenvolve, ações simbólicas no interior da narrativa evangélica. Por exemplo, no episódio da multiplicação dos pães, Jesus multiplica os pães e depois dá aos discípulos para os discípulos entregarem à multidão. Isto é, Jesus torna-nos a nós, Seus discípulos, participantes da Sua missão. Jesus podia ter chamado o homem: “Olha, vem cá.” Fez-se um silêncio para ouvir a Sua voz, mas Jesus encarrega-nos a nós de chamar o cego e diz: “Chamai-o.” Como nos diz a nós hoje, neste tempo do século XXI: “Chamai-os. Chamai-as.”
E então acontece uma transformação no coração daqueles que estão junto daquele cego, que primeiro diziam: “Calem-se! Cala-te! Cala-te! Não incomodes o Mestre.” Mas agora dizem-lhe uma outra palavra, dizem-lhe: “Coragem, confiança. Ele está a chamar por ti.”
É esta mudança de atitude que também deve acontecer no nosso coração, porque muitas vezes a nossa primeira atitude é de mandar calar os outros: “Cala-te, isso não tem dignidade, ou não tem legitimidade, ou não tem oportunidade, ou não tem isto ou não tem aquilo.” A nossa atitude é a de suster, de calar, de não querer escutar até ao fim. Transformar essa atitude de quem sacode a água do seu capote para a atitude diferente de quem exorta, de quem ensina a confiança, de quem ajuda, de quem se torna adjuvante, auxiliar: “Coragem, Ele está a chamar por ti, vai ao Seu encontro.” Esta transformação é uma transformação decisiva em cada tempo da vida da Igreja.
Ontem concluiu-se o Sínodo da Família e na grande homilia que o Papa Francisco fez no final do Sínodo são palavras semelhantes a esta que ele traça como recordação, como memória e desafio para a Igreja do nosso tempo, dizendo: “Aqueles que cumprem a Lei, não são aqueles que cumprem a letra da Lei, mas são aqueles que são fiéis ao espírito da Lei.”
No fundo, é esta questão que se coloca a nós: como ser fiéis ao espírito do Evangelho? Isso passa sem dúvida por ouvirmos, por escutarmos, por fazermos pontes, por dizermos uns aos outros, dizermos àqueles que estão na margem, dizermos: “Coragem, o Senhor está a chamar por ti.”
Porque o encontro é com Jesus, o encontro não é connosco, aquilo que nós temos de ajudar uns aos outros é a nos colocarmos perante Deus, a fazermos esse encontro com Jesus que é único para cada pessoa. Temos de colocar cada um com confiança diante do Deus que fala. Não somos nós que falamos em vez de Deus, não nos coloquemos no lugar de Deus, mas ajudemos cada mulher, cada homem, a colocar-se com confiança perante este Deus que é amor e que é misericórdia.
Quando o cego ouviu esta palavra (é muito sugestiva a forma como o narrador do Evangelho de Marcos relata esta atitude), atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus. Isto é, ainda não lhe tinha acontecido nada mas ele já tinha transformado a sua vida. Abandonou a capa de mendigo, deu um salto como se já visse e foi ao encontro de Jesus. Isto é, a fé transforma-nos, a fé transforma-nos, a fé transforma-nos.
Os Padres do Deserto, que comentaram muito esta passagem do Evangelho de Marcos, viam aqui a liturgia batismal. Porque no batismo no início eram batismos de adultos, os cristãos tiravam as suas roupas, entravam nus para a piscina probática, a piscina batismal, e depois eram revestidos com uma túnica branca. Deixavam as vestes do homem velho e assumiam a configuração do homem novo. É isso que também é chamado a acontecer na nossa vida, mas não apenas como um rito, não apenas como uma liturgia mas como um salto. Há um salto a dar na direção de Cristo. Há coisas a deixar para trás porque sentimos que uma vida nova começa quando nos lançamos ao encontro do Senhor.
E quando ele chega diante de Jesus, Jesus pergunta-lhe: “Que queres que eu te faça?” Maravilhosa pergunta que devolve ao homem a palavra, a liberdade, a interpretação da sua história. Porventura podemos dizer: “Mas ele está a dizer o óbvio. O que é que este homem quer que Jesus faça? Que cure a sua cegueira, toda a gente sabe isso.” Não, nós não sabemos, nós não sabemos se não escutarmos. Nós não sabemos se não devolvermos ao outro a sua liberdade fundamental de expressar-se, de contar a sua esperança, a sua dor, o seu desejo, a sua expectativa. “Que queres que eu te faça?”
Às vezes os pobres, os marginalizados, são tratados como uma menoridade. Nós sabemos do que eles precisam, nós administramos a sua vida, nós é que dizemos o que é o bem e o que é o mal, e como deve ser e como não deve ser. Se nós estivéssemos colocados numa situação de fragilidade, de vulnerabilidade fundamental em que tantos estão colocados… porque na nossa sociedade não há igualdade de oportunidades, basta visitarmos uma prisão para percebermos que o princípio daquelas vidas era de tal modo vulnerável, de tal modo frágil que é quase uma fatalidade a continuação dos ciclos de sofrimento, de violência, de pobreza endémica.
Nós sabemos tão pouco, tão pouco, e precisamos de uma humildade, de uma humildade muito grande. “O que queres que eu te faça?” E o homem diz: “Mestre, que eu veja.” Ele diz a Jesus aquilo que é a palavra que trás para lhe dizer. E Jesus trata-o como um sujeito, não lhe dá uma esmola às escondidas, não, é um homem que fala com outro homem olhos nos olhos, dá-lhe a dignidade de ser, de aparecer. “Mestre, que eu veja.” E Jesus diz-lhe uma coisa maior, diz-lhe: “Vai, a tua fé te salvou.”
O caminho que o homem fez é um caminho já de desejo, é um caminho já de fé, é um caminho em que o próprio cego está implicado na sua prece, na sua súplica. Por isso, Jesus diz: “Tudo aquilo que tu fizeste para vir ao meu encontro, tudo isso já é salvação em ti. Vai, a tua fé te salvou.”
Depois, pelo final do Evangelho que é muito significativo, nós percebemos que o homem ficou curado de uma dupla cegueira. Ele ficou curado da cegueira física, o homem recuperou a vista, mas depois a última frase é “E seguiu Jesus no caminho.”, no caminho para Jerusalém, no caminho da vida cristã. Quer dizer, este homem não ficou apenas curado de uma carência física, este homem recebeu a luz da fé e por isso ele tornou-se discípulo de Jesus no próprio caminho.
Queridos irmãs e irmãos, durante esta semana pensemos muitas vezes no cego de Jericó. Identifiquemo-nos com ele na súplica, no desejo pelo Senhor. Identifiquemo-nos com aqueles a quem Jesus deixa a missão “Chamai-o.” e lhe dizem: “Coragem, ele está a chamar por ti.” Identifiquemo-nos com essas palavras, com essas personagens.
E depois, sintamos que o Senhor cura a nossa dupla cegueira. O Senhor vem ao encontro da nossa carência, da nossa dificuldade, mas o Senhor reforça a nossa fé, o Senhor dá-nos a capacidade de O seguir no caminho. Que este texto batismal seja para nós um guia de vida e nos ajude a viver no quotidiano, no dia a dia, na nossa circunstância concreta, o nosso caminho crente, o nosso caminho de fé.
Os padres sinodais escreveram um documento final que foi entregue ao Santo Padre, e o Santo Padre agora há de decidir o que fazer com ele e se vai ou não escrever uma carta, uma exortação pós sinodal sobre a família. Mas nas questões difíceis que se colocam hoje a família e às novas realidades familiares, e numa questão que tem sido muito dolorosa no interior da comunidade cristã e que a tem fraturado interiormente, que é a questão da comunhão dos recasados, a perspetiva que venceu, que ganhou consenso no interior do Sínodo, foi a de valorizar o chamado forum internum.
O forum internum é este caminho que cada um faz perante Deus na sua consciência, ajudado pelo seu diretor espiritual, pelo seu confessor, um caminho a partir da verdade da sua existência mas abrindo-se à misericórdia de Deus. Nós não podemos julgar por fora. Só olhando para o coração, só olhando para a circunstância, só olhando para a biografia, para a história concreta de cada um, nós podemos ajudar cada um no seu processo de integração no interior da Igreja.
Mas a grande palavra foi de facto uma palavra de integração, uma palavra de misericórdia que sai deste sínodo. Nós esperamos agora a palavra do Santo Padre, mas de facto foi uma experiência maravilhosa este ano de caminho, ou estes dois anos de caminho na Igreja para sentirmos isto precisamente: que o que nós temos de valorizar é o caminho que cada um faz ao encontro de Jesus, esse grito que está no coração de cada um e que é preciso acompanhar, que é preciso orientar, que é preciso esclarecer, que é preciso integrar. Mas a misericórdia de Deus prevalece sobre o nosso pecado e sobre o nosso limite.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXX do Tempo Comum
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2015/10/21 - Deus - conversas de Maria João Avillez com Jorge Silva Melo
Jorge Silva Melo e a questão de Deus: «A ideia do amor é o que me ganha»
O encenador Jorge Silva Melo foi o primeiro convidado do ciclo “Deus – Conversas de Maria João Avillez”, nove encontros que a Capela do Rato, em Lisboa, apresenta até dezembro.
Filho de pai republicano, com a mãe a manter um catolicismo social, Jorge Silva Melo (Lisboa, 1948) encontrou na desobediência da irmã a inspiração para a sua procura do religioso.
Foi no colégio católico onde estudou até aos 14 anos que o cofundador da companhia de teatro Cornucópia ouviu a narrativa bíblica que lhe marcou a existência, a transfiguração de Jesus, em que humanidade e divindade se cruzam. Seduziu-o a suspensão do tempo, em que o esplendor da flor é perene.
O amor, o perdão e o recomeço são a fonte do seu «sim» à Igreja, onde encontrou João Bénard da Costa e a sua geração de católicos que atravessou os anos 60.
Em Londres, onde estudou cinema, Jorge Silva Melo viveu um catolicismo minoritário que tinha como programa a recusa da moda e do sucesso.
Antes da capital britânica, foi uma redação sobre os «novos mártires» que lhe abriu horizontes: suspenso da escola durante três dias, devido à subversão do texto, ganhou do pai a possibilidade de descobrir a Sétima Arte, e nela revelou-se-lhe o cristianismo pobre das origens, de que nunca tinha ouvido falar em casa ou no colégio, mais tarde acompanhado por S. Francisco de Assis e Simone Weil.
Falando de teatro, saber ouvir é o segredo maior, sublinha Jorge Silva Melo, que pede «tempo» para que à luz se desvele o oculto. E Deus está lá sempre, nos textos e atores que escolhe.
Na conversa com a jornalista Maria João Avillez, de que apresentamos excertos no vídeo abaixo publicado, houve ainda oportunidade para falar do esplendor do divino, que se acha no despojamento e no silêncio – longe vai a infância – e da ideia que Jorge Silva Melo tem de Deus.
O programa do ciclo “Deus – Conversas de Maria João Avillez” inclui entre os intervenientes dois candidatos à presidência da República, Marcelo Rebelo de Sousa (4 de novembro) e Maria de Belém (11 de novembro).
O selecionador de futebol Fernando Santos (18 de novembro), o escritor Pedro Mexia (25 de novembro), a fadista Carminho (2 de dezembro), o jornalista Henrique Monteiro (9 de dezembro) e João Taborda da Gama, professor de Direito (16 de dezembro) participam também na iniciativa.
Na próxima sessão, a 27 de outubro, a convidada é Assunção Cristas, ministra da Agricultura e do Mar. Os encontros, com entrada livre, realizam-se sempre às 21h30.
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
“Gosto do Deus do amor e do perdão, não da culpa”
A infância de Jorge Silva Melo marcou boa parte da primeira “Conversa sobre Deus” que encheu a Capela do Rato, em Lisboa. O cineasta contou como foi despertando para a fé católica. Numa família onde o pai “era o tradicional republicano, jacobino e mata-frades”, e a mãe mantinha “um catolicismo social, de baptizados, casamentos e festa”, acabou por ser influenciado pela rebeldia da irmã, 12 anos mais velha, e que era profundamente católica.
A passagem pelo colégio dos maristas, para onde foi com seis anos, não lhe deixou boas recordações, mas foi aí que ouviu pela primeira vez a história da transfiguração, que o marcou até hoje. “Deus fez-se homem, e há uma altura em que o homem vai revelar o seu esplendor divino”.
“É uma história que me encanta”, diz, e que também o fez amar o teatro: “Isto foi uma cena de teatro fantástica, lá no alto da montanha, Jesus chamou dois profetas, Moisés e Elias, ou seja, não só fez o teatro de si próprio, como fez o teatro histórico, trouxe as personagens históricas, aqueles que vieram antes dele, que O anunciaram.”
“Também é por causa desta história que a minha profissão nunca foi muito bem vista na Igreja, porque nós ousamos fazer aquilo que só Jesus pode, que é tranfigurarmo-nos”. E acrescentou: “Criador é só Deus e os artistas. Nós roubámos essa palavra, por isso nunca somos muitos bem vistos. Nós, os do teatro, somos sempre olhados um bocadinho de soslaio”.
O cineasta e encenador contou como também o marcou ter visto, ainda miúdo, o filme “Quo Vadis”: “Fiquei fascinado com aquele catolicismo primitivo, era uma religião que se opunha à religião dos poderosos que me era ensinada no colégio, castigadora, da culpa. Eu fiquei encantado com os pobrezinhos que estavam nas catacumbas”.
Houve também livros que considera fundamentais na sua vida, como as “Florinhas de São Francisco” e os de Simone Weil, que já lia em francês. “Percebi que era tudo muito diferente da religião que me era ditada, martirizada e crucificada no colégio”.
2015/10/18 - Quem é que aceita ser o último? (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
Nós na natureza, entre os outros animais, encontramos a lei do mais forte como nas nossas sociedades, mas há uma coisa que é típica do ser humano que é a vingança. Os animais não se vingam uns dos outros. Nós temos esse impulso dentro de nós. Temos o impulso não só individualmente mas como sociedade de descarregar a nossa fúria, o nosso medo, o nosso temor, a nossa fragilidade. Descarregarmos em cima de uma vítima que nós mandamos para fora dos nossos olhos.
É aquilo que um filósofo de inspiração fortemente cristã, René Girard, trabalhou muito no esquema do bode expiatório. Ele diz que é muito fácil embarcarmos nesta lógica e dá o exemplo de S. Pedro. S. Pedro, que conhecia Jesus muito bem e que devia defendê-lo, quando no momento da Paixão estão ali à volta da fogueira e Jesus é preso já se percebe que aquilo tudo vai acabar muito mal. Há uma criada do Sumo Sacerdote que diz: “Olha lá, tu não és um deles?”, ele diz: “Não, não sou, não conheço esse homem.” E nega Jesus por três vezes.
René Girard diz que este é o desejo mimético, nós ficamos com o desejo de imitar a multidão, a massa e não temos a força de cortar e dizer: “Não, é preciso fazer outra coisa. Não, ele não tem a culpa toda.” Nós não podemos descarregar a nossa responsabilidade num bode expiatório que escolhemos para ser ele a carregar com as nossas culpas e com aquilo que todos tínhamos a responsabilidade de fazer e não fazemos.
Nesse sentido, a tradição bíblica e cristã vai noutra linha, que é dizer assim: em vez de transferir a responsabilidade, nós assumimos a culpa, nós assumimos a transgressão, nós assumimos o pecado. Nós vemos isso quer no profeta Isaías, nesta figura misteriosa do servo do Senhor, quer no autor da carta aos Hebreus, que faz uma belíssima teologia, mas que ao mesmo tempo é quase impenetrável, difícil para os nossos conceitos, que é a teologia de Jesus Sumo Sacerdote, Jesus como aquele que faz o sacrifício da sua própria vida, e que, no fundo, é isto que nós repetimos em cada Eucaristia.
O que é que está por detrás disto? Está aquilo que para nós é mais fácil: é transferir, é culpar o outro, é dizer “Se não fosse isto, se tu não tivesses dito aquilo.” É sempre o outro que tem a nossa culpa. E este, o Servo, Jesus é aquele que assume sobre Si o peso de muitos, aquele que assume voluntariamente sobre Si as culpas, os pecados, as fragilidades.
Por isso Jesus inverte esta lógica, a lógica que nos coloca como adversários uns dos outros, a lógica da competição, a lógica que nos faz querer salvar a nossa pele – queremos lá saber de como o outro fica ou não fica. Jesus ensina-nos a quebrar com esta lógica e a dizer: “Não, sou eu que carrego a culpa, e sou eu que dou a minha vida pelos outros.” Esta figura do servo sofredor que se oferece a si mesmo para ser espancado, para carregar sobre si os castigos todos, é a figura do justo, a figura da vítima da história – mas a figura da vítima que nós, na nossa cultura dominante, não queremos ver, não queremos saber, pois as vítimas não têm lugar, as vítimas que não nos incomodem.
A experiência bíblica e cristã coloca a vítima como um modelo para nós. Por isso é que Jesus é a vítima de expiação pelos nossos pecados, como vai dizer a carta aos Hebreus : “Mas é Ele, Jesus enquanto vítima, Jesus enquanto assume Ele próprio, enquanto aceita dar-Se, que Se torna para nós o grande modelo, que Se torna para nós o grande sinal, o grande ensinamento, a grande lição.
Como é que nós somos chamados a ter fé? Como é que nós somos chamados a viver? Somos chamados a viver à maneira de Cristo, cortando com este impulso que é tão forte em nós, o impulso de culpar os outros, o impulso de nos vingarmos, o impulso de nos sobrepormos e aceitarmos fazer o inverso. Fazer o inverso que é aceitar a lógica da dádiva, a lógica do dom, a lógica do sofrer pelos outros, a lógica do serviço aos outros.
Quando estes apóstolos vieram ter com Jesus a dizer “Senhor, senta-nos um à Tua direita e outro à Tua esquerda” quem não gostava? Quem de nós não gostaria de estar sentado à direita ou à esquerda do Senhor na sua glória? Mas Jesus diz: “Não é isso que é importante, o importante é tu tornares-te o servo de todos e o último de todos, porque o Filho do Homem veio para servir.” Nós identificamo-nos com Jesus na medida em que nos despojamos de nós próprios, na medida em que desconstruímos esta lógica que há em nós de agressividade, de autodefesa, de sobrevivência, de afirmação pessoa, na medida em que desconstruímos e nos colocamos a servir, a aceitar ser o último. Quem é que aceita ser o último?
Nós pensamos: “É o último quem não tem hipóteses de ser o primeiro”, porque no fundo o importante é ser o primeiro. Mas Jesus diz: “Não, o importante é ser o último.” É alguma coisa que nos faz tombar, é alguma coisa a que nós dizemos “É absurdo.” A nossa carne grita outra coisa, a nossa vontade quer outra coisa. Nós queremos o sucesso, queremos triunfar, queremos afirmar-nos, e Jesus diz: “Queres isso? Então o caminho é este: é o caminho do serviço, é o caminho do apagamento, é o caminho da humildade, é o caminho da aceitação vitimária. Aceita tu ser a vítima, coloca-te tu no lugar da vítima, no lugar do mais fraco, no lugar do mais pobre, no lugar do excluído, coloca-te aí, coloca-te aí. E então, receberás o batismo que Eu vou receber, e tomarás o cálice que Eu vou beber.”
É muito belo este trecho da carta aos Hebreus porque diz-nos o seguinte: “Por causa disto (por causa do gesto de Jesus, que é um gesto em rutura com aquilo que a carne e o sangue nos ensinam, e com aquilo com que a nossa cultura nos vacina), por causa de Jesus, cheios de confiança, nós podemos ir ao trono da graça a fim de alcançarmos a misericórdia.”
A partir do dia 8 de dezembro deste ano de 2015, nós cristãos vamos começar o Ano Santo da Misericórdia. Na bula de convocação da Igreja para o Ano Santo, o Santo Padre diz três coisas fundamentais, no meu ponto de vista.
Primeiro: Jesus é o mestre da misericórdia, Jesus é o rosto da misericórdia de Deus. Precisamos de colocar os olhos em Jesus. Isto é um desafio para cada um de nós porque, se calhar, nós já vimos Jesus, mas ainda não O vimos. Isto é, ainda não vimos um Jesus capaz de falar à mulher e ao homem que eu sou em concreto. Não é Jesus que todos nós amamos e adoramos, mas um Jesus que me ensina a viver nas pequeninas coisas. Não é nas grandes coisas, na vida eterna, na salvação da alma, não é nas grandes coisas, é nas pequeninas coisas que Ele é o Mestre, que Ele me ensina a viver. Então é descobrir Jesus como mestre, como mestre da misericórdia.
Depois, descobrir como a misericórdia torna credível a fé. Isto é, eu não posso dizer que sou cristão sem a misericórdia. Por isso, o Santo Padre diz: “A Igreja fala de Jesus e fala de Deus com credibilidade quando ela usa da misericórdia.” Então, a misericórdia torna credível a nossa fé. Se há um cristão no qual eu posso confiar é um cristão misericordioso, que usa de misericórdia, que sabe o que é a misericórdia.
E a terceira parte é um grande desafio para a Igreja, mas para cada um de nós, que é o que Jesus manda os discípulos fazer: “Ide aprender o que é «eu quero misericórdia e não sacrifício». Ide aprender o que é que isto significa.” Eu acho que é uma tarefa para cada um de nós nas nossas vidas, na nossa forma de viver, nos nossos passos, nas nossas relações: “Ide aprender o que é que isto significa.”
Na preparação para este Ano Santo da Misericórdia é tão importante centrarmo-nos em Jesus, é tão importante perceber que a misericórdia não é a cereja em cima do bolo, é o próprio bolo. Não é apenas um ornamento, uma coisa: “Ah, é tão bonito! Se tu fores misericordioso então é um plus.” Não, não é um plus, se tu não és misericordioso, és uma fraude. Tu só serás cristão na medida em que a prova da misericórdia for uma prova ganha na tua vida concreta.
Por fim, essa coisa em aberto, porque a misericórdia não é uma coisa com cinco pontos, fazer isto, fazer aquilo, fazer aquilo, fazer aquilo. A misericórdia é uma criatividade, há uma fantasia. A misericórdia é vivida por cada um de nós, há-de ter expressões muito diversas, muito singulares. E é a isso que nós também somos convocados pelo Papa Francisco neste Ano Santo, para aprendermos o que é a misericórdia.
Que cada um de nós sinta isto como um desafio às portas do Ano Santo. O que é que significa? O que é que vai ser para mim este Ano Santo da Misericórdia? O que é que vai ser? Porque é que é que ele se vai tornar decisivo nas nossas vidas? Temos de nos ajudar muito uns aos outros, temos de rezar muito. Temos de rezar muito uns pelos outros, para que a misericórdia seja de facto uma arte que todos nós praticamos em beleza, em liberdade, em esperança.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXIX do Tempo Comum
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2015/10/16 - Caixas ofertório
Objecto de cerimónia encomendado por José Tolentino Mendonça para servir nas eucaristias da Capela do Rato. Caixa sólida, sem pegas, sem lados, sem direcções desenhada para passar de mão em mão. A sua pequena abertura para colocação das esmolas reivindica a concentração no momento da oferta. A superfície lateral única e contínua procura o sentido de comunidade.
Autor:
www.joaocarmosimoes.com
2015/10/11 - Desprende-te (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
Ouvimos muitas vezes dizer que na nossa época faltam os mestres. Nós temos tantos especialistas, mais do que nunca a técnica e a ciência evoluíram, ganhando um espaço, um protagonismo, nas nossas sociedades. Mas faltam-nos os mestres capazes de fazer uma síntese, capazes de nos ajudar de uma forma verdadeira, sapiencial, a encontrar o sentido para aquilo que vivemos, o sentido para os nossos caminhos, para as nossas procuras e para as nossas histórias.
Eu não sei se nos faltam mestres ou não. O que eu sei é que cada um de nós é colocado perante a questão da sabedoria. Cada um de nós é chamada e é chamado a encontrar uma sabedoria para a sua vida. Isto é, a vida não pode ser apenas a soma das possibilidades que eu já tenho e estar a descontar dias num calendário. A vida tem de ser mais do que isso. Aquilo que ilumina, argamassa, dá conteúdo e alicerça a vida tem de ser uma sabedoria.
Sabedoria significa uma visão global da própria vida, não uma visão parcial. Significa uma visão de conjunto que abarque não apenas o agora mas a globalidade da nossa vida, não apenas o que nós fomos, o que nós seremos. Uma narrativa que seja capaz de conter o nosso nascer e o nosso morrer, a nossa vida e a nossa morte. E forneça uma luz que seja credível para nos iluminar. Nós precisamos de uma sabedoria, senão vivemos às cegas. Senão vivemos ora dando uma importância excessiva a isto, ora agarrando-nos àquela paixão, ao último entusiasmo, e acabamos por ficar reféns ora das nossas ilusões, ora das nossas frustrações. Mas falta-nos um alicerce, falta-nos um caminho, um caminho seguro, um caminho claro que vamos encontrando, construindo, aprofundando em cada dia. As leituras de hoje falam-nos disso.
A carta aos Hebreus diz: “A sabedoria é a palavra de Deus que nós somos chamados a acolher nas nossas vísceras, na dobradiça dos nossos ossos.” Isto é, nos pontos mais verdadeiros da nossa condição humana, nós somos chamados a receber a Palavra. A Palavra não é apenas um dispositivo teórico e ideológico que nós vamos construindo, uma série de convenções rituais que nos ajudam confortavelmente a viver, mas a palavra argamassa a mulher e o homem que nós somos.
A primeira leitura do livro da Sabedoria usa um sinónimo, em vez de Palavra de Deus usa o termo “sabedoria” e apresenta-nos o Rei Salomão. É um texto muito belo este que nós lemos, porque Salomão foi o rei mais poderoso de Israel, aquele que construiu o Templo, que viveu numa condição de prosperidade e paz política como nenhum outro rei. Salomão diz: “Eu preferi às riquezas e aos cetros a sabedoria. Ela para mim foi sempre a estrela, a coisa mais importante.” E é, no fundo, essa questão que nos é colocada: Qual é o nosso fio condutor? Qual é o nosso fio condutor? O que é que nós seguimos? Qual é a finalidade que nós sentimos para a nossa vida? Porque é importante isso estar explicitado para cada um de nós.
Não pode ser apenas chegar lá por intuição ou às apalpadelas. Não, cada um de nós tem de dizer: “O sentido da minha vida é este, aquilo que eu procuro é isto. Mais ou menos, na incerteza das minhas possibilidades, mas é isto, é isto que eu procuro. E, se eu procuro isto, então eu vou viver numa coerência, eu vou dar consistência aos meus próprios passos. Não posso acreditar numa coisa e viver de uma forma completamente contraditória com aquilo que eu persigo, com aquela sabedoria que eu identifiquei. Mas as nossas vidas são chamadas a fazer uma coisa só com aquele núcleo de verdade fundamental que para nós é a nossa âncora, é a nossa chama, é a nossa estrela.
O Evangelho dá-nos um caminho e conta-nos este encontro de Jesus com este homem bom. Este homem que procurava cumprir, procurava realizar, procurava acertar desde a sua juventude, vivia energicamente a dizer um sim. Isso era verdade nele. Quando Jesus lhe diz:
“ – Tu sabes os mandamentos, cumpre-os. Isso é um caminho.”
Ele diz:
” – Eu já tenho cumprido tudo isso desde a juventude.”
Jesus olha para ele e olha com simpatia, vê que é verdade – há ali uma situação de empatia. Jesus estava perante alguém que fazia da sua vida uma obra sábia, uma obra sapiente, uma obra de respeito. E tem simpatia por ele. Mas diz-lhe esta palavra: “Falta-te uma coisa, falta-te uma coisa.” Porque mesmo nas vidas que parecem acabadas e completas falta uma coisa.
É interessante que muitas vezes no Evangelho, e aqui se vê o jeito sapiencial de Jesus, Jesus é um verdadeiro mestre das nossas vidas, muitas vezes Ele deixa-nos com uma frase assim. No episódio de Marta e Maria, por exemplo, Jesus vira-se para Marta atarefada, só a pensar no fazer, no fazer, e Jesus diz: “Marta, Marta só uma coisa é necessária.” E isto é uma chamada ao contrário das nossas dispersões. Fazemos isto e aquilo, e aquele outro, e só uma coisa é necessária. A pergunta é se nós estamos a fazer em cada momento a coisa necessária, e se nós estamos a optar pela coisa necessária, a dar-lhe a prioridade devida. Hoje, Jesus diz uma outra coisa, diz: “Falta-te alguma coisa.”
A verdade é que a cada um de nós falta alguma coisa. Falta fazer, falta sobretudo ser alguma coisa. Não podemos pensar na nossa vida como um parque de estacionamento onde já chegámos e vamos vivendo mais ou menos, com maior esperança, com maior inocência ou com maior cinismo. Vamos vivendo a nossa vida porque já sabemos tudo o que vai ser. Não, “falta-te uma coisa”, e se queremos levar esta aventura humana até ao fim falta-nos uma coisa. Jesus para aquele homem diz-lhe: “Falta-te uma coisa: vende tudo o que tens, dá-o aos pobres, vem e segue-Me com maior radicalidade.”
Porque não há liberdade sem desprendimento, não se pode pensar que a liberdade nos é dada. Não, a liberdade não nos é dada, a liberdade é conquistada, é conquistada. Ninguém nos dá a liberdade. Podem-nos dar uma liberdade de fora, um quadro da liberdade, mas nós podemos estar completamente presos e manietados num quadro de liberdade, ou num quadro libertário até. A liberdade é conquistada e a liberdade, antes de tudo, é uma atitude interior. Porque nós vemos na primeira geração dos cristãos, eles estavam presos, acorrentados e estavam livres. E S. Paulo escreve a Timóteo: “Ninguém põe grilhões na palavra de Deus. “ Isto é, nós podemos estar numa prisão e estar livres, porque a liberdade não é um condicionalismo exterior, a liberdade é uma conquista do nosso coração.
E como é que a liberdade se conquista? Eu não conheço outro caminho senão pelo desprendimento. Pelo amor, pelo abandono, pela entrega, pela convicção, pela fé, mas também pelo desprendimento. Para eu escolher uma coisa tenho de deixar outras, não posso levar tudo. A vida espiritual não é um grande carro de mudanças, é uma bicicleta. O homem e a mulher espiritual andam de bicicleta, não andam de camião a querer levar tudo atrás de si. Nós temos de carregar connosco aquilo que cabe numa bicicleta, a vida mínima, o essencial. Mas isso é uma escolha, é uma escolha difícil de fazer porque nos prendemos verdadeiramente, há prisões.
Nós vemos, por exemplo, com os ricos. Podíamos pensar que quem tem muito dinheiro a dada altura deixa de preocupar-se com dinheiro. É o contrário, quem tem muito dinheiro só pensa em dinheiro, e torna-se obcessivamente preso àquele dinheiro. Quem tem muito quer ter ainda mais, não quer partilhar, não quer fazer alguma coisa com aquilo – salvo raras, honrosas, generosas exceções. Mas isto que Jesus critica, estes ricos que podemos ser nós, que pode ser a riqueza material e as outras riquezas existenciais que transportamos, estes ricos são aqueles que ficam presos, fazem do que têm a sua prisão. Esta arte do desprendimento, como arte espiritual que nós temos de praticar, é fundamental.
Depois, o outro passo que Jesus nos ajuda a dar é o passo da dádiva, do dom: “Vende tudo o que tens.” Isto é, “desprende-te.” Cada vez mais radicalmente, e nós sabemos que é assim, temos que nos desprender mais para ser mais livres, senão não experimentamos uma verdadeira liberdade e uma verdadeira sabedoria.
Mas depois, nós desprendemo-nos para viver a experiência da dádiva, a experiência do dom, do dom. A nossa vida fica como o pão duro no saco, que acaba por ser deitado fora, se nós não colocamos esse pão sobre a mesa. Isto é, se nós não nos colocamos como o pão sobre a mesa para que os outros comam. Aquilo que nós não damos, perde-se. Nós só possuímos, nós só encontramos, nós só somos a vida dada, a vida partilhada, e é essa a grande lição de Jesus. Ele está todo neste pão que nos oferece como alimento. A vida de cada um de nós é chamada a ser dom, dom. Uma vida onde não há dádiva é uma vida que está a perder-se, é uma vida que é vivida sem a sabedoria de Jesus. Nós temos de redescobrir o dom na nossa vida – o dom, o serviço, a oferta, o comprometimento, o empenho. Aquele ícone do lavar os pés uns aos outros, que S. João nos dá na última ceia, deve ser a imagem que cada um de nós persegue.
Depois Jesus diz: “Dá aos pobres, aos pobres.” Há um encontro com os pobres que todos nós somos chamados a ter. A pobreza entendida de diversas formas, é verdade. Mas cada um de nós tem de ter um encontro com os pobres.
Eu lembro-me (penso já ter contado esta história) de uma pessoa que conheci que teve uma carreira política, internacional, académica absolutamente notável, distintíssima. Ele, quando se reformou, disse-me: ”Padre Tolentino, a minha vida tem sido uma vida realizada, cheia, só tenho a agradecer. Mas falta-me uma coisa, e que toda a vida, em todos estes cargos que eu tive, nunca tive a oportunidade de fazer: encontrar-me com os pobres.” Ele passou de um cargo internacional muito importante para a Conferência Vicentina da sua paróquia, para ir ao encontro dos pobres. E, neste homem, nós reconhecemos um cristão, reconhecemos um cristão. Porque é preciso uma liberdade enorme e um ouvir continuamente no seu coração esta Palavra de Jesus: “Falta-te uma coisa, falta-te uma coisa.” Ele sabia que lhe faltava ir ao encontro dos pobres.
Esse encontro não é um encontro que nós podemos não realizar. Há uma página do Evangelho que os pobres guardam, escrita nas suas vidas. E se nós a quisermos ler, temos de os servir, temos de os encontrar, temos de os acolher, temos de os ouvir para entender essa página do Evangelho.
Depois, Jesus diz: “Feito isto, vem e segue-Me.” O seguimento de Jesus é assim um seguimento que transforma a nossa vida. Nós não podemos pensar que estamos a seguir Jesus e a nossa vida contínua incólume, continua a mesma, continua a vida que a gente quis, a vida que a gente escolheu, a vida que a gente sonhou. Bem-aventurados aqueles a quem a vida deu o que eles não sonharam, que tiveram de viver o que eles não pediram, que tiveram de gerir aquilo que eles não estavam à espera. Mas a abertura, a hospitalidade, a esse inesperado da vida, a isso com o qual não contávamos mas temos de amar, temos de abraçar, temos de servir é que nos torna seguidores de Jesus.
Queridas irmãs, queridos irmãos, há uma sabedoria que é o próprio Jesus. Jesus é a sabedoria do Pai. Nós precisamos de olhar para Jesus não apenas como o nosso salvador que deu a vida por nós, que dá a vida por nós, mas temos de olhar para Jesus também como a nossa sabedoria. Isto é, o nosso mapa, o nosso mapa. Todos os dias nós somos viajantes, somos peregrinos, Jesus é o nosso mapa nas atitudes de viver, nas escolhas mais simples ou mais decisivas da nossa vida, Jesus dá-nos o critério, Jesus dá-nos a chave. Nesse sentido, passo a passo, todos juntos, caminhamos.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXVIII do Tempo Comum
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2015/10/04 - A família é um laboratório do nosso futuro (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
Esta manhã, em Roma, o Papa Francisco celebra a missa de abertura do Sínodo sobre a Família, que vai reunir 270 bispos do mundo inteiro, representando as igrejas do mundo, e vários peritos, especialistas, que vão assessorar os bispos, entre os quais dezoito casais.
Nós sabemos como este Sínodo é uma segunda etapa deste acontecimento que o Papa Francisco quis promover para aprofundar a teologia da família, o significado da família no mundo contemporâneo, e para pensar no interior da Igreja o que é a beleza da missão da própria família, ao mesmo tempo meditando sobre o modo como a Igreja há de exercer o seu ministério da misericórdia sobre as feridas, as vulnerabilidades, as fragilidades da própria família.
Ainda ontem o Santo Padre, na vigília na Praça de S. Pedro, dizia precisamente isso: “Este Sínodo é, por um lado, para todos termos mais claro a beleza da família. O que significa a família, a sua importância na história de cada um de nós, no futuro da Humanidade. A família é um laboratório do nosso futuro. Por isso a família tem de ser redescoberta, a família tem de ser celebrada na sua vocação e na sua missão. E ao mesmo tempo, termos uma atenção misericordiosa para com as fragilidades da família, as vulnerabilidades da família.”
E não há família que não seja atravessada pelo mistério da fragilidade humana. O Santo Padre dava como exemplo precisamente a família de Nazaré. José e Maria e Jesus, eles são o modelo da família. E é um modelo de uma família difícil, uma família com muitos problemas. Mas eles encontraram, na capacidade de estar uns com os outros, de se amarem, de se reconhecerem, de se descobrirem mesmo naquilo que não compreendiam uns dos outros, um caminho. Os Evangelhos dizem-nos, por exemplo, continuamente, que Maria e José não compreendiam o que Jesus estava a fazer. Mas aquilo que não se consegue compreender também é património da própria família, e é preciso amar e saber integrar isso.
De maneira que é uma etapa muito importante este mês de outubro, e nós somos todos chamados a rezar pelo Sínodo dos Bispos, a pedir o dom do Espírito Santo. Porque sabemos ao mesmo tempo como há as divisões e as dificuldades em encontrar um caminho comum que seja um caminho verdadeiro de comunhão.
E aí, de facto, a Palavra de Deus é uma palavra inspiradora para nós, porque Jesus tem uma palavra que coloca as coisas na sua verdade essencial. Reparem, segundo a Lei de Moisés, o homem, e só o homem, podia passar um certificado de divórcio para separar-se da mulher. Só o homem podia fazer isso. E não havia, no interior da relação conjugal, nenhuma paridade. Era uma sociedade patriarcal, quem mandava verdadeiramente era o homem. E quando fazem a pergunta a Jesus, Jesus estabelece uma paridade. Diz que o homem a mulher estão ao mesmo nível, estão numa equivalência no interior da relação conjugal.
E faz mais, retira o matrimónio da Lei. Não é a Lei de Moisés que decide sobre o matrimónio, mas Jesus vai à criação: Pergunta ao teu coração o que o matrimónio deve ser. Isto é, Jesus faz remontar à ordem da criação, ao gesto inicial do criador, o encontro que na família se vive. Essa é, de facto, a citação que Jesus faz do livro do Génesis que hoje nós lemos: O homem está no meio da criação, ele dá nome a todas as coisas, mas o homem sente-se só. Sente uma solidão fundamental porque o coração humano precisa de uma conjugalidade. E quando Deus interroga o homem, o homem diz a Deus que precisa de uma “ezer”. As traduções são sempre muito rebuscadas, desde “eu preciso de uma auxiliar” ou “eu preciso de uma assistente”. Mas, verdadeiramente, a palavra “ezer” o que quer dizer é “eu preciso de alguém que olhe nos olhos”. Isto é, o homem olha para a criação de cima para baixo, sente que é diferente dos animais, sente que é diferente das aves, mesmo tendo a missão de ser pastor de todas as coisas e não dominador. Mas o homem sente-se só porque precisa de alguém que olhe nos olhos.
E, por isso, a conjugalidade não é fruto de uma lei, antes de tudo é fruto de uma reivindicação, de uma incompletude que o homem vive no seu coração. Há essa imagem poética extraordinária em que Deus adormece Adão, e quando Adão acorda Deus coloca-lhe Eva, essa “ezer”, diante dele. Então ele diz esse que é um dos primeiros poemas hebraicos, e que é um poema de uma extraordinária beleza: “Esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne.” É um poema extraordinário porque mostra o ligame vital que a conjugalidade é chamada a exercer.
Mas nós sabemos, queridos irmãos, que no Cristianismo primeiro vem a dogmática e depois vem a moral. Primeiro vêm as verdades da nossa fé e depois nós temos de fazer uma hierarquia das verdades da nossa fé. A coisa mais importante é acreditarmos que há um só Deus que é misericórdia, que Jesus é o Seu Filho enviado, que Ele veio para dar a vida por nós e não Se envergonha da nossa fragilidade, da nossa imperfeição, do nosso inacabamento, e que nos enviou o Seu Espírito que vive no meio de nós, que vivemos em Igreja e caminhamos no tempo e na história. Esta é a verdade fundamental da nossa fé. A ética deve ser uma expressão, uma tensão, para vivermos na nossa vida concreta esta fé que professamos. Mas Deus leva-nos ao colo em todas as situações.
E por isso, o debate é apenas uma parte do sínodo porque o fundamental é descobrir, aprofundar, o sentido da família, o seu significado, celebrar a família no mundo contemporâneo – onde nós sabemos que é tão difícil porque toda a nossa cultura é uma cultura muito mais instantânea, muito mais precária, onde tudo parece durar o tempo de duração de um iogurte. A tendência é levar isso, também, para as relações mais fundamentais da vida. Nós sabemos como é preciso contrariar uma cultura que nos desumaniza, porque se o homem não é capaz de eterno, o homem não é capaz da sua humanidade.
Nesse sentido, há uma tensão que o cristianismo introduz na nossa humanidade que é importante que permaneça, mesmo que isso represente uma espécie de contra cultura, um ir contra a tendência dominante. Mas, ao mesmo tempo, nós sabemos como as relações humanas e a nossa própria humanidade são uma humanidade ferida. Ela própria é um enigma, ela própria é um mistério e, como sabemos, antes de tudo o que a Igreja tem de testemunhar é o rosto misericordioso de Deus.
Aqui nós temos de rezar, temos de rezar porque as feridas existem, nós não podemos enxotá-las para debaixo do tapete. Os problemas em relação à família são problemas concretos. Se calhar, o discurso de uma época não serve para outra época. E temos de viver com verdade, com autenticidade, este ministério de compaixão e de amor que Jesus nos manda, nos pede viver. Só assim somos fiéis a Jesus.
E nesse sentido, todo este esforço por reconhecer como uma parte significativa dos casamentos que se celebram catolicamente não são válidos. E não são válidos simplesmente porque as pessoas não estão preparadas para assumir, as pessoas não têm consciência do que estão a fazer. Casam cedo de mais, precipitam-se, não fazem um discernimento espiritual. É preciso também reconhecer que muitos casamentos falharam porque tinham tudo para falhar. E é preciso ir em socorro, é preciso perceber essa situação, e esclarece-la do ponto de vista do Evangelho.
Nesse sentido, esta agilização que o Papa Francisco faz da anulação do matrimónio, reconhecendo que o bispo local, o bispo de cada diocese, tem também um poder de juiz, e por isso os processos de verificação do casamento e da anulação passam a ser sobretudo diocesanos, na maior parte dos casos. Isso é um gesto muito importante da Igreja e de adequação à própria realidade. Quer dizer, a realidade é assim, é assim. E quando ouvimos as histórias de fracasso do matrimónio nós vemos aquele homem e aquela mulher que não tinham condições para viverem amplamente aquela missão que aceitam naquele dia, se calhar com a verdade que podiam naquele momento, mas não era a verdade capaz de sustentar as dificuldades e a complexidade de uma vida conjugal.
Por isso, é preciso ir ao encontro das vidas feridas, é preciso ir ao encontro com misericórdia. Nós sabemos que hoje a realidade, o fenómeno, a experiência, a condição da homossexualidade feminina e masculina ganhou nas nossas sociedades uma visibilidade que nós não podemos ignorar. As pessoas têm de viver e temos de escutar a voz das pessoas, temos de escutar o que elas vivem e temos de aprender, temos de acolher e temos de aprender, fazer um caminho com as pessoas. Porque, no fundo, nós muitas vezes pomos o dedo: “Este é este, aquela é aquela.” E nós ignoramos tanto da vida dos outros, do sofrimento dos outros… A verdade é que muitas vezes impomos cargas aos ombros dos outros que nós nem com um dedo as levamos.
Nesse sentido, temos de fazer silêncio e escutar. A Igreja também precisa de escutar, também precisa de ouvir a voz daqueles que muitas vezes não têm voz no meio de nós, e encontrar formas de diálogo, de acompanhamento. Isso é tão importante.
Aqui, na nossa comunidade, há uma experiência de cristãos homossexuais que se reúnem para rezar uma vez por mês na nossa capela. É tão importante dar esse espaço para que as pessoas rezem as suas vidas, para que as pessoas se confrontem com a palavra de Deus de uma forma que não seja para as julgar, para as condenar à partida. Mas, pelo contrário, para dizer que os homossexuais são nossos filhos, são nossos irmãos, são nossos amigos, são nossos companheiros de trabalho, são cristãos como nós, estão na nossa comunidade. Nós temos de encontrar um modelo pastoral, porque também é disso que se trata. Temos de encontrar um modelo pastoral onde a integração seja uma realidade mais vivida, e este ministério da compaixão que Jesus Cristo confia à Igreja seja um ministério praticado por todos nós.
Vamos por isso rezar ao Senhor, é uma hora muito importante da vida da Igreja este mês de outubro, não é um mês qualquer, é um mês importante, jogam-se coisas decisivas. O Santo Padre pediu aos bispos para falarem com liberdade. A palavra grega é uma palavra que vem muito no Cristianismo, que é “parrésia”. “Falem com parrésia”, isto é, falem com desassombro, falem com abertura, falem com verdade, digam o que pensam. Foi isso que o Santo Padre pediu aos bispos, aqueles 270 que estão ali, e pede à Igreja. Falemos com esta abertura, com esta simplicidade, com esta verdade para encontrarmos um caminho comum que tem de ser o caminho da comunhão.
A força da Igreja é a força da comunhão. Uma comunhão que se faz de diferentes ritmos, de diferentes experiências, mas uma comunhão que é um caminho comum à volta de Pedro, à volta daquele que é o que o Senhor colocou na linha da sucessão apostólica e que é o primeiro garante da unidade da nossa fé, da unidade daquilo que todos vivemos.
Queridos irmãs e irmãos, é assim um outubro muito belo este que temos pela frente, mesmo com a sua dificuldade, a sua cruz, mas onde é que há ressurreição sem se passar pela cruz?
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXVII do Tempo Comum
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Setembro
2015/09/27 - Mas tu, o que é que vais fazer? (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
Nós começamos a Palavra de Deus pela leitura do Livro dos Números, num texto muito curioso que tem a ver com uma teologia nem sempre dominante nas nossas perspetivas. Muitas vezes olhamos para a história como se o Espírito Santo fosse um monopólio de alguns, um dom especial que alguns têm. Muitas vezes, na forma de encararmos a história do mundo, a história da Igreja, o próprio presente, nós achamos: Ah, fulano é que tem o Espírito, aquele é que tem o Espírito, aquele outro é que tem o Espírito.
É interessante que esta teologia exodal dos Números faz eco. Diz-nos que o Espírito Santo é um dom muito democrático. Isto é, é repartido pelos setenta e dois anciãos de Israel. Isto é, o dom do Espírito Santo não é o dom apenas do sacerdote, ou não é apenas o dom do profeta, não é apenas Araão e Moisés que recebem o Espírito Santo. O Espírito é distribuído a todos os anciãos de Israel. E mais, aqueles que não estavam no momento da oferta, da grande oblação quando os setenta receberam ao mesmo tempo o Espírito e ficaram por alguma razão no acampamento, o Espírito Santo também desceu sobre eles para lá das fronteiras do Sagrado.
Isto dá-nos uma visão muito mais rica do que é a vida, do que é a história. Porque, de facto, o Espírito Santo está derramado em todos nós, sem exclusão. E, cada um de nós é chamado a viver a sua vida exercendo esse dom do Espírito Santo que está em nós.
A própria espiritualidade cristã fala continuamente, por exemplo, da paternidade espiritual, da maternidade espiritual. Não é apenas a figura do padre que tem o monopólio da paternidade espiritual. A paternidade espiritual é a forma como somos amigos uns dos outros, como estamos próximos, como somos capazes de dar um bom conselho, como somos capazes de escutar, de acolher, de abraçar, de corrigir, de avançar, de alertar. Tudo isso é a paternidade espiritual. É uma missão que todos nós somos chamados a ter na vida uns dos outros. Maternidade espiritual o que é? É a capacidade de acolher, a capacidade de ouvir, mas também é a capacidade de por a caminho, a capacidade de fazer ver as coisas de outra forma, de nascer, de perceber aquilo que é importante e aquilo que é acessório.
Esta tarefa, que é a tarefa de trazer o Espírito ao mundo, gerar no mundo o Espírito, é uma missão que nos é confiada a todos, sem exceção. E não é sequer apenas aqueles que estão aqui no momento em que o Espírito desce. Há pessoas que estão nos acampamentos dispersos que são o mundo e neste momento estão a receber o Espírito Santo como nós estamos a receber. E têm de fazer alguma coisa com Ele.
Ainda ontem o Papa (que está neste momento em Filadélfia para o encerramento do Congresso Mundial das Famílias) falou na catedral de S. Pedro e S. Paulo em Filadélfia, numa homília muito breve mas lembrando uma das santas daquela diocese, Santa Catarina Drexel. É uma santa contemporânea que viveu o grande momento da Revolução do Proletariado e o nascimento da Doutrina Social da Igreja. Ela foi a Roma quando jovem militante católica e teve um encontro com o Papa Leão XIII. Expôs ao Papa a situação dos E.U.A, como é que ela via as coisas. Depois o Papa Leão XIII, um homem exercendo a sua paternidade espiritual, faz-lhe a pergunta chave. E a pergunta chave é esta: “ E tu, o que é que estás a pensar fazer?” Esta foi a pergunta de que ela não estava à espera. E foi esta a pergunta o ponto de partida para uma vida toda ela transformada, toda ela habitada pelo Espírito.
É assim, nós somos ótimos no diagnóstico. Todos nós temos um diagnóstico sobre a nossa família, sobre nós próprios, os nossos amigos, a nossa sociedade, a política, este e aquele… Somos ótimos no diagnóstico. Mas tu, o que é que vais fazer? O que é que te propões fazer?
No fundo, é este apelo muito grande a cada um de nós ser profeta. E ser profeta não é apenas: Ah, mas eu não sei nada de exegese bíblica, como é que eu vou ser profeta? A profecia desenvolve-se nos campos mais diversos, e em todos eles é preciso profetas.
Por exemplo, S. Tiago: quando nós comparamos Tiago com Paulo parece que se está a comparar uma águia a uma galinha. Porque Paulo voa, Paulo sabe de teologia, Paulo vai para trás e para a frente no Antigo Testamento, Paulo inventa palavras. Paulo é um génio! Paulo é uma águia! S. Tiago parece que só anda ao rés da terra, parece que não consegue levantar voo. Lutero dizia que aquilo é a carta da palha, porque aquilo de teologia, quando nós vamos ali à procura de um grande pensamento, não encontramos. Mas a carta de Tiago é uma carta fortíssima do ponto de vista profético e é um grande manifesto de um cristianismo social. Na vida social o que é que nós podemos fazer?
Por exemplo, na forma como lidamos com o dinheiro. Como é preciso profetas na forma como se lida com o dinheiro! Porque nós sabemos como o dinheiro é por um lado importante, como ele é um instrumento necessário. Mas sabemos como o dinheiro se torna um deus, como o dinheiro ocupa o lugar do fundamental no coração. E sabemos como o dinheiro corrompe. Porque nós pensamos: aqueles que têm muito dinheiro chegam a um ponto e tornam-se generosos. Não, não se tornam. Porque o dinheiro dá vontade de ter mais dinheiro e depois é uma lógica infernal. É uma lógica infernal. E é preciso saber parar. É preciso saber sempre perceber como o dinheiro é um instrumento para uma vida protegida, para uma vida assegurada – “assegurada” entre aspas, “protegida” entre aspas, porque vivemos todos no desabrigo da vida, mas pronto, dá possibilidades de desenvolvermos tantas coisas importantes. Mas não é só aquilo, aquilo não basta. E, sobretudo, se for apenas para viver em função de nós próprios, para reforçar o nosso egoísmo, o nosso narcisismo, a nossa incapacidade de ir ao encontro dos outros, o dinheiro foi uma oportunidade perdida, foi uma oportunidade perdida.
E por isso, as palavras de Tiago são palavras muito fortes. Nós vemos na nossa sociedade, neste crash a tantos títulos que é vivido, nós descobrimos que o dinheiro serviu para quê, àquela pessoa? Não a tornou melhor pessoa, tornou-a um joguete nas mãos de paixões tão mesquinhas, tão vulgares. Para que é que lhe serviu aquilo? No fundo, essa pergunta, é uma pergunta para nós. Para que é que nos serve aquilo que temos? Para que é que nos serve? Que destino nós estamos a dar? Que finalidade?
Porque é preciso dar uma finalidade, e é preciso perceber aquilo que o Papa João Paulo II dizia muitas vezes: “Sobre os nossos bens recai uma hipoteca social.” Isto é, o que eu possuo não é só para mim. Eu tenho de perceber que uma parte é legítima, temos direito a isso, é bom, é um dom que Deus nos deu, que a vida nos deu. Mas não é para nos trancarmos nele, é para fazermos dele um caminho que tem de ser um caminho evangélico, tem de ser um caminho de amor. E tu, o que é que vais fazer? Nós precisamos de profetas neste campo. No campo da economia, no campo da vida social, no campo dos bens, no campo da gestão. Precisamos aí de profetas, de gente que seja capaz – precisamos de profetas na vida.
Hoje Jesus fala numa linguagem muito clara de como nós somos a nossa própria obra e como temos de ter uma transparência na nossa vida. Jesus quando diz: “Se a mão é para ti ocasião de pecado corta-a, se o olho é para ti ocasião de pecado arranca-o.” Não é para tomar do ponto de vista literal, não é para cortarmos a mão, cortarmos o pé e nos cegarmos. Mas é: corta aquilo que parece que é a tua mão, que tu consideras a tua mão, e no fundo te está a levar por um caminho de perda, de queda, de dispersão. Ser capaz de tomar decisões, é no fundo isso que Jesus está a dizer. Decisões humanas, decisões morais, decisões éticas que tornem a nossa vida alguma coisa onde nos reconhecemos, onde olhamos e percebemos que há uma coerência, que há um sentido.
É claro que isso é muitas vezes como cortar um pé. Por exemplo, em relação aos nossos vícios, apegamo-nos tanto a eles, seja um vício idiota qualquer que nós tenhamos, mas habituamo-nos tanto a ele como se fosse o nosso olho. É um terceiro olho, é um terceiro pé. E cortar aquele vício muitas vezes dói como se cortássemos a própria mão, mas é uma libertação. Podemos dar a volta ao mundo e voltar mas só há uma maneira de nos libertarmos: é aceitarmos morrer para nós próprios. Só há uma forma de liberdade, é alguma coisa política, mas antes de tudo é alguma coisa pessoal. Como é que eu vivo com liberdade a vida?
Não tenhamos dúvidas, não há liberdade sem desapego, não há liberdade sem morte para o próprio eu, não há liberdade sem relativização de si, não há liberdade sem deixar coisas para trás. Não há, não há. Se eu quero carregar tudo, eu fico amarrado àquilo.
No fundo isso que Jesus nos diz: “Sê profeta na tua própria vida, sacode a poeira, não fiques preso a coisas idiotas, coisas que não ajudam ninguém a crescer. Se calhar tu já percebeste isso mas é uma bengala que te dá jeito, mas se calhar a vida começa quando tu deixares isso.” É profetas assim, no concreto da vida, no concreto da história, que nós somos chamados a ser.
“Quem me dera que todos no meu povo fossem profetas.” Esse grito de Moisés é um grito para nós, para cada um de nós. Porque o Espírito é-nos dado abundantemente, abundantemente: e nós, o que vamos fazer?
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXVI do Tempo Comum
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Julho
2015/07/12 - Celebração do XXV Aniversário de Ordenação Presbiterial do Pe. José Tolentino Mendonça
2015/07/12 - Aquilo que somos traz alguma coisa de único (homilia)
Queridos irmãs e irmãos
É com muita alegria que estamos aqui a celebrar a Eucaristia e a viver este momento da nossa comunidade. Eu quis celebrar aqui de uma forma explícita os 25 anos do meu ministério.
Por um lado, porque todos precisamos do amor uns dos outros, do afeto uns dos outros e de ser reconhecidos pelo olhar uns dos outros. Precisamos disso, e um padre também precisa. Mas também para podermos juntos assinalar o que é o lugar do padre, de qualquer padre, no meio da sua comunidade.
Isso é também muito importante porque ao celebrar o padre, o pai da comunidade, aquele que testemunha a comunhão, é a própria comunidade que se celebra a si mesma: a sua vocação, a sua missão, a sua natureza, o seu lugar. Ela que é uma comunidade que se constrói, que é uma comunidade de perdão, de escuta, de aprendizagem, é importante que também seja uma comunidade de festa, um lugar onde a alegria se celebra com muita simplicidade e com muita naturalidade.
Eu agradeço a Deus este ministério para o qual Ele me chamou. A vocação de cada um de nós é a forma que cada um tem de expressar o seu maior amor. E a mim o Senhor chamou-me para desta forma expressar e viver o meu maior amor, com aquilo que viver o amor significa de paixão, de encantamento, de sofrimento, de dor e delícia. É assim que o Senhor me chamou. E o Senhor continua fiel a cada um de nós, Ele chama cada um de nós, porque a Igreja não vive de um ministério só, senão ela é muito pobre. A Igreja vive na diversidade, na riqueza, na complementaridade dos ministérios.
É importante dizer que um padre é um homem feliz, é importante testemunhar que um consagrado pode viver uma vida de grande plenitude, de grande consciência e de grande plenitude. E não por mérito seu, mas por aquilo que Deus dá, pela forma como Deus é fiel. Deus é fiel à sua palavra, à sua ternura, na vida de cada um de nós, de uma forma para lá do que nós esperamos, do que nós contamos. Deus é fiel, e é isto que gostaria de testemunhar à vida de cada um de vós: Deus é fiel, podemos acreditar no Seu amor. Deus é credível na forma como nos ama, na forma como acompanha a vida, a pobreza de cada um de nós. Deus é credível, e por isso cada um de nós pode verdadeiramente confiar Nele.
Vinte cinco anos depois da minha ordenação eu penso que há duas coisas fundamentais que aprendi e que são as lições do meu meio da vida.
A primeira tem a ver comigo próprio, e não é orgulho mas é aquele entendimento que cada um de nós vai fazendo na sua vida, que é assim: Deus não quer que eu seja um padre a imitar outros padres. O que Deus me pede é que eu seja um padre a partir do que sou, a partir da minha originalidade, pelos dons que Ele me deu. Não me deu outros, e por isso eu tenho é que por a render aquilo que sou.
Acredito profundamente que Deus quer-nos cristãos originais, que cada um tem, de facto, a sua originalidade. Não há dois cristãos iguais, não há dois padres iguais. E essa diversidade é uma riqueza muito grande, que expressa a grande riqueza do povo de Deus e do amor de Deus. Nesse sentido, a maturidade é quando não temos medo de ser nós próprios. Somos, ou procuramos ser, com humildade mas também com naturalidade aquilo que somos. Porque aquilo que somos traz alguma coisa de único, porque Deus criou-nos assim, e único para a comunidade.
Nesse sentido, estes 25 anos também foram uma aprendizagem de que vale a pena ser eu próprio, vale a pena em cada lugar dizer o que penso, vale a pena em cada lugar não esconder a minha sensibilidade, a minha forma de sentir, de ver, o meu temperamento. Mas tenho é de expressar aquilo que sou, e viver, e perceber que esse é que é o contributo que eu posso dar à Igreja, que eu posso dar em nome de Deus.
Nesse sentido, eu penso que um padre não se faz numa forma. Temos aqui o padre João Norton, o padre António Pedro, cada um deles, e isto nós olhamos para eles e vemos, um padre não se faz numa forma, segundo uma tipologia própria. Mas aquilo que se quer é dar asas a cada um para que, na verdade de uma tradição e de uma comunhão, ele possa a partir dos dons que Deus lhe deu irradiar, ser aquilo que é. No fundo, aquilo que Deus pede a cada um de nós: “Olha, sê aquilo que tu és e sê com confiança, sê com alegria. És apenas uma parte, é preciso complementar com outros olhares, mas sê aquilo que tu és.”
E isso é alguma coisa muito, muito, importante. Acho que é uma descoberta muito importante na nossa vida e quando conseguimos fazer com verdade e com naturalidade eu penso que nos tornamos adultos, adultos na fé. Adultos também na fé. Porque às vezes somos adultos em tanta coisa e a nossa relação com Deus ainda é assim a medo, ainda achamos que Deus está sobretudo a nos culpar, a nos castrar, a nos pesar, e é o contrário, é o contrário. Deus está a alegrar-se com aquilo que somos, porque foi Ele que nos fez.
A outra coisa, igualmente importante a par desta, que descobri por cada dia, é que um padre é uma obra dos outros, é uma construção dos outros. Quer dizer, é claro que é uma vida original, é uma vida individual, mas um padre é a expressão da comunidade, e é cada dia. Ele vai sendo, vai-se tornando, a partir dos encontros que tem, das pessoas que conhece, das preocupações que lhe trazem, das histórias que lhe contam, das propostas que lhe fazem, do amor que lhe dão, dos silêncios, das partilhas, daquilo que testemunha. E, nesse sentido, um padre vai-se construindo como uma obra dos outros.
Eu olho para estes 25 anos da minha vida e, claramente, me sinto uma obra dos outros. Não seria o mesmo, não estaria aqui desta forma se não fosse cada um dos encontros, cada uma das pessoas, cada uma das vivências. E isso é tudo dom, isso é tudo graça, não é invenção é graça, é graça recebida.
Nestes 25 anos eu queria partilhar convosco quatro coisas, e quatro coisas para os próximos 250 anos do Cristianismo, não os próximos 25 anos. Eu penso que nestas datas temos sobretudo de olhar para a frente e dizer o que vemos. O que é que eu, Tolentino, vejo aproximar-se como Cristianismo no futuro? Eu vejo quatro coisas.
Eu penso que, a partir disto que nos é proclamado hoje na Carta aos Efésios, nós vamos dar muito mais importância ao alçado de Deus. O alçado de Deus é aquela parte superior dos edifícios que cada um de nós não vê. Normalmente os maus arquitetos atiram para lá o lixo todo, a maquinaria. Como ninguém vê, só Deus vê, eles chamam o alçado de Deus, atiram para lá toda a desorganização do construído. Mas os verdadeiros arquitetos desenham o alçado de Deus, e sabem que aquele alçado, que só Deus vê, é um lugar fundamental do próprio edifício.
Eu penso que, nos próximos 250 anos, nós vamos descobrir e dar muito mais valor ao alçado de Deus na nossa vida. Essa parte que não se vê, essa parte que cada um de nós tem como invisível ao longo da vida, mas que está lá e pode ser vista, e em momentos decisivos cada um de nós vê, e percebe que a parte mais importante do edifício é verdadeiramente essa.
Isto que S. Paulo nos diz, na frase mais comprida do Novo Testamento, e praticamente de toda a Bíblia, em que costura 23 verbos, este arranque da Carta aos Efésios para dizer: nós somos amados, Deus espera por nós, Deus deu-nos toda a riqueza, Deus formou-nos, Deus pensou em nós desde a criação do mundo. Esta certeza, esta confiança que eu chamo o alçado de Deus vai-se tornar cada vez mais decisivo nas nossas vidas.
Depois, um segundo argumento e que tem a ver com aquilo que Jesus hoje nos diz no Evangelho de S. Marcos, Jesus manda os discípulos em missão e diz: “Não leveis nem pão, nem alforge, nem dinheiro, apenas vestidos com uma só túnica. E andai de casa em casa.”
Eu diria que o futuro da Igreja está no caminho. O futuro da Igreja estará na medida em que nós formos capazes de relativizar o nosso sedentarismo, porque também somos muito sedentários, e aceitar o desafio que hoje nos faz o Papa Francisco em nome de Cristo que é de vivermos em saída, vivermos numa dinâmica exodal. E não há saída que não corresponda a uma essencialidade.
Quer dizer, nós arrastamos muita tralha que se torna um obstáculo ao anúncio, nós próprios precisamos da lição do viajante. Se eu carrego a mala com muito peso não vou dar um passo. Tenho de colocar na mala apenas aquilo que eu preciso e, sobretudo, tenho de encher a mala de confiança em Deus, de confiança na Providência, naquilo que Deus fará por mim quando eu acho que não tenho, que não posso. Se nós queremos partir em viagem carregando todas as eventualidades, preparado para tudo o que nos possa acontecer, não saímos da porta. Temos de sair levando, sobretudo, a leveza de uma confiança total na ação de Deus.
Nesse sentido, a Igreja precisa sair, precisa sair. Nós precisamos ser uma Igreja missionária, uma Igreja missionária. E uma Igreja missionária que fala sobretudo pela atração. Os momentos mais fortes do Cristianismo foram quando o anúncio se fez por atração. Aquilo que Jesus diz de forma misteriosa no Evangelho de João: “Quando Eu for elevado da terra atrairei todos a Mim.” É preciso que a Igreja se torne atraente, atrativa, e isso acontece quando? Quando ela sobretudo vive do testemunho, não vive a moralizar, não vive a carregar, não vive a dar lições, não vive a cantar de alto. Mas sobretudo dá um testemunho de alegria, um testemunho de simplicidade, um testemunho de beleza.
A beleza tem isso, a beleza atrai-nos. Nós não sabemos porquê, porque é que este Anjo de Berlim da Lurdes de Castro nos emociona, nos toca, nos diz sempre alguma coisa nova. Porque ele atua pela atração, não pela retórica, não por estar a nos dar uma lição.
Nesse sentido, nós precisamos tornar-nos missionários do testemunho, aceitando que vamos ter de ser muito mais leves, de ser muito mais essenciais.
E nesse sentido é o terceiro desafio e que tem a ver com a história do profeta Amós. Amós era um profeta e foi, imagine-se, pregar para o Santuário, para o Templo. E o sacerdote do Templo diz: “Olha lá, no Templo não há profetas, vai lá pregar para a estrada onde é preciso, o Santuário não precisa de profetas.”
Ora, eu acho que um grande desafio é nós percebermos que o Santuário precisa de profetas. Isto é, que nós, na Igreja, precisamos de nos abrir a uma palavra que nos desinstala, a uma palavra que nos desacomoda, a uma palavra crítica, a uma palavra que transporta o Espírito e nos abre a novas linguagens, a novas gramáticas. Nós não podemos, comodamente, representar os que podem estar aqui, não podemos dizer: “O Povo de Deus são estes fiéis, e o resto são os infiéis.”
Nós temos de encontrar outra dinâmica interna e viver numa desinstalação, deixarmo-nos ler, reinterpretar criativamente pelo Espírito da profecia. E, nesse sentido, a Igreja terá, de facto, a força para encarar as feridas, coisas que são difíceis hoje de ver, coisas de que não se fala no interior da comunidade, coisas que são um tabu interdito. Se calhar nós precisamos de conversar sobre tudo isso com espírito de profecia, e não podemos achar que por estarmos no Santuário nós temos de mandar embora os profetas do nosso seio, pelo contrário, precisamos acolher, nós próprios, os profetas no nosso interior.
O quarto desafio que eu vejo para o futuro do Cristianismo, e da Igreja em particular, é aquilo que o Salmo 84 que hoje nós proclamamos nos diz, que eu diria assim: acreditarmos no poder do coração, acreditarmos na força da compaixão, na força da misericórdia, na capacidade que a Igreja tem de curar, de reconciliar, de dar paz, de estabelecer laços, de aproximar, de romper fronteiras, isto que o salmo diz tão bem: “Encontraram-se a misericórdia e a fidelidade, abraçaram-se a paz e a justiça, a fidelidade vai germinar da terra e a justiça nascerá do céu.”
Eu penso que é esta missão que nós precisamos de adotar, de adotar para nós. É na medida em que colocarmos no meio da vida da Igreja também o afeto, o poder do coração, a misericórdia, o abraço, o encontro que, de facto, nós podemos testemunhar aquilo que Jesus Cristo faz na vida de cada um de nós.
Queridos irmãs e irmãos, vamos com confiança celebrar a Eucaristia, que é sempre expressão do mistério da Igreja. Só nós podemos celebrar a Eucaristia, mas nós somos fruto, somos consequência da Eucaristia. Que os desafios que esta Eucaristia em particular coloca à vida de cada um de nós possam ajudar cada um neste processo de nascimento que não acaba nunca.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XV do Tempo Comum
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2015/07/11 - Lourdes Castro recebe Prémio Árvore da Vida
A sessão de entrega, aberta ao público, decorre a 11 de julho, às 11h00, na Capela do Rato, espaço que exibe, por trás do altar, “Anjo de Berlim”, sombra exposta em grande painel criado pela autora madeirense.
http://www.snpcultura.org/lourdes_castro_recebe_premio_arvore_da_vida_na_capela_do_rato.html
http://www.snpcultura.org/lourdes_castro_o_facto_de_a_igreja_me_dar_este_premio_surpreendeu_me.html
2015/07/05 - Quando sou fraco, então é que sou forte (homilia)
Queridos irmãs e irmãos
Nestes últimos quinze dias, como se aperceberam, não estive cá, estive em viagem pelo Brasil e pela Argentina. No Brasil tive um retiro com o clero da diocese de Belo Horizonte, Minas Gerais, é a terceira cidade do país a seguir a S. Paulo e Rio de Janeiro. É uma paisagem muito bonita, uma paisagem de montanhas. O Oscar Niemeyer, o arquiteto, diz que se inspirou para fazer aquelas curvas fantásticas da arquitetura dele na paisagem de Minas Gerais, que parece desenhada por um lápis muito fino.
Estive lá essa semana, primeiro trabalhando na universidade de Minas Gerais que é a maior do mundo. É uma universidade enorme para a dimensão das católicas, tem cerca de 60 000 alunos, tem 11 campos universitários diferentes, tem um magnífico museu de história natural e só para uma quantidade imensa de professores e pessoal administrativo. Nos primeiros dias estive a colaborar na formação anual que eles fazem, foi uma experiência muito bela de imersão naquela realidade.
Nesse domingo celebrei missa, há quinze dias atrás, celebrei eucaristia no santuário de Nossa Senhora da Piedade. É um santuário que fica num ponto muito alto do Estado, fica a 1 700 metros de altura, um lugar absolutamente deslumbrante, uma vista fantástica, um frio enorme porque lá é inverno. Uma coisa que me tocou imenso foi o despojamento do lugar. Às vezes os santuários têm aquele cinto de comércio que dispersa imenso o nosso olhar, às vezes as nossas intenções mais profundas. Ali era, de facto, um lugar onde se respirava, um lugar de Deus. Era muito bonito ver as pessoas dependuradas das varandas das esplanadas, lá de cima a olhar a paisagem, e aquele olhar era já uma forma de oração. A contemplação que fazemos do mundo, esta contemplação gratuita, admirativa da própria criação é também uma forma de oração.
Pude ali celebrar a missa com os peregrinos, às onze horas da manhã, e foi de facto uma experiência muito bela de comunhão, sentindo que a nossa língua portuguesa é um veículo de comunhão extraordinária, também com aquele povo. Foi uma experiência muito bela.
Depois, comecei o retiro com o clero da diocese. Foi muito bonito ver uma centena de padres, gostei muito de ver a serenidade da relação entre eles e a alegria com que estavam juntos, a verdade com que procuravam viver aquele momento de paragem a meio do ano pastoral e de procura de Deus nas suas vidas. Foi para mim uma experiência muito enriquecedora.
Gostei muito também da relação com o bispo. É um dos bispos auxiliares que é reitor da Universidade Católica de Minas, D. Joaquim Mole. É um homem que esteve à frente da comissão de direitos políticos e cidadania da conferência dos bispos brasileiros, e que tem lutado muito por uma consciência civil dos Direitos Humanos. Porque a Igreja brasileira é uma Igreja muito atenta aos problemas do país, muito interveniente. Ainda agora, em abril, acabaram de publicar uma nota sobre a situação económica no Brasil e as grandes disparidades, assimetrias. Um texto muito forte, muito profético. Foi também muito belo receber o testemunho deste bispo que está num compromisso muito fiel com o seu povo, sobretudo com os mais pobres.
Depois, no final do retiro, ainda tive oportunidade de ir visitar Inhotim, que é o principal centro de arte contemporânea no Brasil. É uma coleção enorme de arte internacional, e em grande medida brasileira, só que com um conceito novo, parece mais um mosteiro do que propriamente um museu. Há os pavilhões para cada um dos artistas, e depois há uma floresta luxuriante, e nós para caminharmos de um pavilhão para o outro (são onze pavilhões, não os consegui visitar todos) andamos no meio de uma floresta, num caminho de silêncio. É, de facto, uma maneira muito diferente de viver a relação com a beleza, a relação com a arte, e foi também uma experiência muito boa.
Depois dali romei para Montevidéu onde domingo passado celebrei missa na catedral. O Uruguai é um país pequenino no meio de dois gigantes que são o Brasil e a Argentina, mas é um país com uma personalidade muito grande ali na foz do Rio da Prata, que parece um mar imenso. Gostei muito de estar na catedral a celebrar a eucaristia com os “uruguachos”, como eles se dizem, um povo que mantém muito ainda as tradições camponesas, e isso é muito bonito, vê-los viver no seu lugar e exprimir a sua fé.
E depois, então, tive possibilidade de ir até Buenos Aires, e lá conhecer também a Igreja de Buenos Aires, os sítios por onde o Papa esteve, o Bairro das Flores, onde ele nasceu e cresceu, a catedral, e depois as paróquias. Ver o modo de ser Igreja naquele lugar é muito educativo, é muito belo.
E, de facto, a exterioridade tem isso, quando nós fazemos uma viagem ou recebemos alguém de fora parece que temos uma disponibilidade maior para acolher a profecia, para acolher os sinais. Isso é uma grande oportunidade que Deus nos dá, fazer uma viagem, ter um tempo de férias, conhecer outra realidade.
Mas o evangelho de hoje fala-nos do contrário. Fala-nos, às vezes, da nossa dificuldade de perceber na vida de todos os dias, e com os interlocutores que nos são mais próximos, perceber como Deus se manifesta, como Deus nos visita. Jesus visitou Nazaré, e lá fez vários sinais, mas porque Ele era o filho do tal e da tal, e porque Ele era o parente do outro e da outra, não o quiseram escutar. E isso para nós constitui um desafio muito grande que é: como valorizarmos, naquilo que é mais próximo, nas vozes que já nos são mais habituais, no mundo mais conhecido, no nosso espaço doméstico, na nossa vida quotidiana, como valorizamos o Deus que nos visita? E como manter o nosso coração aberto?
Porque, às vezes, o que acontece é que antes da pessoa abrir a boca nós já sabemos, já nem queremos ouvir, já percebemos tudo, ou achamos que percebemos tudo. E a verdade é que perdemos muito se trancamos o coração a este Deus que nos visita não só no extraordinário, mas que nos visita também no ordinário, na vida de todos os dias, e às vezes, no difícil dos dias, no difícil dos dias.
A história de S. Paulo, da Segunda Carta aos Coríntios que hoje nós lemos, é um texto verdadeiramente admirável porque Paulo estava em dificuldade. Ele escreve metaforicamente dizendo que era como um “anjo de Satanás que o esbofeteava”. Era uma situação difícil que ele estava a sofrer e, contudo, Deus diz-lhe: “ Mantém-te forte, descobre a graça de Deus mesmo no meio da dificuldade, mesmo no meio da crise.” Deus não diz: “Não, não estás a viver isso.” Não, estás a viver, a dificuldade existe, a dificuldade existe, a dificuldade existe, o problema está aqui. A questão é: “Conta com a Minha graça aí, no meio da tua dificuldade e no meio do teu sofrimento, a Minha graça revela-se.” E isto parece um oximoro, uma coisa que nunca se vai compreender, que é o oposto: a fraqueza e a força.
O que parece um oximoro torna-se o caminho da nossa vida: “Quando sou fraco, então é que sou forte.” Isto é: descobrir nesta experiência da fragilidade, da vulnerabilidade – que é no fundo uma experiência que todos temos de fazer, faz parte das nossas vidas, por uma razão ou por outra, em todas as idades nós fazemos esta experiência da vulnerabilidade – como torná-la também uma oportunidade para compreender melhor a presença de Deus na nossa vida, compreender melhor a graça de Deus, perceber que não é o fim mas há coisas importantes que se vivem também em ocasiões que são muito difíceis de suportar e de viver.
Como nos lembra o profeta Ezequiel: “Deus não desiste, Deus não desiste.” Nós somos visitados por Deus, Deus não desiste das nossas vidas. E não é a rebeldia, ou a dureza de coração, ou a nossa cabeça dura que impede Deus continuamente de enviar-nos a Sua graça, enviar-nos os Seus profetas que toquem o nosso coração e deixem uma palavra de esperança.
Vamos pedir nesta eucaristia que o Senhor nos dê por um lado o olhar para o extraordinário, para um desejo muito grande de ir além do nosso quintal, do nosso mundo. Mas também que Ele nos ajude a olhar para o nosso pequeno mundo, para a nossa vida de todos os dias, para o nosso universo habitual com os olhos de quem se deixa surpreender e tocar.
Que o Senhor não permita que sejamos impermeáveis em relação aos outros que nos estão próximos e à vida que vivemos, mas nos dê um olhar de quem olha a vida pela primeira vez, de quem repara nos detalhes, de quem mantém um coração muito grato, muito agradecido, por aquilo que em cada dia e com os interlocutores habituais da nossa vida recebe. Porque é sobretudo através desses canais que Deus nos fala. Que no fundo do nosso coração sintamos que Deus não desiste. Deus não desiste de manifestar o Seu amor, de manifestar a Sua ternura, de manifestar a nossa esperança, manifestar a esperança nas nossas vidas.
Vamos colocar no altar as razões da nossa gratidão. Hoje a nossa comunidade tem também a alegria de poder juntar-se em oração e ação de graças pelos 90 anos da Ester, agradecer muito a Deus a sua vida, tudo aquilo que através dela o Senhor tem feito chegar à sua família, aos seus amigos. Pedir que o Senhor a conserve na saúde e na graça. E agradecer o dom da vida de cada um de nós que é o lugar extraordinariamente expressivo do amor e da misericórdia do Pai.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XIV do Tempo Comum
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2015/07/04 - Percurso de Preparação para o Crisma
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Junho
2015/06/18 - Percurso de Preparação para o Crisma
Mais informações aqui.
2015/06/14 - O que é uma parábola? (homilia)
Queridos irmãs e irmãos
As parábolas de Jesus são uma das formas muito originais da comunicação do Evangelho, porque as parábolas são alguma coisa que nós podemos enquadrar dentro da tradição judaica. Isto porque os rabinos, os mestres da chamada Halachá, do comentário quer à lei que é Halachá, quer à vida que é Agadá, faziam-no através de histórias chamadas machal em hebraico, que são histórias onde se mistura o humor, o desconcerto para nos fazer pensar, nos deixam assim intrigados: mas o que é que isto será? Era um uso dos mestres em Israel, este uso da machal. E, de certa forma, nós podemos aproximar as parábolas de Jesus desta tradição de onde Jesus provém, que é a tradição judaica.
Mas Jesus empresta muito de Si, tornando as parábolas um caso sério, mas ao mesmo tempo muito pessoal, de comunicação. Durante muito tempo achou-se que as parábolas eram sobretudo um discurso didático de Jesus, em que Jesus tentava dizer em palavras simples numa história ou desmontar um bocadinho coisas que para nós são difíceis. Então, aquilo que se sublinhava era sobretudo o caráter didático.
Os Padres da Igreja, que são os primeiros grandes teólogos do Cristianismo, valorizavam sobretudo a dimensão alegórica. Diziam: todas as palavras de Jesus têm um segundo significado. Então, é preciso ler de forma alegórica. Não ler o que está lá, mas ler o que aquilo pode significar, o que aquilo pode querer dizer em termos da linguagem espiritual de Jesus.
O século XX é um século interessante para o estudo da Bíblia, é chamado o século de ouro, em que houve uma paixão enorme pelos estudos bíblicos, pelas línguas bíblicas, pelos géneros literários da Bíblia. E, de facto, nós podemos fazer tantas avaliações ao século XX: um século péssimo, um século de horror. Mas também houve tantas coisas boas, e uma das coisas extraordinárias foi, sem dúvida, que hoje nós temos com a palavra bíblica uma outra sensibilidade. Num século que deu uma enorme atenção à linguagem, à comunicação, aos géneros literários, nós temos hoje um outro entendimento das parábolas.
Já não valorizamos tanto a dimensão didática ou a dimensão alegórica, mas olhamos para a parábola em si como uma forma de colocar em crise a nossa visão habitual do mundo.
O que é uma parábola? Uma parábola é uma história, uma história que em princípio começa por fazer sentido mas, a um dado momento, deixa de fazer sentido à luz dos nossos conceitos ou da nossa lógica, para revirar, para revolver a nossa forma de pensar.
O exemplo do Filho Pródigo faz sentido. Um pai tem dois filhos, há um problema familiar, um conflito, o mais novo vai embora. Isso faz parte da vida das famílias. Contudo, quando o filho volta o pai toma uma atitude absolutamente inédita, que não é o normal acontecer. Então estão a ver: há uma parte que é a vida normal no quotidiano, a existência, e depois há sempre uma parte na parábola de Jesus que descola da realidade e do mundo tal como nós o construímos, precisamente para nos mostrar que o Reino de Deus é diferente, e pede de nós uma atitude de vida diferente, um modelo de vida diferente.
Nas parábolas nós percebemos bem como Jesus nos quer abrir o coração a uma novidade, nos quer passar um novo olhar, uma nova forma de pensar, nos quer abanar, agitar, dizer: “A vida não é só isto, a vida não é assim. Procura uma outra perspetiva sobre a realidade.” As parábolas são isso, são um ponto de fuga da realidade para que nós possamos olhar para o mundo, para a vida, para nós próprios não apenas com os nossos olhos mas com os olhos de Deus.
O filósofo Paul Ricoeur foi um dos grandes filósofos que trabalhou muito a Bíblia. Ele era um cristão evangélico que dizia: “As parábolas são o discurso extravagante de Jesus.” Jesus é extravagante nas parábolas. Extravagante porquê? Extravagante porque ele dá a ver o mundo como nós nunca o vimos, nunca o vimos. Mostra-nos o mundo, mostra-nos a fé e mostra-nos a nossa humanidade com uma liberdade que nós não temos.
Nós até podemos pensar: “Somos pessoas muito abertas, somos mentes muito para a frente.” Mas verdadeiramente nós acabamos por funcionar dentro de um quadro tão estreito, tão limitado da realidade. Sem darmos conta, é o nosso eu que está em primeiro lugar. Sem darmos conta, estamos sempre a julgar, sempre a julgar, sempre a julgar. Ora, Jesus é de uma liberdade que nos arrasta com Ele e diz: “Não. É preciso abrir janelas nesta vida. É preciso olhar para as coisas de outra forma. “
Jesus, por exemplo, conta neste passo do Evangelho de Marcos duas parábolas. A primeira parábola podemos dizer que é uma parábola sobre a fé. E o que é que Jesus diz sobre a fé? Diz do Reino de Deus em nós, como é que ele se desenvolve.
Se nos perguntassem isto nós dizíamos: ”Bem, desenvolve-se com o nosso esforço, o nosso trabalho, a nossa atenção, o nosso compromisso, aquilo que podemos fazer, a nossa devoção, a nossa espiritualidade.” Tudo coisas muito certas, mas Jesus diz que se desenvolve de outra maneira. Jesus diz: “O Reino de Deus é como uma semente que um homem lança à terra, ele dorme e levanta-se, noite e dia, e a semente cresce sem ele saber como.“
Nós estamos sempre a fazer contas da vida, não é? A vida para nós é uma conta de somar, ou uma conta de multiplicar, de qualquer forma é uma conta que nós controlamos. E Jesus, nesta parábola, vem dizer: “Meu amigo, tu não controlas nada. Tu deitas-te e levantas-te, noite e dia, e a semente cresce em ti sem tu saberes como.”
Isto é, se calhar há dimensões fundamentais da nossa vida, e da nossa vida interior, que crescem em nós sem nós sabermos como. Nós não sabemos, nós não controlamos, nós não somos senhores, nós não somos donos da vida. Somos mediadores, somos servos, somos instrumentos, somos a terra, somos a noite e o dia onde as coisas crescem. Mas a energia, o que faz crescer, se cresce, se não cresce, não depende de nós. Não depende de nós. E nós temos de aceitar isso, temos de aceitar isso. E para aceitar isso tem de haver uma pobreza espiritual, tem de haver um desprendimento, tem de haver, no fundo, uma grande sabedoria interior.
“Está bem, eu não controlo a vida. Então o que é que eu posso fazer?” Posso aceitar, trabalhar a aceitação, posso integrar, posso louvar, posso corrigir. Mas atenção às correções, diz também Jesus. Porque é assim, é preciso não arrancar demasiado cedo a semente. Só quando a semente cresceu e amadureceu é que se mete a foice. E isto para nós que começamos a nossa história com um juízo. Jesus diz: “Não! Deixem lá o juízo.”
A maior parte da vida é uma coisa que nós ignoramos, que nós não sabemos, que nós não sabemos. Só se pode confiar. Quer dizer: nós não temos, em relação ao Reino de Deus em nós, outra hipótese senão confiar. E abandonarmo-nos à confiança. Se queremos controlar, perdemos a semente. Porque se o semeador que lança a semente vai atrás dela escavar para ver se já cresceu um bocadinho, compromete o crescimento da semente. A semente tem de ser lançada à terra e tem de ficar lá, e só quando tiver crescido é que nós a podemos julgar.
Então, a primeira parábola é sobre a confiança, e como nós precisamos trabalhar nas nossas vidas a confiança. Nós que à medida que os anos passam cada vez estamos mais desconfiados. Desconfiamos da nossa própria sombra, desconfiamos de tudo, de todos, perdemos a capacidade de entrega, de abandono. Ora, é isso mesmo que nós perdemos tão facilmente que é preciso ganhar em ordem ao Reino de Deus, ganhar essa confiança.
A segunda parábola é uma parábola que vai precisamente noutra dimensão, é uma parábola também sobre a confiança, mas é sobre o risco que nós temos de correr.
Jesus conta a parábola, que é uma das mais conhecidas, que é a do grão de mostarda. Há um homem que semeia um grão de mostarda na sua terra. O grão de mostarda é uma semente, uma sementinha de nada, uma coisa insignificante. E depois cresce, e estende os seus ramos, os seus braços e todas as aves do céu vêm pousar naquela árvore.
Nós dizemos: “Que bela parábola.” Uma coisa muito bonita de como do pequeno se faz grande. A parábola tem muitas leituras.
Mas a parábola também tem esta leitura: quando nós passeamos nos campos vemos os espantalhos que os agricultores fazem precisamente para afugentar os pássaros. Um grande inimigo dos campos é a passarada, e os agricultores querem-nos longe das suas sementes porque eles vêm e é uma infestação.
Ora, o que é que faz este agricultor? Lança uma árvore inútil, que é a mostarda. Ela cresce para atrair os pássaros para o seu campo. Isto é: mas quem é que vai fazer isto? Quem é que de bom senso vai trazer tudo o que é arriscado para o seu campo? Isso é um desatino, é desaconselhável. Mas Jesus diz: “O Reino de Deus é como isso.”
Quer dizer, se nós também não estamos dispostos a correr riscos, também nós não permitimos que o Reino de Deus cresça em nós. Se para nós a fé é tudo seguro, é tudo assegurado. Se nós não damos um passo em que não esteja tudo controlado e calculado, também não sabemos o que é o Reino de Deus. Porque o Reino de Deus é criatividade em nós, é fantasia de Deus em nós, é liberdade de Deus agir, é liberdade de Deus refazer, recriar a nossa história.
Nesse sentido, um cristão também tem de correr riscos, tem de correr riscos. E a fé é um grande risco.
“Mas eu não entendo tudo, eu não sei tudo.” Está bem, em última análise, o Kierkegaard dizia isso, a fé é um salto. É um salto no escuro.
“Mas eu não vejo como é que há uma ponte.” Meu amigo, não há ponte nenhuma. Na fé tu tens de te atirar para o outro lado. Não há ponte, entre uma coisa e outra há um vazio, há uma incompreensibilidade, uma incognoscibilidade. Não dá para ser de outra forma. Quer dizer, a fé, na sua essência, é um risco, mas o viver da fé também é um risco. O risco de sair de mim próprio, o risco de sair da minha zona de conforto, o risco de me expor, o risco de comunicar, o risco de ir ao encontro dos outros, o risco de me colocar ao serviço e muitas vezes não ser bem compreendido ou não ser bem aceite. Mas a fé é esse risco, e se nós não corremos o risco também o Reino de Deus não cresce em nós.
Este é o discurso de Jesus, um discurso que nos desafia, um discurso que podemos dizer que é extravagante, e é. Mas a fé não é para nos deixar onde nós já estamos. A fé é uma viagem, a fé é um nomadismo.
Deus diz a Abraão: “Abraão, sai da tua terra e vai para o lugar que eu te indicar.” Isso é o que Deus diz a todos os crentes: “Sai da tua terra e vai para o lugar que eu te indicar.” Na vida de cada um de nós há esse lugar, que é certamente um lugar diferente, porque respeita aquilo que nós somos. Mas é um lugar que pede de nós confiança e risco, confiança e audácia, confiança e coragem de ser, confiança e abandono nas mãos de Deus, confiança e multiplicação do amor e das possibilidades do amor e da graça na nossa vida.
Vamos pedir ao Senhor por cada um de nós, para que esta palavra não seja em vão mas que, acolhida nos nossos corações, ela, como diz Jesus noutra parábola, dê frutos, dê cem por um.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XI do Tempo Comum
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2015/06/07 - A existência como lugar de encontro (homilia)
Queridos irmãs e irmãos
Nós celebramos hoje a solenidade do Corpo de Deus, a festa do Santíssimo Corpo e Sangue de Jesus, a festa da Eucaristia – esta refeição que tomamos diariamente ou dominicalmente juntos, que é uma refeição ritual, sacramental, mas que é também uma verdadeira refeição e é o grande manifesto da presença de Jesus nas nossas vidas.
Nós podemos dizer, em verdade, que cada um de nós é uma consequência desta refeição, que nos alimentamos dela. Somos construídos e gerados pela Eucaristia. Sem Eucaristia não haveria Igreja, sem Eucaristia não haveria cristãos. Porque é da persistência deste gesto, deste acontecimento, desta memória (que não é só memória do passado, mas é presente e futuro), desta anamnese de Jesus, é a partir daí, que nós somos verdadeiramente gerados, que nós vivemos.
Por isso, há razão para fazer festa. Há razão para hoje a Igreja se ornar, cantar, sentir uma alegria muito especial por esta festa que para nós é tão significativa, é tão fulcral, tão essencial.
A Eucaristia assinala a mudança de regime no quadro religioso. Porquê?
Nós temos essa primeira leitura do livro do Êxodo, que conta a Aliança de Deus com Israel. Essa Aliança, que é uma aliança extraordinária, que foi de certa forma o arranque da história da Salvação, é contudo uma aliança baseada na exterioridade do símbolo. Baseada na exterioridade de uma Lei que é codificada, é escrita na pedra e dá origem a uma Nação – dá origem a um Povo escolhido, dá origem a uma história nacional que é a história de Israel.
Os sacrifícios que se fazem são sacrifícios simbólicos – é o sangue dos cabritos, é o sangue dos cordeiros que é aspergido sobre o povo. A partir daí constrói-se toda a máquina, a dinâmica sacerdotal com o Templo. E constrói-se a partir daí a Torá, a Lei com todas as prescrições que é preciso guardar, que é preciso obedecer. A partir daí, constrói-se todo o sistema de pureza ritual, que teve de facto um papel pedagógico na história da Salvação. Nós sabemos como a religião também vive disso, também vive dessa exterioridade, também vive desse símbolo. Eu diria, também vive dessa aliança que cada um de nós é capaz de tecer, de estabelecer com Deus, a partir das coisas, a partir da matéria.
De facto, as coisas ligam-nos a Deus. O criado liga-nos a Deus. A própria lei, os textos, as palavras escritas, os grandes códigos que a Humanidade foi construindo como esforço de progressão no sentido do amor, tudo isso é uma espécie de Aliança com Deus que nós celebramos.
Contudo, o Cristianismo aparece numa época em que se chega ao fim dos sacrifícios. O fim dos sacrifícios porquê? Porque, pouco tempo depois destes acontecimentos da vida Jesus (em princípio a Páscoa acontece por volta do ano 30/33), no ano 70 o Templo de Jerusalém é arrasado, é destruído. E, de certa forma, o próprio Judaísmo tem de encontrar uma nova configuração. E a nova configuração que encontra já não é a partir dos sacrifícios, porque o sacerdócio acabou porque já não há Templo, já não há Templo.
O próprio Cristianismo tem também de fazer uma reflexão sobre a forma de ligação a Deus. Como é que nos ligamos a Deus agora que já não oferecemos touros, animais, já não trazemos o fruto das colheitas para queimar sobre o altar? O que é que nós colocamos aqui sobre o altar?
O Cristianismo, de facto, nasce como uma religião pós sacrificial. Há um texto cristão, cujo autor nós não conhecemos, sabemos que não é S. Paulo, é posterior a S. Paulo, é um texto cristão de grande densidade, que é este da Carta aos Hebreus, que vai fazer uma coisa sobre as ruínas do Templo de Jerusalém. A Carta aos Hebreus vai dizer isto: “Cristãos, não fiquem a chorar o que foi. Não fiquem a chorar uma religião de sacrifícios, não fiquem a chorar a beleza do Templo, as pedras, o sacerdócio antigo. Não. Cristo é o novo e verdadeiro sacerdote, Cristo é o verdadeiro Templo. Jesus tem um corpo e esse corpo é que é o lugar onde Deus se revela, e Cristo é o Sumo Sacerdote.”, Ele que nunca foi sacerdote, Ele que nunca foi considerado como tal. Jesus é o Sumo Sacerdote, é Aquele que faz uma Aliança entre o Homem e Deus.
A Carta aos Hebreus ajuda-nos a perceber qual é o lugar do Cristianismo nesta nova configuração religiosa, onde há uma deslocação fundamental que acontece: deixamos de ser uma religião sacrificial, uma religião exterior, uma religião fundada à maneira de santuário, uma religião fundada no conjunto dos ritos, uma religião fundada no exercício de um certo tipo de sacerdócio que fazia a mediação entre o Homem e Deus, e passamos a uma religião existencial. Uma religião existencial.
Agora já não temos um santuário, temos um corpo, agora já não temos uma Lei, temos uma consciência, agora já não temos toda a máquina sacrificial, temos a nossa vida. Temos a nossa existência como lugar de encontro, de relação, de experiência, de aliança com o próprio Deus. Nesse sentido, enquanto a velha Aliança fundou um Povo, a nova Aliança funda uma humanidade. Uma humanidade nova, em cada um de nós, e uma humanidade que agora não conhece fronteiras. Não se é cristão por ser judeu ou por ser português, é-se cristão em todas as latitudes, em todas as situações. Porque Cristo não veio trabalhar uma ideia de Povo, Cristo veio trabalhar uma ideia de humanidade. A noção de eleição é substituída pela noção de chamamento. Todos somos chamados.
Como é que Cristo faz isto? Faz isto da forma mais encarnada, da forma mais Sua, através do testemunho do Seu amor, através da dádiva da Sua vida e naquela refeição, na última que Ele tomou. Ele teria tomado muitas refeições dia a dia com os Seus discípulos e com os pecadores refeições abertas que os Evangelhos nos contam. Teria feito refeições consideradas absurdas mas que eram refeições performativas, que sinalizavam a emergência do Reino de Deus – como é a multiplicação dos pães, que é uma refeição feita com uma multidão e que é um grande sinal da mensagem do próprio Jesus e do Seu projeto. Mas esta refeição é uma refeição íntima, a última, aquela que Jesus toma com os Seus Discípulos na véspera da Sua Paixão. E essa refeição é a condensação de tudo, é o resumo de tudo e é a antecipação do próprio destino de Jesus.
Então, os gestos de Jesus tornam-se muito gráficos, nós podemos seguir o curso do Seu gesto. Ele pega no Pão e diz: “Isto é o Meu Corpo que será entregue por vós”, pega no Cálice e diz:” Este é o Meu Sangue, que será derramado por vós e por todos como sinal de uma Nova Aliança.” E é a partir destas frases que em cada dia nós recordamos, que em cada domingo nós recordamos que nós temos a garantia, a certeza de que Ele está sempre connosco, todos os dias até ao fim dos tempos.
Porque, aquele pão se faz Corpo de Jesus, e se faz corpo de uma história que nós vivemos, uma história de relação com Ele, aquele vinho faz-se sangue de uma Aliança que nós experimentamos de tantas formas ao longo da nossa vida mas sabemos que é um laço vivo que nos une a Deus.
Mas quando Jesus diz “ Isto é o Meu Corpo, isto é o Meu Sangue” nós temos de perguntar: O que é isto? O que é isto?
Um primeiro significado é que “isto” é mesmo “isto”. É o que Ele tinha na mão, que é um bocado de pão, um bocado pobre de pão, uma migalha de pão e diz: ”Eu estou neste ínfimo pão.” Quer dizer: Eu estou no ínfimo, Eu estou no mínimo. E se Eu estou no mínimo, estou também no máximo. Eu estou aqui. E, se quisermos, há uma leitura literal que é isto: Eu estou neste vinho que se torna o Meu sangue.
Mas este “isto” certamente é mais, é mais. Porque cada um de nós, quando come o Corpo e quando bebe o Sangue do Senhor, não se liga a Jesus apenas a partir daquele pão e a partir daquele vinho. O que é que nos liga a Jesus? É este “isto” que no fundo é a Sua vida toda, é a história que Ele nos dá a partilhar, é a relação que Ele nos permite, é o que Ele faz no nosso coração, são os sinais que Ele nos dá, são as parábolas que Ele contou onde nos sentimos atores, são os encontros que Ele teve e que hoje nós sentimos que estamos lá dentro desses encontros: que Ele cura a nossa cegueira, que Ele transforma a nossa lepra, que Ele nos coloca a andar de novo, que Ele nos ajuda a viver numa plenitude de ser.
Quando Jesus diz: “Isto é o Meu Corpo, tomai e comei” quer dizer: mergulhai, mergulhai naquilo que Eu sou, mergulhai naquilo que Eu vos dou, mergulhai nesta história de amor e de relação que Eu mantenho com cada um de vós porque aí encontrareis a vida, aí encontrareis a plenitude, tereis este encontro comigo.
Queridos irmãos, celebramos hoje a Ceia do Senhor, esta refeição. Aquilo que nos define: são homens e mulheres de muito lado, de muita família, que se juntam como um só corpo à volta de uma mesa. Esta mesa é uma mesa que representa o passado, representa este gesto, esta refeição de Jesus que se torna não uma refeição mas a Refeição. Mas esta mesa é também o nosso presente, porque ao celebrarmos a Eucaristia sabemos que Ele está vivo no meio de nós, e que as nossas vidas, as nossas vivências, os nossos caminhos, as nossas inquietações, as nossas dilacerações são relevantes, são oportunidades, são caminhos para esta mesa e dialogam com esta mesa. Nós dialogamos com esta mesa.
Nada, nada pode impedir um cristão, qualquer que seja a sua situação, de dialogar com esta mesa. A nossa vida tem de dialogar com esta mesa. Ou a Igreja acredita que os cristãos nascem desta mesa, ou então, se calhar, a Igreja precisa de abrir de novo esta mesa, precisa de encontrar uma largueza – muitas vezes a estreiteza de certos entendimentos doutrinais acabam por limitar esta mesa a alguns. E, nesse sentido, o Papa Francisco tem recordado incessantemente que esta mesa não é um prémio para ninguém, não é um prémio. Esta mesa é o lugar onde o Homo Viator, a mulher e o homem que caminham, os peregrinos da vida, os pecadores, os incertos que nós somos nos alimentamos.
Esta mesa é consolação, esta mesa é reforço, esta mesa é ponto de partida. Esta mesa não pode ser exclusão, esta mesa não pode ser rejeição. Não pode ser a partir da Eucaristia que nós limitamos no corpo dos cristãos os regulares e irregulares, os bons e os maus, os certos e os errados. Não pode ser a partir desta mesa, seja a partir de outra coisa qualquer. Mas não a partir desta mesa, que na intenção de Jesus é a mesa do acolhimento, a mesa que é o nosso berço, que é a nossa manjedoura, a mesa onde nos sentimos consolados pelo amor de Deus, que em Jesus se torna presente para as nossas vidas.
Mas esta mesa, queridos irmãos, é também um lugar do futuro, é também um lugar utópico, é também aquilo que caminha à nossa frente. Porque esta mesa faz-nos antecipar aquilo que ainda não somos. Nós estamos aqui reunidos (infelizmente a Capela do Rato não é um lugar muito interclassista, tem uma predominância de uma classe média-alta, e pronto é o que é) mas esta mesa não é uma mesa que está capturada por um determinado grupo social, esta mesa é transversal, esta mesa é uma máquina de fazer irmãos, é uma máquina de fazer irmãos. É uma máquina de dissipar desigualdades, é uma máquina de aproximar, é uma máquina de fazer comunhão. É uma máquina de criar uma humanidade nova, onde os muros, as assimetrias, as distâncias são todas vencidas a partir desta mesa.
É claro que na vida hoje, no nosso hoje, isso ainda não acontece, mas esta mesa não é uma mesa capturada, sequestrada pelo nosso hoje. Esta mesa é o nosso amanhã, nesta mesa nós colhemos a inspiração para a cidade nova a construir. Nesta mesa nós lavamos os nossos olhos do nosso pecado da divisão, do conformismo, da aceitação de tanta coisa que é um pecado contra a pessoa humana. Nesta mesa nós lavamos os olhos e percebemos que o mundo pode ser de outra forma, o mundo pode ser de outra forma. E o mundo só será de uma forma justa, perfeita, quando os homens todos se puderem sentar à volta de uma mesa e puderem partilhar o mesmo pão, partilhar a mesma carne e o mesmo sangue, partilhar a mesma vida, a mesma existência.
Nesse sentido, esta mesa desassossega-nos, desassossega-nos. Ao mesmo tempo que esta mesa nos consola, que esta mesa nos dá paz, esta mesa não nos dá descanso, esta mesa desinstala-nos. Porque ela diz: “Como é que tu tens tornado este futuro presente? Como é que tu tens aproximado esta mesa? Como é que tu tens moldado a tua vida com as medidas desta mesa?”
Queridos irmãos, esta mesa é o critério da nossa vida, é o critério da nossa vida. Por isso, esta mesa é um programa. Um cristão não tem outro programa de vida senão esta mesa. Por isso, os primeiros teólogos do Cristianismo diziam: “Os cristãos que vão à Eucaristia tornam-se eucaristificados.” Isto é: nós temos a missão de nos tornarmos eucaristia, com o que isso significa, com o que isso quer dizer.
Nesse sentido é que o Cristianismo acende a sua luz e deixa de ser apenas um rito, mais um carneiro que nós imolamos, mais um sangue de cabrito que nós derramamos sobre as nossas cabeças. Não. É a nossa existência. “Tu deste-me um corpo.” E como diz a Carta aos Hebreus, Jesus disse: “Eis-me aqui Senhor para fazer a Tua vontade.” É isso que cada um de nós é chamado à sua maneira a dizer no seu coração.
Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade do Corpo de Deus
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Maio
2015/05/31 - A forma perfeita da comunhão (homilia)
Queridos irmãs e irmãos
Celebramos hoje a grande solenidade da Santíssima Trindade. Muitas vezes, o mistério da Santíssima Trindade é expresso numa linguagem filosófica que mais parece um daqueles problemas insolúveis da matemática. Como é que Deus é único e ao mesmo tempo é trino? Como é que Deus é uma única natureza em três pessoas distintas? Como é que se articula a singularidade e a unicidade de Deus com esta tripartição de Deus pela pessoa do Pai, pela pessoa do Filho e pela pessoa do Espírito Santo?
É sem dúvida um mistério. E nós temos de aceitar que o mistério é mistério. Sentimos isso muitas vezes na nossa vida: que a nossa razão toca apenas a fímbria, a borda do manto de um mistério que é muito maior do que a nossa razão e do que a nossa própria existência. O mistério de Deus está para lá daquilo que podemos pensar, dizer, medir, calcular, compreender. Deus é também incompreensível, Deus é também incognoscível, Deus também é secreto, é segredo, é silêncio.
É importante abraçarmos isso, sem medo e sem suspeita. É importante abraçarmos isso com amor e com confiança, abraçarmos o que não entendemos, mas abraçarmos. Porque, o homem não é a medida de todas as coisas e a nossa pequena razão não é a chave de entendimento para o Universo. Nós somos apenas fragmentos, partículas, pequenas existências. Aquilo a que somos chamados é a contemplar, a aceitar, a buscar uma relação. Porque uma coisa é compreender, outra coisa é conseguir uma relação.
Nós temos isso até porque o mistério vem ao nosso encontro. Temos a possibilidade de construir uma relação de confiança, de fé, de amor com uma realidade, uma verdade que é tão maior do que nós e que nós nunca conseguiremos abarcar, esgotar completamente nos nossos conceitos, nas nossas definições. Deus é, por isso, incognoscível, está para lá, por detrás, tão para lá das nossas imagens e das nossas palavras.
Porventura, o discurso verdadeiro sobre Deus é um discurso negativo. Negativo no sentido de: sem atributos, sem imagens. É, como diz a tradição cristã, um discurso despido de qualquer imagem ou sinalização. A teologia negativa é a teologia dos místicos, é dizer: “Deus é o que eu não sei. Deus é um não sei quê. Deus é um silêncio. Deus é uma presença que eu não consigo descrever.”
A aceitação disso acaba por ser uma coisa muito grande na nossa vida, dá-nos também um sentido muito grande da nossa própria realidade e faz-nos aceitar a nossa pobreza com uma grande liberdade, com um grande desprendimento.
Mas Deus, sendo difícil de entender, é muito fácil de entender. Há que dizer, também nesta solenidade da Santíssima Trindade, que o mistério da Santíssima Trindade é fácil, é fácil. Qualquer um de nós pode chegar lá, qualquer um de nós pode entendê-lo. Porque se Deus é amor, Deus não pode ser uma solidão, tem de ser uma comunhão. Se Deus é amor, Deus não pode estar sozinho, porque se nós dizemos que a nossa vida é amor, não podemos estar sós. Temos de ser nós, tem de haver o eu, e tem de haver outras coisas, outras pessoas, outras existências, outras formas na nossa própria vida.
E quantas formas há de haver? A forma perfeita da comunhão, aquela que é o símbolo de toda a comunhão é o ‘três’. Porque nós podemos amar-nos a nós próprios e é um dever, e é uma arte que temos de aprender a vida inteira, amarmo-nos a nós mesmos, mas o amor que dedicamos a nós próprios é um amor incompleto, é um amor que precisa de outro amor, precisa de outra complementaridade.
E encontramos isso no ‘dois’, quando amamos o outro. Quando o amante, o amigo realizam essa forma de amor, de amizade. Isso é uma forma de encontro, é uma forma de amor, é uma forma de plenitude que é fundamental. Porque todo o coração aspira por esse lugar que há no coração do outro. E essa busca do amor, a busca da amizade, a busca de uma relação privilegiada faz parte das ânsias mais profundas do nosso coração. De maneira que é muito natural que o ‘um’ anseie pelo ‘dois’. Mas, ao amor do ‘dois’ é sempre um amor especular, é um amor que é uma espécie de espelho, é o amor onde me revejo, é o amor onde eu procuro uma retribuição, onde eu procuro uma equivalência, uma reciprocidade, uma paridade. Essas são as características do amor do ‘dois’.
Então, o amor do ‘dois’ ainda é incompleto. O amor do ‘dois’ só se completa quando é capaz de integrar o ‘três’. E o ‘três’ traz outras coisas para dentro do amor e torna a comunidade do amor uma comunidade perfeita, uma comunidade parecida à Trindade. Porque o outro é o estranho, é o diferente, é aquele que não entra na relação de reciprocidade ou de paridade, mas que eu acolho numa forma de radical hospitalidade, de radical amor. E quando nós somos capazes de integrar o terceiro, então nós sabemos o que é o amor.
Hoje as nossas sociedades vivem a recusar o terceiro. Nós vemos, por exemplo, com os imigrantes. Nós somos cidadãos, temos os nossos papéis, os nossos impostos, está tudo bem. Mas quem não tem papéis, e é mulher, e é homem, e está sobre esta terra, como é que faz? O que é que vai ser dele? Nós temos uma dificuldade muito grande de integrar o ‘três’, aquilo que outro mais outro significa. Temos essa dificuldade na nossa vida concreta.
Por exemplo: muitas vezes reduzimos a família a um clube de egoísmo. Esgotamos o nosso amor na nossa família. Isso é tão pobre, tão pobre. Porque uma mãe que é só mãe dos seus filhos é tão pouco mãe. E um pai que é só pai dos seus filhos é tão pouco pai. E um irmão que é só irmãos dos seus irmãos é tão pouco irmão.
Se nós não somos capazes de aliar terceiros, três, nós não sabemos o que é o amor trinitário. Sabemos o que é o amor a dois, não sabemos o que é o amor trinitário. E o amor trinitário é este amor misterioso, este amor maior, este amor que me leva para lá das minhas fronteiras, para lá até daquilo que eu preciso, deste dar e deste receber. O ‘três’ faz do amor um jogo completamente diferente, que é um jogo de hospitalidade gratuita. Amar por amar, ponto final.
E esse é o amor de Deus, é o amor de Deus. Este amor que nós temos de contemplar, adorar e fazer dele a chave da nossa vida. Um cristão tem de ter o número ‘três’ como o número sagrado.
S. Cecília (há uma escultura belíssima dela, é uma das grandes peças do barroco) foi degolada e ela está vendada. Naquele momento da degolação ela está a fazer a confissão de fé. E a confissão de fé é fazer ‘três’, ‘três’.
Se nós não somos capazes de fazer ‘três’, de dizer: “A minha fé é ‘três’, a minha vida é ‘três’.”… Porque a fé não é uma coisa e a nossa vida é outra. A nossa vida é ‘três’. Para nós o número ‘três’ é o objetivo, é aquilo por que nós temos de lutar. A nossa vida fica uma vida pobre e inacabada se nós não experimentamos o amor do ‘três’: a capacidade do amar por amar, da hospitalidade gratuita, ir além do amor (que é a nossa obrigação e a nossa felicidade e tudo) mas buscar um outro amor. Aquele amor que nos obriga a andar pelas ruas e a acolher os pobres, aquele amor que nos ajuda a acolher mais um, a integrar mais um na nossa vida, na nossa mesa, no nosso trabalho, no nosso dinheiro, no nosso tempo.
Esse é o amor de Deus. Todos são o amor de Deus. Mas esse ‘três’ dá-nos uma medida muito exata daquilo que é a Santíssima Trindade.
Queridos irmãos, a Santíssima Trindade não é um conceito filosófico que lembramos uma vez por ano, a Trindade é a nossa forma de viver, é o nosso estilo de viver. Um cristão, se tem de morrer por alguma coisa tem de morrer por ‘três’, por ‘três’, por este amor que é um amor trinitário, e que representa aquilo que a nossa vida pode ser na sua plenitude.
Hoje vamos celebrar com a Leonor os ritos de iniciação cristã. Ela vai receber o sacramento do Batismo, o sacramento da Confirmação e o sacramento da Eucaristia. É um momento de graça para a nossa comunidade. Eu estava ali a acolhe-la à porta e a fazer-lhe estas perguntas, e confesso que as lágrimas vieram-me aos olhos porque aquilo que se diz à entrada é: “Esta vida eterna e o batismo, tu não os pedirias hoje se não conhecesses já a Cristo e não quisesses tornar-te sua discípula. Diz-me pois: Já ouviste a Palavra de Cristo? Já te decidiste a guardar os seus mandamentos? Já tomaste parte na vida da comunidade dos cristãos e na sua oração? Já fizeste tudo isto para te tornares cristã?”
Queridos irmãs e irmãos, isto que nós fazemos todos os dias é nisto que a Leonor vai ser batizada. Vamo-nos unir, vamos rezar por ela, vamos rezar por nós próprios, rezar por esta experiência que fazemos aqui, na comunidade do Rato, onde procuramos viver este amor trinitário de Deus domingo a domingo.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo da Santíssima Trindade
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2015/05/28 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2015/05/24 - O sopro que nos faz ser (homilia)
Queridos irmãs e irmãos
Hoje celebramos a festa do Pentecostes, do Espírito Santo, que é o Deus connosco, que é o Deus que nos acompanha nos itinerários da nossa vida. Mesmo se, na nossa devoção, na nossa relação, muitas vezes nos esquecemos do Espírito Santo. Porventura, o Espírito Santo é o Deus esquecido das nossas vidas e da nossa oração.
Porque, quando pensamos em Deus pensamos em Deus Pai, pensamos em Deus Jesus Cristo que viveu entre nós, que nos revelou o Seu amor, mas esquecemo-nos do Espírito Santo. Este Espírito Santo que Jesus pediu ao Pai para enviar de junto Dele, quando subiu até ao Pai. Este Espírito Santo que é a grande promessa de Jesus aos Seus Discípulos, que promete que enviará Aquele que defenderá a fé no nosso próprio coração, Aquele que atestará a existência de Deus e o amor de Deus ao nosso próprio coração, Aquele que virá como O Consolador, Aquele que virá como O Exortador, Aquele que vem ao encontro da nossa fragilidade. Como diz S. Paulo na Carta aos Romanos: “Aquele que vem gemer dentro do nosso coração, ensinando-nos a rezar.” Que é uma coisa que não seríamos capazes de fazer sem a ação do Espírito Santo nos nossos corações.
Cada um de nós, como batizado, é uma consequência do Espírito Santo. A Igreja verdadeiramente nasce no dia do Pentecostes. Porque a Igreja não é apenas uma associação cheia de méritos, uma associação cultural e religiosa para lembrar um grande acontecimento: a passagem de Jesus entre nós. A Igreja não é um grupo de militantes que há dois mil anos se reúne para fazer memória de um acontecimento passado. A Igreja é fruto do Espírito Santo.
Isto é, nós não vivemos do passado, vivemos do presente. Nós não vivemos de uma memória, nós vivemos de uma gestação que, abraçando a memória, ela é completamente presente e completamente futuro. Nós não somos simpatizantes de Jesus, partidários de Jesus. Nós fomos feitos um com Ele, no Espírito Santo. O Espírito Santo liga-nos a Deus porque é o próprio Deus, acende em nós o Espírito divino.
Tal como essa primeira imagem, essa primeira metáfora que acontece nas páginas primeiras de Bíblia, quando Deus, à maneira de um oleiro, amassa o ser humano do pó da terra, e depois sopra das suas narinas o vento, o hálito, o sopro interior e o homem torna-se vivente, nós também sem o Espírito somos apenas um corpo de barro, somos apenas uma coisa exterior, somos apenas alguma coisa aquém da própria vida. É o Espírito o sopro que nos faz ser.
A palavra “espírito”, que o grego traduz por “anemos “, que quer dizer ânimo, como nós utilizamos, mas que quer dizer “vento, sopro”, no hebraico diz-se “néfes”, e néfes é a vida. E o que é a vida? A vida é este sopro vital sem o qual nós não podemos viver.
Ora, o sopro vital não é apenas o oxigénio de que nós precisamos para existir neste instante. O sopro vital é este Sopro de Deus de que cada um de nós é objeto para poder ser e ser plenitude. E, por isso, é tão importante tomar consciência da presença do Espírito Santo nas nossas vidas, rezar ao Espírito Santo, pedir que Ele venha, pedir que Ele nos ilumine, pedir a Sua interceção, pedir que Ele permaneça connosco, pedir que Ele nos encha de todos os Seus dons.
Porque o Espírito é uno e é múltiplo. O Espírito é fantasioso, é criativo. O Espírito, sendo apenas um só, Ele está em todos de uma maneira única, de uma forma diferente. Ele distribui os carismas, Ele distribui os talentos, as qualidades, as potencialidades, a originalidade do próprio ser. É o Espírito o defensor ao mesmo tempo da unidade e da originalidade. Cada um de nós é um cristão original no Espírito Santo, e traz para a comunidade um dom que é único. Por isso precisamos tomar consciência e pedir ao Espírito Santo que nos renove, que nos recrie.
Aquela expressão que muitas vezes usamos do “desalmado”, ou então do “desanimado”, quer dizer isso muitas vezes, que é o modo como nós vivemos: vivemos sem alma, vivemos sem ânimo. Isso é efetivo, é real nas nossas vidas. Ora, o entusiasmo, o Deus que nos faz dançar, que nos faz ser, que nos enche, que nos dá o fulgor, a intensidade, que nos faz brilhar, é o Espírito. É o Espírito. E, por isso, precisamos acolher o Espírito Santo nas nossas vidas.
Uma Igreja conformista, uma Igreja parada, de onde não nasce nada, uma Igreja que vive a satisfazer os mínimos é uma Igreja sem Espírito Santo. É uma Igreja que deixa o Espírito Santo como um estranho, à porta. É o Espírito Santo que acorda em nós a paixão, a vontade, a criatividade para exprimir em novas linguagens, em novas gramáticas o coração da nossa fé.
Em Itália há um mosteiro, o mosteiro de Bose (já tenho falado dele de vez em quando), que é uma comunidade monástica jovem. Eles têm uma parede da qual eu me lembro muitas vezes. Numa parede têm o que eles chamam os nossos pneumatóforos. Pneumatóforo quer dizer condutor do Espírito Santo, aqueles que nos trouxeram o Espírito. Então, os pneumatóforos são os visitantes proféticos que passaram pela comunidade como hóspedes e a desafiaram, a inspiraram a ser.
De facto, nós precisamos de nos inspirarmos uns aos outros. Precisamos de ser luz, de desafiar. Quantas vezes nós achamos que ser cristãos é ser condescendentes uns com os outros. É dar palmadinhas nas costas e dizer: “Deixa lá. Afinal, podia ser pior.” Claro que podia ser pior, mas também podia ser muito melhor. Nesse sentido, há um dever de inspirar a vida uns dos outros, de sermos pneumatóforos, de levarmos o Espírito, de abrir horizontes, de apontar estrelas, de levantar os olhos mais longe, de dizer: “Tu és capaz. Tu consegues, no Espírito Santo.” E é assim que nós, irmãos, acordamos e percebemos que o Pentecostes não foi um acontecimento do passado, mas é um acontecimento de presente.
Nós precisamos do Espírito Santo, precisamos que Ele venha, precisamos de contagiarmo-nos uns aos outros com o fogo do Espírito Santo. E se encontramos um irmão/uma irmã mais desanimada, mais cansada, o que nós temos a fazer é de lhe passar o Espírito Santo. Na Igreja das origens os cristãos viviam a impor as mãos uns aos outros. Esse impor as mãos era essa passagem efetiva do Espírito Santo. Ora, com um abraço, com uma palavra, com uma presença, nós também impomos as mãos, nós o que fazemos é passar vida de um coração para o outro.
Queridos irmãos, sejamos bons condutores de vida, desta vida espiritual. Porque sem o Espírito Santo nós somos só o pó, nós somos só a terra, nós somos só o barro, nós somos só isto que se vê daqui, e isto que morre aqui, todos os dias, a todas as horas. É o Espírito que nos torna maiores, é o Espírito que nos projeta. O Espírito Santo é a alavanca da Igreja e é a alavanca da história. O Espírito Santo é o mestre, é o mapa, é o oceano, é a viagem. Por isso, acolhamos o Espírito Santo, neste dia para as nossas vidas, para este momento preciso que cada um de nós está a viver, e que há de ser um momento de traduzir o Espírito Santo de uma forma pessoal e nova nas nossas existências.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo de Pentecostes
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2015/05/21 - «João Bénard da Costa - Outros amarão as Coisas que eu amei»
Dia 21 de maio, quinta-feira, às 21h30, há cinema e homenagem a João Bénard da Costa, na Capela do Rato. O cineasta Manuel Mozos apresenta o seu filme «João Bénard da Costa – Outros amarão as Coisas que eu amei».
2015/05/20 - Religião, antropologia do quotidiano, política e comunicação
Dia 20 de maio, quarta-feira, às 21h30, o antropólogo Lluís Duch, monge de Monserrat e Professor na Universitat Autonoma de Barcelona, estará numa conversa livre, sobre religião, antropologia do quotidiano, política e comunicação, na Capela do Rato. Uma oportunidade imperdível!
2015/05/17 - Viver a presença de Jesus na sua ausência (homilia)
Queridos irmãs e irmãos
Celebramos hoje a solenidade da Ascensão de Jesus. Como se lê no livro dos Atos dos Apóstolos, há um momento em que Jesus nos é tirado do nosso olhar, como que uma nuvem agora oculta a visão do próprio Jesus. E os Discípulos têm de aprender uma coisa que até aí não sabiam, que é viver a presença de Jesus na sua ausência. Viver em Jesus não O vendo, não O encontrando, não contando com Ele, com a Sua presença física e visual no dia a dia.
Mas entretanto um processo havia acontecido, e é esse processo que também a nós nos funda como cristãos, também a nós nos sedimenta a nossa identidade cristã. E que nós podemos, de certa forma, comparar àquilo acontece na vida de cada um de nós em relação aos nossos pais. Essas figuras determinantes da nossa vida interior, daquilo que cada um de nós é, da confiança com que investimos ou não na própria vida. E o que aconteceu com os nossos pais numa idade muito tenra, numa idade de colo, foi uma internalização. Nós passamos a contar com os nossos pais não só fora de nós mas dentro de nós. Essa presença dentro de nós passou a ser fortalecedora e, a um dado momento, como que passou a ser suficiente para que começássemos a viver autonomamente. É claro que uma criança de colo precisa de muito pai e de muita mãe, e precisamos sempre, mas precisam daquela presença, daquela forma de presença. Por isso os miúdos não passam de colo para colo, e precisam de estar de mão dada e precisam ver, precisam mostrar e olhar. E, aos poucos, não é que se desliguem ou amem menos os pais, mas os pais passam para dentro deles a palavra, a presença. Eles sabem que podem ir agora ao fim do mundo e que os pais estão dentro deles, que essa ligação não é ameaçada pela distância ou pela ausência.
Esse processo, que é o processo fundador da autonomia de cada um de nós, também é, de certa forma, o processo que acontece no crescimento da vida cristã. Os Discípulos começaram com Jesus, partilhando 24 horas por dia a sua existência com Ele, comeram e beberam com Ele, ouviram a Sua palavra, escutaram os Seus silêncios. E, agora, Jesus está-lhes oculto por uma nuvem. Mas isso não quer dizer que eles perderam Jesus. A Igreja não perdeu Jesus na Páscoa. Nós ganhamos Jesus de outra forma, ganhámos a Sua presença em nós.
Por isso é tão importante aquilo que S. Paulo nos diz: “Que o Senhor ilumine os olhos do vosso coração para compreenderdes a esperança a que sois chamados.” Precisamos olhar com os olhos do coração para compreender a qualidade e a dimensão da esperança a que cada um de nós é chamado.
Em vez de sentirmos que a nossa vida se desmobiliza, pelo contrário, a Igreja sente neste tempo pascal que esta é a nossa hora, chegou a nossa vez, que agora temos de ser nós a assumir a beleza e a radicalidade da proposta cristã. Por isso este é o momento do envio, este é o momento do mandato em missão: “Ide por todo o mundo e anunciai.”
É muito bela a fórmula que S. Marcos utiliza: “E o Senhor cooperava com eles.” O Senhor coopera connosco. Isto é: Deus vem em nosso auxílio, Deus socorre-nos, Deus ampara-nos para esta missão de sermos agora nós os protagonistas, os atores deste Evangelho a anunciar ao mundo. Nós podemos contar com essa ajuda efetiva de Deus para a nossa vida.
Queridos irmãs e irmãos, muitas vezes a ausência de Deus, o silêncio de Deus é um embaraço para nós. Muitas vezes sentimos que Ele nos descorçoa, nos faz cair os braços, nos desalenta, não nos dá a força. Ora, a Igreja que surge que é formada na Páscoa, pelo contrário, é uma Igreja mobilizada, é uma Igreja que sabe interpretar a ausência e o silêncio como lugares a preencher com uma comprometida presença da nossa parte. Por isso este tempo pascal, que é um tempo privilegiado para a construção da própria Igreja e para a consciência que cada um de nós é chamado a ter, da sua identidade, da sua missão; este é um tempo para mobilizar, este é um tempo para sentir, este é o tempo para descobrir, este é um tempo para compreender. Compreender, descobrir, mobilizar o quê? Perceber que agora sou eu, que em Cristo agora é a minha vez de ser.
Porque Cristo não nos veio substituir, Cristo veio motivar-nos, Cristo veio possibilitar-nos, Cristo veio dar-nos a capacidade de, mas temos de ser nós a lançar-nos nesta experiência que é sobretudo uma arte de ser, uma arte de ser.
O Cristianismo não é apenas uma verdade que nós mantemos na história. É antes de tudo uma cultura, um modo de ser, um conjunto de atitudes, um conjunto de escolhas que fazem realmente a diferença na nossa vida. Nós, verdadeiramente, não nos sentimos dignos do nome de cristãos enquanto o ser cristãos na nossa vida não faz a diferença. Por sermos cristãos acontecem determinadas coisas na nossa vida. Há passos, há rumos, há trilhos que nós fazemos em nome da nossa fé.
É claro que isto é um trabalho interior de grande vigilância, é um trabalho paciente que acontece. Sto. Agostinho lembrava: “Nós não nascemos cristãos, nós tornamo-nos cristãos.” Muitas vezes, com surpresa, nós cristãos de há muitas décadas descobrimos que não somos cristãos, ou que naquela circunstância precisa não fomos cristãos, ou que naquela reação, naquele modo de pensar, naquele juízo nós não fomos cristãos. Mas, de certa forma, não temos que nos espantar porque o Cristianismo não é natural em nós, não é natural. É um tornar-se, é uma transformação, é uma metamorfose, é uma mudança que tem de acontecer em nós.
Por isso, nós precisamos desta ligação a Cristo, precisamos da força da oração. Sem oração nós não conseguimos. Precisamos de reencontrar a força e o sentido da oração, que é o grande estímulo neste processo de transformação em que nós estamos. Por isso, um cristão não navega com o piloto automático, isso não existe. Um cristão tem de estar sempre atento, e ele com as mãos no leme, sabendo que Deus coopera com ele. Mas sabendo que cada passo, cada gesto precisa ser levado a Cristo. Temos que levar a nossa vida a Cristo para que Cristo a ilumine, para que Ele nos revele aquilo que a nossa vida é e o que ela pode ser.
Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade da Ascensão do Senhor
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2015/05/14 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2015/05/10 - A arte de traduzir Deus (homilia)
Queridos irmãs e irmãos
Neste sexto domingo da Páscoa, a Palavra do Senhor coloca-nos perante duas questões fundamentais.
A primeira é: a compreensão de que aquilo que nos é pedido por Jesus é o amor. É o resumo de tudo aquilo que Ele nos pede mas também que, neste longo discurso do adeus, de que nós lemos apenas uma parte, o termo do amor e o mandato do amor é a vontade explícita de Jesus a nosso respeito. O que Ele pretende é colocar-nos a amar, é tornar-nos especialistas no amor, é ampliar a nossa capacidade de amar, é reforçar a nossa vontade, a nossa imaginação, o nosso empenho, a nossa disponibilidade para que o amor verdadeiramente marque as nossas vidas.
É claro que o amor, e este mandamento do amor, é um mandamento difícil. De certa forma, nós não conseguimos pedir, a quem quer que seja, que ame. Podemos pedir muitas coisas mas não podemos pedir o amor. Porque, no nosso entendimento, o amor é gratuito, o amor brota, o amor nasce de uma empatia, o amor constrói-se, o amor surge, ou não surge, o amor às vezes é muito difícil e muitas vezes parece-nos impossível. Porque ficamos secos, porque estamos distantes, ou simplesmente porque na nossa liberdade nós não queremos amar, não queremos amar aquela pessoa, não somos capazes. E, contudo, o Senhor diz-nos: “O que Eu vos peço, e o que Eu vos mando é que vos ameis, vos ameis uns aos outros como Eu vos amei.”
Não há nenhuma constituição, não há nenhuma lei. Há leis para todas as coisas, mas não há nenhuma lei que mande uma pessoa amar. Porque isso, de certa forma, é pedir-lhe o impossível, é ir além daquilo que é o razoável. E, contudo, nós temos de nos perguntar o que é que Jesus nos pede, quando nos pede isto que aparentemente é irrazoável, isto que aparentemente é impossível. O que é que Jesus nos está a pedir quando coloca como síntese, e como indicador do que Ele nos pede, a proposta do amor, o mandato do amor?
Aqui a leitura de S. João, que hoje também lemos, vem em nossa ajuda, lembrando-nos que Deus é amor. Que quando se fala do amor não se está a falar de uma realidade distante de Deus. Pelo contrário, nós só tocamos em Deus se compreendermos o que é o amor e se praticarmos o amor. Só quem pratica o amor, diz-nos S. João, conhece a Deus e nasce de Deus. Porque Deus é isso, Deus é amor.
Então, a nossa habitação de Deus, tornarmos Deus a nossa experiência, a nossa morada, a fé que temos em Deus outra coisa não é do que o aprofundamento do que significa o amor. Se um cristão, uma cristã, adultos, não têm como grande objetivo, grande finalidade dos seus quotidianos das suas vidas o aprofundamento do amor estão longe, estamos longe do mandato de Jesus e da compreensão daquilo que Jesus nos pede.
Eu lembro-me, na primeira paróquia de que eu fui pároco (também só fui de uma): Foi muito interessante porque eu tinha acabado de me ordenar, tinha 25/26 anos, e pensava que a minha vocação e a minha palavra eram sobretudo para os jovens. E, depois, com grande surpresa minha, eu percebi que os seniores escutavam-me talvez com maior atenção. E lembro-me perfeitamente de uma pessoa, uma mulher, muito avançada nos anos, já com mais de 80 e que, no fundo, domingo a domingo, ouvia falar do amor, da importância do amor, o amor acima de todas as coisas, o mandato do amor; ela veio falar comigo a dizer: “Olhe, está-me a dar uma grande novidade. Eu tenho vivido a minha vida toda, tenho sido uma mulher religiosa, uma mulher de fé, tenho cumprido tudo. Mas, olhando para a minha vida, eu tenho que dizer que não sei o que é o amor, não sei o que é esse mandamento do amor.”
A mim tocou-me, tocou-me imenso esta mulher ter a capacidade de olhar para a sua vida e perceber como estava longe daquilo que é o central que Jesus nos pede. Para dizer a verdade, não é fácil nós vivermos uma vida inteira e permanecermos longe deste núcleo vital da Palavra de Jesus que é, no fundo, a única proposta que Ele nos faz, que é: ama, amem-se uns aos outros como Eu amo cada um, como Eu vos amei.”
De maneira que é muito fácil nós passarmos ao lado. E, contudo, passar ao lado é não ter mergulhado no mistério do próprio Deus, naquilo que Deus nos pode dar. Passar ao lado é não ter sido transformado por esta experiência que é, no fundo, o Cristianismo, é ele não ter feito unidade com a nossa própria vida, é não ter sido ele a marcar o nosso rumo, a marcar as nossas prioridade, a marcar a nossa agenda. Por isso, precisamos, de facto, de refletir muito seriamente no que fazemos a este mandamento de Jesus e como o cumprimos. Nós não o podemos cumprir apenas como um mandato, apenas como um mandamento. Mas temos de cumpri-lo como um modo de existência, como uma experiência.
Porque se Deus é amor, então o amor é permanecer em Deus, como explica S. João. Então, toda a nossa vida espiritual outra coisa não é do que o mergulho neste oceano de amor que é o próprio Deus. E, depois, a nossa vida não é senão uma arte de traduzir Deus, de refletir Deus, de passar Deus, de comunicar Deus em cada momento da nossa vida.
Quando S. João diz que Deus é amor, e que só conhecem a Deus aqueles que amam, e que só nascem de Deus aqueles que amam, S. João está a dizer-nos uma coisa muito importante. Porque a religião pode ser uma distração muito grande do essencial. E nós podemos viver uma vida muito agarrados às coisas de Deus e muito longe de Deus. Muito agarrados aos arredores, aos ornamentos, aos ritos e muito pouco mergulhando, escondendo, afundando a nossa vida completamente em Deus.
S. João diz: O importante não é a gramática do religioso. O importante não é esta expressão toda, que para nós é tão significativa, e ainda bem que é, mas não pode ser só isto, não pode ser só isto. Nós não sabíamos viver sem a missa dominical. Somos consequência deste momento das nossas vidas, mas não pode ser só isto. No sentido de que isto tem de dialogar com uma realidade maior e essa realidade é de que: só quem ama conhece a Deus e só quem ama nasce de Deus. Então, o nosso caminho, a nossa estrada, a nossa verdade, a nossa vida tem de ser de facto o amor.
Isto pede-nos, a nós cristãos, um exercício muito grande de humildade, reconhecendo aquilo que Pedro reconheceu, com surpresa, mas também com compromisso, quando ele percebeu que, antes de ele batizar os gentios, já o Espírito Santo havia sido derramado sobre eles. Quer dizer: o Espírito Santo vai à frente da Igreja. A Igreja chega depois do Espírito Santo ter chegado. Quer dizer: nós temos também de ter a humildade. A Igreja não é tudo, para lá da Igreja tantos crentes de outras religiões, tantos não-crentes, tantos mulheres e homens de boa vontade são assinalados, também, pelo Espírito. Onde a Igreja não chega, ou ainda não chegou, o Espírito Santo já fez a Sua sementeira.
E como é que nós vemos a sementeira do Espírito Santo? Vemos em tantas mulheres e tantos homens uma capacidade de amar, uma disponibilidade para amar, para estar ao lado dos outros, para servir, para acompanhar, para fortalecer, para exortar, para compartir, para partilhar, para solidarizar-se verdadeiramente. Isso é sinal de uma sementeira que está no mundo e que, para nós cristãos, deve ser uma marca que nos faz refletir, que nos dá um otimismo histórico. Porque nós percebemos que não contamos apenas com as nossas fracas forças. O Espírito vai adiante de nós e já está a semear, no mundo, esses gestos de amor.
De facto, os justos que salvam o mundo, e muitas vezes não sabem que o estão a salvar, são aqueles que multiplicam na sua vida os gestos de amor. Muitas vezes gestos pequeninos, gestos escondidos. Mas nessa vida minúscula, nessa vida sem história, está o sublime de Deus, está o eterno de Deus no empenho, no compromisso com que vivem. Sintamo-nos assim chamados a colocar o amor, a refletir sobre o lugar que o amor tem nas nossas vidas. Nós tantas vezes insistimos em tantas coisas e desistimos do amor. Que coloquemos o amor, e este mandamento do amor que Jesus nos deixou, como centro, como traço axial de aquilo que no tempo nós construímos.
Nesta Eucaristia eu queria rezar por um amigo que não conheci, que se chamava Ricardo, que faleceu há pouco mais de um mês. Hoje a sua família (os seus pais, os seus irmãos, a sua namorada, os seus amigos, familiares) estão aqui connosco, na nossa comunidade, para rezarmos pelo Ricardo. Um homem de boa vontade com o coração cheio de amor e que, muito limitado pela doença, não tinha prisões no seu coração. Não tinha prisões na sua sensibilidade, na sua capacidade de amar, de esperar no outro, de tentar inspirar o mundo também pela sua palavra, pelos seus projetos, por aquilo que ele fazia, tornando a sua doença um lugar habitado pela amizade, habitado pela esperança.
Vamos dar graças a Deus pela sua vida nesta celebração. Vamos perguntar não apenas porque é que ele partiu, que é a pergunta que nos enluta – é uma pergunta natural daqueles que amam. Porque é que aqueles que amamos partem? E partem tão cedo, como foi o caso do Ricardo. Mas, no nosso coração, perguntemos porque é que ele veio? O que é que ele trouxe? O que é que ele mudou em nós? O que é que ele iluminou? O que é que ele contribuiu, por exemplo, para que o amor seja mais forte em nós, e para que este mandamento do amor nós o compreendamos melhor. Porque ele nos indicou talvez aquilo que é essencial, a nós que andamos tão distraídos.
Vamos por isso juntar-nos a esta família, a este grupo de amigos, e rezar juntos, pedir ao Senhor que tenha o Ricardo junto de si, que o leve aos seus ombros de bom pastor e que, na comunhão dos santos e na comunhão da esperança, nós sintamos a presença do Ricardo ao longo das nossas vidas.
Pe. José Tolentino Mendonça, VI Domingo da Páscoa
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2015/05/07 - Encontros Interreligiosos - Viver o Islão, hoje
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2015/05/03 - Somos chamados a ser fecundos (homilia)
Queridos irmãs e irmãos
Hoje, neste passo do Evangelho de S. João que proclamamos, aparece-nos uma interpretação da palavra “discípulo” que é importante nós tomarmos para a nossa reflexão. Porque nós damos por descontado que somos discípulos de Cristo, porque o nosso próprio batismo tornou-nos isso. Consideramos o discipulado como a categoria de base, a categoria que é ponto de partida.
Esse entendimento continua certo, há que dizê-lo. Antes de toda a nossa ação, todo o nosso mérito, de toda a nossa construção, nós somos em Cristo. Recebemos a Sua força, o Seu vigor, é Ele que nos ilumina, recebemos a Sua graça, a Sua presença nas nossas vidas. De maneira que nós somos à partida discípulos de Cristo. Mas há um outro entendimento que emerge das palavras do Senhor que hoje escutamos. Esse entendimento coloca o termo “discípulo” não como ponto de partida, mas como ponto de chegada de uma vida que tudo faz, que em tudo se empenha, que se compromete autenticamente para se tornar uma vida semelhante à de Jesus.
Nós não somos discípulos porque começamos um caminho. Nós somos discípulos porque ao longo do nosso caminho, um caminho necessariamente demorado, complexo, paciente, um caminho necessariamente feito de tantos, de múltiplos recomeços, a verdade é que, no final desse caminho, há alguma coisa em nós que sem palavras nos liga à pessoa de Jesus, à lição de Jesus, ao modelo de Jesus. Então é a forma de viver, é a modalidade da nossa própria existência, é a forma, a configuração que damos à vida que nos faz ou não ter este nome de discípulos de Cristo.
Só numa vida de permanência em Jesus e numa vida fecunda nós podemos dizer que somos discípulos de Cristo. Esta dupla aceção que a palavra “discípulo” tem no discurso do Senhor introduz, sem dúvida, uma tensão na nossa vida. Não podemos estar parados, não podemos estar de braços cruzados a achar que tudo está adquirido, e que basta o que temos, e que podemos estar satisfeitos com o que fazemos.
Nós somos chamados, na Páscoa de Jesus, a um sobressalto, a uma transformação. A vida não pode ficar a mesma. Nós somos chamados a dar fruto, somos chamados a uma fecundidade interior. Que só vem também quando nos dispomos, verdadeiramente, a multiplicar os talentos, a dar outros passos, a abrir as nossas mãos, a adensar a nossa experiência espiritual. Somos chamados a ser fecundos. Como diz o Senhor: “A glória do Meu Pai é que deis muitos frutos.”
Num domingo como este, o V domingo da Páscoa, em que a questão é o fruto, que fruto nós damos? Qual é a fecundidade das nossas vidas? A nossa fé serve para quê? Enche o nosso coração de que coisas? Num domingo como este, em que esta é a questão decisiva das leituras da palavra de Deus, é muito importante que cada um, no seu coração, possa de facto sentir que somos chamados a passar da escassez e da retenção à multiplicação da vida. Que não podemos estar a diminuir, a subtrair o significado da vida, mas todos nós somos chamados a multiplicar a vida que nos é dada. E multiplicar a vida é torna-la fecunda, é sentir que a nossa participação em Cristo atua em nós muito fruto. Fruto de vida.
É interessante que nas Cartas de S. João nós temos um critério muito prático, mas também muito seguro, do ponto de vista espiritual, para olharmos e fazermos um balanço, um exame de consciência da nossa vida. A Carta de S. João coloca, de facto, o centro deste balanço naquilo que diz o nosso coração. O que é que me diz, hoje, o meu coração em relação à minha vida? Ele pede-me mais? Ele pede-me outras coisas? O meu coração está em paz com a vida que eu vivo? Se o meu coração tem reivindicações, se o meu coração me põe perguntas, se o meu coração me pede mais eu tenho de ouvi-lo. Eu tenho de ouvi-lo. O critério numa vida espiritual é: há paz no teu coração? Há paz nessa consciência que é o santuário íntimo onde o homem e a mulher se encontram com Deus?
Eu estou em paz ou sinto que estou parado, ou sinto que faço pouco, sinto que fico aquém, sinto que não dou o fruto que podia dar? E se eu sinto essa insatisfação em mim, eu tenho o dever de escutá-lo, tenho o dever de escutá-lo. Porque é pelo meu coração que Deus fala. É pelo meu coração, antes de tudo, que Deus fala. Eu posso ouvir muitas coisas e isso ser importante, mas a grande mensagem de Deus é-me dita pelo meu coração. Se o nosso coração não tem paz, temos de tomar a sério, temos de colher as implicações, temos de fazer um discernimento. Sabendo que, mesmo quando o nosso coração é pequeno e pobre, Deus é sempre maior que o nosso coração. Deus pode tornar sempre maior o nosso coração.
Nesse sentido há aqui uma confiança fundamental que é preciso trabalhar ao mesmo tempo que trabalhamos o nosso sentido de justiça, de autenticidade, de verdade.
Porque, como diz a Carta de S. João, não podemos ficar a amar Jesus e a amar os irmãos, não podemos ficar apenas a ser discípulos de Jesus por palavras e pela língua, temos de o ser também pelas obras. E todos sabemos como isso é mais difícil. É muito mais fácil dizer que sim e depois logo se vê, se sim se não. Outra coisa é ter a vida hipotecada à palavra do Senhor. Sentir, no fundo do coração, que nos entregamos, que nos damos e que concretizamos, que fazemos, que praticamos a Ressureição, que praticamos a fé na Ressureição. Não é apenas uma verdade que anunciamos mas é uma verdade que praticamos. Torna-se não apenas uma ortodoxia, mas também uma ortopraxia, a Páscoa de Cristo, porque nos empenha a fazer coisas.
Aqui é importante sabermos que não há obstáculos, que ninguém está excluído desta tarefa de tornar fecunda a vida, uma vida multiplicada pelo espírito do Ressuscitado.
O exemplo que os Atos dos Apóstolos hoje nos dão é do apóstolo Paulo. Ele que era o rival, ele que era o inimigo, ele que era o perseguidor torna-se o vaso de eleição. Deus pega nele e transforma-o, e torna-o um braço da Sua videira, torna-o um lugar onde a vida acontece, onde a vida jorra, torna-o uma nascente de vida. Por isso nenhum de nós pode dizer: “Ah, estou já demasiado estéril”, “Já é demasiado tarde” ou “Nunca vou chegar isso.” Não, todos somos chamados, permanecendo em Cristo, a dar esse fruto. É o próprio Espírito que conspira com a nossa fragilidade para que essa fecundidade aconteça nas nossas vidas.
Queridos irmãs e irmãos, neste tempo santo da Páscoa nós não estamos apenas a celebrar a Ressurreição de Jesus, nós estamos a celebrar a nossa ressurreição. Estamos a colocar aqui sobre a mesa, como assunto, como questão a ressurreição das nossas vidas, a transformação das nossas vidas.
Esta transformação não é uma utopia, não é apenas uma questão de palavra ou de fé, é uma questão de prática. O que é uma vida ressuscitada? O que é uma vida nova?
Penso que as duas grandes palavras de Jesus que nos aparecem no Evangelho são palavras que temos, de facto, de levar para as nossas vidas. Uma palavra é: permanecer. O desafio a permanecer. “Permanecerei em Mim e eu permanecerei em vós.” Este desafio a radicar, a esconder, a colocar, a ligar a nossa vida à vida de Cristo. E a outra palavra é a palavra “fecundo”, o dar fruto. Há uma exigência que é feita aos discípulos do Senhor. Nós temos de merecer também esse nome. Esse nome é um dom mas também é uma tarefa, também é uma missão. Merecer o nome de discípulo de Jesus.
Acreditemos, queridos irmãs e irmãos, que não há nome mais belo que nós possamos conquistar, não há título de maior luminosidade que nós possamos ganhar na nossa vida do que a de termos sido e a de sermos humildes e fiéis discípulos de Jesus.
Pe. José Tolentino Mendonça, V Domingo da Páscoa
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Abril
2015/04/30 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2015/04/19 - Jesus dialoga com a descrença (homilia)
Queridos irmãs e irmãos
A verdade da Páscoa é uma verdade inacreditável. A verdade que aconteceu com este homem, Jesus de Nazaré, este profeta filho de Deus, este Messias de Israel, a verdade que aconteceu na Sua vida é uma verdade que nos deixa em sobressalto.
E perguntamo-nos se devemos ou não acreditar. Se podemos ou não acreditar em Jesus. Porque se nos vierem dizer que um homem venceu a morte (esta morte que parece o limite natural de todas as coisas e de todos os seres), se nos vierem dizer que um homem rompeu o cerco e saltou para lá da linha, e levanta-se agora como aquele que está vivo no meio dos seus, nós esfregamos os olhos, beliscamos os braços para ver se é verdade, se pode ser verdade.
A Igreja neste tempo pascal é isso que se pergunta: pode ser verdade isto que nos está a ser anunciado?
É importante que nos debatamos com este problema. Porque a Ressurreição, queridos irmãs e irmãos, é a maior das verdades cristãs. Em certo sentido, é a única das verdades cristãs. Porque é ela que rompe com tudo aquilo que conhecíamos até então, é ela que nos coloca perante um dia novo, perante um tempo novo, perante um lugar absolutamente inédito na História. E mais: é-nos pedido a cada um de nós que seja a partir da Ressurreição, a partir da fé neste acontecimento absolutamente singular da História, que seja a partir deste acontecimento que moldemos agora as nossas vidas, os nossos dias, o tempo que nos cabe viver. Seja a Ressurreição, o acontecimento pascal, que seja o critério, a regra, a medida, o mapa, a certeza, a convicção, o espanto que nos move na vida de todos os dias.
Por isso é tão importante que agarremos a fundo o problema, inclusive na sua dificuldade. Porque o sobressalto com que as mulheres vieram dizer aos companheiros de Jesus (eles foram ao túmulo e viram), o sobressalto que os de Emaús tiveram quando encontraram aquele terceiro viajante no caminho de Emaús e perceberam que era Jesus (e voltaram para Jerusalém e agora estão a contar) é o sobressalto dos doze que estão reunidos, e é o nosso próprio sobressalto.
Nós podemos acreditar na Ressurreição de Jesus. Mas acreditar não como uma verdade sobrenatural, que está no fundo da história, mas acreditar como uma verdade material que perfura o tempo que eu vivo, que perfura e argamassa a história que eu construo. Eu posso acreditar nessa verdade da Ressurreição.
Nós estamos a ler nestas oitavas da Páscoa, o tempo pascal, as narrativas da primeira comunidade cristã, e como a comunidade se debate com a questão da Páscoa.
Há dois elementos que sobressaem em todos os textos:
Primeiro, as dúvidas. É uma verdade tão grande que nos é colocada no coração que nós não temos instrumentos para perceber. Não é uma verdade como as outras, a verdade pascal. É uma verdade tão nova que nos sentimos balançar, nos sentimos duvidar. Jesus aparecia no meio dos discípulos e eles diziam: “É um fantasma. Estamos a sonhar. Não é o que estamos a ver. Não pode ser.” Porque é o impensável, é o contrário de tudo o que sabemos e sentimos. E não acreditavam, e resistiam a acreditar.
Então, temos um dos elementos que caracterizam a aparição do Ressuscitado é: a persuasão que o próprio Ressuscitado faz aos seus discípulos de que Ele está vivo. É Jesus que os convence da Sua vida. É Jesus que nos convence de que Ele está aqui no meio de nós, vivo e presente. E Jesus, perante as dificuldades dos discípulos, não os crítica, não diz: “Essas dificuldades são incompreensíveis, são de todo ilegítimas.” Pelo contrário, Jesus dialoga com a descrença, com a dúvida, com a interrogação que está no coração dos discípulos. E mostra-lhes as mãos e o lado e diz-lhes: “Tocai-Me, vede-Me.” E quando as dúvidas não se dissipam, Jesus diz: “Trazei-Me alguma coisa para comer.” E come diante deles. Há assim como que um processo de persuasão, de convencimento de que podemos de facto acreditar, como uma verdade credível na Ressurreição do Senhor.
Mas, se este caminho de persuasão não nos basta, há o segundo elemento, que é típico destas narrativas do Ressuscitado, e que é o processo a que todos somos convidados neste tempo pascal.
Diz-nos o Evangelho de S. Lucas: “Abriu-lhes então o entendimento para compreenderem as Escrituras.”
A compreensão da Ressurreição, a compreensão da Páscoa não é alguma coisa que cheguemos somando dois mais dois. É compreensão profunda, existencial, espiritual desta que é a mais decisiva das verdades da nossa fé. É um dom do próprio Deus, é no Espírito, é na força do Espírito em nós que o nosso entendimento se abre, e nós tateamos o mistério que nos é dito, que nos é declinado pela Palavra do Senhor. É o próprio Espírito que nos abre a essa compreensão profunda, não é obra nossa é obra de Deus em nós.
Por isso, queridos irmãs e irmãos, nós devíamos estar aqui espantados, trémulos. Podemos acreditar ou não? É ou não verdade? Porque se for verdade muda tudo. Se for verdade que Ele ressuscitou, que Ele está vivo no meio dos seus, isso transforma completamente a nossa vida. Porque Jesus não é o único. Ele quis ser, no meio dos seus irmãos, o primogénito. Não o único, não o exclusivo, mas o primeiro, o primeiro, o primeiro de uma geração. E, nesse sentido, de facto a Igreja nasce no acontecimento da Ressurreição, os baptizados nascem a partir do acontecimento da Ressurreição. É a partir deste acontecimento que nós nos situamos na vida, que nós nos situamos no mundo.
O professor Eduardo Lourenço tem um prefácio a um dos seus livros (Heterodoxia I), denominado Prólogo sobre o Espírito da Heterodoxia, em que ele diz o seguinte: “Em Atenas, quando S. Paulo anunciou aos atenienses, aos filósofos gregos, que Jesus tinha ressuscitado, eles levantaram-se e foram-se embora.” Porque não estavam para ouvir coisas impensáveis. E ele diz: “Contudo, nós cristãos ouvimos esta verdade que é capaz de incendiar o mundo, mas ouvimo-la de uma forma completamente passiva, adormecida.”
Queridos irmãos,
A Ressurreição, a fé na Ressurreição tem de ser o motor de transformação das nossas vidas. Há um antes e um depois da Páscoa. A Páscoa é o limiar de uma Humanidade nova que eu começo a viver em mim, na minha história, na minha vida. Porque Ele ressuscitou, porque Ele ressuscitou a nossa vida tem de ser uma vida outra, tem de ser uma vida outra, tem de ser uma vida que transporta no seu cerne esta verdade. E que faz de nós, como dizia Pedro e como dizia Jesus, discípulos: faz de nós testemunhas desta verdade.
Com a Páscoa a nossa vida passa a valer mais. Porque nós trazemos na nossa carne, impresso na nossa carne, o relato de uma verdade capaz de mudar e salvar o mundo. Trazemos impresso no nosso coração e na nossa carne, não só a verdade da Cruz, mas a verdade do túmulo vazio, a verdade da manhã de Páscoa. Esta verdade que custa dizer, porque é tão grande, é tão maior do que tudo aquilo que até aqui sabíamos.
Na Páscoa começa uma ciência nova, uma sabedoria nova, uma filosofia nova, uma política nova, uma economia nova, uma religião nova, uma vida familiar nova, uma vida de amor nova. Na Páscoa começa uma Humanidade nova, porque parte-se, agora, daquilo que com o Seu corpo o Ressuscitado levantou para nós. E nós não podemos não ver, nós não podemos não viver a partir desta verdade, fica agora bem presente, bem nítida na nossa história.
Queridos irmãs e irmãos,
É esta responsabilidade que nos é pedida: a responsabilidade de fazermos este caminho interior de aceitarmos o problema, de aceitarmos que seja o Espírito a abrir-nos o entendimento e aceitarmos viver este tempo num regime espiritual intenso. Para que o próprio Deus nos ajude a compreender o que é que Ele quis dizer, o que é que Ele nos quis dizer com a Ressurreição do Seu filho. E depois, nós próprios sermos um povo de testemunho, um povo que é capaz de levar esta boa notícia, esta boa-nova, esta palavra que transforma a vida. Há um túmulo que ficou vazio, porque há um homem que ressuscitou. E a partir desta notícia nós redesenharmos, nós recriarmos, nós reinventarmos a nossa relação com o mundo.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III da Páscoa
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2015/04/16 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2015/04/11 - Encontros Interreligiosos - Descobrir o Zen: um diálogo interreligioso
No dia 10 de fevereiro, a Comunidade do Rato e o Dojo Zen de Lisboa reuniram-se numa noite memorável para aprofundar juntos A Via do silêncio.
Este encontro tem agora um proposta de continuidade no Dojo Zen, que organiza uma manhã de descoberta do Zen no sábado, 11 de abril, na sua sede da Rua Luciano Cordeiro, 49 CV, em Lisboa.
Programa:
- 9h 30 – Chá de boas-vindas
- 10h 00 – Introdução à prática da meditação zen (zazen)
- 11h 00 – Sessão de zazen e cerimónia (canto de um sutra)
- 12h 15 – Momento de convívio
Inscrições na Capela do Rato ou via site.
2015/04/05 - A ausência como um mistério de presença (homilia)
Queridos irmãos
Hoje acordamos celebrando a maior das verdades cristãs, aquela sobre a qual a nossa fé se cimenta, se enraíza. É verdade que há um sepulcro vazio e que Ele não está ali, porque Ele está vivo, porque Ele caminha à frente dos seus, porque Ele, junto do Pai, nos envia o Seu Espírito. Porque Ele é a certificação de um amor de Deus que é maior do que a própria morte, que vence aquilo que parecia uma fatalidade: o invencível da morte.
Hoje nós acordamos cantando Aleluia e acordando no nosso coração a maior das esperanças. Porque Ele está vivo, Ele está aqui no meio de nós, Ele continua a caminhar no meio dos seus.
E por isso, como aos discípulos, o nosso coração arde. Hoje é esse dia, em que o coração se enche desse entusiasmo, desse ardor. Porque compreendemos que na Ressurreição de Jesus é a nossa vida que se amplia, é a nossa vida que se ilumina, é a nossa vida que ganha uma outra forma. Ela passa a ser mais de Deus, ela passa a ser o triunfo de Deus.
E experimentamos isso na vulnerabilidade, na fragilidade, no inacabamento, na hesitação da nossa carne. Experimentamos a maior das verdades, aquela que nenhum homem ousou sonhar e que em Cristo nós palpamos, nós tocamos, nós verificamos.
É tão belo este Evangelho de S. João que nós lemos. Porque é como uma cenografia, um momento dramático, uma peça de teatro. Vai esta mulher ao sepulcro e encontra, com as outras mulheres, a pedra rolada, e não sabem o que aconteceu.
A experiência do não-saber é uma experiência que acompanha a vida dos crentes, sempre, sempre. Muitas vezes nós não sabemos e achamos que a nossa ignorância é um obstáculo intransponível que nos separa absolutamente de Deus – ignorarmos, não sabermos como, não percebermos, não entendermos nada. E quando nós lemos as narrações pascais nós percebemos que a ignorância é um traço da própria fé. Temos de olhar para a nossa ignorância como um componente essencial da própria fé.
Porque, se soubermos tudo, não entendemos nada. E é, precisamente, este não saber que abre as portas a uma outra compreensão. Por isso, a ignorância, a dificuldade de entender, a incompreensibilidade que tantas vezes nos fere, para nós deve ser vista como o barro onde a fé se molda verdadeiramente.
As mulheres viram aquela pedra e não perceberam o que é que tinha acontecido. Sabiam que Jesus não estava ali, mas o que tinha acontecido não sabiam, não sabiam, não entendiam.
E foram dizer aos discípulos. Pedro e João vêm a correr.
É interessante que as primeiras testemunhas da Ressurreição são as mulheres, mas o testemunho das mulheres não tem valor no tribunal, não vale, não valia no tempo. E então, ao lado das mulheres tem de haver o testemunho dos discípulos. Mas é interessante que é o amor daquelas mulheres, que vão piedosamente levar, como uma ternura, os perfumes para perfumar a sepultura, é o amor daquelas mulheres que as torna as primeiras testemunhas da Ressurreição. O testemunho não vale juridicamente, mas vale para a estrada da fé que elas estão a percorrer. A Ressurreição não é uma verdade tutelada juridicamente, é tutelada existencialmente. E por isso, as mulheres são as primeiras videntes do mistério do Ressuscitado.
Aquilo que elas veem não entendem, não entendem, e vão chamar dois homens: Pedro e João. O testemunho de um só também não vale, e por isso vêm dois varões, a correr, para testemunhar. E é interessante que João que é mais novo, corre mais depressa do que Pedro, e chega, fica de fora. Isto é, ele sabe que Pedro deve ser o primeiro, que Pedro é aquele mandatado por Jesus para selar a fé dos cristãos, para dar força, dar unidade à fé dos cristãos.
À beira da Ressurreição cada um de nós percebe alguma coisa, e sente alguma coisa. Mas é Pedro, a verificação de Pedro, que vai dar a confirmação necessária ao mistério da própria fé. Por isso, também hoje, a fé de Pedro continua a ser a rocha onde a nossa fé também se segura, mesmo que a gente corra primeiro e se adiante.
João foi, e de fora olhou para dentro. E encontrou os sinais que envolveram o corpo de Jesus, mas não entendeu nada.
Há muitas maneiras de olhar para o sepulcro, há muitas maneiras de olhar para o mistério da Ressurreição. A maneira das mulheres que viram a pedra rolada; a primeira forma de João que viu de fora, olhou de fora para dentro, e não entendeu nada; de-pois chegou Pedro, e Pedro entrou no sepulcro. E é, no fundo, isto que Pedro nos ensina: nós temos de mergulhar na morte de Jesus. Nós só entenderemos o mistério da Ressurreição se entendermos, se entrarmos no mistério da morte, no mistério da Paixão do Senhor.
Que morte foi aquela? Qual é o sentido daquela Paixão? Porque é que Jesus morreu? Porque é que Ele deu a sua vida? Só entrando, só meditando, só aprofundando o mistério, o lugar da morte se sente os primeiros sinais, espantosos, desta verdade de vida.
E Pedro vai, e começa a olhar, a encontrar os sinais, que são tão importantes para esta espécie de interpretação do luto, interpretação da ausência. Ele não está aqui, mas deixou os Seus sinais. E os sinais que Ele deixou são como uma espécie de trampolim para atirarmos o nosso coração para mais longe, para abrirmos os nossos olhos de uma outra forma, para tatearmos na ausência o mistério de uma fantástica presença.
E depois vem João, o discípulo amado, que é o símbolo do crente. E ele acompanha o trabalho de Pedro. E há esta coisa espantosa: ele também entra no sepulcro. E ele vê e acredita.
E, no fundo, o que é que a Ressurreição nos pede? Pede-nos estes dois verbos: ver e acreditar. Nós somos chamados a ver, a ver que um sepulcro foi vazio, ver a ausência de Jesus. Jesus foi-nos tirado por aquela morte mas foi-nos dado pela vida que Deus acendeu Nele, de uma forma absolutamente inédita, absolutamente nova. João viu e acreditou.
E aqui começa a história do Cristianismo, na fé que naquele sepulcro vazio nasceu, como uma primavera que irrompeu naquele jardim. Uma primavera que não é apenas a da natureza, mas é a primavera da história, é a primavera do mundo. Tudo começa naquele sepulcro vazio.
Queridos irmãs e irmãos
Quando olhamos para o mundo, para a vida, para a história, muitas vezes ela se parece a um sepulcro vazio. Estão os sinais mas Ele não está.
S. João diz, no princípio do seu Evangelho: “A Deus nunca ninguém o viu.” Nós não encontramos Jesus em lado nenhum. Vamos a correr e é o Seu silêncio aquilo que tateamos. Encontramos as marcas, encontramos os sinais, mas o nosso coração é chamado a interpretar a ausência como um mistério de presença.
E, naquele silêncio, que é o silêncio do mundo ainda, nós somos chamados a tatear o primeiro dos mistérios, e aquele que dá fundamento a todos os outros, que é o mistério da Ressurreição do Senhor. Ele está vivo, Ele está vivo. Mesmo se não O sentimos, mesmo se não O vemos, mesmo se não nos aparece na curva da estrada, nós sabemos que Ele está vivo no meio de nós. E é essa vida que torna tudo diferente, torna tudo diferente.
Para nós, a manhã de Páscoa é o primeiro dia do mundo, é a primeira manhã do mundo. E a Igreja toda, estes dois mil anos de Cristianismo, acontecem numa manhã. Nós não somos o crepúsculo, nós não somos os pós-cristãos, nós não somos os que vivem numa sociedade secularizada, nós não somos os cristãos agora perseguidos. Nós somos a manhã, somos a primeira manhã. A nossa vida inteira cabe na primeira manhã de Páscoa. Ainda é manhã e cada um de nós está a correr em direção ao sepulcro. É esta a história da nossa fé.
E se levamos dúvidas, se levamos interrogações, se levamos respostas por encontrar é normal. Maria Madalena, Pedro e João, levaram no seu coração a grande expectativa de Deus. E a fé é a grande expectativa de Deus, a grande espera pela revelação de Deus.
Queridos irmãs e irmãos
Aleluia. Como dirá o autor da Carta aos Colossenses: “Nós morremos, e a nossa vida está escondida com Cristo em Deus”, essa vida nova, que agora se vai revelar num tempo novo, marcado por este acontecimento inamovível da história que é a Ressurreição de Cristo.
Hoje, em muitos lugares do mundo, há mulheres e homens a derramar o seu sangue, que oferecem o seu sangue, que são perseguidos por esta verdade. Sejamos dignos desta verdade, sejamos dignos desta palavra “Aleluia”, que de nenhuma maneira é uma palavra banal, que não é uma palavra das nossas línguas, mas é uma palavra recebida.
A grande palavra humana: “Aleluia!” Aquela certeza que o alto se fez baixo. E que, tomando, abraçando o rés da terra, de novo se elevou até Deus.
Aleluia.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo de Páscoa da Ressurreição do Senhor
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Março
2015/03/29 - O grande abraço de Deus (homilia)
Queridos irmãs e irmãos
A escritora Marguerite Yourcenar conta que um amigo dela, que tinha sido combatente, soldado na Guerra de Indochina, uma vez lhe tinha dito: “Se Jesus tivesse morrido fuzilado em vez de ter morrido crucificado, eu acreditaria Nele.”
E ela escreve um texto a contar esta narração que hoje nós proclamamos, a grande narração da Paixão, para mostrar como nós somos chamados a ver para lá das aparências, para lá das formas, e a descobrir sempre a atualidade desta história.
Jesus morreu crucificado, mas também morreu fuzilado, mas também morreu num canto de estrada, mas também morreu num pelotão de fuzilamento, mas também morreu na cadeira elétrica, mas também morreu na cama de um hospital, mas também morreu com cancro, morreu com sida, também morreu abandonado, morreu a morte de todas as vitimas da história.
Porque, se há uma palavra que define a grande narrativa da Paixão, essa palavra é: solidariedade. Jesus morre de forma solidária com a nossa dor, com a nossa humanidade, com a nossa própria morte. Não é por acaso que a última palavra que Jesus diz é este grito, que é uma palavra de um dos salmos do Antigo Testamento: “ “Eloí, Eloí, lemá sabactáni?”, que quer dizer: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” Ou, como traduzem alguns: “Meu Deus, meu Deus, a que me abandonaste?”
Parece um paroxismo, uma contradição total: como é que o Filho de Deus, como é que o Messias de Deus, como é que Este que é a expressão do próprio Deus, pode viver o abandono de Deus? Mas aí percebemos que, de facto, tudo na vida de Jesus acontece para que possamos reconhecer, na Sua humanidade vulnerável, ferida, oprimida, esmagada pela dor, pela traição, afogada naquelas lágrimas e naquele silêncio, torturada por este sistema judiciário que fez tudo para o eliminar da forma mais tortuosa, que Jesus viveu cada instante da Sua vida em solidariedade com a nossa vida, abraçado à nossa vida.
Por isso, não há nenhuma dor humana, nenhuma, que não tenha expressão nas dores de Cristo crucificado. Não há nenhuma solidão humana, não há nenhum silêncio, não há nenhuma experiência de abandono que não possa ser aproximada do silêncio e do abandono com que Jesus morreu. E por isso, estes braços da cruz que Jesus abre são o grande abraço de Deus à nossa humanidade.
Sintamo-nos, por isso, queridos irmãs e irmãos, a começar esta semana maior, esta Semana Santa que é uma semana em que vamos dia a dia reviver os passos desta grande, infinita narração, que hoje proclamamos. Que esta semana seja vivida para nós numa intimidade espiritual com a pessoa de Jesus, tendo a capacidade de perfurar as aparências, de ir além daquilo que é a cultura, a história e os símbolos de cada tempo. Mas sentindo, sentindo no fundo do nosso coração, que Ele está connosco, que Ele está connosco. A Paixão de Cristo é a paixão do homem e a nossa paixão está expressa na Paixão do Senhor. Ele viveu-a por nós, para nós, em vez de nós.
Uma última palavra: aquilo que emerge no nosso coração quando proclamamos esta história, que resume a grande história pascal, a grande questão é o que fazer com esta história? Cada um de nós, que está aqui presente, é herdeiro desta história, tenha um ano ou noventa. Cada um de nós é herdeiro desta história. Esta história é nossa. O que fazer com esta história? O que fazer com esta narrativa que recebemos de Jesus? Como é que olhamos para a Cruz e sentimos que esta história nos funda, esta história nos edifica, esta história é a raiz da nossa própria história? E isso é também aquilo a que somos chamados, de novo, nesta Páscoa de 2015, a celebrar, a viver, a rezar na esperança e no silêncio, fazendo nossa a vida do próprio Senhor, a Sua vida e a Sua morte.
“Eloí, Eloí, lemá sabactáni?”
Meu Deus, meu Deus, a que me abandonaste? Nós não temos uma resposta. O que sabemos é que, sempre que nós dissermos esta oração, estamos sustentados, amparados pelo Seu abraço.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo de Ramos
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2015/03/28 - Retiro aberto
Um retiro aberto em tempo da quaresma vai ser orientado pelo Pe. José Tolentino Mendonça, no dia 28 de março, das 10h às 17h, nas Monjas Dominicanas, no Convento de Santa Maria no Lumiar, junto à Praça Rainha Dona Filipa. A organização é da Comunidade da Capela do Rato. O retiro é de silêncio. Cada pessoa trará o seu almoço. As inscrições e o pagamento da inscrição poderão ser feitos no final da missa de domingo, na Capela.
2015/03/28 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2015/03/26 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2015/03/25 - Mulheres, Igreja e Família
Em colaboração com o movimento «Nós somos Igreja», a Comunidade da Capela do Rato realiza uma conferência debate sobre o tema «Mulheres, Igreja e Família», com a participação de Anália Torres e de Maria do Rosário Carneiro, moderada por António Marujo, no dia 25 de Março, às 21h, na Capela do Rato.
2015/03/22 - "Senhor, nós queremos ver Jesus" (homilia)
Queridos irmãs e irmãos
É muito curioso o início deste passo do Evangelho de S. João, que hoje proclamamos. Há uns gregos que estão por ali, de visita a Jerusalém, peregrinos que ouviram falar de Jesus e tinham curiosidade por Ele. E foram falar com dois discípulos, que pelo nome percebemos que também teriam uma linhagem grega, eram dessa etnia: Filipe e André, nomes clarissimamente gregos. Foram ter com eles, que eram o seu contacto, e disseram esta coisa espantosa: ”Nós queríamos ver Jesus.” E um fala com o outro e vão ambos ter com Jesus e dizer: “Olha Senhor, há aqui gente que te quer ver.”
A questão que aqui se coloca, não só a quem pela primeira vez se abeira de Jesus, mas a nós que nos sentimos perto Dele, que sentimos que Ele é a referência central das nossas vidas, a questão que se coloca é: o que é ver Jesus? O que é ver Jesus?
Porque, olhar para Jesus, ouvir o Seu nome, repetir a Sua palavra, sentir que há uma proximidade, uma comunhão, isso cada um de nós, à sua maneira, ao longo do tempo vai experimentando de formas diversas. Mas, o que é ver Jesus? E será que eu já vi Jesus? Será que eu já despi as cascas, já deixei para trás o ruído, já fiz cair aquilo que são os pretextos, aquilo que são os arredores do rosto, e já olhei, olhos nos olhos, para Jesus? Será que eu já O vi verdadeiramente? No sentido de que eu já compreendi o Seu caminho, já compreendi a loucura e o escândalo da Sua Cruz? Será que eu já olho para a Cruz de uma forma completamente clara? No sentido de perceber a natureza do Seu gesto, a dimensão e as implicações do Seu gesto na minha vida?
“Senhor, nós queremos ver Jesus.” E se calhar, no nosso coração, de uma forma ou de outra, este desejo está muito presente, nós queremos ver Jesus. E é esse desejo que explica que, domingo a domingo, nos encontremos nesta circunstância, na cena litúrgica, para ver, tentar palpar o Seu rosto, tentar ir além das evidências, desterrar essa costura.
“Senhor, nós queremos ver Jesus.” Talvez esta seja a prece mais persistente, este desejo que não se apaga, esta inquietação por ver o Seu rosto. Talvez esta inquietação seja a nossa maior prece, a nossa única prece. Senhor, nós queremos ver o Seu rosto. E Jesus mostra-nos o Seu rosto.
Este caminho quaresmal que estamos a fazer, outra coisa não é do que uma aproximação do nosso rosto ao rosto de Jesus. Para olhá-Lo de perto, para vê-lo no detalhe, para perceber como Ele é semelhante e diferente do nosso. Para perceber como do Seu rosto irradia uma luz que torna o nosso rosto escuro e mal iluminado num rosto luminoso, transparente. A Quaresma outra coisa não é que nos avizinharmos, radicalmente, de Jesus. Para viver a Páscoa, que é o momento em que o Seu rosto se revela na Sua plenitude, na Sua inteireza, nós possamos acompanhá-Lo, vendo-o verdadeiramente. Não apenas as coisas a acontecerem, mas nós a olharmos para Jesus.
Queridos irmãs e irmãos: uma das críticas que outras Igrejas cristãs fazem aos católicos é que nos dispersamos muito. E às vezes essa crítica colhe, é verdadeira. Que nos dispersamos nos símbolos, nos ritos, nas imagens, nos santos, nos papas. Andamos um bocadinho dispersos e distraídos e ocupados com coisas que são de Deus, mas que não são o essencial. E perdemos de vista a centralidade crística que a nossa vida deve ter. Perdemos de vista este centro que nos deve atrair radicalmente com todos os traços da nossa história. Que é nos colocarmos, olhos nos olhos, com a figura de Jesus e com a pessoa do crucificado. Por isso, é também importante purificarmo-nos de uma religiosidade dispersiva. Que nos acorrenta a isto, nos faz acender velinhas àquilo e nos distancia da grande lição do Crucificado. Que é sempre nova, tem ressonâncias sempre atuais no nosso coração.
A palavra espantosa que Jesus hoje diz no Evangelho é uma palavra que nós nunca acabaremos de meditar e de colher o seu significado profundo: “Quando Eu for levantado da terra, atrairei todos a Mim.” E diz o evangelista S. João que Jesus falava da forma como havia de morrer. Claramente, quando Ele for levantado da Cruz, atrairá todos a Ele.
É interessante o verbo que Jesus utiliza: o verbo atrair. Porque o verbo atrair é um verbo de uma grande ambiguidade de sentidos, de uma grande abertura semântica. Atrair é uma coisa que nós ligamos ao desejo, ao erotismo, ao coração, à beleza, não tanto à razão. Às vezes sentimo-nos atraídos pelo que vemos, sentimo-nos colados, sentimos que há coisas no nosso coração, há desejos, há expectativas no nosso coração que, de repente, estão ali presentes e sentimo-nos puxados, puxados para ali. Então, este verbo – “Quando Eu for levantado da terra atrairei todos a mim” – quer dizer que a nossa relação com Jesus não é apenas uma relação racional, não é apenas esta compreensão que a grande ortodoxia nos faz dizer. Que Cristo é o Senhor, que Cristo é o Deus connosco, que Cristo é o Filho de Deus. Essas verdades do dogma sustentam a nossa fé. Mas não é apenas a arquitetura racional dos dogmas que nós somos chamados a viver na relação com Jesus.
Nós somos chamados a viver uma relação para cá e para lá da própria racionalidade. Uma relação que é afetiva com o próprio Jesus. Sentindo que Ele nos emociona, que Ele nos toca, que Ele é também o inexplicado de Deus que vem ao nosso encontro. Que Ele, sem nós podermos explicar como, sem nós podermos dizer porquê, Ele realiza tudo, mas tudo o que nós queremos da vida, que Nele nós vimos tudo aquilo que sonhamos.
É aquele poema tão belo da Sophia de Mello Breyner: “Vimos o lume aceso nos Seus olhos, e foi por o termos olhado que ficámos penetrados de força e de destino, Ele deu carne àquilo que sonhamos, e a nossa vida abriu-se iluminada pelas imagens de ouro que Ele viu.” E, de facto, é esta relação vital que nós precisamos de construir com a pessoa de Jesus. Isso não se faz sem abandono, sem silêncio, sem nos jogarmos – e a palavra é essa – sem nos jogarmos para os pés de Jesus. Sem nos atirarmos para os Seus pés. Se estamos com as nossas reservas mentais, as nossas seguranças, a manter o nosso campo, se queremos manter a respeitabilidade que cada um merece a si próprio, se cada um de nós quer manter apenas uma relação intelectual com a figura de Jesus, também é possível porque é uma figura absolutamente fascinante. Mas não é isso que nos é pedido. O que nos é pedido é que, por palavras, atiremos a nossa vida para os pés Dele, o que nos é pedido é que nos ajoelhemos em silêncio olhando para o Seu corpo, para o Seu rosto, para aquilo que, sem nenhuma palavra, apenas com o exemplo, Ele nos diz.
O importante é que cada um de nós se meta no meio na multidão, atrás Daquele que vai ser crucificado no Gólgota. O mais importante é que cada um de nós se sinta seu discípulo, discípula e que isso meta em perigo a nossa vida. Eu sou discípula, discípulo de um crucificado, de alguém que é um condenado. Mas é isso que me define.
Por isso, queridas irmãs e irmãos, a Páscoa que nós estamos perto de viver tem de ter uma intensidade na nossa vida. E é isso que nos transforma. O verbo que Jesus usa é um verbo poderoso – até pode parecer um bocado estranho, mas não: Jesus atrai-me, atrai-me no sentido que me enche de um amor, toca as cordas afetivas mais recônditas do meu ser. Faz-me estar com Ele, não tenho vontade de me distanciar, de me separar. E isso é um mistério da Cruz, é um mistério da Cruz. Sem esta dimensão que chamamos mística e cada cristão, cada cristã tem de viver, nós ainda estamos como os gregos que vieram ter com os discípulos a perguntar: “Senhor, faz-nos ver Jesus.”
Precisamos de mergulhar, mergulhar. E é desse mergulho que nos fala, de forma tão bela, a passagem do livro de Jeremias que hoje lemos. Ele diz: “Vai haver um momento em que…” A nossa fé é feita de muitas perguntas, de muito debate, de muita discussão, de muita coisa que não compreendemos, de muitas interrogações. E vai ser assim até ao fim, não tenhamos ilusões. Vai ser assim até ao fim. Porque nós somos incompletos, inacabados, nós somos entreabertos, nós não nos vamos realizar completamente aqui, nós vamos morrer com fome e com sede, nós vamos continuar a sentir o peso da nossa nudez. Isso é o que é o ser humano, esse é que é o enigma humano, isso é que nos torna a impressão digital do próprio Deus.
Mas uma coisa é certa: nós somos chamados a experimentar, a viver uma outra realidade. Como nos diz Jeremias, já ninguém tem de nos dizer: “Olha, vem aprender alguma coisa sobre Deus. Olha, vem estudar. Olha, vem ouvir falar sobre Deus.” Já não precisaremos de nada, porque todo o conhecimento de Deus estará inscrito no nosso coração. E isto é verdade, isto tem sido verdade na história da Igreja, na história dos crentes. Porque ao mesmo tempo precisamos de saber tudo e já sabemos tudo. Porque quando o Crucificado nos olha, o Seu olhar permanece em nós. Quando O Crucificado nos olha, o Seu olhar depois não nos abandona, ele continua impresso no nosso coração. E mesmo que nós depois nos sintamos em solidão, é uma solidão diferente, porque é uma solidão em que permanecem connosco os olhos de Jesus Cristo.
Pe. José Tolentino Mendonça, V Domingo da Quaresma
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2015/03/15 - A tudo Deus dá futuro (homilia)
Queridos irmãs e irmãos
Esta semana tivemos a grande alegria de celebrar dois anos de pontificado do Papa Francisco. Nesse dia, ele quis anunciar a toda a Igreja a convocação de um ano santo, que irá de dezembro deste ano de 2015 a novembro de 2016. E será um ano santo especial.
Os anos santos foram criados para assinalar, precisamente, a experiência do perdão e da misericórdia. Durante muito tempo os anos santos chamavam-se a perdonança porque é o grande tempo da reconciliação. E celebravam-se de 50 em 50 anos ou em momentos especiais. O século XX foi um século muito rico em anos santos. Este será, em pouco mais de 100 anos, o nono ano santo. Este ano santo será convocado sob o signo da misericórdia. É a primeira vez que vamos ter um ano santo para sentir a misericórdia.
De facto, uma cristã, um cristão são especialistas em misericórdia. Especialistas, não porque seja uma competência que nós tenhamos, mas especialistas porque todos somos uma consequência da misericórdia de Deus. Penso que uma mulher, um homem cristãos são chamados a entender a sua própria vida como uma consequência da ternura de Deus, da Sua misericórdia, que não cessa nunca.
Porque, como S. Paulo nos diz hoje neste passo da Carta aos Efésios: “Deus é um Pai rico em misericórdia.” E toda a nossa vida nós declinamos, nós aprendemos. Na prática, no significado desta imagem tão rica: Deus rico em misericórdia. Deus, que ama de tal maneira o mundo que lhe dá o seu próprio Filho, como nos lembra Jesus no Evangelho de João. Deus que não quer condenar o mundo, mas que quer que o mundo seja salvo pela misericórdia revelada em Jesus. Nesse sentido, precisamos, de facto, de ensopar a nossa vida da misericórdia de Deus. Fazer a própria experiência da misericórdia.
O tempo da Quaresma outra coisa não é que um tempo – mesmo na sua exigência, na sua tensão transformadora, no seu impulso de conversão – outra coisa não é que a possibilidade de saborearmos mais amplamente, mais autenticamente a misericórdia de Deus. Sintamo-nos, por isso, tocados por esta misericórdia. Sintamos que a graça de Deus tudo cura, tudo salva, tudo entende, tudo acolhe. A tudo Deus dá futuro; não há nada na nossa vida a que Deus não dê futuro. Porque o que é próprio da misericórdia é, exatamente, a reversibilidade. Nada é completamente irreversível, nada está perdido, ninguém é deixado para trás.
No livro das Crónicas nós meditamos numa etapa da vida do Povo de Deus. Uma etapa difícil, porque o Povo de Deus desviou-se do culto ao verdadeiro Deus, entregou o seu coração aos ídolos, esqueceu-se do Senhor e foi para o exílio. É interessante aquilo que o autor do livro das Crónicas diz: “Já não havia remédio.” Não parecia haver já remédio, Jerusalém foi destruída e o povo foi para o exílio. E o tempo de exílio é o tempo também para experimentar o desejo de Deus, a saudade de Deus.
Verdadeiramente, a ausência de Deus não existe, não existe. Mesmo quando nós falamos com ateus, com pessoas muito distantes, e que não se sentem tocadas pelo dom da fé, há ali como que uma nostalgia, como que uma saudade, como que uma abertura, como que uma disponibilidade. Porque essa marca, essa impressão digital de Deus está tatuada no coração do ser humano.
Deus é fiel ao ser humano. Deus é fiel. Mesmo quando nós não vemos como, não sabemos como, não conseguimos tratar a Deus por “tu”, Deus não deixa de ser este Pai rico em misericórdia que está diante de nós. Por isso, o tempo do exílio, o tempo do silêncio é também um tempo de saudade, de saudade de Deus.
A verdade é que a nossa cultura, em tão grande medida, em tantos parâmetros, parece uma cultura tão distante de Deus, que silencia tanto a procura de Deus. Ela não deixa de ser um lugar onde o ser humano, na aspereza da vida, experimenta o que é este desejo de Deus, esta saudade de Deus. Lembro-me de um filme de Manoel de Oliveira, O Convento: a dada altura há um diálogo, há uma personagem que vive um “mal de vivre”, uma grande inquietação interior, que não tem remédio, e a outra pergunta:
“- Mas o que é que tu tens? O que é que tu tens?
E ela dá esta resposta:
– Tenho saudades de Deus.”
A saudade de Deus quer dizer que o que responde às inquietações do nosso coração é uma medida alta, a medida do amor, a medida da ternura de Deus. E Deus surpreende-nos sempre. Deus surpreende-nos sempre.
Tantas vezes na história do Povo de Deus o amor de Deus, a Sua misericórdia foi uma grande surpresa. Por exemplo, o povo de Deus está no exílio, e quem é que o livra do exílio e reconstrói Jerusalém? Um imperador pagão: Siro, rei da Pérsia. E esta palavra das Crónicas é uma palavra que nos acorda, que nos sobressalta. Porque diz assim: “Deus inspirou a Siro, rei da Pérsia.”
– O quê? Então os pagãos também são inspirados por Deus?
– Sim, os pagãos são inspirados por Deus.
Isto obriga-nos a ler a história de outra maneira, a ler a vida de outra maneira. Porque às vezes olhamos o caminho de fé muito como um Benfica-Sporting. E não é bem assim, não é um clássico de rivais, de competidores. Mas, esta procura, mesmo na dúvida, mesmo na diferença irmana-nos profundamente.
Sintamo-nos convocados a ser testemunhas da misericórdia de Deus. Uns para os outros, sermos transmissores da misericórdia. É verdade que é tão mais fácil transmitirmos um juízo, uma crítica, e isso também há de ter o seu lugar, mas não nos esqueçamos da misericórdia, não nos esqueçamos da misericórdia. Porque também, como diz S. Paulo, a misericórdia triunfa do juízo. E, no fundo, a misericórdia é esta arte de Deus que não desiste, que sabe que é o amor que pode recompor o vaso quebrado, que sabe que é o amor que reconstrói a própria vida a cada momento. E por isso, Ele é o Pai rico em misericórdia.
Ainda recentemente o Papa usava uma imagem muito forte e muito comprometedora para nós cristãos. Ele dizia: “Há dois modos de pensar a Igreja, há dois tipos de evangelização. Um é pensar a Igreja como um lugar onde já estamos salvos e temos de fazer tudo para não nos perdermos. Mas centramo-nos nos que estão aqui, para não nos perdermos. E outro modelo de Igreja, que é o modelo que o Papa diz que Jesus pede que sejamos, é perguntar: e os que não estão aqui? E onde estão os que não estão aqui? E termos a capacidade de ir ao encontro. Ora, nós só podemos ir ao encontro dos outros com a misericórdia. Não é com o bastão da autoridade. É só com a ponte, essa ponte que vai direta ao coração que é a ponte da misericórdia. Por isso, nós somos chamados, neste tempo da Quaresma, a fazer a própria experiência da misericórdia de Deus.
Tantas vezes temos uma imagem de Deus que não é o Deus da misericórdia. No fundo de nós achamos que Deus nos vai tramar, no fundo de nós achamos que Deus não vai esquecer, no fundo de nós achamos que Deus é impiedoso e nos dará aquilo que nós merecemos. Ora, Deus não nos dá o que nós merecemos. A salvação não é mérito nosso, como nos lembra S. Paulo na Carta aos Efésios, nós somos salvos por graça. Deus é gratuidade, Deus é ternura, Deus é amor, e amor incondicional, Deus é misericórdia. Fazermos, cada um de nós, esta experiência da misericórdia de Deus e, depois, sermos capazes de refletir essa misericórdia na nossa vida, nos nossos gestos, na nossa maneira de estar, na nossa relação, arriscando levar a misericórdia, celebrar a misericórdia. Não nos esqueçamos da misericórdia.
Aquela oração tão bonita, tão forte, que nós rezamos hoje no Salmo – “Se eu me esquecer de ti Jerusalém, a minha língua fique presa, a minha mão deixe de funcionar. Que eu não consiga caminhar se não fizer de Jerusalém a maior das minhas alegrias.” – que essa jura seja de facto, pela misericórdia; que essa promessa, que nos empenha profundamente, seja em relação à misericórdia. Que eu não me esqueça de ti, misericórdia.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo IV da Quaresma
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2015/03/01 - A transfiguração é um reforço da confiança (homilia)
Queridos irmãs e irmãos
Deus colocou Abraão à prova.
Abraão é o pai dos crentes, é o primeiro dos crentes, é aquele que, inclusive para as três religiões monoteístas – o Judaísmo, o Islamismo e o Cristianismo – é, verdadeiramente, o primeiro, o pai dos crentes.
Na história exemplar, na história paradigmática, de Abraão nós vemos, à maneira de um espelho, aquilo que é a experiência crente, a experiência de fé que todos somos chamados a viver.
Uma coisa é certa: não há fé sem prova, não há fé sem provação. Não há fé sem aquela situação dilemática em que Abraão se encontra, e em que, num momento ou outro da nossa vida, também nós nos encontraremos. Porque, o que é a fé? A própria palavra “fé”, fides, quer dizer confiança.
Mas que condições nós temos para confiar? Porque a confiança pode ser mais fácil ou mais difícil. Se, por exemplo, a mim me são dadas garantias visíveis, concretas, para confiar, o ato de confiar é um ato relativamente plausível, verosímil – é-me fácil confiar. Pensemos na história de Abraão, este homem já idoso, casado com uma mulher, Sara, que sofria, padecia de esterilidade. Não tinham filhos e é-lhe prometido um filho, e uma descendência e, de facto, ele vê isso acontecer: ele tem um filho. De maneira que, neste momento, para Abraão acreditar é relativamente simples porque ele vê na sua vida, olhando ele consegue interpretar, as marcas positivas de Deus no seu caminho.
Percebe que há uma aliança, há uma correspondência da confiança que ele tem em Deus, Deus também o recompensa. E porventura, nós, interpretando a nossa história, percebemos as marcas de Deus. Se calhar, para cada um de nós não é difícil acreditar, porque faz-nos sentido. Olhando nós vemos, nós encontramos o dedo de Deus, a marca de Deus em tantas coincidências, em tantas convergências, em tantos acontecimentos que de outra maneira não se explicariam na nossa vida, a não ser a partir da misericórdia de Deus, do amor de Deus por nós. Então, nós olhando para a nossa vida, é natural que a nossa resposta seja uma resposta de confiança e de fé.
Mas acreditar não é isso. Acreditar não é acreditar quando nós temos as seguranças. Acreditar é confiar quando nos é tirado o tapete. Isto é, acreditar pelo absurdo, através do absurdo e contra o absurdo. Porque a confiança é cada vez mais exigente, Deus vai pedindo cada vez mais nesta relação de confiança, e nós não confiamos em Deus pelas coisas que Deus nos dá, mas confiamos em Deus pelo próprio Deus e, nesse sentido, tudo o que Ele nos dá é relativo, ainda que Ele não nos desse coisa nenhuma, nós continuaríamos a acreditar Nele.
Para nós crentes, por exemplo, Santa Teresinha do Menino Jesus dizia isso: é muito fácil acreditarmos em Deus porque toda a nossa perspetiva de vida, aquém e post mortem, é uma vida em que recebemos tantos dons de Deus. Se eu penso que vou morrer e depois vou para o céu, de certa forma são tantas as garantias que me seguram neste caminho de fé, que eu vou como que embalado, sem nunca ter sido para mim um drama, sem nunca para mim ter sido um dilema, uma questão de vida ou de morte, eu ter acreditado em Deus.
Às vezes os não-crentes o que criticam aos crentes é a facilidade com que nós acreditamos. Para nós é fácil acreditar, está tudo enquadrado, está tudo sistematizado, de maneira que é quase um automatismo, é como se fosse um tique nós acreditarmos em Deus, é mais uma coisa que está entre todas aquelas que enquadram o nosso modo de viver.
Ora, a fé é também prova, é também provação. E a prova, no fundo, nasce desta questão: eu estou disponível para acreditar em Deus sem garantias? Eu estou disponível para acreditar em Deus indo para lá das garantias e relativizando-as completamente? É o caso que se pôs a Abraão. Abraão tinha aquele filho, Isaac, era o único filho e recebe esta proposta absolutamente absurda.
Deus diz: “Abraão, sacrifica-me o teu único filho.” Naquele momento, quando Abraão sobe o Monte Moriá para imolar o seu próprio filho. Nós podemos sentir o que era o coração de Abraão, o que é a fé de Abraão, quer dizer: ele não percebia nada, ele não compreendia nada, ele sabia que o que estava a fazer não tinha chão debaixo dos pés, mas continuou a subir aquela montanha, seguro unicamente pela Palavra de Deus e pela certeza que, de alguma maneira, uma maneira que ele não sabia, que ele não entendia, que ele não chegava lá, Deus havia de se manifestar de alguma maneira. E, com o coração todo colocado nessa louca esperança, como diz Kierkegaard comentando este texto do livro do Génesis, com o coração todo atirado para essa esperança que nada sustenta, Abraão subiu o Monte Moriá e ouviu as palavras do Anjo do Senhor: “Abraão! Não me sacrifiques o teu filho, não é isso que Eu quero, o que Eu quero é a tua fé, a tua fé, capaz de ir até ao ponto máximo.”
Queridos irmãs e irmãos:
Nós estamos em tempo da Quaresma e o tempo da Quaresma é um tempo para exercitar a fé, é um tempo muito prático, muito concreto. Porque nós dizemos que acreditamos em Deus, porquê? Porque estamos bem, porque nada nos dói, porque não temos grandes dilemas, porque não somos assaltados por grandes dúvidas, porque não somos ameaçados, não somos perseguidos, porque somos poupados, no fundo.
Nós acreditamos em Deus, porque somos poupados? É isso a nossa fé? Ora, como lembra S. Paulo, na Carta aos Romanos: “Deus não poupou o Seu próprio filho.” Isto é, a fé não é um casulo, não é uma capsula, não é eu sentir-me defendido. A fé, muitas vezes, é eu passar para o meio da luta, é eu, pelo contrário, sentir-me exposto, é eu, pelo contrário, sentir que o meu coração está em carne viva, que não tenho respostas, que não consigo, que não chego, mas é aí, no meio desse duelo que tantas vezes travamos connosco mesmos, com o mundo, com a existência, é aí que a fé se reforça, que a fé se constrói. Não como um caminho amparado por muletas, mas como um caminho trilhado na confiança de que Deus Se há de manifestar. Aquilo que Abraão respondeu ao filho Isaac, quando o filho lhe perguntou: “ Pai, nós vamos imolar ao Senhor, fazer um holocausto, mas onde é que está o animal?” Não havia animal, só havia o pai e o filho, “mas onde é que está o animal?” E Abraão responde ao filho: “No cimo do monte, Deus providenciará”.
E no fundo, queridos irmãs e irmãos, a fé é isto, é esta certeza que no cimo do monte, isto é, no fim de um caminho, cujo sentido nós só tateamos, só entrevemos, não conseguimos agarrar, no final desse caminho Deus providenciará, Deus proverá.
Nesse sentido, Abraão, de facto, é um exemplo de fé, de fé para todos nós, e uma fé que aceita a prova, uma fé que aceita a provação.
O caminho que estamos a fazer, um caminho ao encontro da Páscoa do Senhor, desta Páscoa 2015, mas da grande Páscoa do Senhor que é, no fundo, o grande encontro da nossa vida, é um encontro que pede muito de nós. Os discípulos começaram a história da sua relação com Jesus, começaram por muitas razões, começaram porque queriam o Messias, porque queriam um salvador, começaram porque estavam num período das suas vidas em que precisavam de uma grande causa, uma grande palavra, iam com Jesus porque também eles tinham ambições, também eles estavam à espera de uma recompensa, e quando perceberam que, no fundo, a grande lição de Jesus é a lição da Cruz, é esse paradoxo que a Cruz significa, toda a vida encerrada naquilo que uma cruz significa, e o abraçar a Cruz, eles tinham medo, e pensavam: “Mas nós vamos acompanhar este homem, numa empresa, numa aventura que a gente não sabe o fim? Ou percebe que tudo isto vai acabar mal, tudo isto não pode dar certo.”
E pensavam deixar Jesus, e é precisamente neste momento de dúvida, de dificuldade, de escândalo em relação à Cruz, que se dá o momento de transfiguração. E a transfiguração o que é? A transfiguração é um reforço da confiança. Os céus abrem-se e ouve-se a voz de Deus: “Este é o meu Filho muito amado, escutai-O. Isto não é uma palavra louca, é a minha palavra. Ele é o meu Filho, tenham confiança Nele.” E, no fundo, a transfiguração o que é? É uma prova que reforça a nossa confiança em Jesus.
Queridos irmãs e irmãos:
Nestes exercícios quaresmais, é fácil nós cairmos, é fácil nós termos feito os nossos propósitos de Quaresma, de caminho, e perante as dificuldades nós soçobramos, e desistimos, e achamos que não vale a pena, e conformamo-nos, no fundo, a uma vida, que é uma espiritualidade de sofá, uma espiritualidade completamente acomodada, que não nos dá luta.
É fácil nós deixarmos cair os braços, e é fácil nós olharmos para a Cruz como um acontecimento da vida de Jesus, não como um acontecimento da nossa vida, que serve de modelo para a nossa vida. Nesse sentido, esta festa da Transfiguração, que nos celebramos neste segundo domingo da Quaresma, é precisamente para reforçar a nossa confiança e dizer: Tu que calçaste as sandálias de caminhante, tu que tomaste o bordão dos peregrinos, tu que olhaste para a tua vida não com desânimo mas com esperança, tu que te prometes a uma coisa maior do que a vida comezinha e banal e que já te é tão fácil, tu que insistes em renovar, tu que acreditas que é preciso renascer, tu que aceitaste a palavra de conversão na tua vida, tu que ouviste na Quarta Feira de Cinzas “converte-te e acredita no Evangelho”, tu acredita porque é o próprio Deus que diz: “Esta é a voz do meu filho muito amado, escuta-O”.
Nesse sentido, esta festa da Transfiguração é, para toda a Igreja, um reforço de que vale a pena caminhar, de que neste segundo domingo da Quaresma nós estamos fortalecidos, estamos chamados, comprometidos a fazer um caminho, no fundo, de fidelidade a Jesus, que nos abra a uma sincera, a uma autêntica celebração da Páscoa.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo II da Quaresma
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Fevereiro
2015/02/26 - Percurso de Preparação para o Crisma
Mais informações aqui.
2015/02/22 - A Quaresma é um tempo de mobilização interior (homilia)
Queridos irmãs e irmãos
Todos os grandes acontecimentos da nossa vida requerem uma preparação. E quanto mais significativos eles são, mais uma preparação, um caminho eles pedem de nós. É verdade que o inesperado, a surpresa, também têm o seu lugar, mas se queremos tomar uma grande decisão, celebrar uma grande festa, realizar um grande encontro, o nosso coração e a nossa vida têm de preparar-se para isso. Preparação é a palavra deste arranque da Quaresma, porque Quaresma quer dizer isso. Quer dizer preparação para a Páscoa, para a grande passagem, para a grande travessia. Quaresma são estes 40 dias que são memória dos 40 dias que Jesus passou no deserto, segundo a narração evangélica que ouvimos. Mas também dos 40 anos que o Povo de Deus fez de caminho, de preparação, de reencontro consigo mesmo, até entrar na Terra Prometida.
Nós olhamos para a natureza à nossa volta, e sentimos que alguma coisa está a acontecer: as árvores estão mais verdes, sentimos que primeiro surgiram as flores amarelas, agora surgem as flores brancas, depois vão surgir as flores de todas as cores, e daqui a pouco o tempo já está a mudar. Sentimos que há uma temperatura diferente, mesmo se faz frio. Sentimos que a própria natureza se prepara para uma estação diferente. E esta preparação não pode ser apenas exterior a nós, não pode ser apenas um impulso, um anelo, um desejo que a natureza sente. A nossa vida também precisa de primavera, precisamos acordar o fogo debaixo da cinza, precisamos, também, depois do inverno, sentir que a nossa vida acorda para aquilo que é essencial. Porque, como dizia Tchekhov num dos seus contos, “O coração humano é um mar gelado, é um oceano gelado.” E pode acontecer que o inverno se prolongue na nossa vida. Numa indecisão, num deixar andar, numa incapacidade, no fundo, de descobrir e de habitar a própria vida, pode acontecer que a primavera, verdadeiramente, nunca chega, nunca rebenta em nós.
Nessa preparação para o grande acontecimento pascal, para esse levantamento, esse colocar-se de pé, essa espécie de insurreição espiritual que a Páscoa do Senhor prefigura na nossa própria vida, a Páscoa pode-nos encontrar perfeitamente desmobilizados.
Nesse sentido, a Quaresma é um tempo de mobilização interior, de uma forma muito simples porque tem de ser, porque também é de uma forma muito objetiva, de uma forma muito concreta que eu tenho de me por aberto àquilo que Deus pode fazer em mim. E, neste tempo da Quaresma, nós somos chamados, de facto, a calçar as sapatilhas, a nos colocar à estrada, a tomarmos a trouxa do peregrino, a sentirmos que nos temos de dar ao trabalho. A espiritualidade não é uma zona de conforto, é um caminho, é o desafio, é o desafio a uma estrada que nós temos de abraçar.
Os três meios que nos são dados, que nos são apontados, são meios muito simples, mas como dizia o Papa Francisco na sua mensagem, “São meios que formam o nosso coração.” E nós precisamos disso, formar o nosso coração na caridade, no amor, na esperança, na fé.
Por isso, o primeiro meio é a oração. Temos de nos tornar mulheres e homens para quem a oração é relevante, existe, cabe no nosso horário, está no nosso dia a dia uma oração que seja pessoal e também comunitária. Precisamos intensificar a oração. E intensificar a oração quer dizer apenas isto: intensificar a relação com Deus.
Porque a oração é sobretudo isso: relação. Não é cumprir um rito, não é dizer muitas palavras, mas é uma coisa de coração a coração, é sentir que a nossa vida, em cada dia, está diante do olhar de Deus, é sentir que é no diálogo com esse olhar que a nossa vida se constrói, que a nossa vida, dia a dia, responde às suas próprias expectativas.
Nesse sentido, somos chamados a um esforço de rezar mais, até porque a grande transformação da nossa vida é um dom de Deus, não é apenas um exercício de autocorreção, mas é, sobretudo, acolher o dom de Deus que nos transforma. Nós somos transformados pelo Espírito, não apenas pela nossa vontade. Somos transformados pelo Espírito e por isso é que aquilo que a nós nos parece impossível, Deus pode tornar possível em nós.
Aquelas transformações, que nós não vemos como podem acontecer, Deus permite que elas se realizem em nós. Mas precisamos abrir o nosso coração a essa chegada de Deus, a essa vinda de Deus à nossa vida, através da oração. Tal como o ferro só se dobra a altas temperaturas, e fica como que mole, nós também só atingimos graus de amor, de esperança, de fé nas altas temperaturas da oração – que não tem de ser uma oração especial, que eu não sei fazer, não.
Deus está perto da nossa boca e do nosso coração. Cada um de nós há de encontrar a sua própria oração, o seu próprio caminho, o seu modo de rezar, o seu modo de relacionar-se com Deus, de dizer: “Senhor, eu estou aqui. Senhor, vem. Senhor ajuda-me.” E não dizer mais nada. Neste silêncio, neste eu olho para Deus, Deus olha para mim, crio o espaço para que a comunhão, a comunicação, a relação, verdadeiramente aconteçam. Por isso, que este tempo de Quaresma seja um tempo para descobrir o vigor da oração, a novidade da oração nas nossas vidas.
Depois nós temos o caminho do jejum. E o jejum é um caminho de privação. Nós temos, por vezes, um sentido crítico muito apurado em relação a todos, exceto em relação a nós próprios. Somos capazes de ver o argueiro, o pequeno mato, no olho do nosso irmão, mas não vemos a trave que esconde a nossa própria vista. Nesse sentido, o jejum desenvolve o sentido crítico, porque diz assim: “Eu até tenho direito a isto mas não vou fazer. Ah, mas apetece-me.” Mas eu retraio-me perante aquilo que me apetece, para que o meu eu também não se torne tirânico, não seja caprichoso mas possa seguir uma linha verdadeiramente fundamental. E isto em relação à comida, às coisas que nos dão prazer, mas em relação a tantas outras dimensões da nossa vida, que nós podemos encarar assim, desde a nossa forma de comunicar com os outros, a nossa língua, a facilidade com que falamos dos outros, mas também a dispersão do nosso tempo, o consumismo. Que, de facto, o jejum introduza dinâmicas de sobriedade, que é o mais importante na nossa vida, dinâmicas de frugalidade. Aprender e treinar-se a viver do essencial, é isso que o jejum significa. Neste tempo da Quaresma, todas as sextas-feiras nós somos chamados a fazer abstinência, a não comer carne. Isso também tem um sentido espiritual, porque a carne dos outros seres que nós comemos é derramar sangue, é dizer: “A minha vida é mais importante que as outras vidas.” E pronto, essa é uma decisão. Deus colocou-nos no centro da criação, mas é preciso também temperar a nossa voracidade e o modo mecânico como nós achamos que temos direito a tudo. Por isso, o não comer carne às sextas-feiras é fazer-nos pensar, é dizer: “Eu não quero derramar sangue, eu se calhar posso viver uma vida mais simples, uma vida mais pobre. Posso viver uma vida mais pobre e isso em mim abre espaço para uma riqueza espiritual muito maior.” Por isso era tão importante que, de facto, também a nossa dieta expressasse o tempo da Quaresma que estamos a viver.
E por fim a esmola. A esmola é o encontro com o irmão, nós sermos capazes da condivisão, sermos capazes da partilha. Da partilha do nosso tempo, da nossa vida, porque o verdadeiro dar é dar-se, é dar-se, não é apenas dar uma coisa, é dar-se, estar disponível, estar aberto, ir ao encontro dos outros, e sobretudo do outro que me é mais difícil, que me custa mais. Mas ir ao encontro e estabelecer formas de relação, e também efetuar isso numa partilha material, numa partilha de dons, para que não fique só uma coisa abstrata mas que, de facto, toque todas as dimensões da nossa vida.
Queridos irmãos,
Neste tempo da Quaresma era muito importante que cada um de nós tivesse o seu programa de vida, e em cada uma destas dimensões – oração, jejum, esmola – nós tivéssemos um ponto de esforço, um ponto de caminho, para podermos ir trabalhando. Um ponto que seja pequeno, porque não são grandes coisas que nós podemos fazer e, às vezes, o idealizar é uma espécie de fuga da própria realidade. Uma coisa pequena, que esteja ao nosso alcance, que nós sintamos que conseguimos, realmente, fazer. Claro, com esforço, com decisão, com combate, mas que está de facto ao nosso alcance. E que seja pessoal, não vamos fazer planos para os outros fazerem, para todos fazerem na nossa casa, mas vamos, com muita humildade, traçar um plano de vida, nesta Quaresma, que seja de facto só para nós, mesmo que também outros ao nosso lado também estejam a fazer uma coisa semelhante, mas que nos envolva de facto a nós. Porque, com muita facilidade, achamos que é o outro que precisa, e a Quaresma ajuda-nos a perceber que somos nós que precisamos de revitalizar, de revitalizar. Porque, se calhar, nem nos damos conta como o inverno tomou conta do nosso coração e precisamos desta primavera, que a Páscoa de Jesus acorda na nossa vida.
Jesus preparou-se antes da sua missão. Esteve aqueles 40 dias, e esses 40 dias não foram um passeio. Nós não pensamos: “Ah, vou tomar esta regra de vida, fazer isto, tentar fazer isto, aquilo, e aquilo.” e depois vamos mesmo conseguir. Não, nós dizemos aquilo e depois vamos para a luta, caindo, levantando, esmorrando, tentando, não conseguindo, conseguindo. Jesus esteve neste debate com o Demónio, sendo tentado, mas “Os anjos serviam-no”.
Que nós sintamos que Deus vem em socorro da nossa fragilidade, que Deus vem em socorro da nossa vida vulnerável, e que Ele é capaz de dar consistência espiritual à vida que cada um de nós vive. A Palavra do Senhor é uma palavra forte, exigente, comprometedora, mas também é uma palavra libertadora. Também nós precisamos de liberdade, de libertação. Tanta coisa nos escraviza. Estamos prisioneiros, capturados por tanto egoísmo, tanto individualismo, tanta condescendência, tanta facilidade, tanta autocomiseração. Estamos capturados por tanta coisa que temos de sacudir. A Palavra de Jesus é uma palavra que nos liberta, que nos liberta. Quando Ele diz: “Cumpriu-se o tempo,” e “Está próximo o Reino de Deus, arrependei-vos e acreditai no Evangelho” esta é uma palavra para fazer mulheres e homens novos.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo I da Quaresma
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2015/02/18 - O tempo da Quaresma é um tempo prático (homilia)
Queridos irmãos,
Começamos hoje o tempo da Quaresma. São 40 dias que representam uma oportunidade especial, de preparação para a grande celebração, para o grande acontecimento da Páscoa de Jesus, nas nossas vidas. São 40 dias que recordam os 40 anos que o povo de Deus fez na travessia do deserto até entrar na Terra Prometida, e representam também esses 40 dias em que o próprio Jesus se preparou no deserto para a Sua vida pública. Isso quer dizer: os grandes encontros de Deus na nossa vida são encontros preparados. É claro: tantas vezes encontramos Deus de surpresa, e isso é muito bom. Mas encontramos Deus, também, por um ato de preparação, por uma abertura sincera de coração, por uma conversão interior, que nos aproxima de Deus, que nos abre à Sua presença e nos faz viver de uma forma mais sincera, mais objetiva, o “sim” que, como discípulos do Senhor, nós dizemos a Jesus.
Há uma frase de Kafka, que nos impressiona muito e descreve, em grande medida, o que é a nossa cultura contemporânea, o que é a nossa experiência, de mulheres e de homens, que atravessam este tempo: “Existe a meta, mas não há um caminho.” Existe a meta. Nós somos cristãos, batizados há sete ou há setenta anos, sabemos que há uma meta, olhamos para Jesus, ouvimos a Sua Palavra dominicalmente ou diariamente, alimentamo-nos dela e sabemos que sim, há uma meta, um ideal, sabemos aquilo a que somos chamados. E, contudo, como Kafka, também dizemos: “Mas não vemos um caminho. Não há um caminho.” E o que acontece quando há uma meta mas não há um caminho? Acontece um divórcio muito grande, entre o ideal e o real, entre a teoria e a prática, entre o que sabemos ser a vontade de Deus e, depois, a forma quotidiana, concreta, como vivemos ou deixamos de viver segundo essa vontade de Deus.
O tempo da Quaresma é um tempo prático, não é um tempo teórico. A Igreja, nestes 40 dias, entra para retiro, entra para exercícios, entra para manobras, para reconstrução, entra para conversão. E é assim que nos devemos sentir nestes 40 dias. Há uma expressão, um entendimento da vida que hoje está um bocado fora de moda, mas que ouvíamos em parte atravessando as leituras da Palavra de Deus, que hoje lemos, e que é o combate espiritual. Isto é: não há cristão sem combate espiritual. A fé é um dom, claro, mas também é um trabalho, uma fadiga, um compromisso, também é uma conquista, também é uma luta. E a divisão entre o bem e o mal, entre Deus e a sombra, não acontece apenas no mundo, acontece antes de tudo dentro de nós. Por isso mesmo, um cristão vive em luta, vive num desassossego, vive numa inquietação, porque sabe que é dentro de si que a verdade do reino começa por se construir. Não é fora de nós, é dentro de nós. Nesse sentido, toda a Palavra de Jesus é muito clara. Ele dizia tantas vezes: “Não é o que entra de fora do homem que o atinge, mas é do interior do homem que sai todo o mal.” Há no nosso interior tantas contradições, tantos paradoxos, tanta indecisão, tanta sombra que nós temos de olhar. Nós cristãos não temos nenhuma superioridade moral em relação aos outros homens e mulheres, nós somos pecadores. Nós estamos aqui porque somos pecadores chamados à santidade, tocados, feridos pela santidade de Deus, iluminados pela santidade de Deus, mas na vulnerabilidade, na fragilidade das nossas histórias.
Aquilo que diz S. Paulo, na Carta aos Romanos, é tantas vezes o que sentimos: “Quem me livrará deste corpo de morte? Que não faço o bem que quero, mas faço o mal que odeio.” Tantas vezes a nossa vida é assim, não fazemos o bem, que sabemos que é bem, mas fazemos o mal, as coisas mesquinhas, vivemos uma vida banal, recebemos tesouros que não pomos a render, adiamos, continuamente, a nossa vida para depois, achamos que é para o outro, que não é para nós. E este tempo da Quaresma é um tempo que pede de nós um cristianismo sério, uma adesão profunda de coração. Exige de nós este combate, esta luta, porque a conversão não é apenas uma palavra bonita, a conversão é um osso duro de roer. A conversão é uma fadiga, é um trabalho que precisamos de abraçar, sabendo que não há outra maneira de expormos a nossa vida no caminho pascal.
A Igreja, neste tempo santo da Quaresma, pede-nos três caminhos ascéticos, três caminhos de subida.
O primeiro deles é a oração. Um cristão, uma cristã, são mulheres e homens de oração, e nós precisamos de redescobrir a oração na nossa vida. A coisa mais urgente que cada um de nós tem para descobrir é o lugar da oração, o sentido da oração, a experiência de oração nas nossas vidas. Na mensagem do Santo Padre para esta Quaresma, o Papa Francisco diz: “Cristãos, deixem-se servir por Cristo, deixem-se tocar por Cristo.” A oração é isso: expor a minha vida a Cristo, dar tempo a Cristo, dar lugar a Cristo. Oração é estabelecer uma relação, não é apenas tratar Deus como uma ideia, como alguém distante, como um princípio filosófico, que nós até aceitamos. Não, na oração nós tratamos a Deus por “tu” ou por “vós”, mas tratamos a Deus numa segunda pessoa. Porquê? Porque Ele é um interlocutor da nossa vida, mantemos com Ele um diálogo vivo e esse diálogo anima-nos. Nós expomos a nossa vida, rezamo-nos, não apenas rezamos, nós rezamo-nos e Deus acolhe-nos, Deus ouve-nos. Há quanto tempo não falamos com Deus? – é a pergunta. Há quanto tempo não O ouvimos? Há quanto tempo não lhe damos um espaço real, um espaço concreto nas nossas vidas? Este tempo da Quaresma é um desafio muito grande à nossa oração pessoal, à nossa oração familiar, à nossa oração comunitária. Precisamos redescobrir a oração nas nossas vidas, porque às vezes a nossa vida é seca, seca. Cheia de tantas coisas, mas, no fundo, vazia, deste fio condutor que a oração representa nas nossas vidas. Por isso, que a Quaresma seja para nós, um grande laboratório de oração, e que no dia a dia nós privilegiemos também um tempo de oração.
“- Ah, mas eu gostava de rezar melhor.”
“- Começa por rezar, começa por rezar.”
“- O que é a bela oração?”
“- Não. Reza muito, reza muito. Porque no meio das coisas que a gente diz ou não diz, Deus é que escolhe, Deus é que escolhe a parte.”
Lembro-me sempre de um diálogo com um jovem – penso que já o contei aqui. Ele tinha descoberto, tinha-se convertido, tinha exposto o seu coração a Deus. E dizia: “Padre Tolentino, tenho rezado como um porco.” E, para mim, é das mais belas definições de oração, nunca ninguém me disse uma coisa tão bela sobre a oração. Porque o porco não escolhe, reza tudo, come tudo, devora tudo. Se a gente escolhe “vou rezar isto, ou vou rezar aquilo”, verdadeiramente não reza. Nós temos de rezar tudo, o importante e o banal, o próximo e o distante, o que é meu e o que é dos outros, o que está perto e o que está longe, temos de rezar tudo. Isto é: A capacidade de fazer de tudo oração, isso é que nos torna uns verdadeiros orantes. Há um poeta contemporâneo, Armando de Silva de Carvalho, que tem um livro chamado: O Cão de Deus. A oração dele é um ganir. Pode acontecer que a nossa oração não seja bem oração. A gente não tem palavras, só tem dores, só tem coisas que queria dizer e não consegue. Então, é a oração do cão, é a oração do ganir. Mas seja, é essa. Que o tempo de Quaresma seja, de facto, um tempo de exposição da nossa vida a Deus.
A outra via é o jejum. E o jejum é um meio muito importante no meio espiritual, que também é usado por outras tradições religiosas. Mas, no fundo, o jejum é a renúncia de uma coisa a que eu tenho direito e que eu posso. Mas renuncio a isso para relativizar o meu próprio eu. Nós temos um sentido crítico apurado em relação a tudo e a todos, exceto a nós próprios. Sem darmos conta, podemos até ser muito adultos, mas vivemos como miúdos caprichosos e mimados e, pior, conseguimos ter tudo o que queremos ou desejamos ou nos dá na gana. E, de repente, somos pequenos tiranos. O nosso eu é tirânico, tirânico em relação aos outros, tirânico em relação aos que vivem mais perto de nós, aos que vivem longe. Só nós existimos, só nós contamos, só nós sabemos, só nós podemos, só nós temos o direito. O jejum é o exercício de morrer para si próprio, dizer: “É meu” mas abdicar, isto de uma forma concreta na alimentação, sermos capazes de transformar a nossa dieta alimentar tornando-a muito mais sóbria do que é. Viver estes 40 dias com sobriedade, sobriedade. Claro que temos direito a isto e aquilo, mas dizemos que não. E, nas sextas-feiras desta Quaresma, nós não apenas vamos intensificar a sobriedade, porque é o dia desta prática ascética. É toda a Quaresma, mas as sextas-feiras são um dia especial. Nesse dia não vamos comer carne, não vamos derramar sangue. É um sinal, é um símbolo, mas a verdade é que nós alimentamo-nos dos outros e matar mais isto ou matar mais aquilo, para nós é completamente indiferente. Ora, vamos não derramar sangue, não dizer “a minha vida é mais importante que a tua”. Não. Vamos calar, calar a vida, morrer um pouco para nós próprios. E isso, claro que é um gesto simbólico mas é um gesto com muito significado. Não vamos dizer “eu quero comer carne, não posso pagar uma taxa?” “- Não, não vais pagar taxa nenhuma. Não vais comer carne.”
Fazer esse esforço para nos unir a uma tradição cristã, que tem séculos e séculos é, no fundo, perceber também o que é a carne, o que é o sangue, perceber o que é a vida, perceber que todas as vidas têm valor – mesmo a vida da vaca ou do frango que compramos no supermercado. Essa vida que alimenta a minha vida tem um valor e isso para nós é uma espécie de pedagogia: se eu dou atenção a esta pequena coisa ou vou dar maior valor às vidas daqueles que me rodeiam e não vou ser tão intolerante, não vou ser tão cheio de mim, ocupando o espaço que devo dar aos outros. Mas o jejum não é apenas esta contenção, esta moderação alimentar. O jejum é tudo aquilo que serve para relativizar o meu eu.
Muitas vezes, o jejum que nós precisamos é da língua. A facilidade com que falamos, com que julgamos, com que dizemos, com que matamos os outros com a nossa língua – no fundo, ser um tempo de silêncio, um tempo de contenção, um tempo para não falar, um tempo para não dizer. E como isso pode ser purificador da nossa vida, e como nós precisamos disso! Mas o jejum pode ser também de um pensamento, de um hábito, de um vício, de um costume que tenho, de uma coisa que me dá muito prazer fazer e que não tem mal nenhum, mas, precisamente neste tempo, vou abdicar disso para ser mais livre. O jejum custa, não há jejum que não custe, mas o jejum é uma máquina de criar liberdade. Porque, sem darmos conta, andamos cheios de chocalhos e de amarras, de algemas, disto e daquilo, prisioneiros, dependentes, ancorados, a achar que precisamos de uma lista enorme de coisas para ser feliz ou para estar em nós próprios. E, de repente, o jejum é cortar um bocadinho esses pesos e isso dá-nos uma liberdade muito grande, liberdade para ser, liberdade para viver, liberdade para acreditar.
Tudo isto culmina na terceira via, que a Igreja nos aponta nesta Quaresma, que é a via da esmola. Nós somos chamados, à imagem de Jesus na Eucaristia, a fazer da nossa vida um dom. A nossa vida só se realiza quando se torna dom, quando se torna Eucaristia. Isto é: quando se torna serviço, quando se dá aos outros. Então a esmola, antes de tudo, é um dar-se. Dar-se mais aos outros, dar mais tempo, ir falar a um amigo que não vejo há muito tempo, ir visitar uma pessoa a um lar, um parente a um lar, ir visitar um doente. Gastar do tempo da minha vida para os outros, dar-me, dar-me, repartir-me aos outros. E, depois, também dar das coisas que possuo, repartir o que ganho, ter isso em atenção, dar uma esmola, pensar numa instituição, juntar-me à renúncia diocesana, que a Igreja toda neste tempo faz em vista de uma obra comum. É muito importante que nos privemos de pequenas coisas para podermos ajudar, para podermos perceber o que significa a caridade. A caridade – que Deus tem tanta para connosco e, por vezes, nós temos tão pouca para com o nosso próximo. No fundo, é no dom, é na esmola, que pode ser uma coisa um bocadinho difícil de entender culturalmente, mas a esmola tem um sentido espiritual muito forte. Quer dizer: Não é dar uma coisa do alto do meu porta-moedas ou da minha conta bancária, mas é partilhar daquilo que eu vivo, partilhar do meu trabalho, partilhar do que eu tenho, e ter esse sentido muito profundo da comunhão. Porque os bens escravizam-nos e, se a gente fecha a nossa mão sobre o que julga possuir, somos possuídos por isso. O dinheiro é um brinquedo muito complicado num caminho espiritual, porque é uma barreira dificílima de vencer. E nós, cristãos, temos de ganhar uma liberdade muito grande face aos bens, porque a verdade é que os bens têm de ser simplesmente instrumentais, têm de servir – e isso de uma forma clara.
Queridos irmãs e irmãos, este tempo da Quaresma é, assim, um tempo que nos coloca perante o Deus que vê no segredo. Não podemos viver uma vida só de aparente virtude, de quem olha para nós e diz “sim, senhor, fulana de tal, muito boa pessoa; sim senhor, fulano de tal uma pessoa muito respeitável” – mas, depois, dentro de nós é uma confusão, é um embaraço, um desnorte.
A Quaresma é uma bússola para afinar a nossa vida pela vida de Jesus, por aquilo que recebemos Dele. Vamos pedir ao Senhor que nos dê este espírito de conversão. É importante que cada um de nós faça o seu programa de Quaresma, que defina: “Nesta Quaresma decidi fazer isto, isto e aquilo.” Não tem de ser muitas coisas. Pode ser uma, duas, três, mais não, senão depois ficamos irreconhecíveis e isso também Deus não quer. Mas fazer aquilo que é pequeno, coisas pequenas, porque as coisas grandes depois não as conseguimos fazer. Fazer coisas pequenas e fazer coisas pessoais. Isto é: A Quaresma não é para os outros. Eu não posso decretar: “A partir de agora só se come batatas lá em casa.” E os outros, que não gostam de batatas? Não, é para mim, não é para o outro. É para mim, vou dizer o que é para mim e deixar a liberdade para o outro ser. E serem coisas possíveis, porque às vezes entusiasmamo-nos e queremos coisas impossíveis. Não, há uma arte dos pequenos passos, das pequenas coisas, a arte dos possíveis – e isso é também fundamental numa vida espiritual. Vamos por isso, com este espírito, pedir ao Senhor que desça sobre nós, que seja o Seu Espírito a transformar-nos, a abrir o nosso coração, e a tornar-nos discípulos autênticos do Senhor.
Pe. José Tolentino Mendonça, Quarta-feira de Cinzas
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2015/02/12 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2015/02/10 - Encontros Interreligiosos - Ao encontro do budismo
Ao longo de 2015, em linha com a dinâmica sinodal que a nossa Diocese de Lisboa está a viver, a Comunidade da Capela do Rato vai realizar um conjunto de encontros com outras tradições religiosas. Convivem juntos no mesmo perímetro urbano, cristãos, judeus, muçulmanos, budistas e outros e desconhecemo-nos mutuamente. Os encontros interreligiosos são uma proposta para aprofundarmos uma pacífica convivência com base no conhecimento, no respeito e na amizade. O primeiro encontro será no dia 10 de Fevereiro, na Capela do Rato. E vamos ao encontro do budismo.
2015/02/08 - O Senhor liga este quase nada que cada um de nós é às estrelas (homilia)
Queridos irmãos
Hoje, a primeira leitura é retirada do livro de Job. Sabemos que o livro de Job representa um momento muito importante na revelação bíblica, porque Job representa o homem, a experiência humana, a vida, também como lugar de dúvida, também como lugar de pergunta (e ardente pergunta), também como lugar de interrogação. Job é o homem inconsolável, é o homem que diz: “As respostas religiosas do meu tempo não me servem. Aquilo que a teologia diz não é suficiente. Eu quero falar face a face com Deus, eu quero colocar perguntas a Deus.” O que é fascinante é que Deus aceita este diálogo com Job, este diálogo sem rede, e Job fala com Deus. O livro de Job é quase um livro ateu, quase um livro agnóstico, porque é o homem em carne viva, no seu sofrimento, na sua angústia, que procura um sentido, que procura um significado.
No livro de Job todos nós estamos representados, crentes e não-crentes. Todos nós fazemos nossa a dor, a pergunta, o espinho na carne que Job tem. Todos nós sentimos a dificuldade das palavras de ocasião, circunstanciais, das receitas. E há um momento em que sentimos que nada nos consola se não colocarmos a nossa nudez, a nossa verdade diante de Deus, e é isso que Job faz, e é isso que Deus aceita. Repito, que o protesto de Job seja para nós também uma catequese, porque tantas vezes encontramos mulheres e homens ao nosso lado que vivem a sua existência como uma procura, como uma pergunta. Nós temos a fé, mas a fé não é um sofá, a fé não é um calar todas as questões. Nós sentimo-nos irmãos e irmãs de todas as mulheres e de todos os homens que, no fundo, colocam a grande questão do sentido. A dor maior, o sofrimento maior que cada um de nós pode passar não são as dores físicas; essas doem-nos muito, massacram-nos, torturam-nos, mas esse não é o sofrimento maior. O sofrimento maior é o de não encontrar sentido para a vida, não encontrar significado naquilo que fazemos, nos nossos ritmos; não encontrar um sentido para nos levantarmos da cama, para fazer, para amar, para sonhar. Sentir que, no fundo, a vida é uma paixão inútil – esse é o grande sofrimento humano. E é com esse sofrimento que Jesus vem dialogar e é com esse sofrimento que Jesus nos ensina a dialogar.
Quando preparava as leituras, fiquei muito tocado pelo Salmo 146, e sobretudo por esta estrofe, a estrofe segunda, que diz isto: “ O Senhor sarou os corações dilacerados e ligou as suas feridas.
Fixou o número das estrelas e deu a cada uma o seu nome.” Sensibilizou-me muito esta coisa, um bocado espantosa, que o poeta do salmo faz aqui, que é: está a falar de feridas e de repente começa a falar de estrelas. E diz: O Senhor cura o nosso coração dilacerado, liga, ata as nossas feridas, mas também é o Senhor que cuida das estrelas. Então a prece, a oração, liga a dor, a nossa pequena dor, a dor vivida nesta escala íntima, só nossa, que nos parece (quando olhamos para o universo sentimo-nos como um grãozinho de poeira) como um nada, um quase nada. O Senhor liga este quase nada que cada um de nós é às estrelas, à imensidão, ao infinito, ao incontável, àquilo que nos deslumbra, àquilo que está tão alto desta terra onde às vezes nos sentimos prostrados, o Senhor faz essa ligação. E como é que Ele faz essa ligação? Tocando-nos, chamando-nos pelo nome, colocando-nos em pé. Quando o Senhor entra na casa da sogra de Simão Pedro e ouve dizer que ela está doente Ele vai, dá-lhe a mão e levanta-a, e ela fica restabelecida. E sentado na porta da casa, com a cidade toda reunida à sua beira, trazendo todos os doentes, o Senhor toca cada um deles, toca as vidas de cada um deles. E como é que Ele os cura? Cura-os também ligando a sua vida a uma dimensão maior, dizendo: “A vida não é só isto, a vida não é só o que tu vives, a vida não é só a nossa dor, a vida é um para lá, um para além, a vida é um passar, a vida é um atirar-se mais para longe, a vida é um encontrar sentido nas estrelas.”
Nós não somos a solução para a nossa vida, não somos a resposta para a nossa vida. Se calhar nós seremos sempre como Job, não encontraremos resposta. Mas este gesto de Jesus, de nos levantar, de nos atirar o olhar mais para longe, de ligar o presente ao futuro, de ligar o humano ao divino, esta passagem, que é uma passagem pascal, é verdadeiramente uma passagem que verdadeiramente nos salva. Sintamo-nos, por isso, queridos irmãs e irmãos, tocados por Jesus, sintamos que Ele toca a nossa mão e que Ele nos levanta. Sintamos que isto em nós que não tem resposta, isto que em nós é noite e sede, isto que em nós é procura e fadiga, isto que em nós é um exercício, às vezes exasperado, de espera, isto em nós que é uma capacidade de rezar ou uma incapacidade de rezar – o Senhor toca, toca nisso.
O Senhor é capaz de fazer disso uma história de esperança, uma história de sentido, uma história de vida. Jesus, quando a cidade está toda reunida à sua volta, não fica ali, os discípulos de manhã procuram e não O encontram, e Jesus diz: “Não podemos ficar só num lugar, temos de ir mais longe, temos de atirar o nosso olhar mais para longe e, no fundo, há um ensinamento tão forte nestas palavras de Jesus. Nós temos de sair da nossa zona de conforto também, e temos de experimentar criar vida, criar relação, criar encontro, noutras zonas, noutros territórios, fazendo outras experiências. Às vezes fazemos outras coisas demasiado cedo e sentimos que tudo acabou, que tudo está feito, que agora é só aqui, e o Senhor pede-nos sempre um mais além, pede-nos sempre para sair de nós.
Hoje, por decisão do Papa Francisco, é a primeira jornada de oração e de consciência, a primeira jornada mundial contra o tráfico humano, as várias formas de tráfico humano. Nós sabemos também em Portugal que um grande número de pessoas está sem os seus direitos, sem as suas condições: são vendidas no seu trabalho, são vendidas no seu corpo através da prostituição; sabemos que há redes terríveis ao nosso lado, que nós só não vemos porque não queremos, que nós não vemos só porque não queremos. São redes de estupro, são redes de atropelamento da dignidade, da dignidade humana. Ganhar consciência, também da dificuldade, da pobreza, da miséria, do sofrimento dos outros. E isso é também uma missão que o Senhor Jesus nos dá.
E
u estive em Roma esta semana – e hei de falar do encontro do Pontifício Conselho para a Cultura que foi sobre a mulher, as culturas femininas e também sobre o lugar da mulher na Igreja. Nesse encontro, uma das oradoras, que deu um belíssimo testemunho, foi uma freira. Esta mulher, assim uma mulher forte, já quase com os seus oitenta anos, mas com uma capacidade profética imensa, em Itália é responsável pelas Suore di Strada, que são freiras da estrada: são freiras, são mulheres que se dedicam a ajudar outras mulheres, sobretudo as que estão nas redes de prostituição. Os números que ela refere são números impressionantes. Em Itália, por exemplo, ela diz que há dez milhões de prestações sexuais por mês. E a pergunta que ela faz é: “O que é que havemos de pensar dos nossos pais, dos nossos maridos, dos nossos filhos, dos nossos amigos, dos nossos companheiros de trabalho e de nós próprios se alimentamos este comércio, esta rede que acaba por ser um atentado tão devastador à vida humana?” Ela deu um testemunho fortíssimo e a dada altura ela começou a dizer: “E há paróquias, há comunidades cristãs que se reúnem e que estão mesmo ao lado de zonas das cidades europeias onde essas coisas acontecem e não fazem nada, não olham para essas realidades.” E eu enfiei o barrete e disse: “Ai Jesus! Esta mulher vem para me destruir!” E de facto, a gente está aqui neste coração da cidade e o que é que a gente faz para o que está para lá das paredes?
Uma iniciativa desta jornada de oração contra o tráfico humano é acender uma luz: há um mapa do mundo e as pessoas de cada país inscrevem-se e acendem uma luz, e o mapa do país, que está branco, torna-se vermelho, como se houvesse um incêndio de esperança naquele país. No fim da reunião eu fui falar com ela, senti-me muito interpelado, e disse: “Olhe, o que é que eu posso fazer?” E ela disse: “Podes começar por fazer uma coisa, podes já acender uma luz no teu país e podes fazer com que esta semana o teu país fique completamente aceso.” Isto é a consciência.
No site da capela (www.capeladorato.org), está uma mensagem e nós podemos entrar no site desta jornada que é slavesnomore.it , inscrevermo-nos, e acender em Portugal mais uma luz. Neste momento há 47 luzes, eu gostava de ver se no próximo domingo éramos pelo menos duzentas, duzentas luzes, e cada luz quer dizer: alguém que pensou um minuto naquilo, alguém que pensou um minuto nesta situação.
Vamos acender esta luz e deixar que o Senhor nos inquiete. O Senhor tem de nos inquietar, tem de nos colocar o coração a arder, a querer mais, a querer mais e em todas as idades – temos aqui pessoas seniores, temos jovens,… Jesus tem de nos colocar o coração a arder e dizer: “O que é que eu posso fazer? O que é que daqui vai sair?”
Que o Espírito Santo fecunde, fecunde o nosso coração e nos dê esta capacidade de atenção, de atenção ao outro, de atenção à vida. Porque, no fundo, a questão do sentido, isto de ligar a ferida, a nossa ferida, às estrelas, também passa pela nossa capacidade de doação, pela nossa capacidade de entrega, e sentirmos que a nossa vida encontra o seu sentido também quando ela se apaixona, se enamora por uma causa, por uma razão que é maior do que nós próprios, maior do que o nosso pequeno conforto, do que a nossa tarefa, do que o nosso quintal. Quando nos apaixonamos por uma coisa maior, então a vida também ganha outra respiração, ganha outra luz. Acendamos uma luz, esta luz que o Espírito traz aos nossos corações.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo V do Tempo Comum
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Janeiro
2015/01/25 - "O tempo foi abreviado" (homilia)
Queridos irmãs e irmãos
Hoje, na leitura do Evangelho de S. Marcos, nós temos a primeira palavra de Jesus, a palavra inaugural. É uma palavra que dá que pensar, Jesus diz: “Cumpriu-se o tempo.” O tempo chegou à sua plenitude, ao seu cumprimento : “Está próximo o reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho.”
É uma palavra que dá que pensar porque Jesus começa com uma reflexão sobre o tempo, com uma declaração sobre isto no qual a nossa vida está, isto que é a nossa vida, porque nós somos feitos de tempo, e temos, para viver, uma determinada conceção, uma determinada ideia de tempo.
A ideia mais corrente que temos de tempo é aquela que o relógio marca, um segundo a seguir ao outro, um minuto, uma hora a seguir à outra, um dia a seguir ao outro, anos, séculos. É essa a ideia do tempo. Os gregos representavam-no como um deus que come os seus próprios filhos, Chronos.
É em parte essa a ideia que temos do tempo: ninguém consegue parar o tempo, o tempo está sempre a correr, o tempo é umas coisas a seguir às outras. De certa forma, esta conceção cronológica do tempo acaba por marcar muito a visão do que é a nossa vida e do que deve ser, de como construímos a nossa felicidade, ou como tomamos consciência da nossa fragilidade, da nossa vulnerabilidade.
Tempus fugit, diziam os romanos. A experiência que fazemos como mulheres e homens é que não possuímos o tempo, não conseguimos agarrar o tempo, ele foge de nós. E então, a nossa vida é uma corrida, é uma aceleração, é um galope, queremos apanhar alguma coisa mas parece que a estrada, debaixo dos nossos pés, corre mais do que a nossa corrida. Por isso, muitas vezes, a sensação profunda que nos vem de uma vida vivida é de um vazio, uma coisa que não se consegue agarrar, uma coisa que não se consegue realizar, uma coisa que não se consegue tocar na sua plenitude.
E, contudo, Jesus diz: “Cumpriu-se o tempo.” O tempo chegou à sua plenitude. Sem dúvida que Jesus fala do tempo com outro olhar. Com outro olhar porque, para Jesus, o tempo claramente não é este tempo que corre, este tempo que passa e que os relógios medem. O tempo, na conceção de Jesus, é o tempo oportunidade, o tempo ocasião para ser. Este momento nós temos de olhá-lo não apenas como uma porção de vida que passa, que foge, mas temos de olhá-lo como uma oportunidade. Ela está aqui, diante dos nossos olhos. E nós temos de agarrar a oportunidade, temos de agarrar o momento, temos de colher este instante como lugar de recriação da nossa própria vida, como lugar de encontro profundo connosco mesmos, como lugar onde a plenitude não é uma utopia inalcançável, mas onde a plenitude é uma experiência, é um sabor, é uma promessa. Nesse sentido, esta primeira palavra de Jesus constitui, para nós, um ponto muito importante de conversão.
Porque é que nós somos chamados a mudar o nosso olhar sobre o tempo? Nós somos chamados a fazê-lo porque veio o Messias. Com Jesus começa um tempo novo, começa o tempo messiânico.
Hoje, 25 de janeiro, nós celebramos da conversão de S. Paulo. Não celebramos liturgicamente, porque estamos a celebrar o terceiro domingo comum. E Paulo foi, talvez, aquele que primeiro compreendeu todas as consequências concretas, históricas da pessoa de Jesus, do acontecimento de Jesus. Paulo percebeu isto à luz da sua mentalidade judaica e da sua capacidade de cruzar mundos, o mundo helénico, o mundo romano. Paulo percebeu isto: que, chegado o Messias, a lei antiga, o tempo antigo, cessou. Porque a lei existe para regular o tempo e a vida enquanto não chega a plenitude. Mas se a plenitude, que é a pessoa do Messias, chega, então a Lei já não é a nossa forma de viver. A Lei já não é aquilo que nos marca. Já não vivemos segundo a Lei, vivemos segundo um acontecimento que é o da pessoa de Jesus, que nos inspira o novo estilo, uma nova maneira de ser, uma nova visão das coisas, um novo entendimento, uma nova compreensão, uma nova compreensão do mundo.
Nesse sentido, é muito importante a pequena passagem do capítulo sétimo da Primeira Carta aos Coríntios, que hoje lemos. E que a tradução passa um bocadinho por cima das brasas, porque ouvimos ler: “O tempo é breve.” Verdadeiramente, o que está lá escrito é: “O tempo foi abreviado.” O tempo foi tornado mais pequeno, mais breve. Quer dizer, houve uma intervenção no tempo. Por Jesus ter vindo, o tempo passou a ser outra coisa, passou a ser visto de outra maneira, e passou a ser breve. Breve, no sentido de sentirmos que é agora, é este o momento, é esta a oportunidade, é este o lugar. Por isso, S. Paulo retira consequências dizendo: “Aqueles que têm, vivam como se não tivessem, os que choram vivam como se não chorassem, os que andam alegres como se não andassem, os que compram como se não possuíssem.” O que quer isto dizer? Que, agora, a nossa vida já não é determinada pela experiência do tempo, já não é simplesmente uma consequência do tempo; mas a nossa vida é chamada a desprender-se das malhas do tempo, das malhas da Lei e a assumir plenamente esta novidade, esta possibilidade que Jesus traz à vida de cada um de nós. Por isso eu sou chamado a viver neste mundo, no esquema deste mundo, na forma deste mundo, sabendo que ele já foi relativizado. E foi relativizado por quem? Foi relativizado pela pessoa de Jesus, pela figura de Jesus.
Queridos irmãs e irmãos
Isto pode parecer um bocadinho abstrato, um bocadinho conceptual, mas toca o âmago da realidade de cada um de nós, que andamos tantas vezes escravizados pelo tempo, reféns, capturados na nossa esperança por um tempo que nunca é o nosso, que nunca nos pertence, que nos foge completamente. E Jesus vem dizer: “Não. Não é o tempo que te domina. Tens que te libertar do tempo. Tens de viver neste tempo como se não dependesses dele.” Porquê? Porque a plenitude já chegou, porque a promessa já se realizou. Porque Jesus liberta-nos da escravidão, da fatalidade da Lei e dá-nos a possibilidade de viver segundo a liberdade, segundo a promessa, segundo essa plenitude de que Ele se torna o grande transmissor.
Sintamos esta palavra de Jesus como um verdadeiro chamamento. A vida não é uma coisa adiada. O tempo leva-nos a adiar talvez as coisas mais importantes da nossa vida. Nós temos tempo para tudo mas não temos tempo para o mais importante, não temos tempo para o amor, tempo para ser feliz, tempo para a gratuidade, tempo para o encontro.
Temos tempo para tudo mas não temos o tempo, o tempo que era capaz de nos dar o sabor da salvação. Ora, é preciso inverter esse olhar, é preciso anunciar que nós não vivemos escravizados neste tempo e na lei do tempo, mas que somos chamados a olhar cada instante como um lugar, como uma oportunidade, como ocasião por onde esta voz de Jesus passa, nos chama e nos congrega para vivermos uma história.
É muito belo este arranque do Evangelho de S. Marcos porque Jesus passa pela vida daqueles homens e mulheres concretas e diz-lhe: “Olha, vem e segue-Me, vem e segue-Me, vem e segue-Me.” O que é que está a acontecer? Está a acontecer a relação. No fundo, o que vai ser o caminho de cada um dos discípulos? Colocar o que eles são numa relação viva, criativa, confiada com a pessoa de Jesus. É isso que também, no início de um ano, nós somos chamados a fazer. O tempo não é só o tempo, o tempo não é o relógio que o marca, tem de ser marcado pela fé. Pela fé na pessoa de Jesus e na capacidade que Ele tem de transformar a minha vida. Se assim for, nós vamos olhar para este momento como uma oportunidade, vamos viver o tempo como um lugar não condenado, o tempo não como lugar onde experimentamos o vazio, a condenação e o juízo, mas o tempo pode ser reversível – como Nínive na pregação de Jonas: Deus volta atrás, há uma reversibilidade na própria palavra.
Quando olhamos para o tempo de outra forma, percebemos que ele não é um funil onde estamos cada vez mais afunilados e vamos sair na nossa morte, somos expelidos do tempo. Mas, pelo contrário, que o tempo, este tempo da minha vida, este tempo que eu vivo, este tempo que é o meu, este tempo com as suas fragilidades, com as suas esperanças, com os seus impasses, este é um tempo aberto. É um tempo aberto porque é um tempo onde Deus coloca o seu perdão, a esperança que Ele tem na mulher, no homem que nós somos.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III do Tempo Comum
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2015/01/22 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2015/01/11 - "Tu és o meu filho muito amado" (homilia)
Queridos irmãs e irmãos
Ontem estava num jantar, numa mesa de amigos e, a dada altura, o tema era a parábola dos talentos, que para alguns que estavam ali constituía uma das palavras de Jesus mais enigmáticas: como é que se vai castigar aquele homem que, tendo recebido menos talentos que os outros, foi enterrar o seu talento na terra para assim ter garantido alguma coisa para dar ao senhor quando ele regressasse? E ele acabou por ser castigado, e Deus, o senhor que representa Deus na parábola, retirou o talento dele e foi dar àquele que tinha mais talentos. É uma parábola estranhíssima.
Há muitas palavras de Jesus assim, que nós não conseguimos resolver no nosso coração e que constituem uma pergunta, um espinho na carne, uma interrogação, uma dificuldade, um obstáculo. E caminhamos com essa palavra vida fora, todos nós. Jesus é uma pergunta para todos. E é importante fazer um caminho também com a dificuldade, porque Jesus não é fácil. Nós não domesticamos o Evangelho, esta é uma palavra que nos sacode, que nos desafia. Temos uma grande adesão de coração mas continuamos a colocar perguntas, porque nós, mulheres e homens, somos assim. A fé não é contra a nossa razão, mas a fé é um caminho que fazemos às apalpadelas, mas também com silogismos, mas também com raciocínios, mas também com pergunta e resposta.
No fundo, qual é o problema do homem que recebeu só um talento? A parábola é muito realista, porque conta a diversidade do mundo: não há duas coisas iguais, não há duas pessoas iguais, não há dois talentos iguais, cada um recebeu porções diferentes. Basta olharmos para nós próprios e uns para os outros e perceber que é assim a vida. A questão é: o que é que cada um de nós faz com aquilo que recebeu? Quais são as condições que nos levam a fazer render, a apostar, a arriscar, ou a prender, a esconder, a ficar travado, a ficar enrolado no nosso medo, na nossa insegurança?
Quando lemos a parábola dos talentos, ouvimos o raciocínio, a voz interior, do homem que vai esconder o seu talento na terra. E ele diz: “Eu tenho medo do meu senhor, porque ele quer, ele tem expetativa de coisas que não faz e quer retirar onde não semeou. Sei que ele é um homem severo, por isso vou esconder o que ele me deu para, quando ele me pedir, eu lhe entregar intacto.”
Qual é o problema deste homem? Porque é que ele não aposta? Porque é que ele não corre o risco? Porque ele tem medo, e porque ele sabe que o seu senhor é um homem severo, que ele não entende, na sua lógica, no seu modo de atuar. Esta compreensão que ele tem do senhor trava, bloqueia, amarra a sua vida. Podendo fazer do seu talento outros talentos, outras coisas, ele acaba por enterrar, antecipadamente, o seu talento, atirar a toalha ao chão, dizer “não jogo, não quero, prefiro não fazer, prefiro não ser”.
O que é que acontece no Batismo de Jesus? De certa forma, é a antiatitude deste homem da parábola dos talentos. É interessante Jesus ser batizado por João Batista. Jesus desce lá de Nazaré, que fica um pouco mais a norte, e vem para esta zona do deserto, perto de Jerusalém, mas onde se constrói, de certa forma, uma religião alternativa, reformista em relação a Jerusalém. João Batista é um pregador. Está no deserto, é alguém que quer renovar Israel, reconduzindo a um espírito original. O que é interessante é que Jesus vem para, de certa forma, se ligar a este movimento.
O que é que nós percebemos deste jovem chamado Jesus? Que Ele tem inquietação no seu coração, que Ele tem desejo de mais, que Ele quer outra coisa da vida, que Ele não se satisfaz. Nesta ligação de Jesus ao reformismo de João Batista nós percebemos um coração tão parecido com o nosso, na sua intranquilidade, no seu “ainda não basta, não é só isto, tem de haver outra coisa”. As perguntas que habitam o nosso coração são as perguntas que habitam o coração de Jesus.
Ele vem, como vêm tantos que o Evangelho descreve, para ouvir a pregação de João Batista e fazer-se batizar por ele. Mas quando Ele sobe da água, os céus abrem-se e Ele escuta uma voz. Quer dizer, Jesus tem a compreensão de si mesmo, do que Ele é. Porque, nas grandes batalhas da nossa vida, as verdadeiras são aquelas que nos dão a compreensão do que nós somos. Não é uma ideologia, não é lutar por uma coisa fora de nós, mas é uma coisa total, integrada. O que é que eu sou no meio disto tudo? O que faço aqui? Porque é que eu estou aqui? Para onde é que eu caminho? O que é que me move verdadeiramente?
Aquele momento da juventude de Jesus é um momento chave em que Ele tem a compreensão do seu mundo interior, do seu mundo interno, daquilo que Ele transporta. O Evangelho de Marcos mostra-nos esse mundo e, com surpresa, nós ouvimos a voz do Pai dentro do coração de Jesus. E a voz do Pai diz: “Tu és o meu filho muito amado, em ti Eu coloco todo o meu amor.”
Queridos irmãs e irmãos:
A grande diferença da vida é que voz é que nós ouvimos no nosso coração. Que voz é que nós ouvimos? Porque podemos viver a ouvir a voz do Senhor severo, daquele que tem expetativas desmesuradas em relação a nós, aquele cujo fantasma nos esmaga, nos trava, nos bloqueia. E a única coisa que fazemos é dizer: “Bem, deixa-me lá esconder isto para dar o que Ele me deu e está tudo resolvido e não me meto em problemas.” E há outra coisa completamente diferente que é cada um de nós sentir, previamente, que isto não tem a ver com méritos, com virtudes, com recompensas. Tem cada um de nós de ouvir previamente no seu coração a voz de Deus que diz: “Tu és a minha filha muito amada, tu és o meu filho muito amado, em ti coloco o meu amor.”
Então, o nosso ponto de partida não é o medo, mas é a confiança. O nosso ponto de partida não é: “O que é que eu posso fazer para que Ele não me caia em cima, o que é que eu posso fazer para que Ele não me julgue, o que é que eu posso fazer para que Ele não me destrua”. Não é a imagem de um Deus insaciável, que encontra em nós sempre coisas erradas – porque Deus olha para nós e pode encontrar sempre coisas erradas. Esta imagem é uma imagem que nos destrói completamente, é uma imagem de Deus que nos trava, que nos prende, nos captura.
Há uma imagem de Deus amor, que está dentro de nós e nos diz: “Tu és o meu filho, tu és a minha filha. Amados.” E, se ouvirmos esta voz no nosso coração, a nossa vida será outra, será uma vida semelhante à vida de Jesus.
Queridos irmãs e irmãos:
Hoje celebramos o Batismo de Jesus e, no Batismo de Jesus, celebramos o nosso próprio batismo. E o que é o Batismo de Jesus? É a compreensão da vida, do ponto de partida da vida. Qual é o teu ponto de partida? O nosso ponto de partida tem de ser este: a compreensão do amor de Deus. Deus que me ama como eu sou, Deus que se maravilha comigo, Deus que se encanta com a mulher e com o homem que eu sou, tal como sou. Deus que se encanta, Deus que não quer que Eu seja o que eu não posso ser, o que eu nunca vou ser, o que eu devia ser e não sou. Deus que me ama como eu sou e que deposita em mim, de forma incondicional, o seu amor. A grande questão da nossa vida não é o que é que eu faço para saciar um Deus insaciável, mas como é que eu respondo a esta dádiva incondicional de amor que Deus já me deu, que Deus já depositou no meu coração.
Uma coisa é estar a responder a um Pai severo, insaciável e intransigente; outra coisa é estar a receber um Pai que nos diz: “Aconteça o que acontecer, Eu estou contigo, tens o meu amor, Eu estou a teu lado, Eu suporto-te, Eu trago-te aos meus ombros, Eu confio em ti, tu és o meu filho, tu és a minha filha.” Esta certeza do amor de Deus é a nossa razão de viver.
Queridos irmãs e irmãos:
Nós mantivemos o presépio até este dia. Podíamos já tê-lo arrumado, domingo passado, depois da festa dos magos, mas quisemos trazê-lo até este dia porque este é o momento do nosso nascimento. O batismo também é um nascimento, também é um presépio e este é o momento em que cada um de nós tem de nascer do amor, calando as vozes erradas que também nos habitam. É importante não deixar falar a escuridão no próprio coração, é importante ter a confiança de dizer ao próprio coração: “Não me enganes, não é assim.” Porque o que está no centro da vida, no centro desta vida revelada por Jesus de Nazaré, é de facto a experiência do amor.
E isto pede de nós uma conversão, uma transformação, uma redescoberta, uma reviravolta. Se calhar, temos de dar a volta neste grande útero que é a própria Igreja, revirarmos por dentro para podermos nascer, purificar-nos de imagens de Deus que não são aquelas que habitaram o coração de Jesus e que Ele nos revelou. Os céus abriram-se e a voz de Deus pôde-se ouvir: “Tu és o meu filho muito amado, em ti coloquei todo o meu amor.”
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo do Batismo do Senhor
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2015/01/08 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2015/01/04 - "Voltaram para casa por outro caminho” (homilia)
Queridos irmãs e irmãos
Deus manifesta-Se em Jesus que nasce. Mas a grande questão é: Como se reconhece? Como se reconhece a passagem de Deus pela nossa história? Como se reconhece a sua Epifania quotidiana? Com que gramática, com que roteiro, com que guia nós podemos reconhecer a fantástica presença de Deus na nossa vida? Porque Ele está e, grande parte do tempo, nós não O vemos, nem temos capacidade de O reconhecer.
Herodes estava muito melhor colocado do que os magos, para saber que tinha nascido o rei dos judeus. E, contudo, ele não sabia de nada. Aconteceu uma coisa nas suas barbas, aos olhos dele, e ele não viu, não foi capaz de enxergar. Ele tinha os sábios da sua corte, tinha a Escritura que dizia: “O Messias vai nascer em Belém.” O que é que lhe faltava então? Ele tinha tudo. Tinha todos os referentes, toda a sabedoria, todo o conhecimento, mas Jesus nasceu e ele não soube. Essa notícia foi-lhe dada por estranhos, por gente que vinha de longe.
O que é que faltava a Herodes e o que é que nos falta a nós? Perguntemo-lo com franqueza. Falta-nos essa atenção. A atenção, a atenção espiritual, é essa expectativa de Deus, essa espera de Deus, que nós temos de manter no nosso coração, no dia a dia. Nós não vemos Deus na nossa vida, porque não estamos à espera dele. Porque não é por Ele que nós esperamos. Nós não vemos Deus mais perto de nós porque não temos sede, não temos fome dele. Não é por Ele que nós sofremos, não é por Ele que nós nos entusiasmamos, não é por Ele. O mundo e a nossa vida, mesmo uma vida de cristãos, tornam-se uma espécie de deserto, uma espécie de lugar vazio onde há uma música em surdina. Mas onde não se vê o desenho, não se toca a carne de Deus na vizinhança de nós.
Falta-nos a atenção. Como dizia Simone Weil: “Falta-nos essa grande capacidade espiritual, que é a grande oração que nós podemos fazer, que é precisamente essa atenção.” Essa pobreza que tem quem espera, quem vive na iminência, quem percebe que cada instante não é apenas o tempo que corre, mas é a iminência de alguma coisa, a iminência de uma revelação. E falta nós deslocarmos a nossa vida para o interior dessa eminência, habitarmos o tempo como espectativa, como lugar de espera. O tempo como advento.
Os magos: nós sabemos pouquíssimo deles, são figuras que vêm de outro mundo, de outra referência, de outra paisagem, de outro território mental, até de outra religião possivelmente. Mas eles vivem esse advento. Eles veem a estrela porque eles vivem, com o seu coração, à espera da manifestação da estrela. E quando se vive na espectativa vê-se como eles viram e tiveram a disponibilidade de seguir, sabendo muito pouco. O que é extraordinário é que a quantidade de Escritura, de promessa, que Israel tem, no fundo, tornou-se um peso, e não se tornou uma força para caminhar, não se tornou uma força para partir.
Estes magos têm tão pouco, veem uma estrela, um rei que não lhes pertence, mas eles querem vir adorá-lo. E os outros têm tanto e não mexem uma palha. Estão ali em Jerusalém, Belém é a doze quilómetros, e não perceberam nada do que aconteceu.
E nós temos de perguntar: e para nós? As Escrituras para que é que nos servem? As promessas, para que nos servem? O conhecimento, a fé, a experiência, a tradição, todos os apoios que recebemos para a vivência da fé, isso para que nos serve? Que vida eu dou a isso?
Porque, muitas vezes, são coisas para estar, são coisas ornamentais, que ornamentam a nossa vida. Mas será que me definem como homem, como mulher? Será que me colocam no mundo num determinado lugar, de determinada maneira? Será que marcam o meu estilo? Será que me definem, que são a minha identidade?
E é no fundo isto que se joga: os magos vieram de longe, atrás da estrela. E tiveram a humildade de ir perguntar, a estrela apareceu e desapareceu, eles foram perguntar ao rei, esperaram pela resposta, voltaram a reencontrar a estrela, foram, adoraram o Menino e, como diz S. Mateus, “No final, voltaram para casa por outro caminho.”
E é, no fundo, isso que também nos é colocado, no final deste tempo do Natal. Nós celebramos o mistério da encarnação do Verbo e agora estamos a chegar ao fim do tempo de Natal. Nós vamos voltar a casa como? Vamos voltar a casa pelo caminho de sempre, pelo caminho habitual, por aquilo que já trazíamos ou vamos voltar a casa por outro caminho, porque o encontro nos renova, porque o encontro nos coloca de uma outra forma, nos acende por dentro, nos dá uma capacidade de atenção?
Hoje, na festa da Epifania, celebramos a universalidade da relação de Deus. E, se há alguma coisa que marca a identidade cristã, é precisamente a universalidade.
A grande luta que o apóstolo S. Paulo manteve e que foi, de certa forma, uma luta fundadora do que é hoje o cristianismo e da nossa hermenêutica de Jesus de Nazaré, é que a salvação, a promessa, a graça, não é só para os judeus, não é só para o povo da eleição do Antigo Testamento, mas que a salvação é para todos, para judeus e para gentios.
Esta afirmação faz tremer o mundo. Porque, se eu começo a construir uma lógica de vida em que já não é apenas para uns, mas o que eu vivo é para todos, isso obriga-me a uma largueza de coração, a uma largueza de horizontes, a uma capacidade de abraço, a uma capacidade de inclusão, a uma deslocação e uma relativização das fronteiras que não é fácil. Não é fácil.
Quando nós vemos, no Cristianismo das origens, uma tensão, um conflito latente e muitas vezes explícito, entre os judeus-cristãos – aqueles cristãos que dizem “para se ser cristão, tem de ser-se judeu, os homens têm de se circuncidar, as mulheres têm de viver determinadas práticas, não há outra maneira de ser cristão senão ser judeu, primeiro” – e quando Paulo vem dizer: “Não, para ser cristão não é preciso primeiro ser judeu. Para ser cristão pode-se vir de qualquer condição. Ser cristão consiste em definires a tua vida, definires profundamente a tua vida, não já pela raça, não já pelo sangue, não já pelo lugar do teu nascimento, mas pela tua ligação ao acontecimento Jesus, ao Seu nascimento e à Sua Páscoa”, esse é que se torna o teu momento fundador, o teu momento identitário, sejas homem, sejas mulher, sejas judeu, sejas grego, sejas escravo, sejas homem livre. O que passa a definir a tua vida é a tua relação com a pessoa de Jesus Cristo, com o acontecimento de Jesus Cristo.
Queridos irmãos, isto foi uma revolução. Mas esta é a revolução cristã, no sentido de dizer que a proposta de salvação é sempre uma proposta em aberto, é sempre uma proposta que toca a todos. Nós não somos o novo Povo de Deus, com novas fronteiras, semelhantes às do Povo de Deus antigo, nós não viemos substituir Israel, não somos os substitutos dos judeus. Não, os judeus continuam a ter o seu papel, mas o cristianismo veio alargar as prerrogativas de Israel a todo o mundo, a toda a gente, a todos os povos, a todas as culturas, a todas as condições. Nesse sentido, o universalismo tem de ser uma arte que cada um de nós pratica. O universalismo tem de ser alguma coisa que nos abrasa. Porque eu percebo que estou perante um cristão quando esse cristão pode, é chamado, deve, comer de tudo com todos. É uma coisa muito simples, ritual, não tem um interesse decisivo. Mas, por exemplo, enquanto os judeus têm, de facto, restrições alimentares e restrições de mesa – não comem o seu Shabbat com impuros, podem convidar alguém, mas não comem – e, da mesma forma, a outra religião monoteísta, o islão, e fazem, à volta da mesa, um lugar de afirmação identitária, os cristãos são os que estão disponíveis, que estão abertos a fazer comunhão, a fazer comunidade com qualquer pessoa, em qualquer lado, em qualquer latitude.
E isto, queridos irmãos, não é uma bela teoria, não é uma bonita abstração, não é um interessante ideal, tem de ser alguma coisa que no quotidiano nós vivemos, porque isso é que é a Epifania. Porque é que nós falamos do eclipse de Deus? Deus desapareceu, Deus não se vê, Deus não está em lado nenhum, não encontramos Deus nas escolas, nas universidades, nas empresas, na economia, nos media, nas famílias – é o eclipse de Deus. Porque é que Deus não está? Não está porque nós não o mostramos, porque nós não o trazemos, porque nós não o fazemos vivo, porque nós não nos colocamos nesta perspetiva universalista.
Dois mil anos depois, este continua a ser o tema da agenda cristã: o universalismo. Porque é aqui, de facto, que, cada vez mais, vamos aprofundando a mensagem de Jesus, a pessoa de Jesus, a poética de Jesus e procurando traduzi-la nas nossas vidas. Que cada um de nós se sinta responsável para que a luz, a estrela, possa brilhar em todos os corações, em todos os corações.
Aquilo que o Papa Francisco tem dito incessantemente, e de tantas maneiras – não desistir de ninguém, não descartar ninguém, não considerar o outro, quem quer que seja, descartável, mas poder voltar a colocar o outro na roda da vida – isso é o presépio a acontecer, isso é o cristianismo a maturar.
Queridos irmãos e irmãs, que maravilha é podermos viver o Natal, anualmente termos este tempo de Advento e Natal, que nos recentra naquela verdade essencial, que nos faz trabalhar interiormente, que nos deixa em sobressalto, nos treina para a atenção, para a escuta, para o Deus que vem e nos lembra que nós temos é de abrir as portas para receber de Deus o próprio Deus. E isso é uma coisa maravilhosa que, anualmente, a liturgia torna presente nas nossas vidas. Mas é muito importante que, como diz a frase final do Evangelho de Mateus, nós regressemos à nossa terra por outro caminho, pelo caminho que o Presépio nos ensina, pelo caminho que Jesus nos mostra. Porque, queridos irmãs e irmãos, não há só o caminho que nós estamos já a viver, há um outro caminho. Que outro caminho é este, do qual Jesus é o guia para a minha vida, para a tua vida? Possivelmente são caminhos com traduções muito diferentes. Mas, há um outro caminho, pelo qual cada um de nós é chamado a regressar.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo da Epifania do Senhor
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2015/01/01 - “Onde está o teu irmão?” (homilia)
Queridos irmãs e irmãos
Neste primeiro dia do ano, sentimos a grande bênção que é a vida e a expressão da vida em cada um de nós. Este é o dia para nos sentirmos abençoados, para abençoarmos os outros e o mundo em nosso redor.
É tão extraordinária a palavra “bênção”, que quer dizer “bem dito”, “dizer bem”. No fundo, podermos dizer bem da vida, podermos dizer bem deste mistério que Deus manifesta em nós, podermos sentir o bem de Deus em nós.
É maravilhosa esta bênção que Deus pede a Aarão que dê a cada um dos membros do povo de Deus: “O Senhor te abençoe e te proteja. O Senhor faça brilhar sobre ti a Sua face e te seja favorável. O Senhor volte para ti os Seus olhos e te conceda a paz.”
Que cada um de nós sinta que esta bênção é para si, que o Senhor volta para cada um de nós, para a nossa vida, os seus olhos e faz brilhar, sobre a nossa frágil vida, o Seu rosto e nos enche de paz. Este é o dia para darmos graças, é o dia para louvarmos. A própria palavra de Deus desafia-nos ao louvor.
É muito significativo o modo como os pastores vêm, olham para o Menino na manjedoura e voltam louvando a Deus. E nós pensamos: “Mas o que é que eles viram? O que é que lhes enche o coração? O que é que lhes faz ter este gosto, esta necessidade de cantar quando o que eles veem é um menino deitado numa manjedoura?” Isto é, é uma vida nua, é uma vida exposta, uma vida numa fragilidade extrema. E, contudo, eles contemplam aquela vida e dão graças a Deus. Eles veem um botão, veem uma semente, veem um rebento que brota e seguem o caminho cantando e louvando a Deus.
Queridos irmãos, é esta sabedoria que nos faz ter a capacidade de bem-dizer a vida. Porque, se estamos à espera de ver a obra toda acabada, o edifício completo para então louvar a Deus, se estamos à espera de que tudo se resolva, que tudo se faça para então dizer “obrigado” e dedicar o nosso olhar extasiado à beleza do mundo, àquilo que o mundo nos dá, verdadeiramente viveremos um grande desencontro com a vida. Às vezes, ao longo do tempo, sentimos que estamos em desencontro, em contraciclo, que só nos apetece lamentar, maldizer, refutar e recusar, e achamos que nunca é suficiente, que nunca basta.
A lição dos pastores vai toda noutro sentido. Perceber que, no pequeno botão, na mínima expressão da vida, nós já temos todas as razões, capazes de encher, de redimir o nosso coração e de nos encher de louvor. Por isso, que este ano sintamos esta capacidade de bem-dizer, sintamo-nos benditos, sintamo-nos abençoados e tenhamos esta capacidade de transmitir a bênção, que está no nosso coração, ao mundo. Muitas vezes é a coisa mais necessária, porque as outras vão-se conjugando, vão-se encontrando, mas o que é que nos falta? Falta-nos este sentido, este sentido da bênção.
Hoje, lemos a carta de S. Paulo aos Gálatas, que é um dos grandes textos da identidade cristã. É um texto muito revolucionário, muito transformador. Paulo tinha fundado a comunidade dos Gálatas, na Galácia – hoje é mais ou menos uma parte da Turquia. Eles não conheciam o Evangelho e Paulo chega numa situação terrível, possivelmente, com uma doença de pele, que o deixaria muito debilitado, e depois de um grande conflito com os cristãos que vinham do Judaísmo. Ele tinha tido a discussão com S. Pedro, em Antioquia, e tinha ido mais para Oriente. Quando lhe sobreveio esta doença ele pensou: “Está tudo acabado.” E, contudo, quando ele disse “É o meu fim”, foi o seu início, porque os Gálatas, de uma forma que não se consegue explicar, acolheram-no muito bem, acolheram-no como um enviado de Deus. Ele começou a explicar, a anunciar aos Gálatas a novidade de Jesus Cristo.
E, como acontecia com Paulo, ele estava um tempo, uns meses, às vezes dois anos, numa comunidade e depois partia para outra. Quando ele partiu, vieram os emissários de um cristianismo mais ligado ao judaísmo, que viam Paulo como um rival, como alguém que tinha um Evangelho muito incompleto, como alguém que estava a destruir o caminho da Igreja. Na ausência de Paulo, desacreditam toda a mensagem de Paulo e querem que os cristãos sejam cristãos judeus, se façam judeus. Isto é, para ser cristãos, que passem pela circuncisão, voltem a aceitar todas as normas de pureza ritual, toda a divisão, toda a tradição judaica mais estrita.
Os Gálatas ouvem isto, ficam numa posição de dúvida e dizem: “Não. Nós vamos mandar emissários a Paulo, para Paulo esclarecer, dizer o que pensa disto, se é ou não é.”
E então Paulo, nessa altura em Éfeso, possivelmente preso quando lhe chegam mensagens do que está a passar-se na Galácia, escreve esta carta. É uma carta escrita com sangue, escrita com a alma toda, onde Paulo está com toda a emoção. Mas é uma carta onde ele coloca a questão da liberdade. Paulo diz: “Cristo libertou-nos para sermos verdadeiramente livres” e “Cristo é o fim da Lei.” Paulo diz uma coisa pela qual ele esteve preso várias vezes, que é: “Com Cristo acaba a Lei como tal nós a conhecemos.” Isto é, as leis humanas, a lei do império, a lei do imperador é uma lei insuficiente, essa lei não vale, essa lei morreu com Cristo. Em Cristo começa uma nova ordem do mundo, uma nova ordem das coisas.
Paulo diz isto com frontalidade, com as letras todas. Nós dizemos: “Este homem tem de ser preso.” E, de facto, Paulo estava preso quando escreveu aquilo. Mas a prisão não o impedia de dizer a verdade. Paulo não era um cristão preso, era um cristão que, mesmo quando estava preso, era muito livre. E tinha, no centro, isto: no centro está Cristo. E se Cristo está em mim ninguém me para, quer dizer, nada me basta.
“Ah, eu vou cumprir a Lei. Ah, eu tenho a boa consciência. Ah, eu paguei os meus impostos. Ah, eu fiz a minha parte.” Isso pode ser importante mas é muito pouco.
Nós hoje celebramos a Jornada Mundial de Oração pela Paz. É uma iniciativa que a Igreja tem já há várias décadas e, em cada ano, o Papa escreve uma mensagem aos cristãos que é uma proposta de reflexão para o ano que entra. Este ano, o Papa Francisco escreveu uma mensagem sobre a escravatura, as novas formas de escravatura.
Porque a verdade é que a escravatura foi abolida, mas ela regressou. Regressou duma forma muito visível. No sentido de que muitos são aliciados para trabalhos e depois, quando vão ver, é uma verdadeira escravatura. Mesmo aqueles que hoje constroem as nossas cidades, as nossas estradas, os nossos centros comerciais, são, no fundo, pessoas que depois têm de viver dez, doze anos dentro de um contentor. Se aquilo é vida e a ganhar abaixo do salário mínimo, sem contratos, sem direitos, isso não importa.
Nós pensamos: “Não serão os novos escravos?” Os pobres, os imigrantes, aquelas e aqueles que se têm de prostituir nas estradas da Europa, não serão os novos escravos? Ou então, como vemos chegar barcos e barcos de imigrantes do Norte de África, que pagaram uma fortuna, a fortuna que amealharam, a pequena fortuna, para serem metidos num barco e depois fazerem uma viagem onde muitos morrem, e depois chegam à Europa e têm de voltar para trás porque a dor deles não nos interessa, não tem nada a ver connosco.
O texto do Papa Francisco é um texto forte, mas a realidade supera-o. É um texto pintado com linhas muito marcadas do sofrimento humano, mas a realidade é exponencialmente muito superior. E, perante a realidade da nova escravatura, que está aqui em Portugal, na nossa cidade, aos nossos olhos, não pensemos que isto se passa só em sítios remotos, inalcançáveis. Não, está muito perto de nós.
Então qual é o primeiro desafio? O primeiro desafio é olharmos para esta realidade e querermos ver. Nós só não vemos porque não queremos ver. Porque se nós quisermos ver, vemos, vemos.
Há um filme de Sérgio Tréfaut , os “Lisboetas”, sobre os imigrantes em Lisboa. Ele mostra como há uma invisibilidade muito grande. Eles estão a nosso lado, mas nós não vemos, porque não andamos naquelas ruas, mesmo quando eles passam nas nossas ruas nós não vemos, não estão nos nossos cafés, não estão nas nossas universidades, então nós não vemos. Vivem connosco, ao nosso lado, servem nas nossas casas, mas nós não os vemos. Isto é, não os vemos como cidadãos, não os vemos como seres humanos.
Então, o primeiro desafio é o da visibilidade, é o da informação. Nós sabemos também como a nossa informação está muito condicionada, somos alimentados pela futilidade. A maior parte das notícias é pura futilidade, é uma telenovelização da vida, da política, da economia que depois não é nada quando as grandes questões do sofrimento humano não são notícia, não interessam, são depressivas para nós, vão aborrecer-nos. Nesse sentido, tem de haver um esforço nosso, ao longo deste ano, de conhecimento, antes de tudo de conhecimento da realidade. Olhar para as situações, fazer perguntas, ver, ver. E depois de ver, julgar.
A grande pergunta é “Onde está o teu irmão?”, que é a pergunta que Deus faz a Caim e que é a pergunta que Deus nos faz a nós. Nós podemos dizer: “Eu tenho as minhas mãos limpas.” Ninguém tem as mãos limpas, ninguém tem as mãos limpas no sentido de que isto é um sistema: para nós estarmos bem, outros têm de estar mal, para nós termos outros não têm. A desigualdade tornou-se um sistema.
“Eu tenho as mãos limpas, eu não fiz nada.” Não, se não fizeste nada também estás a contribuir. A ideia não é não fazer nada e deixar as coisas como estão. A ideia é transformar para tornar melhor, para tornar o mundo mais justo.
Então, precisamos de julgar com a verdade de Paulo. A Carta aos Gálatas é um texto que devíamos ler, este ano, porque é o grande texto que diz o que é ser cristão. Ser cristão é viver numa inquietação permanente, é perceber que não basta cumprir a lei, não basta a norma, não basta o que o imperador nos diz. Se temos o Messias, se acreditamos no Messias, vamos simplesmente estar bem porque obedecemos ao imperador? É um absurdo. Cristo libertou-nos para sermos livres. E livres para quê? Livres para amar, livres para contagiar o mundo, livres para tornar o mundo mais justo.
Há esta pergunta que Deus nos faz “Onde está o teu irmão?” e nós, de facto, precisamos de sair das nossas zonas de conforto, precisamos de ir ao encontro dos pobres, precisamos de ir ao encontro desta humanidade que é escravizada com as formas mais diversas. E, se o Senhor nos tocar no coração a dizer “Tu tens de fazer alguma coisa”, que nós sigamos isso e possamos fazer alguma coisa.
Porque o gesto de amor que nós fizermos não morre. O gesto de amor que nós fizermos não morre, o gesto de não-amor que fizermos ou a nossa abstenção vai pesar-nos, vai pesar-nos.
É isso que o Papa Francisco nos diz, neste primeiro dia da paz: se quisermos a paz, temos de dizer aos nossos irmãos: “Tu eras escravo mas agora és meu irmão.” Isto, há dois mil anos, foi a história do Cristianismo: “Tu eras escravo, tu eras gentio, mas agora és meu irmão.”
Não se fazem cristãos de outra maneira. Nós podemos inventar um cristianismo como um bem-estar, um momento de bem-estar, podemos pensar na salvação da nossa alma. Está bem, isso tudo está certo, mas eu não sou cristão porque penso na salvação da minha alma. Esse é um problema filosófico de todos os homens e mulheres da Terra, de todos os credos e religiões. Eu torno-me cristão quando percebo que há um caminho para ser cristão, e esse caminho é olhar o meu irmão nos olhos e dizer: “Tu eras escravo mas agora és meu irmão.” E sentir que, nessa universalidade – que não é uma teoria, não é uma ideologia, mas é uma prática de vida, uma opção de vida – que nessa prática de vida, nessa universalidade, nessa condivisão de vida eu torno o mundo mais justo, eu coloco Deus no coração da história.
Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus
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