Dezembro
2018/12/30 - O projeto da família, na homilia de D. José Tolentino Mendonça
Queridos irmãs e irmãos,
Celebramos hoje a festa da Sagrada Família. Quando nos aproximamos do Presépio nós vemos uma família, não vemos apenas Jesus – vemos a história daquele encontro, daquela relação entre aqueles três personagens. São a família de Jesus. E aquela família ilumina a nossa própria família, as nossas famílias, e ajuda-nos a entender o que é uma família. A família de Nazaré nós chamamo-la a Sagrada Família porque toda a família é sagrada. Sagrada porque faz parte do plano de Deus – a família é um instrumento da salvação de Deus na história dos homens. Cada um de nós precisa de uma família, é fruto, é consequência de uma família e é construtor de família. Nesse sentido, a família é um marco onde podemos tatear o plano de Deus, a vontade de Deus, o desígnio salvador de Deus na história. A família não é apenas uma invenção cultural, a família tem uma força, tem uma dignidade, tem um papel que é anterior à própria cultura – porque ela é a raiz da própria vida, a raiz da própria existência. E é sagrada como a família de Nazaré é sagrada. Mas é sagrada não por um determinismo. A família é sagrada não porque foi declarada sagrada, simplesmente. A família é sagrada porque se descobre sagrada. E muitas vezes, na família, nós descobrimos os laços, a importância, o significado desses laços muito para a frente, muito depois – e aos poucos vamos aprendendo que a família é sagrada. A perceção de que a família é sagrada não é uma coisa da origem. É alguma coisa que nós vamos percepcionando ao longo da vida, percebendo o significado daqueles laços onde o amor incondicional circula – é a forma de expressão onde a gratuidade é a linguagem, a generosidade e a capacidade de dom é o estado permanente. E, nesse sentido, vamos percebendo que aquilo que são os laços de que se nutre a família é alguma coisa verdadeiramente sagrada. Por isso o “sagrada” não é um adjetivo para ficar “lá atrás”, mas é um horizonte de descoberta permanente, de perceção daquilo que é esse tesouro, que é esse património que é a família.
Depois, o segundo aspeto é que a família é um dinamismo – a família não é uma coisa que existe, não é um mapa. É um engano dizer: “A minha família é uma família tradicional” – não há famílias tradicionais… Nós olhamos para o Presépio, não há famílias tradicionais, há famílias! Há esse chamamento de amor e de encontro… e isso é vivido numa construção permanente. É muito belo olharmos para os textos de hoje, de Ben-Sirá, da Carta de Paulo, do próprio Evangelho de Lucas e perceber os verbos de ação: “Filho, age desta maneira, Pai age daquela, Mulher age daqueloutra, Marido, age daqueloutra” … a família é um lugar de ação, é um lugar de construção. Não há um programa pré-definido que nós, com o piloto automático, vamos vivendo vida fora… não há piloto automático na família, é preciso estar sempre a reinventar, é preciso estar sempre a fazer, a construir…
A família é alguma coisa que se constrói, não é alguma coisa que se herda. Nós pensamos: “Nasci numa família, herdei aquela família” … – isso só é verdade numa pequenina parte, porque depois a família é o que nós construímos, é esta tarefa, porque a família é uma tarefa. A família é um fazer, a família é uma ação – porque a relação não é uma coisa estável, a relação é alguma coisa que se aprofunda continuamente, que se descobre, que se redescobre, que se trabalha, que se investe, que se qualifica… Isso é a família.
Por isso, para nós, a família é uma tarefa. Não é aquilo que nós conhecemos ontem. Não basta o conhecimento de ontem para viver a família, é preciso o amor de hoje, e é preciso o investimento que todos nós somos chamados a fazer na nossa família. E cada um tem um papel. É muito interessante nas Leituras que nós ouvimos perceber que numa família todos são protagonistas, todos têm um papel a desempenhar. Não há um que dá e um que recebe, simplesmente, não, todos são chamados a dar, todos são chamados a construir, todos são chamados a viver o compromisso, todos são chamados a cuidar – e isso é a força da família: é de facto envolver todos os seus componentes, não deixar ninguém de fora.
Mas o Evangelho de hoje lembra-nos outra dimensão da família, muito importante, e que faz parte certamente de todas as nossas experiências de família: a família é o lugar onde nós acolhemos a verdade do outro que nós não compreendemos… a família é o lugar onde nos encontramos, mas também onde nos perdemos. A família é o lugar onde nos temos de procurar, porque não sabemos onde o outro está… – é uma ilusão pensar que se o outro está na minha mesa ou porque está à noite em casa eu sei onde ele está… não, não sei! A família é o lugar onde se experimenta a ferida, a fragilidade dos laços. A família é o lugar onde escorrem porventura as lágrimas mais difíceis que cada um de nós tem para chorar – e por isso a família precisa sempre de reparação, precisa sempre de reconciliação, precisa sempre de reconstrução e de cuidados… porque aqueles laços não são pré-fabricados, não duram para sempre, não permanecem isentos do tumulto do mundo e da fragilidade das coisas.
Pelo contrário, numa família o amor também morre, numa família a fraternidade também se esgarça, numa família os laços também se evaporam – e por isso há toda uma tarefa, no fundo, de reconstrução da própria família em que é necessário que nos empenhemos verdadeiramente.
A cena do Evangelho: Jesus cresce… e os pais não perceberam que Ele cresceu e quando o vão procurar num determinado lugar, o filho não está naquele lugar. E estão uns dias à procura d’Ele pensando: “Mas Ele está aqui, está ali, não está! E quando o encontram no templo e Ele lhes diz “Não sabíeis que Eu devia estar aqui a fazer a vontade de meu Pai?” eles não sabiam… nem compreenderam o que Ele lhes dissera, não compreenderam de todo… mas voltaram juntos, e isso é também a beleza da família. Não se tem que entender completamente… muitas vezes, a família é o lugar onde se guarda a diferença, onde se guarda aquilo que não se entende, aquilo que não é a nossa vontade, aquilo que não é o nosso sonho, aquilo que não é a nossa idealização… mas é o lugar onde se guarda isso, onde se acolhe e se faz caminho com isso: Maria e José não entendiam Jesus, mas Ele voltou com eles para casa e viveram juntos, e foram uma família! E o projeto da família também é este – não podemos pensar que a família é o lugar da fusão, o lugar do entendimento, o lugar onde nunca vai haver problemas, nunca vai haver questões, nunca vão surgir… não, nós sabemos que não é assim, pelo contrário! Todas as famílias são famílias feridas… feridas por dores, feridas por situações que não eram previstas, feridas por sofrimentos, feridas por doenças, feridas por tantas outras questões que têm a ver com as pessoas… E como abraçar isto sem perder a esperança? E como abraçar isto fazendo um caminho?
O outro aspeto da vida da família, penso, é a família não se fechar em si mesma, mas ter uma capacidade de acolhimento. Uma família só se reforça se ela não se torna um projeto fechado, se ela não é uma cápsula, mas é de facto uma escola de amor, uma escola de aprendizagem onde se aprende a amar, onde se aprende a abraçar, onde se aprende a respeitar, onde se aprende a ouvir, onde se aprende a cuidar dos outros… é esse lugar de aprendizagem para depois se praticar no mundo – porque não é só a “ minha família”… cada um de nós tem muitas famílias: os nossos amigos são também uma família, a nossa comunidade é também uma família, o lugar onde trabalhamos é também uma família, o mundo tem de ser para nós uma família… nós cristãos olhamos para o mundo dizendo que é “a família humana”, e nós temos de facto de levar ao mundo a arte de ser família, a arte de integrar, a arte de compreender, a arte de perdoar, a arte de promover, a arte de dialogar, isso é que temos de levar para o mundo!
Por isso queridos irmãs e irmãos, é tão extraordinário o projeto da família! Vamos pedir nesta Eucaristia pelas nossas famílias, e pela Família, que ela seja de facto este lugar por excelência onde se percebe o sagrado da vida – e como esse sagrado é sempre surpresa, é sempre alguma coisa inédita, para a qual nós temos de preparar, em continuação, o nosso coração – como temos de preparar o nosso coração para nos ajoelhar perante o mistério desta Família, a Sagrada Família de Nazaré, onde nasceu o nosso Salvador.
D. José Tolentino Mendonça, Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José
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2018/12/25 - O Mistério da Encarnação (homilia)
Queridas Irmãs
Queridos Irmãos
Nada do que somos, vivemos, experimentamos, padecemos e regozijamo-nos é indiferente a Deus. Nada do que é humano, do que constitui o registo da nossa existência, por entre alegrias e tristezas, esperanças e angústias, fica fora da humanidade do nosso Deus. E aqui está a escandalosa originalidade do cristianismo: Deus faz-se homem; assume, por inteiro, a carne vulnerável e em risco da nossa condição humana; torna-se um de nós, experimentando em si mesmo, em seu próprio corpo, a grandeza e a miséria da condição humana. Deus e Homem encontram-se na fragilidade da carne; Deus e Homem coincidem na vulnerabilidade do corpo. E isso é a profundidade do mistério da Encarnação que hoje celebramos neste santo dia de Natal.
Com solenidade diz a Carta aos Hebreus que o falar de Deus, nestes tempos definitivos e últimos, é através do próprio Filho feito homem; é através da nossa linguagem corpórea, do registo da nossa existência, a partir de dentro da vida que somos, partilhamos, experimentamos em risco e em promessa. O falar de Deus não é a partir de fora; é a partir da nossa própria humanidade, da sua densidade dramática. Nada há no mundo que não pertença, agora, ao próprio mistério de Deus. O humano inscreve-se eternamente no mistério da Trindade, pela carne do Filho.
Igualmente num tom solene e conciso, proclama o prólogo de evangelho de S. João: «No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus (…). E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós. Nós vimos a sua glória». Aquele que é Deus desde sempre, eterno com o Pai, por quem tudo foi feito, vem ao que já é seu, entra nos dramas da história humana, faz-se ele próprio drama encarnado, assumindo por inteiro a vulnerabilidade da condição humana. «O Verbo fez-se carne»: nunca a fé cristã disse o mistério do Homem e o mistério de Deus de uma forma tão precisa e tão coincidente. Deus encontra o Homem na carne da nossa humanidade; e esta, este corpo que somos, experimentamos e vivemos, é o caminho para encontrarmos Deus, o modo de nos experimentarmos como filhos e de vivermos esta aventura de comunhão fraterna que é a Igreja. Que é uma aventura corpórea, de comunhão de corpos que se cuidam, que se acolhem, se abraçam, se protegem e mutuamente se destinam à glória da vida eterna.
O mistério da Encarnação diz o concreto da existência cristã, que é, ela também, sempre encarnação, reencontro com a nossa própria vulnerabilidade corpórea, reconciliação com a fragilidade de sermos carne. O Concílio Vaticano II disse isto de uma forma inovadora: pela sua encarnação, o próprio Filho de Deus une-se a cada carne concreta, a cada pessoa em sua existência corpórea (cf. GS 22). Em nossa carne Cristo une-se a nós, torna-se presente em nós; em sua carne, todos e cada um de nós, está presente e unido a Cristo. Somos, na carne de Cristo, uma comunhão de histórias singulares, de biografias, de existências corpóreas que se cruzam, se confrontam e se completam. E na aceitação da vulnerabilidade da nossa carne crescemos em humanidade.
Por isso, esta celebração do dia de Natal é bênção para cada um de nós, para a nossa aventura biográfica, tão singular, única, feita na carne vivente do corpo que somos. Somos vida que acontece, dom que continuamente se acolhe e se cumpre na dádiva de si. Somos encontro mas também confronto e conflito. Somos promessa mas também fracasso. Somos aliança mas também possibilidade de rotura. Somos vida que experimenta o risco, o perigo, a ameaça. Vivemos destinados à morte, e isso faz parte da nossa condição carnal. O amor é carnal, experimenta-se no corpo, celebra-se no corpo, é paixão e dom de si mesmo. Mas é também ferida aberta, possibilidade de fracasso, promessa que não se cumpre. Em nossa própria carne, cada um de nós transporta uma promessa e a experiência dos seus limites, a sua mais profunda humanidade. A carne que somos, em comunhão com o Verbo feito carne, é o que celebramos neste dia de Natal.
A nossa condição carnal é um caminho dramático, tenso, tecido de ambiguidades e de contradições. Também de rejeições, de exclusão, de discriminação, de violência e de intolerância. Cada um de nós já experimentou em sua própria carne o preço de alguma rejeição ou incompreensão, um traço de não aceitação. Isso aconteceu com o próprio Verbo feito carne, como nos assinala S. João: «Estava no mundo,
e o mundo, que foi feito por Ele, não O conheceu. Veio para o que era seu, e os seus não O receberam». No drama de uma rejeição, a vida do Filho de Deus cumpre-se como dom, como dádiva de amor até ao fim. É nesse amor incondicional que podemos avaliar e medir as nossas infidelidades, a nossa mentira, o nosso adiamento no cumprimento de nós mesmos.
A reconciliação com a carne que somos, a reconciliação com a vulnerabilidade da carne dos outros irmãos, que tantas vezes nos ameaça e nos agride, é um caminho pascal, de continua morte e ressurreição. A vida cristã nunca sai da carne. Porque fiel a Cristo, o cristianismo quer ser fiel à carne do humano, sempre ameaçada, sempre em risco. Em nossa própria carne estamos destinados à ressurreição, a uma plenitude de vida, na superação de todas as ambiguidades e desencontros.
Na nossa própria carne, veremos a Deus.
Pe. António Martins, Natal do Senhor, Missa do Dia
2018/12/25 - Advento / Natal 2018
2018/12/24 - Luz na noite (homilia)
Minhas queridas Irmãs
Meus queridos Irmãos
Santa Noite de Natal
A noite de Natal tem um fascínio acrescido, precisamente porque na escuridão, ou na penumbra, a magia das luzes é maior e tem mais encanto. Assinalam-se os recortes luminosos, a fantasia da imaginação e das figuras. A narrativa do Natal tem, ainda, essa capacidade de nos envolver e de nos situar num tempo outro de sonho, de fantasia, de encantamento. Na noite de Natal celebramos a noite: as densas noites trágicas da história humana, a dramáticas noites da nossa existência, as noites da espera prolongada e por vezes desesperante.
Densas noites da dúvida, de solidão, de silêncio e de perda; noites de dor e de desolação, em que se sente o não-amor, em que se passa a paixão do não-acontecer e do não-sentido. Noites de resistência, de prova, de busca, por vezes desconcertante; noites de abandono e de medo, em que nenhuma luz nos habitou e a escuridão foi densa, envolvente, impenetrável: por todas essas noites se chega à noite de Natal. A liturgia da noite de Natal celebra, precisamente, a noite habitada pela luz. E convoca-nos para acolhermos as nossas noites à luz desta grande e santa noite.
A noite é o símbolo da desordem, do caos, da morte; a luz da ordem, da vida que se projeta, da criação que acontece, da história que avança. Mas noite e dia, trevas e luz não são duas ordens opostas, inconciliáveis, de significado; são duas dimensões complementares do nosso viver. Caminham em conjunto, paradoxalmente; por vezes alternam-se e experimentamos que essa mesma alternância é a verdade do ritmo da nossa vida. Não somos portadores de uma vida totalmente luminosa nem as nossas noites significam uma densa escuridão, sem rasgo de luz.
Duas passagens marcam esta paradoxalidade do mistério desta noite, evocado pelas leituras que acabamos de ouvir. Da primeira leitura, do Livro do Profeta Isaías, lemos a alegre notícia da promessa do Messias, «um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado». E essa é a luz dada a ver ao Povo que vivia nas trevas e na sombra da morte, que atravessava na sua história uma longa e desesperante noite. A noite da violência, da guerra e da opressão chega ao fim com a vinda do Príncipe da Paz, na promessa de um menino indefeso que é dado como sinal de futuro e de paz. A noite transporta uma gravidez de vida e de futuro. É nessa perspetiva que queremos ler os acontecimentos do tempo presente, com a sua inquietação, perplexidade e promessa.
No evangelho, Lucas narra-nos: «Havia naquela região uns pastores que viviam nos campos e guardavam de noite os rebanhos. O Anjo do Senhor aproximou-se deles e a glória do Senhor cercou-os de luz; e eles tiveram grande medo». Estes pastores faziam equipas de vigilância para guardar os rebanhos do perigo dos ladrões e dos animais ferozes. Para que uns tenham uma noite tranquila, outros precisam de vigiar, de estar de sentinela, atentos, prontos a socorrer ou a defender. Nesta noite de Natal celebramos e honramos também aqueles que, vigilantes na noite, garantem a segurança de outros, nas forças de segurança, nos hospitais, nos bombeiros.
A luz de Deus, anunciada pelo profeta ao Povo, pelo Anjo aos Pastores, pelas leituras a nós, não quer esquecer as noites da nossa condição humana. Deus vem consagrar a noite como modo de vir a nós, como modo próprio de estar connosco (de ser Emanuel), como modo de nos iluminar (em nossas noites). A escuridão é um existencial humano de que a fé não pode fazer economia. A noite é irmã da luz, e é na própria noite que mais podemos ver e acolher o brilho e a surpresa luminosa da luz, a visita do nosso Deus na discrição silenciosa de sua humanidade que vem connosco habitar nas nossas noites.
Nesta noite de Natal façamos a oferenda das nossas noites, aqueles densas de escuridão e aquelas habitadas por uma luz, aquelas marcadas pelo desespero e aquela em que renascemos em esperança. Aquelas noites em que fomos provados e nos sentimos vencidos e aquelas em que atravessámos a escuridão na certeza do amanhecer. A noite de Natal consagra todas as nossas noites, e nenhum fica de fora.
No silêncio da noite Deus entra de mansinho em nossa humanidade, para ser um de nós e Deus connosco. Entra não pelo caminho da força, mas pela fragilidade, expondo-se indefeso em sua vulnerabilidade ao nosso cuidado, ao nosso acolhimento. Deus oferece-se vulnerável numa criança indefesa às nossas mãos. O evangelho de Lucas di-lo aos pastores de uma forma solene e profundamente terna: «vos anuncio uma grande alegria para todo o povo: nasceu-vos hoje, na cidade de David, um Salvador, que é Cristo Senhor»; «Isto vos servirá de sinal: encontrareis um Menino recém-nascido, envolto em panos e deitado numa manjedoura». O encontro entre Deus e o Homem acontece na fragilidade da nossa condição humana. Na fragilidade do Menino e na de cada um de nós.
Nunca cessaremos de nos estranhar e rejubilar na densidade do mistério do Natal: Deus vem a vós como um de nós, como bebé que nasce de mulher e aprende a ser humano no tecido familiar e social das relações e dos afetos. Deus humaniza-se: perante esta condescendência do seu amor somos habitados por uma imensa ternura. Descobrimos que a fragilidade é o modo próprio de Deus vir a nós, de nos encontrar em nossa própria fragilidade.
Façamos a oferta da nossa pobreza ao mais pobres dos pobres, ao Pobre, esse Menino que precisa de tudo, pois é expressão da nossa humanidade carente e necessitada, aquela que Deus ama e que encarna, faz sua. Façamos a oferta da nossa pobreza, aquela que nos envergonha, que nos humilha, mas aquela que nos humaniza e que havemos de receber, continuamente, como dom da parte de Deus.
Só os pobres têm lugar no presépio, só os pobres de coração, com toda a sua pobreza em oferta, se sabem prostrar diante do Deus-Menino e por ele ser abençoados. As nossas riquezas (económicas, culturais, de relacionamentos, de família…) são apenas a máscara, ainda que muito sofisticada, da nossa humana pobreza, aquela que o Menino expõe e consagra nesta noite.
Pe. António Martins, Natal do Senhor, Missa do Galo
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2018/12/23 - Jantar de Natal com a Comunidade de Sant'Egídio
2018/12/21 - Concerto de Natal do Coro LNEC
No dia 21 de dezembro, sexta feira, às 21.30h, terá lugar na Capela do Rato o Concerto do Coro LNEC, da Associação dos Trabalhadores do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, sob orientação do Maestro Jorge Resende. Um presente especial de Natal, a não perder!
2018/12/17 - Celebração Penitencial comunitária de Advento
À luz da Palavra de Deus, que nos desafia, cura e julga, aprendemos a ler (discernir) a nossa vida pessoal e comunitária (sentimentos, emoções, atitudes, silêncios, palavras…). Perante o Pai rico em misericórdia reconhecemos (e confessamos) a nossa condição de filhos e filhas feridos pelo pecado. A Celebração Penitencial será a 17 de Dezembro, segunda feira, às 21h.
2018/12/13 - Percurso de Preparação para os Sacramentos da Iniciação Cristã
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2018/12/08 - Senhora do Advento (homilia)
Queridas Irmãs, Queridos Irmãos
No final da primeira semana do Advento, aqui nos reunimos hoje para celebrar a Imaculada Conceição, a Senhora do Advento. Maria é a mulher da espera, aquela que acredita no cumprimento da Palavra do Senhor. Aquela que oferece o coração e o ventre ao encarnar da Palavra. Não há mais expressivo acontecimento de Advento do que uma mulher grávida, um ventre a gerar vida, a esperar o acontecer/o nascer de um filho no mundo. Podemos dizer, com todo o rigor, que o mês de Maria é, por excelência, o tempo do Advento. Ela nos ensina a esperar de um modo ativo, expectante.
Todos precisamos, em nossas existências quotidianas, de uma palavra de estímulo, de alegria e de encorajamento; de uma palavra que nos devolva a confiança em nós mesmos. Todos precisamos de sermos devolvidos à raiz da nossa alegria, às fontes interiores da jubilação que o desgaste tenso do quotidiano da vida nos faz perder de vista. O evangelho de Lucas, neste dia da Imaculada Conceição, começa, precisamente, por uma saudação, por uma palavra feliz e de alegria que é dirigida a Maria: «Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo».
A primeira coisa que Deus nos dirige não é de exigência, mas de saudação. A sua primeira palavra é de alegria e de reconhecimento por existirmos: «Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo». Nas nossas relações quotidianas, organizacionais, na nossa pedagogia, frequentemente sublinhamos a carência, o que falta, a falha, o erro, o defeito… Lucas, no evangelho de hoje, coloca-nos noutro prisma: o de engrandecimento, o do estímulo, o do apreço e do reconhecimento.
Bem sabemos o valor incalculável de uma pequena saudação quotidiana: é sinal de humanidade e de identidade reconhecidas. É sinal que vencemos o nosso isolamento e nos atrevemos à surpresa do encontro. Bem o sabemos: nenhuma saudação nos deixa indiferentes. O que o Anjo diz a Maria é profecia da nossa existência, caminho para nos cumprirmos no quotidiano dos nossos encontros e relações. Estímulo para vencer medos, suspeitas, hesitações, prudências tão calculadas que nos paralisam na audácia do encontro e da hospitalidade do outro.
Deus vem ao nosso encontro no quotidiano do nosso viver, aí onde estamos no concreto das nossas circunstâncias. Qualquer situação da vida é promessa de um advento de esperança, de uma possibilidade de vivência crente. Não precisamos de ter momentos excecionais. Lucas, e em concreto o evangelho da Anunciação, oferece-nos a possibilidade da experiência crente no quotidiano, no doméstico, no familiar das nossas vidas. Recordamos o texto: «Tendo entrado onde ela estava».
No lugar onde ela estava: Lucas não oferece pormenores descritivos. Os pintores da renascença e do barroco imaginaram o lugar: uma sala de leitura, um quarto, Maria repartida entre o tricot e a leitura da Escritura, acompanhada de um gato… Maria é representada no quotidiano da sua vida doméstica. Sim, celebramos hoje também a visita de um Deus que vem ao nosso encontro nas nossas situações concretas, discretas, no nosso viver ferial, feito de gestos, tarefas e compromissos repetidos.
«Avé, cheia de graça, o Senhor está contigo». Cheia de graça, plena de graça, a transbordar. A presença de Deus em nós preenche-nos, completa-nos, acrescenta-nos, realiza-nos. Maria responde sim a Deus no sim primeiro que Deus lhe faz. O dogma da Imaculada Conceição é uma profecia de positividade na tradição católica, um olhar a vida marcada pela primazia da graça sobre o pecado: graça que potencia, eleva e plenifica. Maria é a brecha numa compreensão de que toda a humanidade estaria marcada pela negatividade do pecado e de que a graça de Deus viria a nós somente como cura, reparação, sanação e remédio.
A graça que é Cristo não é apenas remédio e cura dos males; é, principalmente, preservação do mal, potenciação do bem, apelo e força de plenitude e de cumprimento: é dom positivo de prevenção, de capacitação, de possibilidade para nos orientar e cumprir no bem. Maria é aquela que experimenta a ação de Deus como total potenciação para o bem.
Cristo não é apenas Aquele que cura e perdoa do pecado, mas também Aquele que eleva, consuma, plenifica, potencia o cumprimento da vida. O dogma da Imaculada Conceição foi possível, na história da fé católica, como expressão de uma antropologia positiva da graça, da ação de Cristo em nós, como prevenção e preservação do mal e potenciação do bem, como força de amor gratuito que estimula, plenifica e eleva.
Há em nós uma potencialidade que Deus quer estimular e fazer cumprir. Há em nós uma promessa de vida que Deus quer realizar e levar a cumprimento. O negativo da vida não diz a nossa vida inteira. A vida é também uma promessa de bondade, de alegria, de beleza, de encontros felizes. Há na nossa vida uma fecundidade a cumprir e a estimular. A graça de Deus é força de positividade, capacitação para nos cumprirmos no bem.
É isso que Deus, por Cristo, hoje nos quer dizer ao dizer a Maria, e através dela a cada um de nós: «Alegra-te, agraciado(a), o Senhor está contigo».
Pe. António Martins, Solenidade da Imaculada Conceição
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2018/12/02 - Preparar o coração (homilia)
Minhas queridas Irmãs
Meus queridos Irmãos
Todos sabemos bem por experiência: esperar, e esperar quando a vinda de alguém está eminente, cria tensão, expectativa, uma palpitação ansiosa de coração. Diz a sábia raposa ao Principezinho:
«Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração…».
É certo que as relações precisam de ritos, mas o incerto e o não programado é o que faz a sua maravilha, e também o seu drama.
A espera antecipa a presença da pessoa que está para vir. Como também os grandes e decisivos acontecimentos da nossa vida, aqueles que conseguimos prever e organizar com antecipação, estão marcados pela natural tensão entre o desejo e o receio do seu acontecer. Não há futuro sem advento, sem busca, sem esperança, sem desejo. Todas as relações abertas ao futuro são promessa de um porvir, incerto e desconhecido ainda, mas querido e desejado, precisamente, na vinda do outro.
Em sentido litúrgico cristão, falamos de Advento como o tempo que antecede e prepara o Natal, o mistério da vinda de Deus à nossa frágil humanidade. É um tempo de densidade espiritual, marcado por uma nota de contensão, de concentração e de atenção; desafia um olhar para dentro revendo comportamentos e atitudes. Mas o Advento tem também, e essa é a sua nota primeira, a dimensão de orientação para a plenitude que é Cristo, o futuro (já presente) que nos atrai e nos espera.
Com a leitura de hoje de Lucas, o evangelista que nos acompanha este ano, a liturgia quer assinalar esse sentido de Advento que é a orientação da história humana, da nossa existência crente, de toda a Igreja para Cristo, nossa meta e finalização. Contudo, a vinda do Reino esperado acontece dentro dos dramas violentos da história e das alterações cósmicas. Não é mero caminho evolutivo; há um mundo antigo, velho, marcado pelo caos destruidor da violência e da morte que precisa de ser redimido. Por isso precisamos de pedir, continuamente, com o salmista: «Mostrai-me, Senhor, os vossos caminhos, ensinai-me as vossas veredas».
O fim esperado ajuda-nos a atravessar e a viver as tensões, as crises, a dureza e a violência imprevista do quotidiano, o inesperado de situações limite em que somos por inteiro postos à prova, no corpo e na alma. Os traços de linguagem apocalítica do texto de hoje assinalam que a manifestação de Cristo na glória será precedida de acontecimentos perturbadores. Haverá guerras, violência aos cristãos, abalos cósmicos… O caos/a desordem é uma possibilidade a não descurar no evoluir da história humana… não por vontade de Deus, mas como resultado das nossas opções. O mundo revela-se como um lugar perigoso: nada nem ninguém está em segurança.
A Palavra do evangelho de hoje, através da simbólica apocalítica, procura despertar nos fiéis uma consciência crítica. Cristo apela-nos a uma vigilância atenta, a um estar despertos perante o que acontece: «vigiai e orai em todo o tempo». Para não sermos apanhados desprevenidos nem ficarmos vencidos, interiormente, pela violência imprevista dos acontecimentos. Podemos crescer, através deles, em confiança, em esperança, em solidariedade e cuidado atento uns dos outros. Os mais perturbadores acontecimentos, os mais insólitos sinais cósmicos (as alterações no sol, na lua, nas estrelas, a agitação do mar e a angústia das nações) têm, paradoxalmente, uma dimensão positiva: podem ser atravessados com fé e esperança, como acontecimentos libertadores e não esmagantes, como oportunidades salvíficas e não como armadilhas: «Quando estas coisas começarem a acontecer, erguei-vos e levantai a cabeça, porque a vossa libertação está próxima».
Na linguagem de Lucas, os nossos corações podem ficar pesados, obscurecidos e embriagados com a vertigem dos acontecimentos, com as seduções dos estilos de vida contemporânea (de alta competição, de facilidade comunicativa, de solicitação ao consumo, de eficácia sempre exigida no desempenho …). «Tende cuidado convosco, não suceda que os vossos corações se tornem pesados pela intemperança, a embriaguez e as preocupações da vida». Podemos entrar nessa lógica dominante e perdermos o sentido do humano e de toda a fragilidade e imprevisibilidade que o marca. Podemos cair no risco da insensibilidade às dores do mundo de hoje, dos nossos irmãos, dos familiares mais próximos, e até às nossas dores interiores, tão silenciosas e fundas… Podemos alinhar com a lógica da violência do mais forte, com manipulação fácil das emoções e dos sentimentos, como fazem hoje os populismos. Há tantos modos de ficarmos embriagados, indiferentes ao drama do mundo. Isso, na linguagem de Lucas, seria cair numa armadilha, numa ilusão (embriaguez) que nos tornaria prisioneiros, quais presas de uma lógica dominante que nos quer anestesiados para assim, mais facilmente, nos instrumentalizar e nos manipular.
Na esperança da sua vinda, o Senhor nos «faça crescer e abundar na caridade uns para com os outros», como nos apela S. Paulo na segunda leitura.
Pe. António Martins, Domingo I do Advento
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2018/12/01 - MARANATHA! Vem, Senhor Jesus! Preparar o Advento com um tempo de paragem
Propõe-se um dia de paragem no ritmo quotidiano das nossas vidas, com a deslocação física para um outro espaço. Será uma introdução orante ao tempo litúrgico do Advento, marcada pela esperança e pelo desejo, uma meditação pessoal (lectio divina) a partir dos textos do evangelho de Lucas dos quatro domingos do Advento. O dia termina com um momento celebrativo (Vésperas), que se deseja belo e profundo. Recomenda-se que cada participante leve uma Bíblia para poder rezar os textos.
AUDIO DAS MEDITAÇÕES E HOMILIA
Meditação da Manhã
Meditação da Tarde
Homilia
LOCAL E DATA
Seminário da Luz, 1 de Dezembro, 10h – 17.30h
HORÁRIO
10.00: Chegada
10.15: Momento de oração (um cântico)
10.30: Primeira meditação
11.00: Tempo de silêncio
12.00: Eucaristia (oração dos fiéis partilhada)
13.00: Almoço partilhado
14.30: Segunda meditação
15:00: Tempo de silêncio
16.30: Vésperas/Oração final
INSCRIÇÕES
Na Capela do Rato, no final da Eucaristia Dominical das 11h30 ou pelo e-mail capeladorato@gmail.com
Novembro
2018/11/29 - Conferência contra a Pena de Morte – Comunidade de Sant’Egídio
No âmbito da celebração do Dia Internacional das Cidades pela Vida – Cidades contra a Pena de Morte “, a Comunidade de Sant’Egídio em Portugal tem o prazer de convidá-lo a juntar-se a este movimento mundial. Este ano, Joaquin Martinez, um ex-condenado à pena de morte nos EUA, que esteve 5 anos no corredor da morte, até ser considerado inocente, vai estar em Portugal para dar o seu testemunho.
A Conferência contra a Pena de Morte será no próximo dia 29 de Novembro (quinta-feira) às 18h30 na Capela do Rato.
O dia Internacional Cidades pela Vida – Cidades contra a Pena de Morte, representa a maior mobilização abolicionista a nível internacional, tendo como objectivo de estabelecer um diálogo entre a sociedade e os órgãos governação, com intuito de encontrar uma forma mais elevada e civilizada de justiça, capaz de finalmente renunciar à pena de morte e a qualquer tipo de violência. Este evento surgiu, pela primeira vez em 2002, por iniciativa da Comunidade de Sant’Egídio, para assinalar o aniversário da primeira abolição da pena de morte da História, que ocorreu no Grão-Ducado da Toscana, em Itália, no dia 30 de Novembro de 1786.
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2018/11/29 - Percurso de Preparação para os Sacramentos da Iniciação Cristã
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2018/11/26 - Ciclo de reflexão sobre situações-limite e espiritualidade - Doente oncológico e espiritualidade
Um ciclo de reflexão sobre situações-limite e espiritualidade vai ter início no dia 26 de novembro, às 21h, na Capela do Rato. A primeira mesa-redonda será sobre o “Doente oncológico e espiritualidade” e terá como participantes os médicos Domingos Machado, José Carlos Nunes Marques e Vasco Fonseca, o padre Jorge Anselmo e a gestora Madalena d’Orey. A moderação será do médico Fernando Mena Ferreira Martins. A entrada é livre.
Nota de enquadramento – Pe. António Martins
Mais cedo ou mais tarde, cada um de nós é confrontado com a surpresa de situações limite. A nossa vida fica exposta, em sua radical vulnerabilidade, ao perigo e ao risco. A inesperada notícia de uma doença cancerígena, o progressivo apagamento de um familiar em contexto de cuidados paliativos, o luto sofrido pela partida de uma pessoa querida ou a perda de um projeto em que se acreditou, a solidão dolorosamente experimentada em contextos de fragilidade relacional, física ou psíquica, obrigam a um violento repensar a vida nos seus fundamentos e nas suas perspetivas.
As experiências de radical passividade, provocando uma crise do sentido da nossa existência, são também oportunidades para crescer em humanidade, para nos abrirmos a novas e inesperadas dimensões, para redescobrirmos em nós próprios recursos antes impensáveis. A verdade do humano experimenta-se e aprofunda-se, de forma intensa, nas situações de extrema passividade. Esse crescimento na verdade de si mesmo, na integração consciente da própria vulnerabilidade, na busca de um sentido para o vivido, chamamos «espiritualidade».
O sociólogo francês Michel de Foucault, nada suspeito de confessionalidade, define assim «espiritualidade»: «Creio que se poderia chamar espiritualidade a procura, a prática, a experiência, pelas quais o sujeito opera sobre si mesmo as transformações necessárias para ter acesso à verdade». A espiritualidade, enquanto crescimento interior na verdade e na aceitação de si mesmo, é dimensão comum a crentes e a não-crentes. Esta procura espiritual pode expressar-se e celebrar-se nos ritos, nos gestos, na sabedoria e nas escrituras das diferentes tradições religiosas. Em sentido especificamente cristão, a espiritualidade é a vida interior de cada pessoa na abertura ao Espírito Santo que vem em socorro/consolação da nossa fragilidade.
Cada vez mais a prática média e hospitalar insere o acompanhamento espiritual no processo saúde-doença. A espiritualidade modifica o prognostico da doença e ajuda um processo de cura, com novas formas de resiliência, de relação, de confiança em si mesmo e nos outros. A partir da experiência e dos saberes de tantos irmãos e irmãs na fé e em humanidade, a Comunidade da Capela do Rato propõe, no presente ano pastoral de 2018-2019, quatro encontros em que se procura pensar e partilhar a experiência intensa dos limites como lugares e oportunidades de crescimento espiritual e de cidadania partilhada.
Queremos dar corpo a este projeto convocando em cada encontro uma complementaridade de saberes e experiências. Valoriza-se o conhecimento científico e a prática médica e de enfermagem, o acompanhamento espiritual e religioso que ajuda a integrar o vivido numa experiência de sentido e de pacificação interior, o compromisso cívico de cuidar de outras pessoas em idênticas situações (formas de voluntariado e de associativismo).
Pe. António Martins
2018/11/25 - 'Venha a nós o vosso Reino' (homilia)
Minhas queridas Irmãs
Meus queridos Irmãos
A solenidade de Cristo-Rei foi instituída quando surgiam as ideologias ateias marxistas e fascistas querendo impor uma ordem contrária ao cristianismo. Na origem da solenidade de Cristo Rei havia uma nota de saudosismo de cristandade, de espírito de cruzada, de reconquista cristã, de recuperação de um império cristão. Esta dimensão saudosista continua presente ainda hoje num certo catolicismo integrista, em permanente luta contra o mundo e o evoluir da história, criando sempre inimigos a combater.
Os textos evangélicos da paixão oferecem o critério para interpretar o sentido desta festa: o Rei é um Crucificado; Jesus é proclamado rei no trono anti-realeza, anti-triunfo, anti-glória da cruz. O seu reino não é deste mundo, à maneira da lógica dos reinos da terra, expressão de poder, de força, de fausto, de conquista… É da ordem do silêncio, do despojamento, como a semente que cresce no interior da terra, ou como fermento que leveda a massa. O reinado de Cristo é de crescimento silencioso no íntimo dos corações e das consciências, criando relações pacificadas e reconciliadas. A sua conquista é através da sedução do amor.
O evangelho de João coloca frente-a-frente Pilatos, a expressão do poder organizado em estruturas opressoras políticas e militares, e Jesus, indefeso, exposto em toda a sua vulnerabilidade. Instituído em toda a autoridade como representante do Imperador, Pilatos é senhor do destino de vida ou de morte de Jesus. Frente-a-frente estão o poder e o anti-poder, a força e a vulnerabilidade, a violência organizada e a vítima silenciosa, um militar com os seus exércitos e um homem desarmado e manietado. Na audácia de S. João, Jesus é apresentado como rei ridicularizado, no grotesco de uma paródica, como se tratasse de uma farsa e de uma falsificação. Quem pode acreditar num rei assim tão vulnerável e indefeso, exposto ao ridículo?… Mas este que é humilhado, parodiado e escarnecido é acreditado como «o príncipe dos reis da terra», na linguagem subversiva do Apocalipse. Na suprema humilhação da Cruz, aí, precisamente aí nesse total despojamento, Cristo é exaltado, glorificado, reconhecido e acreditado como rei: «É como dizes: sou rei».
Proclamando Cristo crucificado rei, S. João apresenta-o como um rei ao contrário, como um rei que é a antítese dos reis e dos reinos deste mundo. A realeza de Cristo tem uma dimensão fraturante, é algo de desconstruído, virado do avesso, visto ao contrário. E isso é de uma tremenda e desconcertante audácia. A realeza e o reinado de Cristo, precisamente por não serem deste mundo, são portadores de uma tremenda e inesgotável profecia política. Todas as lógicas da força, da manipulação, de domínio sobre o outro indefeso, de conquista, de manipulação, estão aqui denunciadas. Na realeza do Crucificado, todas as vítimas da opressão de todos os impérios são glorificadas, resgatas do silêncio e do anonimato dos vencidos. Perante as potências do mundo, o cristianismo nascente ousa despojar e relativizar o poder.
Podemos reforçar esta ideia com os textos da literatura apocalítica citados hoje. O livro de Daniel, cheio de visões e de imagens, foi escrito para consolar e encorajar os fiéis judeus num período de perseguição e de colonização forçada. No meio das vítimas da opressão caídas no solo pela espada dos senhores da guerra, proclama (vendo para além das nuvens) o profeta Daniel: «… sobre as nuvens do céu, veio alguém semelhante a um filho do homem»; «Foi-lhe entregue o poder, a honra e a realeza, e todos os povos, nações e línguas O serviram» (Dn). A última palavra não é a dos opressores, a do dos senhores da guerra, pertence a Deus: virá um rei a quem todas as nações hão-de servir. Ingenuidade e ilusão? Ou fermento de esperança e de resistência?…
No início das perseguições romanas aos cristãos surge o livro do Apocalipse, cheio visões e imagens fantasiosas, para fomentar em cada ouvinte/leitor a imaginação de uma resistência ativa: «Ei-l’O que vem entre as nuvens, e todos os olhos O verão, mesmo aqueles que O trespassaram». Os próprios agressores reconhecerão Cristo e a sua soberania. «Eu sou o Alfa e o Ómega», diz o Senhor Deus, «Aquele que é, que era e que há-de vir, o Senhor do Universo». Na linguagem também paradoxal do Apocalipse, o cordeiro imolado é o Senhor do universo. A vítima é o Senhor pela expansão da páscoa, da vida sem limites.
Celebrar hoje a Solenidade de Cristo Rei, é perguntarmo-nos: com que rei estamos? Em que reino queremos habitar? De quem queremos ser aliados: dos senhores da guerra, dos opressores, ou do Crucificado, das vítimas e dos indefesos? Na linguagem inaciana, qual bandeira queremos seguir? Porque, reconheçamos com verdade e humildade, seguir um indefeso não dá prestígio nem segurança. Coloca-nos nas margens, nas periferias, junto dos excluídos, ouvindo e acolhendo o seu grito. Bem sei, a começar por mim, que dentro de nós a fronteira entre um reino e outro nunca está definida. Por isso necessitamos, continuamente, de estar em alerta, em vigilância, em estado de discernimento.
Por isso rezamos continuamente, esperando e agindo nesse sentido: «Venha a nós o vosso reino». O seu reino é da ordem da espera, da procura, do fermento que se dilui, e não da conquista, do resultado quantificado, da organização e da eficácia asseguradas.
Pe. António Martins, Solenidade de Cristo Rei do Universo
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2018/11/22 - 'Diante de Ti, os meus caminhos' de Tomas Halik - Apresentação de Jason Keith Fernandes
PORTUGUÊS
Era Uma Vez Um Rapaz Que Queria Ser Um Urso Polar
Texto da apresentação do livro Diante de Ti, Os Meus Caminhos, autobiografia do teólogo Tomáš Halík na Capela do Rato, Lisboa, 22 Nov 2018.
Diante de Ti, Os Meus Caminhos, Tomáš Halík
Paulinas Editora, 2018, Prior Velho, 432 pp., 23,00 € (PB)
ISBN 9789896736620
Jason Keith Fernandes
O que é que podemos aprender com a história de um rapaz que queria ser um urso polar? Essa é também a preocupação de Tomáš Halík nas primeiras páginas da sua autobiografia intitulada Diante de Ti, Os Meus Caminhos. Será a sua autobiografia somente fruto da sua própria vaidade ou poderiam as lições aprendidas no curso da sua vida ser também úteis para o leitor? Depois de ter lido o livro, posso confirmar que de facto a história do rapaz que não cresceu para ser um urso polar nem presidente do seu país, apesar de ter tido oportunidade, tem muito para nos oferecer. Em grande parte organizados cronologicamente, os treze capítulos do livro encontram-se ligados através do tema dos caminhos, os quais, enquanto ligados à experiência duma pessoa, ecoam várias preocupações universais.
Somente para cumprir as normas duma presentação formal de um livro, permitam-me rapidamente enumerar os seus capítulos. Sem surpresa, o primeiro, O caminho para a fiéI, discute as circunstâncias do nascimento de Halík e o contexto da sua vida inicial. Uma vida que poderia ser descrita como imersão num catolicismo cultural, onde a fé é somente um padrão cultural, em vez de fazer parte de um exercício quotidiano. No final deste capítulo, porém, percebemos como Halík se comprometeu mais substancialmente com a Igreja. Essa atração teve um contexto: a maneira como a Igreja Católica estava a ser reprimida pelas autoridades comunistas da Checoslováquia. O segundo capítulo, O caminho da primavera capta os sentimentos na primavera do 1968:
foi a primavera da minha vida, a primavera da minha fé, a nova primavera da Igreja depois do Concílio Vatiano II, e tudo ao nosso redor e em nós foi impregnado pela inebriante fragância primaveril da esperança de um desanuviamento político e duma vida mais livre (p.54).
Essa primavera política foi efémera, porém, e acabou com a ocupação militar da Checoslováquia pelos exércitos dos países do Bloco Soviético, situação que lançou os fundamentos para a história que será contada. O título O caminho para o sacerdócio deixa o conteúdo do capítulo claro, sendo seguido pelo capítulo O caminho da clandestinidade que narra não só as lutas pessoais de um padre clandestino, mas tambem reflete sobre as implicações de ser, em primeiro lugar, um padre num cenário marcado pela repressão e pela perseguição. Dado que a aurora vem depois da cada noite, por mais escura que seja, O caminho do despertar narra o eventual relaxamento que o comunismo teve sobre os países da Europa Central e do Leste, e o papel da Igreja em facultar esse abrandamento, desafiando o regime e também motivando espiritualmente a população através de um Decénio para comemorar o centenário de Santo Adalberto. O caminho da catarse começa com o primeiro ano do Decénio, o ano da Santa Inês, que foi também o ano da sua canonização. Foi próximo desta altura que os protestos em Praga começaram, os quais iriam eventualmente mudar o rosto do país para sempre.
A discussão presente no capítulo O caminho da transição interessou-me bastante por mostrar a maneira como o dia prometido da libertação política não implicou que a Igreja tivesse necessariamente um espaço amplo em que pudesse operar. Ao contrário, resultou na irrupção de cada vez maiores desafios. O Caminho da Fundação narra a história da criação da Academia Cristã Checa, um sonho antigo de Halík que procurava restabelecer a administração espiritual dos estudantes na Igreja do Santíssimo Salvador em Praga e o lugar dos diálogos ecuménicos e inter-religiosos. O Caminho da Noite descreve a experiência traumática quando Halík enfrentou a oposição do chefe do departamento de Teologia. O Caminho da Política narra as consequências sofridas quando o nome do autor surgiu como um dos possíveis sucessores a Vaclav Havel como Presidente da República. Devo sublinhar que a parte que gostei mais ocorreu quando Halík indica que decidiu não dizer um não absoluto. Um não absoluto aplica-se apenas a coisas que são realmente moralmente erradas em si mesmas. O não que disse à polícia secreta quando me tentou dobrar para uma cooperação. Aceitar uma candidatura presidencial é certamente arriscada, incomum, etc. etc., mas não é imoral. (p.283)
Os caminhos para mundo descreve as viagens de Halík aos quatro cantos do mundo, os quais aparecem sempre como momentos de aprendizagem. O capítulo final intitula-se O caminho para o silêncio eterno.
No seu ensaio A Morte do Autor, Roland Barthes escreve que dar o texto a um autor e atribuir-lhe apenas a correspondente interpretação seria impor-lhe um limite. Respeitando, portanto, Barthes, e Halík também, o que vou fazer nesta apresentação será oferecer as minhas próprias respostas ao livro, e falar através das várias localizações que habito enquanto católico de Goa, na Índia, atualmente a viver em Portugal. Esta apresentação não será, creio eu, inadequada, dado que tanto Goa como a Índia se encontram referidos no texto, provavelmente mais a Índia do que Goa.
Há dois aspetos da descrição dos anos iniciais da vida de Halik com que me identifiquei instintivamente. O primeiro trata de uma sociedade e de uma Igreja sob opressão, e o segunda das mudanças ocorridas depois do Concelho Vaticano II e as alterações políticas que as acompanharam. Em Goa, que foi invadida pela Índia em 1961, os anos das duras alterações políticas, a asfixia da cultura católica e as alterações do Concelho vieram em rápida sucessão. É verdade que a sociedade cristã em Goa e na Índia, em grande parte, não se confrontaram com o tipo da repressão com que a Igreja checoslovaca teve que lidar. Todavia, a repressão na Índia foi mais insidiosa, escondendo-se por detrás da retórica da democracia. Os cristãos não foram assim somente forçados a viver dentro das restrições de um poder cada vez mais fascista, mas nos cantos do país onde havia pouco ou nenhum foco. Cristãos, as suas igrejas e bens foram assim atacados ferozmente. Este tipo da repressão não pôde deixar de ter um impacto profundo na vida da Igreja, tal como aconteceu na Checoslováquia.
Por um lado esta repressão obrigou-nos, clero e leigos, a funcionar com um inimigo na mente, ao extremo de que quando o inimigo já lá não se encontrava, fomos à procura de outro para estabelecer a ortodoxia como um porto seguro. Esta busca teve impactos devastadores, impedindo a possibilidade do diálogo, o qual se encontra no coração do contrato social. Estas foram as circunstâncias que garantiram que Halík, que estava a ensinar na faculdade da teologia, tenha encontrado resistência por parte do chefe do seu próprio departamento, acabando por sair e ir para a faculdade de letras onde, atualmente, ainda se mantém.
Outra consequência de viver sob opressão implica lidar com aqueles que colaboram com “o inimigo” ou com os poderes que controlam o Estado. Halík documenta este aspeto dentro da igreja institucional da Checoslováquia. A colaboração surge, porém, sob várias formas, e gostaria de sugerir que, no caso indiano, foi através do muito mal-entendido projeto de inculturação. No capítulo Os caminhos para o Mundo Halík refere a maneira como este projeto foi articulado na Índia. Halík observa que havia nas várias dioceses indianas a tentativa de tornar a liturgia mais consonante com as práticas locais. Ele conta que a determinada altura foi convidado a dançar num estilo checo durante a liturgia, tal como os locais. Felizmente Halík declinou o convite sugerindo que a dança não era a maneira como os checos se expressavam durante a liturgia! Na minha opinião, um dos maiores problemas com a inculturação na Índia prende-se com a tentativa de a igreja institucional alinhar com a cultura bramânica do Estado indiano. Portanto, o que ela fez foi rejeitar as culturas das castas não dominantes, minar as culturas europeias que já faziam parte da cultura indígena e musealizar as práticas culturais dos grupos tribais. A divulgação acontece através dos diálogos inter-religiosos em grande parte apenas com o Hinduísmo, e quase nenhum com Islão, o que parece apontar a maneira como, consciente ou inconscientemente, a Igreja institucional tenta dialogar com poder.
Neste contexto, Halík apresenta-nos a inculturação – tal como tantas outras pessoas perspicazes, como por exemplo o Papa Bento XVI – não como a adoção de práticas peculiares, mas sim como um processo de diálogo com as pessoas à nossa volta, dando testemunho dos valores do evangelho. Talvez um ótimo exemplo deste processo de inculturação e evangelização sejam as conversas iniciadas pela Academia Cristã Checa, que lançou debates sobre vários temas, tais como o racismo e o nacionalismo, a constituição e o novo sistema jurídico político da energia, as reformas na educação e na saúde, chegando a tocar em temas sensíveis, como a homossexualidade. Estes debates vão além dos convites habituais, tendo lugar longe dos centros privilegiados, como a capital nacional em Praga.
Conversa, ou diálogo, é talvez, o leitmotif deste livro. Tenho que confessar que fiquei particularmente impressionado com dois episódios. O primeiro, quando em Roma Halík viajou ao centro da Opus Dei familiarizando-se com a instituição, e o segundo quando visitou Écône, onde assistiu à consagração dos bispos pelo Bispo Lefebre. Para mim estes episódios marcam a atitude de um verdadeiro académico: alguém que não baseia a sua opinião no que ouve, formando-a depois de cuidadosa investigação e de reflexão sobre o assunto. Como Halík afirma na página 234 “Tudo precisa de ser visto de vários ângulos”. Halík tambem recorda o Padre Josef Zverina – uma das figuras mais importantes na sua vida – que costumava dizer que o princípio católico básico é “não só, mas também”, sugerindo que esta atitude, marcada pelo ponderação e abertura às nuances, é fundamentalmente católica. Talvez haja algo mais aqui. A minha impressão é que a história de Jan Huss, o teólogo checo do século XIV que foi acusado e executado por heresia, influenciou esta atitude por parte de Halík. Este episódio marcou não somente o jovem Halík, mas enfatiza a importância de estar aberto ao diálogo – o que poderia ter evitado a morte de Huss – e especialmente a necessidade de estabelecer comunicação com grupos evangélicos que se alicerçam nas memórias do movimento hussita.
Um dos temas que percorre este livro é a questão: qual é afinal o papel do padre? A pergunta não é tão estranha assim considerando que, como padre clandestino na Checoslováquia comunista, Halík não poderia utlizar os marcadores tradicionais de um padre. Vejamos a possível imagem do novo padre nas palavras do Jesuíta Mikulasek a Halík quando o autor falou com o primeiro sobre o seu desejo de entrar no sacerdócio: “o sacerdote do futuro deveria ter duas profissões, trabalhando numa profissão secular e, aí estar principalmente disponível para as pessoas sem fé e para as que andam à procura” (p. 96). Mais tarde, nas páginas 258 e 259 Halík, como um psicólogo treinado, avisa-nos sobre os perigos de “cultivar em nome do ideal romântico de um sacerdote santo e a pressão psicológica causada pela interiorização deste ideal no decorrer da formação no seminário”. Noutras partes do livro, mais uma vez salientando o facto de que os bispos e padres são também pessoas como os leigos, ele imagina o que as pessoas pensariam se elas vissem os seus bispos em fatos de banho a brincar na praia.
Se estes foram os aspetos com que me identifiquei, houve também partes do livro com as quais não posso concordar. A autobiografia de Halík encontra-se marcada por uma forte identificação com a nação. Como católico, e particularmente sensível ao modo como os vários grupos na Índia foram inferiorizados pelo Estado, esta intensa identificação com a nação não é algo que me atraia. De facto, frequentemente me questiono se o entrelaçamento entre a Igreja e Nação tão comum na Europa não contraria a vocação universal da Igreja de tornar discípulos de todas as nações (Mt. 28:19) e de garantir que, tal como aparece nos Gálatas 3:28, “Não há nem judeu nem gentio, escravo ou homem livre, homem ou mulher”, mas uma nação em Jesus Cristo. É correto que a Igreja se identifique com o local. Apesar de tudo, como antropólogo, reconheço que é aí que a fé se enraíza. Não obstante, devemos dar o nosso melhor para garantir que este local se encontra ligado ao nacional, sendo o último o produto de antigos e continuados projetos de violentas punições.
Neste sentido, termino com uma observação final sobre outra ideia que me ocorreu e que se relaciona não apenas com o ênfase que Halík coloca no diálogo, mas que nos toca a nós em Portugal:
Por outro lado, apercebi-me tambem de que a tão condenanda sociedade pluralista secular, com os seus ideais iluministas de tolerância, direitos humanos e liberdades civis, protege a Igreja da tentação das infelizes recaídas do passado. É bom que vivamos numa sociedade democrática, não anseio de todo por um «Estado católico». Onde quer que a fé se torne numa ideologia estatal, eu serei, em nome da fé e em nome da liberdade, o primeiro dissidente.” (pp. 253- 254)
Ler estas linhas recordou-me do papel da Igreja Católica no debate sobre a eutanásia neste país. Por muito que admita os problemas éticos associados à eutanásia, reconhecendo-o mesmo enquanto pecado, houve momentos em que senti que a Igreja Católica – ou os católicos em Portugal – ultrapassou o limite, chegando demasiado perto de uma identificação do país com o Catolicismo. Acredito que o nosso trabalho seja tornar a posição moral clara, de a divulgar, mas também de nos lembrarmos que assumir a legalidade do Estado como sendo a única legitimamente possível em sociedade, é correr o risco que marcou as diferentes organizações políticas do século XX – seja o comunismo, os fascismos, os liberalismos precoces, ou de facto, o nosso próprio estado corporativista em Portugal, personificado no Estado Novo. Será importante relembrar os intelectuais católicos que precederam estas situações e as suas vozes que se insurgiram frequentemente contra a centralização de todo o poder no estado, argumentando a favor da sua dispersão pela sociedade.
Termino aqui, mas gostaria primeiro de vos agradecer a atenção dispensada, ao P. António Martins a oportunidade de apresentar este livro, e a Mons. Tomáš Halík por partilhar a sua história de vida connosco.
INGLÊS
About The Boy Who Wanted to be a Polar Bear
Text of the presentation of Diante de Ti, Os Meus Caminhos, the autobiography of the theologian Tomáš Halík at the Capela do Rato, Lisbon, 22 Nov 2018.
Diante de Ti, Os Meus Caminhos, By Tomáš Halík
Paulinas Editora, 2018, Prior Velho, 432 pp., 23,00 € (PB)
ISBN 9789896736620
Jason Keith Fernandes
What can we possibly learn from the story of a boy who wanted to grow up to be a polar bear? This is also the concern of Tomáš Halík in the initial pages of his autobiography entitled Diante de Ti, Os Meus Caminhos (Before You, My Paths). Would his autobiography be merely a pandering to his own vanity, or does he have insights to share from his life that would benefit the reader? Having read the rather weighty text, I can say that indeed the story of the boy who did not grow up to be a polar bear, nor to be the President of his country, though he did have the possibility to be the latter, does have much to offer us. Broadly – but not entirely – arranged chronologically, the thirteen chapters of the book are bound together by the theme of caminhos, or routes, which, while rooted in the experience of a single individual, speak to a number of universal experiences.
If only to fulfill the norms of a formal presentation of the book, allow me to quickly run through its chapters. Not surprisingly the first chapter titled O Caminho para a fé (the road to faith) discusses the circumstances of Halík’s birth and the context of this early life, one that could possibly be described as an immersion in cultural Catholicism, where the faith is a cultural marker, rather than part of a system of quotidian exercise. Already by the end of this chapter, however, we are introduced to the manner in which Halík comes to be attracted to commit to the Church in a more substantial way. There is a context to this attraction, given the manner in which the Catholic Church was being repressed by the Czech state authorities under communism. The second chapter, O caminho da primavera (The road to spring) captures the sentiments in the spring of 1968 which, in his words: It was the spring of my life, the spring of my faith, the new spring of the Church after the Vatican Council II, and everything around and in us was impregnated with the intoxicating spring fragrance of hope for a political thawing and a freer life (p.54).
The political spring was not to last, however, and instead ended with the military occupation of Czechoslovakia by the combined military of the countries comprising the Soviet Block, which lays the foundations for the history that is to unfold in the subsequent chapters. O caminho para o Sacerdócio (The road to the priesthood) is self-evident, and is followed by the chapter O caminho da Clandestinidade (The road towards the underground) which discusses not only the personal trials of being a priest in hiding, but reflects on what it means to be a priest at all, and a priest in scenario marked by repression and persecution. Given that the dawn must come even after the longest night, O caminho do despertar (The road to awakening) speaks of the eventual relaxation in the hold of communism over Central and Eastern Europe and the role of the church in aiding this thaw, challenging the regime and also engaging the population spiritually through a Decennial to commemorate the centenary of Saint Adalbert. O Caminho do Catarse (The road to catharsis), begins with the first year of the Decennial, the year of Saint Agnes, also the year of her canonization. It was around this time the protests in Prague commenced, which would eventually lead to the face of the country being changed forever. The discussion in O Caminho da Transição (The road to transition) is perhaps one that interested me the most, because it demonstrated the way in which all too often the promised day of political liberation does not translate into an era of unimpeded operation for the church, rather, it heralds the opening of ever new challenges. O Caminho da Fundação (The road to foundation) engages with the creation of the Czech Christian Academy, Halík’s long standing dream to reestablish the student chaplaincy (which later became the Academic Parish) at the Church of the Holy Saviour in Prague and the site for ecumenical and inter-religious dialogue. O Caminho da Noite (The Road of Night) describes the traumatic experience in which things did not run so well when Halík ran into opposition with the head of the Department of Theology. O Caminho da Politica (The road towards politics) deals with the scenarios when Halík’s name emerged as a possible successor to Vaclav Havel as President of the Republic. I have to highlight that the portion that really appealed to me here was that where he indicates that he decided to not offer an absolute not. An absolute no is to be used only when things are inherently morally wrong. The no that I offered the secret police when they tried to bend me into cooperation. To accept a presidential candidature is certainly risky, uncommon, etc. etc. but not immoral.
Os Caminhos para Mundo (The roads to the world) describe Halík’s travels, which extended to all of the continents and were always, it appears, moments for learning. And the final chapter is titled O caminho para o silencio eterno (The road towards eternal silence). In his essay, ‘The Death of the Author’ Roland Barthes argues that to “To give a text an author” and assign a single, corresponding interpretation to it “is to impose a limit on that text”. Respecting both Barthes, and Halík, therefore, what I will do in this presentation of the book will be to offer my own responses to the book, speaking from the various locations that I inhabit, a Catholic from Goa in India, and currently living in Portugal. Such a presentation would not, I believe, be out of place given that both Goa and India feature in the book, India more so than Goa.
There were two aspects of Halík’s description of the early years of his life that I instinctively identified with. The first was that of a society and Church under oppression, and the second that the changes following the Vatican Council II and political change came together. In Goa, which was invaded by India in 1961, the years of hard political change, the suffocation of a Catholic culture, and the changes of the Council came in quick succession. It is true that Christian society in both Goa and India do not, in the large part, face the kind of repression that the Church in Czechoslovakia faced. However, the repression in India is more insidious, where hiding behind the rhetoric of democracy, Christians are not only forced to live within the constraints of an increasingly fascist power, but in corners of the country where there is no or little spotlight, Christians, their churches and property are ferociously attacked. This kind of oppression, as in Czechoslovakia, and so compellingly narrated by Halík, cannot but have a profound impact on the life of the Church.
On the one hand it forces us, clergy and laity, to operate with an enemy in mind, to the extent that even when the enemy is no longer there, we go looking for an enemy with the intention of establishing orthodoxy as a safe space. This has devastating impacts on a society, impeding the possibility for dialogue, which is at the heart of the social contract. Such were the circumstances that ensured that Halík, who was teaching in the faculty of theology, encountered resistance from his department head leading to his departure to the faculty of the liberal arts where he has been happily based for years now.
Another aspect of living with oppression is that this situation is also encountered those who collaborate with “the enemy” or the powers that control the state. Halík documents this aspect of those within the institutional Church in Czechoslovakia. Collaboration comes in different forms, however, and I would like to suggest that in the Indian case, this comes in the form of the much misunderstood project of inculturation. In his chapter Os Caminhos para Mundo Halík refers to the way in which this project has been articulated in India. Halík observes that, in various dioceses in India, efforts were made to bring the liturgy more in line with local practices. He recounts that at one time he was invited to dance a Czech dance at the liturgy, just as was done by the locals there. Fortunately Halík refused suggesting that dancing was not the way in which Czechs expressed themselves in the course of the liturgy! In my opinion, one of the major problems with inculturation in India is that it is an effort by the institutional church to align itself with the brahmanical culture of the Indian state. Thus, what it does is to dismiss non-dominant caste cultures, to undermine European cultures that have become part of the local culture, and museumize cultural practices of tribal groups. The outreach that takes place in terms of inter-religious dialogue is largely with Hinduism, and little or none with Islam, speaking to the manner in which consciously or unconsciously the institutional church seeks to dialogue with power.
In this context Halík offers us, as have many other persons with sharp insight, such as Pope Benedict XVI, that, rather than be seen as the adoption of discrete practices, inculturation is the process of dialoguing with those around us, and bearing testament to the values of the gospel. A great example of this process of inculturation and evangelization are, perhaps, the conversations initiated by the Czech Christian Academy. These discussions touched on a variety of topics, racism and nationalism, the constitution and the new juridical system, energy policy, reforms in education and health, and including such sensitive issues as homosexuality. These debates go beyond the invitation of the usual suspects, but more importantly take place outside of centres of privilege, such as the national capital in Prague.
Conversation, or dialogue, is, perhaps, the leitmotif of this book. I have to confess that I was particularly impressed by two episodes in particular. One, where, when in Rome, Halík travels to the centre of the Opus Dei and familiarizes himself with the institution, and secondly his visit to Écône where he attended the controversial consecration of bishops by Bishop Lefebre. What struck me in these episodes was that this was the attitude of the genuine scholar. Someone who will not base his opinion on what s/he hears, but will form it subsequent to personal engagement with, and reflection on the issue. As he says on page 234 “Tudo precisa de ser visto de vários ângulos” (everything needs to be seen from various angles). At the same time, Halík recalling Fr. Josef Zverina, one of the significant figures in his life, who suggested that the basic Catholic principle is “não só, mas também” (Not only, but also), also suggests that this attitude, of examining, being open to nuances, is also necessarily Catholic. Perhaps there is a history here. My own impression is that the history the 14th century Czech theologian Jan Huss, who was accused of, and executed for, heresy has a role to play in this attitude. This history has profoundly influenced Halík, not only in his childhood interest in Huss, but also in emphasizing the importance of openness to dialogue- which could have avoided the execution of Huss, but also in the need for dialogue with evangelical groups who build on the memories of the Hussite movement.
One of the questions that animates a portion of this book is what is the role of a priest? This is not an unsurprising question given that, as a clandestine priest, Halík in communist Czechoslovakia could not simply take on the traditional external markers of a priest. We see the possible image of the new priest in the words of the Jesuit Mikulasek to Halík when the latter spoke to him about his desire to enter the priesthood on p. 96 “o sacerdote do future: deveria ter duas profissões, trabalhando numa profissão secular e, aí, estar principalmente disponível para as pessoas sem fé e para as que andam à procura” (The priest of the future: should have two occupations, working in a secular profession, and from there, always available to people without faith, and those who seek for it). Later, on pages 258 and 259 he warns, as a trained psychologist of the dangers of “cultivar em nome do ideal romantic de um sacerdote santo e a pressao psicologica causada pela interiorizacao deste ideal no decorrer da formacao no seminario” (cultivating the image of a saintly priest in the name of a romantic idea, and the psychological pressure caused by the internalisation of this ideal in the course of formation at the seminary). At other times in the book, once again highlighting the fact that Bishops and priests are also ordinary people, he imagines what people would think if they saw their bishops in swim suits having fun on the beach.
If these are aspects I identified with, however, there were also portions that I just could not. Halík’s autobiography is marked by a strong identification with the nation, and the national. As a Catholic from Goa, and one who is particularly sensitive to the way in which various groups in India have been minoritized by the state, this intense identification with the national is not something that rocks my world. Indeed, I often wonder whether the twining of the Church with the national, so much the flavour of Catholicism in Europe goes against the universal vocation of the Church we are called to “make disciples of all the nations” (Mt. 28: 19) but in doing so are also called to ensure that as instructed in Galatians 3:28 “There is neither Jew nor Gentile, neither slave nor free, nor is there male and female” but be one nation (?) in Christ Jesus. It is right that the Church identify with the local. After all, as an anthropologist, I recognise that this is where the faith is rooted. However, we should do our best to make sure that this local does not get conflated with the national, the latter being the product of ancient, and ever-continuing projects of violent disciplining.
On this note, I will end with a final observation on another idea that struck me and which I think speaks not only to Halík’s emphasis on dialogue, but to us in Portugal. On the other hand, I realized that the much condemened pluralist secular society, with its Enlightenment values of tolerance, human rights and civic liberties, protects the Church from temptation of the unhappy relapses to the past. It is good that we live in a democratic society, not at all desirous of a “Catholic State”. Were the faith to turn into a statal ideology, I would be, in the name of liberty, the first dissident.
Reading these lines brought to my mind the role of the Catholic church in the entire debate around euthanasia in this country. As much as I recognise the ethical problems with euthanasia, even recognise it as a sin, there were times, when I felt that the Catholic church, or bodies of Catholics in Portugal, overstepped the mark, moving too close to an insistent identification of Portugal with Catholicism. Our job, I believe, is to make the moral position clear, to advertise it, but to remember that conflating the legality of the State, as the only possible legality in society is to make the mistake that marked the variety of political organisations that marked the 20th century – whether communism, fascisms, early liberalisms, or indeed, our very own corporate state in Portugal, embodied in the Estado Novo. It would be worthwhile to go back to the Catholic intellectuals who preceded these situations and remember that their voices were very often raised against the centralization of all power in the state, making an argument for a dispersal of power through society.
I will end on this note, but not before thanking you for your attention, Fr. Antonio Martins, for the opportunity to present this book, and to Fr. Tomáš Halík for sharing his life story with us.
2018/11/22 - 'Diante de Ti, os meus caminhos' de Tomas Halik - Apresentação
O padre, teólogo, filósofo e ensaísta Tomas Halik estará mais uma vez entre nós, desta vez para apresentar o seu novo livro “Diante de Ti, os meus caminhos”, das Paulinas. Nesta obra, percorre a história da sua vida, da Igreja clandestina ao labirinto da liberdade. Será dia 22 de novembro, às 18.30h, na Capela do Rato. A não perder!
AUDIO DA APRESENTAÇÃO
2018/11/11 - A autenticidade dos gestos (homilia)
Somos a densidade e a intensidade dos nossos gestos. Cada gesto diz a profundidade que nos habita, ou a falsidade e o interesse que nos movem. Há gestos calculados e gestos espontâneos; há gestos feitos para o público, e gestos discretos, silenciosos, que ninguém vê; há gestos mecânicos, rituais, institucionais, e gestos pessoais, próprios, que nos revelam e nos anunciam. Há gestos feitos por interesse e gestos inteiramente gratuitos, sem cálculo. Somos a verdade e a autenticidade dos nossos gestos.
Reconhecemos, também, que a maior parte dos nossos gestos estão codificados socialmente; são expressões da cultura e da formação recebidas, do ambiente social em que nos inserimos. Obedecem a rituais, a protocolos e a formalidades que nos condicionam, quando não nos oprimem e nos sufocam. Precisamos, sempre, de recuperar a densidade e a espontaneidade dos nossos gestos pessoais, aqueles em que nos revelamos e nos comprometemos por inteiro.
A força e a autenticidade dos gestos, e o compromisso da pessoa que os faz, declina-se, em Marcos, no feminino; são gestos de mulheres ousadas, atrevidas, anónimas, que saem do meio da multidão, destacadas pela ousadia da fé e da coragem. No Evangelho de Marcos as mulheres são expressão dos autênticos e verdadeiros seguidores de Jesus, aqueles e aquelas que se comprometem de corpo e alma, sem falsidade nem retenção de si mesmos.
Ao longo da narrativa de Marcos aparecem cinco mulheres com toda a sua inteireza. A primeira a aparecer é a sogra de Pedro que, depois de curada, começa logo a servir Jesus e os discípulos. A segunda é uma mulher marcada por um fluxo de sangue que, rasgando o bloqueio da multidão, aproxima-se de Jesus e toca-o; ela é expressão de uma fé autêntica: «Filha a tua fé te salvou». A terceira é uma mulher pagã e estrangeira (síro-fenícia) que grita pela cura de sua filha, e não desiste de gritar até ser escutada por Jesus. A quarta é a pobre viúva do Evangelho de hoje que o olhar atento de Jesus resgata do anonimato da multidão em seu gesto grandioso de dar tudo o que tem. A quinta é uma mulher que derrama um caríssimo e irrecuperável perfume na cabeça de Jesus, antes da sua Paixão.
Todas elas são mulheres atrevidas e ousadas em seus gestos excessivos, sem retenção nem regateio. Três delas cumprem os seus gestos num profundo silêncio, sem exigência nem palavra. Os seus gestos são a linguagem de todo o seu ser, expressão do seu coração inteiro que não precisa de se justificar. Por isso mesmo, elas assinalam a condição do discípulo fiel. Em Marcos, o verdadeiro discípulo declina-se no feminino.
O Evangelho deste domingo coloca em contraste os gestos solenes, excessivos, protocolares, rituais, falsos e interesseiros dos escribas e o gesto simples, discreto e, aparentemente, insignificante de uma pobre viúva. Uns são os gestos da arrogância, do exibicionismo e da falsidade do poder religioso; o outro é a autenticidade de um gesto singular, tão despojado, no qual uma mulher desprotegida e pobre se compromete por inteiro. Uns gestos revelam a hipocrisia, a exploração e a capacidade manipuladora de um sistema religioso/clerical injusto; o outro a autenticidade de um coração puro, a inteireza de uma vida feita dádiva ao deitar duas insignificantes moedas (dois cêntimos, poderíamos dizer hoje) no cofre do templo: «Muitos ricos deitavam quantias avultadas»; «Veio uma pobre viúva e deitou duas pequenas moedas».
Com toda a clareza, Jesus convoca os discípulos a não se deixarem contaminar pelo fermento dos escribas, pela corrupção e força manipuladora do poder religioso: «Acautelai-vos dos escribas, que gostam de exibir longas vestes, de receber cumprimentos nas praças, de ocupar os primeiros assentos nas sinagogas e os primeiros lugares nos banquetes». Este poder sagrado não somente vive das riquezas das grandes fortunas como se alimenta também, perversamente, da exploração e da manipulação dos pobres e dos indefesos.
O próprio Jesus afirma, denunciando o comportamento dos escribas, que «devoram as casas das viúvas, com pretexto de fazerem longas rezas». É uma advertência para todos os tempos e para todos os lugares, pois o Senhor bem sabe que os seus discípulos não deixarão de cair na tentação dos primeiros lugares, da ostentação, do exibicionismo, das vestes rituais a assinalar a importância e a arrogância do poder sagrado. Tentação sempre presente na Igreja (e em todas as religiões), e que em nossos dias se revela e se desmascara à vista de todos.
Assinalando o contraste com as avultadas quantias dos ricos e a ganância dos escribas, Jesus apresenta a pobre viúva como expressão, desconcertante, da atitude do autêntico discípulo: o dar sem medida, um dar mais centrado na qualidade, na dádiva de si mesmo, do que na quantidade, na dádiva de coisas. Por outras palavras, a viúva, em sua dádiva insignificante de duas moedinhas deu toda a sua vida; deu-se por inteiro, sem cálculos. Porque deu da sua carência e não da sua abundância. Porque deu da sua pobreza e não do seu excesso.
Está aqui assinalada a diferença cristã: possam os nossos gestos ser expressão autêntica da nossa dádiva, do dom de nós mesmos. Mesmo na sua pobreza e aparente insignificância.
Pe. António Martins, Domingo XXXII do Tempo Comum
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2018/11/04 - O amor envolvente (homilia)
Queridas irmãs e queridos irmãos,
Primeira nota: a importância no nosso crescimento humano e crente das dúvidas que são desejo de aprender, que é vontade de crescer, que é aprofundamento das nossas razões, de Deus, da própria Escritura. Sublinho a importância que Jesus dá hoje à dúvida deste escriba, a importância que as dúvidas e as perguntas têm na nossa aventura espiritual e humana, na nossa aventura de crentes. Temos mais dúvidas do que respostas, e quanto mais aprofundamos a nossa relação com Deus e a descoberta dos textos bíblicos, mais dúvidas surgem. E é bom.
Aparece, no texto do Evangelho, um homem, um escriba, cuja tarefa era comentar a Escritura. Atenção: é um técnico de escritura. É, portanto, alguém equipado tecnicamente para dar resposta. Aproxima-se de Jesus com uma dúvida: qual é o primeiro de todos os mandamentos? Porque, na complexidade da leitura judaica, havia 613 mandamentos. Dos 613 qual o mais importante: essa era a grande discussão. É interessante que este escriba tinha ouvido Jesus falar com os fariseus e com os saduceus e gostou do que ouviu. Aquele tipo fascina-me, vou-lhe apresentar uma dúvida. Aproxima-se, quase às escondidas: “ó Mestre, qual é o primeiro de todos os mandamentos? Eu ando a ler a Bíblia há tanto tempo e não encontro uma resposta.” As dúvidas são colocadas perante Jesus que nos esclarece. E esclarece-nos ligando a Escritura. Jesus esclarece esta pergunta cruzando dois versículos do Antigo Testamento. Não diz nada de novo, não inventa nada neste momento, mas ao ligar dois versículos está a criar uma forma nova de ler a Escritura. Essa forma nova de ler a Escritura é aquela que Ele transmite ao escriba e que nos transmite a nós. A vida crente orienta-se e cumpre-se em dois amores que são um só: amar a Deus com todas as forças, com toda a alma, com todo o ser, e amar o próximo como a mim mesmo. Esta é a síntese de toda a Escritura que Jesus propõe ao escriba e que propõe a nós. Jesus é o homem da síntese. Vai ao essencial, cruza dois versículos: um do Deuteronómio e outro do Levítico, e faz novo testamento. Está a deixar-nos o critério da nossa vida humana e cristã.
“Escuta Israel”: cada um de nós é a resposta a uma chamada. É a resposta existencial, sinuosa mas possível, a um apelo de ser, que nós dizemos que é o apelo de Deus. Cada pessoa na sua vida é a resposta concreta ao apelo de Deus que é um apelo à vida. Os caminhos existenciais pelos quais se cumpre esta resposta podem ser em algumas pessoas mais facilitados e em outras mais complexos, mas cada pessoa se cumpre dizendo: “sim”. E o “sim” é aceitar a vida. “Escuta” é um dos mandamentos mais importantes do Antigo Testamento. Põe-te à escuta de Deus, pondo-te à escuta do mundo. E quem se põe à escuta sabe que a primeira palavra não é a nossa palavra. A primeira palavra é a palavra que alguém me dirige, é a palavra que vem de fora. É um desafio, um repto, um apelo, uma evidência, um conhecimento. É a descoberta de alguma coisa ou a descoberta de alguém. É um sentimento que me habita, é uma vontade. E no segundo momento, eu digo “sim” a esse apelo. Ao dizer “sim”, e ao continuar a dizer “sim”, estou-me a cumprir.
“Escuta Israel, amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua força, com toda a tua alma.” Curioso, o verbo «amarás» está no futuro. Significa que é um trabalho para toda a vida, é uma promessa, é um mandamento porque o Senhor nos desafia a vivê-lo. Mas é um mandamento que se adapta às nossas circunstâncias, ao nosso crescimento, à nossa evolução. É uma promessa que nunca está concluída, é uma resposta que nunca está acabada. Por isso tem futuro. “Amarás o Senhor teu Deus.” Porque a Deus só se vai pelo amor. Deus só vem a nós pelos caminhos do amor. Podemos estudar muito Teologia – e hoje é o dia da Faculdade de Teologia, faz hoje 50 anos -, mas a Teologia nunca faz santidade. O amor é que faz a santidade. Porque o amor é a relação, é a procura, é a descoberta, é a resposta possível, por vezes hesitante, é o passo que se dá na procura do outro em que nós nos implicamos por inteiro. Reparem como o livro do Deuteronómio nos desafia: com todo o coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento, com todas as tuas forças. Não deixes nada de fora na tua relação com Deus. Façamos do amor a Deus o amor envolvente de todo o teu ser. Até dos nossos limites, das nossas fragilidades, das nossas dúvidas, das nossas hesitações, das nossas feridas, dos nossos desencontros. Tudo isto é para o unificar, é para o oferecer nesta resposta que nós queremos dar a Deus pelo caminho do amor.
Mas o amor a Deus não vale por si, completa-se no amor aos irmãos. A Primeira Carta de S. João sintetiza tudo isto num versículo muito provocatório: “Se tu dizes amar a Deus que não vês, e não amas o teu irmão que vês, que está a teu lado, és mentiroso.” Provocatória! Porque nos interpela. O nosso sentimento mais nobre, mais sublime que é a resposta a um apelo fundamental da nossa vida a quem chamamos Deus concretiza-se na nossa relação cotidiana com aqueles com quem vivemos, com quem nos cruzamos: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo.”
Conhecemos outra discussão a propósito desta passagem. Alguém pergunta a Jesus: quem é o meu próximo? Os meus amigos? Os do meu partido? Os do meu clube? Os da minha religião? Os da minha família? Os da minha etnia? São esses o meu próximo? … Jesus conta a história do samaritano, do homem caído em desgraça. O samaritano é o único dos três que passa, aproxima-se, cuida das feridas, carrega com ele na sua montada e leva-o para a hospedaria. Qual é o próximo? Aquele que teve compaixão, aquele que implicou o coração, o corpo e as mãos no socorro ao irmão. “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” que se traduziu num princípio fundamental da ética do Ocidente: não faças aos outros o que não queres que te façam a ti. Este princípio ético da nossa civilização ocidental tem aqui o seu fundamento. A vida ocidental, na sua negação aparente do Evangelho, é profundamente cristã. Eu não posso querer para mim uma coisa e não a querer para o meu irmão, para outro homem ou para outra mulher que tem a mesma condição humana do que eu.
Por aqui andamos, por entre apelos e respostas. Sintetizo, respondemos a um apelo de amor. É esse apelo que nos faz viver. Existimos para responder ao amor como dom de Deus, e mesmo quem não responde ao amor explicitamente como dom de Deus, responde porque é o apelo fundamental da vida. Este apelo fundamental da vida traduz-se em relações válidas, serenas, construtivas, de entendimento com o cotidiano das relações e das pessoas.
“Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” Este é um caminho com futuro a recomeçar em cada dia.
Pe. António Martins, Domingo XXXI do Tempo Comum
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2018/11/02 - Purificar a memória (homilia)
Esta celebração ajuda-nos a purificar a memória através da oração. Rezamos hoje particularmente na Eucaristia, pela mediação de Cristo ressuscitado, porque É Ele quem nos liga aos nossos mortos. Não há mediação física possível, não há contacto corpóreo. Mas há uma espécie de árvore que une todas as folhas e que nos alimenta, a nós e a eles que já partiram, da mesma vida, da mesma comunhão, do mesmo espírito que é Jesus Cristo ressuscitado. É por isso que aqui estamos, que recordamos as pessoas que amamos, nos construíram, que nos edificaram, pela cultura, pelos afetos, pela fé, pelos dons que partilharam connosco, e o maior de todos foi a vida.
Honrar os nossos mortos é honrar as nossas origens. Não caímos do céu, não vimos do nada, não aparecemos por acaso. Temos uma origem que se chama: pais. E estes pais têm também uma origem que se chama pais e por aí fora. A vida é esta cadeia de gerações que chega a nós. Para sermos quem nós somos, há um ato de memória e de honra: agradecer quem nos deu a vida, e quem nos deu com a vida tanto. E agradecemo-lo em Jesus Cristo que é fonte da vida.
Sabemos todos que as nossas relações são feitas constantemente de provas. São feitas de abraços e de conflitos. E, por vezes, a vida cumpre-se, as pessoas partem e deixam zangas. Há um equívoco que não se esclareceu, há uma ferida que não foi curada, há uma injustiça que não foi redimida. Há tantas memórias feridas. A Eucaristia de hoje (dos Fiéis Defuntos) é também o momento para nos elevarmos e, como dizia no princípio, rezarmos pelos nossos mortos. Desejar-lhes bem, pedir a paz e desejar-lhes a paz. Pedir o que a Liturgia hoje diz: “Que descansem em paz, dai-lhes o eterno descanso.” O eterno descanso passa pelo dom de Deus mas passa também pelo nosso descanso, pela nossa harmonia, pela nossa memória purificada com as heranças que eles nos deixaram. E porventura, poderá ter sido alguma herança mais conflituosa, mais fria. A Liturgia deste dia tem esta dimensão terapêutica de nos ajudar a curar, através da oração, as memórias, por vezes feridas, dos nossos familiares defuntos.
Uma palavra final: nós da morte não sabemos nada. É o maior enigma da condição humana. Nunca ninguém veio do lado de lá, ao lado de cá, a dizer como é que tinha atravessado a morte. Sobre a passagem que é a morte somos totalmente ignorantes. Mas temos uma certeza, uma certeza de fé. Se a morte nos escandaliza, nos repugna e introduz na nossa vida uma violência, há uma certeza de fé: Há Alguém que atravessa connosco o abismo da morte, Jesus Cristo, o Vivente. Como dizia S. Paulo na segunda leitura: “Se acreditamos que Jesus morreu e ressuscitou, do mesmo modo Deus levará com Jesus os que em Jesus tiverem morrido.” Não sabemos nem conseguimos dizer mais do que isto. Da morte e do que está para além da morte somos ignorantes. Mas temos uma esperança que se torna fé em cada dia: com Cristo morremos, com Cristo ressuscitamos. É por isso que os nossos mortos estão vivos, e porque estão vivos, nós estamos com eles.
Pe. António Martins, Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos
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2018/11/01 - Bem-aventurados (homilia)
Em tempos como os nossos em que os pecados da Igreja, e mais em concreto os dos seus pastores, aparecem na praça pública de uma forma escandalosa, sem máscara nem ocultamento – e bem-, celebrarmos hoje o mistério da santidade da Igreja é um paradoxo. Não é uma contradição, é um paradoxo. Porque as notícias não esgotam a vida da Igreja. Nem esgotam a ação de Deus que faz pelo Seu Espírito, no interior das consciências e dos corações de todos os homens e mulheres e de cada um de nós.
Nós acreditamos que a Igreja é santa e ao mesmo tempo experimentamos em cada um de nós a condição de pecadores, e eu convosco. Em igualdade de circunstâncias, nos confessamos quotidianamente carentes e mendigos de perdão e de misericórdia perante Deus. Esta é a nossa verdade. Uma verdade pobre, uma verdade desnudada. Mas nesta miséria humana, que somos nós, Deus vai fazendo maravilhas; Deus vai derramando força, vigor, santidade. Vai fazendo com que nós, numa contínua luta “entre a carne e o espírito”, utilizando S. Paulo, numa contínua numa luta entre os apetites egoístas e o apelo ao serviço num amor fecundo, vamos vivendo um caminho de santidade. Vamos afinando a vida continuamente pelo diapasão do Deus Santo.
Podemos dizer que a santidade é a vida autêntica da Igreja que não é notícia. O pecado é notícia, a santidade não é notícia. Mas santidade é maior do que o pecado, porque a santidade é a força do Deus Santo no mundo, na Igreja e em cada um de nós. A redimir, a queimar pelo amor, a purificar e a tornar a nossa vida fecunda no serviço aos outros. Isto é possível, nós sabemos que é possível e a Igreja reconhece essa possibilidade apresentando o modelo de santidade de alguns dos seus filhos e filhas. Mas podemos experimentar isso, podemos e experimentamos em cada dia. A santidade passa pela alegria e pelo do cuidado aos irmãos, que começa pelo cumprimento de um horário de levantar cedo todos os dias para levar os filhos para a creche ou para a escola e ir busca-los ao final de um dia de trabalho. Por aqui vai a santidade, a fidelidade de tantos homens e mulheres à vida.
A santidade passa também, para dizer com o Evangelho, por aqueles que põem a sua vida ao serviço da justiça: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque serão saciados.” A fome de Deus e a fome de justiça são a mesma fome. Nós dizíamos no salmo: “Esta é a geração dos que procuram o Senhor.” Procuramos todos a Deus, o Deus Santo e nunca O possuímos. A Deus vamos pelo desejo, pelo instinto, e quanto mais nos sentimos próximos, mais Deus está distante. A santidade é um caminho que nunca tem fim. É um caminho por instinto, por tentativa e por erro em que o Senhor, continuamente, não deixa de derramar sobre nós a força do Seu Espírito que vem em socorro da nossa fragilidade. “Esta é a geração dos que procuram.” Deus será sempre Alguém que nos foge, sempre Alguém que nos atrai e a santidade é o seu mistério no qual nós nos queremos mergulhar no profundo de nós mesmos. Mas esta santidade de uma vida crente traduz-se numa cidadania, numa política, numa ação cívica de serviço ao mundo. Porque também há uma santidade na política, também há uma santidade na economia, também há uma santidade no desporto e na cultura. Bem-aventurados aqueles que têm fome e sede de justiça e lutam pela dignificação dos seus irmãos. E não há um santo que tenha tido uma vida íntima com Deus, no interior do quarto, que não tenha tido um compromisso sério com os irmãos.
Recordo-me de um filme que vi há uns anos sobre S. Filipe Néri. São Filipe Néri foi contemporâneo de Santo Inácio de Loyola em Roma. Santo Inácio foi um santo intelectual, S. Filipe de Néri um santo cheio de humor. S. Felipe Néri dava-se ao luxo de se vestir de cardeal para brincar ao Carnaval com os rapazes de rua em Roma. Era um homem deste calibre. Nunca foi capaz de ler os Exercícios Espirituais de Santo Inácio porque aquilo era difícil. Uma vez, S. Felipe Néri foi convocado para discernir as visões místicas de uma santa freira. E o senhor, sem saber bem como é que havia de entrar naqueles assuntos tão altos, ele que era um homem prático dos meninos de rua, chega junto daquela senhora que estava em delírio místico e pede-lhe o para ajudar a descalçar as botas. Ela com muita altivez respondeu-lhe: “Eu sou serva de Deus não sou serva dos Homens.” Acabou-se a santidade. Porque aqui não há santidade: ser servo de Deus sem ser servo dos Homens não é caminho de santidade.
Brinco hoje convosco com um santo cheio de humor que nos ajuda a perceber e a viver que a santidade é um fascínio por Deus, mas, ao mesmo tempo, é bem-aventurança este cuidar dos irmãos e cuidar da terra. E reparem nesta passagem bonita do Livro do Apocalipse: “Não causeis dano à terra, nem ao mar, nem as árvores.” Isto pode ser lido em termos de santidade ecológica. A santidade hoje passa por não fazer mal à terra, nem ao mar, nem às árvores – está dito no Livro do Apocalipse. A santidade passa por esta justiça, esta firmeza à justiça, à misericórdia, à paz. Nós podemos traduzir “bem-aventurados” pela expressão: em frente, não desistam. Lutais pela justiça? Em frente. Quereis um mundo de consolação, consolai. Acreditais na pureza de coração? Em frente. Acreditais na paz? Em frente. Bem-aventurados aqueles que não desistem de Deus e não desistem dos irmãos. E por isso, o Senhor nos diz: “alegrai-vos e exultai, porque é grande no céu a vossa recompensa”.
Pe. António Martins, Solenidade de Todos os Santos
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Outubro
2018/10/28 - Passar a ver (homilia)
Queridas Irmãs e Queridos Irmãos
No caminho de Jesus com os discípulos para Jerusalém, à saída de Jericó, entra hoje um homem marcado pela cegueira, com uma história de exclusão e uma condição de dependência e passividade: é pedinte sentado à beira da estrada. É cego e como tal visto como alguém a quem Deus castiga. O próprio nome Bartimeu pode ter este sentido: filho do castigo, filho da vergonha, filho do contaminado.
A sua cegueira é como que uma parábola da nossa existência crente, que avança entre luz e obscuridade. A maior cegueira é o medo e a falta de confiança, esse corrosivo emocional que aprisiona a nossa existência. Esta cegueira pode acontecer a qualquer um de nós. Podemos perder de vista o sentido que nos faz viver, o rumo que queremos imprimir à vida, as razões por que acreditamos e esperamos. Na vida do próprio crente, a visão clara nunca é uma aquisição definitiva; é um bem sempre a pedir e a agradecer em sua vinda, a renovar continuamente no desejo «que eu veja».
Sublinho três aspetos no texto de Marcos. O primeiro, o grito do cego feito oração. Aquele homem cego ativa uma fina capacidade de ouvir. Vê com os ouvidos e todo o seu corpo, em escuta, sente quem se aproxima. Sabe o que quer: aproximar-se de Jesus que por ali está a passar. Por isso solta do profundo da sua alma um grito de vida, de socorro, de compaixão, de afirmação, de resistência. Há nele a explosão de uma voz incontida, de um reduto de força vital que ninguém pode travar e sufocar.
No grito a sua voz liberta-se, o seu corpo afirma-se. O seu grito é a afirmação de uma vida que pede reconhecimento, aceitação, dignificação. Grita rezando a oração mais simples e mais bela de toda a tradição cristã: «Jesus, filho de David, tem piedade de mim». Não vendo, sabe quem é Jesus, qual a sua identidade. Reconhece que ele é o Messias proclamando-o «Filho de David». E confia em seu grito orante que clama socorro, compaixão, um olhar de misericórdia para a sua miséria humana.
Piedade e compaixão são a base da dignidade humana e cristã. A piedade não é um sentimento pobre, piegas; é uma carência vital, um dom de grandeza incalculável. Essa capacidade de abraçar o irmão com um olhar de ternura, de misericórdia. Todos precisamos de dar e receber piedade; e alguns por circunstâncias de vida mais exposta a perigos, mais fragilizada, ainda mais precisam.
A piedade expressa-se num olhar benevolente, num abraço acolhedor da pessoa em sua dor infinita e tão pessoal, na hospitalidade de um silêncio que protege a nudez da sua vulnerabilidade exposta, num gesto de inclusão que devolva dignidade e sentido ao seu grito de dor. E só uma comunidade que é capaz de construir uma comunhão na dor pode ser capaz de experimentar uma comunhão na alegria.
O segundo aspeto: A multidão que segue Jesus, a comunidade dos discípulos, necessita, continuamente, de conversão. O grito do cego é sufocado pela multidão. As pessoas que acompanham Jesus tentam torná-lo invisível e insonoro; afastam-no do contacto direto com Jesus. O reconhecimento e a integração de uma pessoa com deficiência na vida de uma comunidade não é tarefa espontânea: não acontece sem superação dos nossos medos profundos, dos nossos sentimentos de vergonha e de rejeição.
Podemo-nos rever naquela atitude, tão fácil, tão imediata e tão espontânea, de sufocar o cego. Podemos reconhecer que somos bloqueio no acesso direto de tantas pessoas a Cristo, sobretudo os mais vulneráveis, os que estão marcados por circunstâncias adversas de vida.
Aí está Jesus a corrigir os nossos critérios, a convocar-nos para sermos mediadores, e não obstáculos: «Jesus parou e disse: “Chamai-o”. Chamaram então o cego». Sim, Jesus pede-nos que chamemos, pela nossa voz e pelo nosso compromisso, outros ao encontro com Ele. Aquela multidão começou por ser um obstáculo e acaba por se tornar mediadora e facilitadora no acesso e no encontro pessoal com Cristo. Aconteceu um movimento de conversão comunitária, uma mudança de critérios de juízo e de ação.
O apelo de Jesus chega ao cego pela voz agora inclusiva, pelos comportamentos reorientados dos discípulos. Que são capazes de dar coragem e confiança ao cego, de o levantar da sua passividade, de o estimular a avançar, a erguer-se, a caminhar por si: «Coragem! Levanta-te, que Ele está a chamar por ti». E isso é o serviço profético e evangélico da comunidade cristã, em todos os tempos, em todas as circunstâncias: ajudar a erguer, facilitar o acesso a Cristo, encorajar a caminhar por si.
O terceiro aspecto: Saber que alguém nos espera, nos ama, nos quer escutar e encontrar, faz-nos erguer, correr, avançar, pormo-nos de pé: «“Coragem! Levanta-te, que Ele está a chamar-te”. O cego atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus». Este é o milagre quotidiano da ressurreição: sentirmo-nos amados, esperados, escutados, sabermos isso de Jesus mas também daqueles que acreditam em Jesus e que são nossos irmãos de fé e de caminho. Assim a vida inventa-se, ergue-se, ressuscita, fica marcada pela novidade, pela luz de um sentido, de um caminho possível. Passamos a ver.
Aquele cego passou a ver, a ver um caminho, a ver um sentido, a ver um futuro, quando se sentiu querido, chamado e esperado por Jesus, e se sentiu encorajado por uma comunidade que o levou até à presença de Jesus, para a alegria do encontro. A nossa cegueira cura-se no ressurgir da confiança. E este ressurgir acontece quando nos sabemos amados e esperados.
A fé salva, salva do abismo, do desespero, do não-sentido; mas não salva sem a mediação e a confiança dos irmãos que nos ajudam e facilitam o encontro com Cristo, e nos encorajam a procura-Lo, ainda que tateando e cambaleando. Para que a nossa fé nos salve, precisamos de ser salvos/resgatados, também, pela confiança e pela esperança de quem está junto de nós.
Por mais densa que seja a noite e a sua obscuridade, há sempre uma promessa de luz e de amanhecer, uma promessa de esperança: «Os que semeiam em lágrimas recolhem com alegria». E as lágrimas de dor podem-se converter em lágrimas de consolação.
Pe. António Martins, Domingo XXX do Tempo Comum
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2018/10/14 - Multiplicar vida (homilia)
É no confronto com a Palavra de Deus que a nossa vida de crentes se afina, num processo de permanente discernimento (juízo) interior sobre nós mesmos, sobre a qualidade das nossas relações, sobre os acontecimentos do presente. A Palavra de Deus cumpre-se em nós com uma função cirúrgica, qual bisturi/espada de dois gumes que penetra as entranhas do corpo e da alma: todo o nosso ser, tudo o que somos, sentimos, projetamos, desejamos fica exposto e iluminado perante a Palavra escutada, lida, rezada e meditada.
Precisa a carta aos Hebreus, cujo trecho lemos na segunda leitura: «é capaz de discernir os pensamentos e intenções do coração» (Hb 4). Aqui se funda a nossa liberdade de consciência, a nossa soberania interior, que só Deus pode julgar, atravessar e habitar. A Palavra desmonta-nos e reconstrói-nos, rasga as nossas certezas e levanta-nos em nossos escombros; acusa-nos em nosso pecado e oferece-nos o consolo da misericórdia sem medida. Por ela somos divididos e reunidos: É no espaço da Palavra que a nossa vida de cristãos e de Igreja sempre recomeça, de novo se inaugura e se inventa.
Admiramos a ousadia e o atrevimento, ao mesmo tempo a generosidade de gestos (correndo e ajoelhando-se), daquele homem que aparece, de súbito, no caminho de Jesus. Aquele anónimo dá voz à intensidade do nosso desejo, àquela profunda inquietação de uma vida grande, cumprida, realizada. Que grande desejo o seu, no qual revemos também aquela pergunta vital que, silenciosamente, fazemos, como exigência de um apelo: «Bom Mestre, que hei-de fazer para alcançar a vida eterna?».
Toda a vida humana precisa de um horizonte de grandeza para se medir e para se justificar. A dignidade da nossa vida, o grito interior do nosso desejo pedem largueza: a mediocridade é negação da intensidade do desejo que nos habita. «Que hei-de fazer?» apresenta uma pergunta que trás uma vontade de agir, um fazer prático, e ao mesmo tempo confessa uma incerteza, um não saber como, uma dúvida. Sentimos em nós o desejo de uma vida plena, intensa, definitiva (a vida eterna), mas não sabemos como nos orientarmos, como seguir fiéis um horizonte, como marcar esse desejo com a objetividade de um caminho possível.
Jesus propõe a este homem inquieto um itinerário, que é também para nós. Um itinerário marcado por uma qualidade relacional. Começa por lhe propor uma ética de mínimos, assegurada pelo cumprimento dos mandamentos. E no texto todas as referências aos mandamentos têm a ver com o respeito pelos outros, com a sua dignificação: «‘Não mates; não cometas adultério; não roubes; não levantes falso testemunho; não cometas fraudes; honra pai e mãe’». Curiosamente Jesus não lhe pergunta se adora a Deus; precisamente porque o amor a Deus passa pelo amor ao próximo. São inseparáveis: não há verdadeiro culto a Deus sem a dignificação da vida humana. E nesta ética de mínimos, e tão necessária é como garantia comum de uma convivência pacífica e digna, o nosso homem é um fiel cumpridor. É, podemos, dizer um bom homem, um homem justo com uma vida irrepreensível, eticamente sem ponta de acusação.
E quando tudo parece arrumado, Jesus provoca-lhe um estremecimento, desafia-o para a ousadia, para um excesso, para uma vida para além da norma, do regrado, do eticamente bem cumprido. Propõe-lhe um caminho de atrevimento, uma audácia que lhe acrescente ainda mais vida. Pois essa vida eticamente bem cumprida é ainda uma vida carente, uma vida egoísta e pobre, centrada no próprio ego, nos seus interesses: «Falta-te uma coisa: vai vender o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-Me”» (Mt 10). E um pormenor a salientar: esta audácia de agir é-lhe proposta por Jesus num olhar de sedução e de encantamento: «Jesus olhou para ele com simpatia». Ou noutra versão: «Jesus, fixando nele o olhar, amou-o».
Que intensidade de atração, que encantamento: é um olhar que nos convida a um excesso, suportado pelo amor; um olhar de amante que nos desafia à audácia de um agir, à ousadia de um êxodo, ir vender o que tem, dar aos pobres e seguir Jesus. Sublinho: isto está para além do mandamento, do preceito a cumprir. É da ordem da sedução e do encantamento: é atração e arrebatamento; é desejo que vem ao encontro do nosso desejo mais profundo, que nos convida a sair de nós mesmos e a nos cumprimos no dom, na partilha, na vida que dá vida, precisamente porque partilha o que tem, reparte-se, acrescenta vida a outras vidas mais vulneráveis (reparte os bens com os pobres).
«Ouvindo estas palavras, anuviou-se-lhe o semblante e retirou-se pesaroso, porque era muito rico» (Mt 10). Esta é a história de um belo desejo perdido, de uma profunda inquietação que não teve concretização. De uma procura que não se traduziu em encontro, de uma vida que quis ser grande mas não passou da estreiteza do seu egoísmo, da prisão do ter e da posse (tinha muitas posses/propriedades). Ao recusar desapossessar-se, aquele homem recusou multiplicar vida. E por isso permanece anónimo, sem nome. Tudo termina numa profunda tristeza, num voltar à quotidiana mediocridade.
Fica, para nós, o alerta: como não sabotar o nosso desejo mais profundo? Como ativar em nós o dom da partilha, da riqueza distribuída, de acrescentar vida a quem é mais frágil e carente? Porque riqueza não partilhada é, evangelicamente, uma profunda pobreza, morte antecipada, porque nega a circularidade da vida que é relação, encontro, distribuição, partilha, acrescento.
E digamos nós também com o salmista: ««Ensinai-nos a contar os nossos dias, para chegarmos à sabedoria do coração».
Pe. António Martins, Domingo XXVIII do Tempo Comum
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2018/10/08 - Crentes e não crentes com o Papa Francisco
As palavras do Papa Francisco a várias vozes, em sintonia com a sua intervenção no nosso mundo, na Capela do Rato, dia 8 de outubro, às 18h30.
Mais informação em Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.
Está disponível, em vídeo, uma síntese da sessão “Crentes e não crentes com o Papa Francisco”, na Capela do Rato, a 8 de outubro de 2018. Clique aqui para ver o vídeo.
2018/10/07 - O amor ferido (homilia)
Queridas Irmãs e Queridos Irmãos
Perante a complexidade da vida de casal hoje, com as suas feridas e roturas na promessa do amor mútuo, os desencontros e separações, o número, as palavras de Jesus, no evangelho deste domingo, podem resultar duras e difíceis.
Esta é uma das passagens bíblicas que fundamenta a doutrina católica sobre a indissolubilidade do casamento. Aplicada de forma rigorista, a passagem pode provocar na vida de muitos fiéis um profundo sentimento de exclusão. Por isso deve ser lida e proposta com clareza mas também com prudência. Na vida da Igreja contemporânea quantas pessoas não experimentam a dor da separação matrimonial acrescida da dor da exclusão da comunidade cristã?
Quando confrontado pelo grupo dos fariseus sobre a possibilidade de divórcio, previsto no Livro do Deuteronómio e que era prática corrente no judaísmo do tempo, Jesus reenvia para a intenção original de Deus: «no princípio da criação, “Deus fê-los homem e mulher. Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne”». «No princípio», aí onde Deus assinala o seu projeto de vida e de amor, em que o amor humano do casal se torna imagem viva e encarnada do próprio amor fecundo de Deus comunhão de pessoas, já numa leitura cristã.
O evangelho de hoje é lido a partir dos Génesis. A primeira leitura reenvia-nos para o mistério e para a promessa das relações. Com a sua linguagem poética própria, cheia de plasticidade figurativa, o texto do Génesis assinala que é a relação, o encontro, o face-a-face que nos salva de uma mortal solidão: «Não é bom que o homem esteja só: vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele». Outra possível tradução, mais ambígua mas também mais realista, propõe: «Farei para ele uma ajuda contra ele»; «Farei para ele uma ajuda que lhe esteja face-a-face».
«Uma ajuda» assinala logo uma condição de carência e de incompletude que só a vinda de uma outra pessoa, com a sua alteridade tão próxima e tão diferente, pode completar. O realismo bíblico apresenta a nossa profunda condição de carência e a relação como socorro, ajuda e salvação para a nossa humanidade exposta à própria falência. Essa ajuda (a mulher) é apresentada ao homem numa relação rosto-a-rosto, face-a-face, de mútua correspondência; mas esse face a face, na ambiguidade do texto, tem já contida uma dramática: é, ao mesmo tempo, encontro e confronto, face-a-face e enfrentamento, ajuda e ameaça. Aqui está assinalada a poética/a invenção das relações que todos experimentamos. E quem arrisca viver em casal conhece na própria carne a promessa e a tensão desse face-a-face quotidiano.
Essa promessa originária de Deus é reafirmada por Jesus: «Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne. Deste modo, já não são dois, mas uma só carne». Um e outra deixam as suas origens para dar origem a uma nova realidade, «uma só carne». Deixam seguranças, para se colocarem em êxodo, em caminho de futuro, abrindo-se ao porvir de uma promessa: «os dois serão uma só carne». Para construir um único projeto de vida na singularidade complementar de duas diferenças de género, de personalidade, de história de vida. Que mistério, que aventura, que risco!
Sublinho ainda no texto o realismo do termo carne: indica vulnerabilidade, exposição ao risco, carência, mas também vida em relação, pertença mútua («carne da minha carne, osso dos meus ossos»). Mas nessa vulnerabilidade inscreve-se a encarnação da própria imagem do Deus Trino: dois em um, vida que dá vida, amor fecundo aberto ao futuro. Se esta aventura de «uma só carne» não for feita com humildade, perdão mútuo, com aquele amor que tudo suporta, perdoa e crê, a vida de casal pode tornar-se num inferno insuportável, num violento campo de combate.
No evangelho de hoje Jesus acrescenta uma novidade, não prevista nas sociedades da época profundamente machistas: tanto ao homem como à mulher são pedidas as mesmas responsabilidades, numa espantosa igualdade de exigências. À mulher, a parte mais débil, não lhe era permitido repudiar o marido. Jesus eleva a mulher a igual dignidade. O evangelho reconhece, e previne, que toda a promessa de fidelidade traz consigo uma possibilidade de adultério e de traição, a solicitar da nossa parte uma vigilância e um cuidado contínuos.
Se, como dissemos, a passagem evangélica de hoje funda a doutrina católica da indissolubilidade do matrimónio, a mesma passagem não pode ser aplicada como um chicote para julgar e castigar situações de fragilidade relacional de tantos casais separados e que constituíram novas relações. A experiência dolorosa de situações de rotura nas relações e de exclusão numa vida eclesial mais comprometida tem suscitado, nos tempos recentes, uma cuidada reflexão por parte do Magistério (dois Sínodos dos Bispos), com propostas prudentes de avanços pastorais.
A exortação apostólica Amoris Laetitia (A alegria do Amor) para isso nos convoca: «a Igreja deve acompanhar, com atenção e solicitude, os seus filhos mais frágeis, marcados pelo amor ferido e extraviado, dando-lhes de novo confiança e esperança» (AL 291). Propõe-se um discernimento caso a caso, a nível do foro interno (de consciência), num processo de diálogo entre o sacerdote e cada crente, tendo em vista uma progressiva integração na vida eclesial, sem excluir a participação na eucaristia. Dentro das indicações do Papa Francisco e de D. Manuel Clemente, estou disponível, junto de quem o desejar, para acompanhar esse processo de discernimento.
Para mim e para todos vós peço a bênção de Deus.
Pe. António Martins, Domingo XXVII do Tempo Comum
Setembro
2018/09/30 - O Espírito sopra onde quer (homilia)
Em tempos, como os nossos, de reforço das dinâmicas identitárias, com o aumento perigoso do nacionalismo, em termos políticos, e de grupos integristas agressivos, em termos religiosos, consola-nos e motiva-nos a Palavra de Deus hoje. Consola-nos porque, convictamente, nos confirma na nossa resistência a entrar nessa perigosa lógica, por vezes homicida, de exaltação do próprio grupo à custa da denúncia, da perseguição e da exclusão de quem é diferente e exterior. Motiva-nos a um agir de integração e de inclusão, dimensões que cada vez mais parecem hesitantes, tanto na sociedade civil, a nível de políticas de alguns Estados, como no espaço religioso institucional.
Da primeira leitura, do Livro dos Números: Para escândalo e protesto de muitos, aqueles dois (Eldad e Medad) que, estando inscritos na lista oficial dos convocados, não comparecem à chamada, também receberam o Espírito de Deus e profetizaram no meio do acampamento. O dom da profecia não está dependente de listas de eleitos, de inscrições prévias. A ação de Deus, no interior das consciências, atravessa fronteiras. Haverá sempre alguém, mais jovem ou mais velho, a reivindicar que eles «não compareceram à chamada», e que, por isso mesmo, só podiam ficar excluídos da profecia.
Moisés alarga os estreitos horizontes identitários dos resistentes, denunciando a lógica subtil do ciúme entre eles e convocando todos a um desejo: «Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta e que o Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles». O Espírito cria diversidade, diferença, iniciativa, audácia. Podemos fazer um exercício de imaginação: que configuração teria uma comunidade onde todos fossem profetas, cheios de ousadia, de criatividade, portadores de novidade? Uma comunidade carismática de profetas: é o sonho de Moisés para o seu povo.
O mesmo acontece no relato do evangelho de Marcos. Alguém, que não é do grupo dos discípulos, que não anda com eles pelo mesmo caminho, seguindo o Mestre, aparece a devolver qualidade de vida às pessoas, libertando-as de profundas alienações. Expulsa demónios em nome de Jesus, sem mandato; faz o mesmo que os discípulos, sem estar integrado na escola itinerante do Mestre. De imediato, ativa-se nos discípulos a lógica da exclusão, a vontade de controlar, de definir as regras do bem fazer, e de fazer o bem: «procuramos impedir-lhe, porque ele não anda connosco».
A pretensão identitária do grupo dos discípulos é anunciada por João. João é a figura do zelota, do potencial fanático identitário que late no profundo de cada crente, em cada um de nós. É a figura de uma Igreja-cidadela, amuralhada contra o mundo e contra os outros em suas iniciativas de vida multiplicada e libertadora e liberta. É a figura daqueles cristãos sempre prontos a julgar, a acusar e a proibir os comportamentos dos outros, a definir com rigor as fronteiras do dentro e do fora.
De Jesus uma resposta pronta e imediata: «Não o proibais; (…) porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome e depois dizer mal de Mim. Quem não é contra nós é por nós». Há mais vida e vida do Espírito para além das fronteiras institucionais da Igreja e dos catálogos oficiais dos discípulos. O Espírito sopra onde quer, como o vento imprevisível. Atiça no coração humano o sentido da justiça, da bondade, do dom de si mesmo, do cuidado pela vida. Todos nós estamos fundados nessa fonte de beleza e de bondade que é o Espírito Santo de Deus.
Cada gesto, o mais quotidiano, o mais ferial, como dar de beber um copo de água, é um gesto salvífico. Não precisamos de momentos excepcionais para fazer o bem e sermos virtuoso: basta estarmos atentos ao acontecer da vida em suas carências e necessidades. Basta estarmos atentos às sedes dos nossos irmãos e lhe oferecermos, na humildade do dom, mas com o sentido da oportunidade, o copo de água que lhe mata a sede. Bem sabemos que este gesto banal, quotidiano, no meio da aridez e secura do deserto, era e é um gesto vivificante e salvífico. Quanta sensibilidade de vida não nos convoca o evangelho no quotidiano apressado nos nossos dias!
Ainda uma referência à parte mais difícil e obscura do evangelho de hoje. Choca-nos, sem dúvida, o que Jesus nos diz: «Se a tua mão é para ti ocasião de escândalo, corta-a; porque é melhor entrar mutilado na vida do que ter as duas mãos e ir para a Geena, para esse fogo que não se apaga». Deixo uma proposta de leitura: «mão», «pé», «olho» são símbolos corpóreos que reenviam para dimensões práticas do nosso sentir, do nosso desejo, do modo como nos relacionamos com os outros e com o mundo. São, fundamentalmente, modos de relação a cuidar.
A mão expressa a força do agir, do fazer, a capacidade criadora, mas também destruidora; assinala a violência da apropriação, da posse, da agressão. Mas a mão também semeia, cuida, cura, ampara, protege, acaricia, abençoa. Cortar a mão poderá significar o corte de expressões práticas do desejo de posse, de apropriação, de manipulação, de violência, de poder. O pé assinala a inscrição do nosso corpo no mundo, mas também indica impressão (rasto de peugadas), ocupação do espaço, apropriação, conquista e posse (as botas de guerra dos soldados). Com os pés se espezinha, se esmaga, se humilha. A imagem de cortar o pé poderá ser um alerta severo para o cuidado permanente com o que pisamos, o modo como andamos e respeitamos a vida que acontece sob os nossos pés. O olho expressão de um desejo de cobiça, o roubo, a apropriação indevida do outro reduzido a objeto e a coisa. Pelo olhar começa, no interior de nós mesmos, a ativar-se a lógica de um desejo devorador. Por isso o evangelho nos convida a uma continua purificação do olhar: «Bem-aventurados os puros de coração porque verão Deus». Precisamos de disciplinar o nosso próprio olhar, cortar a tentação permanente de manipulação e instrumentalização do outro, reduzido a objeto do nosso desejo. Olhar bem é reconhecer o mistério do outro em sua inacessibilidade e transcendência, esse reduto inviolável de uma liberdade e de uma consciência que nunca alcançarei, que sempre me escapa.
A que disciplina dos sentidos e dos gestos o evangelho nos convoca! Numa vida espiritual feita no quotidiano.
Pe. António Martins, Domingo XXVI do Tempo Comum
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2018/09/23 - Pedagogia do discernimento (homilia)
Queridos Irmãos e Irmãs
A viagem de Jesus com os discípulos, e connosco, continua. Mas se Jesus e os discípulos percorrem o mesmo caminho geográfico, entre um e outros há um profundo desencontro. A viagem geográfica, pelo terreno da Galileia, não corresponde a uma viagem interior sintonizada, em comum acordo.
O evangelho de Marcos, e particularmente o texto de hoje, faz eco desse radical abismo. Apresenta-se como uma radiografia da permanente tensão que atravessa a vida da Igreja, de toda a comunidade e o interior de nós mesmos: a abissal distância entre os apelos de Cristo e a nossa capacidade de compreender e responder. Nunca estamos à altura do Evangelho, e levamos tempo (tanto tempo…) a conformar a nossa vida com a sua Palavra.
Mas Marcos é também a expressão de um Cristo que não desiste dos seus discípulos (de nós), resistentes, duros de coração e de mente, e que continuamente, com paciência, nos educa e nos instrui com a sua palavra e os seus gestos.
Mais um anúncio da subida a Jerusalém (o filho do homem vai ser entregue, morto e três dias depois ressuscitará) só aumenta neles a resistência e o medo: «Não compreendiam aquelas palavras». Também não são capazes de pedir esclarecimento a Jesus. Sabemos mais à frente pela narrativa do texto evangélico que o silêncio e o medo são apaziguados com a discussão sobre qual deles é o maior. Jesus coloca-os perante as questões decisivas da vida: o sofrimento, a morte, a esperança que atravessa o abismo do nada (a ressurreição), e eles distraem-se em disputas de poder e de influência.
À agitação do caminho sucede a quietude do repouso em casa. «No caminho» e «em casa» são dimensões complementares da espiritualidade cristã. A imagem do caminho a assinala que a vida é viagem, avanço, transito por zonas desconhecidas, acidentadas, vales tenebrosos, ou suaves e tranquilas planícies.
Mas precisamos de tempos de repouso e de descanso, de pausas regenerativas, de aprofundamento das razões que nos mobilizam, de espaços serenos de tranquilidade, de hospitalidade e de afeto. Precisamos todos de um abraço que nos acolha, de uma casa que nos proteja. Depois da caminhada, os discípulos chegam a casa, em Cafarnaum. E na tranquilidade do encontro e dos afetos, o Senhor faz com eles uma espécie de revisão de vida do que foi dito e vivido pelo caminho. Convoca-os a uma pedagogia do discernimento, não apenas com palavras mas também com gestos concretos.
«Em casa», pergunta-lhes: «O que discutíeis no caminho?».
Sublinhamos o pormenor narrativo de Marcos: «Eles ficaram calados, porque tinham discutido uns com os outros sobre qual deles era o maior». Envergonhados, não são capazes de dizer ao Mestre a razão da sua discussão. Afinal o caminho não era um seguimento incondicional e desinteressado de Jesus; era, sobretudo, um lugar de discussão e de competitividade entre os discípulos sobre qual deles seria o maior.
O texto oferece, com realismo e traços de alguma crueza, o espelho da nossa contínua condição de discípulos desencontrados com o seu Senhor, mais preocupados com a conquista de protagonismo do que com o alinhamento pascal e o serviço desinteressado aos irmãos.
Entre a Igreja e Jesus há uma fratura de abissal distância, uma zona de não coincidência, de rejeição até. O texto de Marcos põe a nu as intenções profundas do coração humano. Não são, frequentemente, as nossas comunidades, pequenas ou grandes, lugares de violenta ou subtil disputa de protagonismo e de áreas de influências?
«Jesus chamou os Doze e disse-lhes: «Quem quiser ser o primeiro será o último de todos e o servo de todos». E para que tudo isto não seja apenas palavras faz um gesto concreto e exemplar, como atitude pedagógica: «E, tomando uma criança, colocou-a no meio deles, abraçou-a». Sublinhamos a sequência das palavras que se tornam centrais no texto: «último», «servo de todos», «criança no meio».
Também nós somos chamados a colocar no centro das nossas vidas e no centro das nossas comunidades os mais frágeis, os carentes de segurança e de reconhecimento. Somos chamados, evangelicamente, a valorizar a dimensão do encantamento, da fantasia, da autenticidade sem cálculo, da arte do jogo e da festa, próprias das crianças, e que enquanto sérios adultos vamos sufocando e perdendo. Em cada um nós, há sempre uma criança a salvar e a recuperar.
Há ainda um outro elemento a assinalar: A criança é apresentada como ícone vivo e encarnado de Cristo a solicitar acolhimento e aceitação (outro Cristo): «Quem receber uma destas crianças em meu nome é a Mim que recebe». O Verbo «receber» significa estender as mãos abertas para acolher um dom que nos é dado. Cristo vem a nós, oferece-se às nossas mãos de ternura e de acolhimento na carne dos mais vulneráveis, carentes indefesos.
No centro do evangelho está a carne dos frágeis, dos mais pequeninos. No centro da experiência cristã está o afeto, a ternura, o abraço, a vulnerabilidade.
Seja esse também o centro da nossa vida.
Pe. António Martins, Domingo XXV do Tempo Comum
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2018/09/16 - Acreditar é um movimento (homilia)
Queridos Irmãos e Irmãs
S. Gregório de Nisa apresenta a vida cristã como uma ascensão, entre luz e trevas, feita de permanentes recomeços. Cada etapa alcançada origina nova escalada. Aqui estamos todos nós, após o descanso do verão, para dar continuidade ao ritmo da nossa vida, e também da nossa vida como comunidade do Rato. Para mim, é um tempo inteiramente novo: avanço com o entusiasmo e a determinação dos inícios, consciente de que o caminho tem desafios e riscos.
1. O evangelho marca o ritmo da nossa vida. Com a palavra que é Jesus Cristo, fracionada em cada domingo, vamos consolidando a nossa inteligência crente e afinando (corrigindo) o nosso agir. O texto de hoje, do evangelho de Marcos, apresenta Jesus em movimento com os discípulos nos arredores de Cesareia de Filipe, no norte da Galileia. Estão «em caminho».
«No caminho, fez-lhes esta pergunta: “Quem dizem os homens que Eu sou?”». Jesus, com eles, vai perguntando. Num primeiro momento, sonda-os sobre o que a opinião pública diz sobre ele (os outros, o sentir dos afastados, o pensar comum dominante). Num segundo momento, mais certeiro e direto, confronta os seus discípulos com uma pergunta provocatória: «E vós quem dizeis que eu sou?». Há uma pedagogia intencional nas perguntas de Cristo. Jesus oferece-se a nós como pergunta a suscitar a elaboração de uma resposta pessoal, a partir da carne da própria vida. Convoca-nos à passagem de um dizer a partir de outros (dos lugares comuns dominantes, dos textos oficiais…) para um dizer próprio, em primeira pessoa, que nos compromete por inteiro. Um dizer que seja a expressão da qualidade e da experiência, vital e concreta, da nossa relação com o Senhor: «E vós quem dizeis que eu sou?».
O caminho, além de ser corpo em movimento, e corpo comunitário (Jesus e os discípulos), é um lugar itinerante de questionamento, de colocação de perguntas, de procura de respostas. O caminho diz a nossa condição itinerante de crentes. Queridos Irmãos e Irmãs, bem o sabemos e experimentamos, acreditar é um movimento, entre perguntas em aberto e respostas provisórias, nunca definitivas. E o que dizemos hoje pode ser desmentido, corrigido e aperfeiçoado no futuro pelos nossos gestos e atitudes práticas. A vida (e igualmente a vida cristã) é um caminho em aberto. Como pergunta a desafiar respostas, é o modo como Jesus se dirige a nós. A deixar a nós, no risco da liberdade e da inteligência, a elaboração da nossa resposta, que é a aventura e o compromisso de uma inteira vida. Porque cada etapa da vida, cada nova circunstância, cada crise atravessada são novas etapas, por vezes dolorosas, no dizer da nossa resposta ao Senhor. Pobres e insensatos são aqueles que se acomodam, blindados, a respostas feitas, definitivas, sem discussão.
Jesus e os discípulos a caminho, numa relação (numa comunicação) entre perguntas e respostas. Creio que podemos encontrar aqui um critério para nos cumprirmos também como comunidades do Rato: uma comunidade a caminho, que aceita pôr-se em questão, ser continuamente questionada por Cristo, corrigida, convocada para mais longe. Uma comunidade que está atenta ao dizer exterior, ao dizer (razões) daqueles que estão fora, que pensam de modo diferente. Uma comunidade que não se fecha em si mesma, mas que aceita ser interpelada pelas grandes questões do nosso tempo que afetam a sociedade e a Igreja. Uma Igreja/comunidade a caminho, a caminhar em conjunto, com os contributos de todos os que se sentem comprometidos com a procura de uma resposta à provocação de Jesus. É para este estilo de Igreja sinodal (em caminho), corresponsável, em permanente procura, que vos convoco.
2. Um segundo momento da nossa reflexão é-nos dado pela resposta pronta de Pedro, sempre o primeiro, porque primário nas decisões mas também nos equívocos e nos erros. «Pedro tomou a palavra e respondeu: “Tu és o Messias”». A resposta pronta de Pedro está atravessada por equívocos e ambiguidades, como se verifica na sequência do próprio texto e do evangelho de Marcos. O silêncio que Jesus impõe aos discípulos tem a ver com essa palavra perigosa, carregada de equívocos, que é «Messias»/Cristo. Como se Jesus estivesse a dizer a Pedro, e a cada um de nós: o que tu dizes de mim é verdade, mas é uma verdade que precisa de ser verificada na tua vida, e ainda não estás pronto para isso. Precisas de perceber que a tua conceção de Messias não é aquela que eu vou realizar e cumprir. O teu Messias não sou eu. E Pedro não estava pronto para perceber isso. Por isso há um conflito violento entre Pedro e Cristo.
No esquema mental de Pedro era impensável que o «seu» Messias se expusesse ao sofrimento, à rejeição pelas autoridades e à morte. O «seu» Messias só poderia ser um Messias vitorioso, vencedor dos inimigos, a fazer justiça às vítimas, a triunfar sobre os ímpios, os violentos e os opressores. Pedro até pensava certo segundo a catequese recebida. Não teria Pedro, como judeu piedoso, rezado tantas vezes o salmo: «Os malfeitores serão destruídos… os justos vão possuir a terra» (Sl 37,28-29)? Um Messias crucificado é para ele escândalo e loucura, pura blasfémia. Mas este pensar consolidado de Pedro não é também expressão de um pensar aninhado nos estratos mais profundos da nossa mente, o querer um Deus fácil, triunfador, vitorioso que nos torna também vitoriosos e triunfadores perante a violência do mundo? A expressão de um esquema mental em que a vida se mede sempre pelo critério da eficácia, do êxito, de vida bem sucedida e reconhecida?
Por isso Pedro «repreende» violentamente Cristo. Ele ordena a Jesus de não seguir esse caminho de escândalo e de loucura, esse caminho demoníaco. Jesus repreende Pedro, colocando em seu lugar, o lugar de discípulo, atrás do Mestre, e de um Mestre que aceita, despojado e indefeso, perder a vida para acrescentar vida aos seus irmãos. Entre Pedro e Jesus há um combate violentíssimo: dois modos de pensar e de agir se confrontam. E esse confronto atravessa-nos continuamente. É também o nosso, nos mais profundo do nosso ser.
Pela sequência dos relatos evangélicos, podemos afirmar que Pedro não mudou muito o seu modo de pensar, após este violento confronto com Jesus. Fica uma nota de realismo: como são lentos e dolorosos todos os nossos processos de conversão. Afinar a nossa resposta com Jesus é um processo pascal (de morte e ressurreição), que exige tanto tempo. Na hora decisiva da cruz, a hora da rejeição, da prisão e da condenação à morte de Jesus, Pedro nega a sua relação com esse Messias débil; recusa-o e rejeita-o: «Não conheço esse homem»; «não compreendo o que dizes». Até aqui está a ser coerente consigo mesmo. É o cantar do galo que desperta nele a memória das palavras de Cristo, e acorda nele a profundidade da sua traição: negando a Cristo, estava a negar-se a si mesmo, na sua mais profunda vulnerabilidade. «E começou a chorar».
Por quantos caminhos de falsificação de si mesmo, de crise das suas representações sobre Deus, de violentos confrontos, de fracasso, não tem de passar um crente para se reconhecer, na carne da sua própria vida, incondicionalmente amado por Cristo, e poder dizer com todo o seu ser: «Tu és o Messias»? Que percurso caminho não atravessa cada um de nós para chegar ao banho batismal das lágrimas e experimentar o abraço da misericórdia?
Pe. António Martins, Domingo XXIV do Tempo Comum
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2018/09/10 - Esta é a hora de (re)começar
Queridas Irmãs
Queridos Irmãos
Após a diáspora das férias de verão, regressamos à normalidade do nosso quotidiano. Recomeçamos como Capela do Rato, com a sua memória e o seu projeto de futuro. Com uma vontade acrescida de acolher a surpresa do novo e de atravessar o desconhecido.
Os últimos acontecimentos eclesiais aí estão a desafiar as razões da nossa esperança, do nosso agir e do nosso testemunho. Em novos contextos históricos, com novas problemáticas, a comunidade é chamada a dar sentido evangélico ao tempo que vivemos, com as suas contradições, a sua complexidade e as suas promessas. Com a sabedoria de que a urgência não contradiz a paciência, a tomada de palavra não se opõe ao silêncio, os receios são o húmus da coragem, a exigência de justiça vai a par da misericórdia e da compaixão. Na vertigem da avalanche das notícias precisamos de ativar o discernimento e o distanciamento crítico.
O estado penitencial e purificador que atravessa, na atualidade, a Igreja inquieta-nos, fere-nos, desafia-nos. Descobrimo-nos uma Igreja pobre, humilhada, atravessada no seu interior por estruturas de pecado. Despojada de todo o triunfalismo, a Igreja apresenta, na praça pública, a sua miserável nudez de pecadora. No abismo do pecado e da violência causada ou sofrida, emerge a audácia e a loucura da esperança cristã: «Onde abundou o pecado, superabundou a graça». Não há situação infernal que Cristo não tenha atravessado em seu amor por nós até ao extremo. É esta a esperança que nos salva. A identificação e o reconhecimento da nossa miséria pessoal e eclesial só têm sentido e eficácia terapêutica perante a misericórdia de Deus. Caso contrário, seria autodestruição, violência justiceira e vingativa, cegueira moralizante.
Nos tempos de crise, tem sido sempre a comunhão com o Santo Padre a salvaguardar a Igreja da deriva e do caos, porque encontra nele a fonte e a força estrutural da sua própria renovação interna. Como disse recentemente D. José Tolentino Mendonça: «O Papa Francisco é o ponto de referência de uma Igreja que assume a necessidade de purificar-se de desvios, erros e crimes passados». Não hesitemos em sentir e expressar o nosso total apoio ao Papa Francisco. É isso que nos pede a todos D. Manuel Clemente: «Quero ainda pedir-vos, caríssimos diocesanos, comunhão profunda e orante com o Santo Padre, que com tanta coragem e lucidez guia a Igreja neste tempo de purificação espiritual e prática. Estamos com o Papa Francisco, como ele está com Cristo e com o evangelho».
Cada vez percebemos melhor a intensidade e o alcance do que nos pedia o padre Tolentino nos dias anteriores à sua ordenação: «Rezem por mim». A força interior da Igreja, e a de cada um de nós, é a oração, como comunhão de dons, de intenções, de benevolências, de desejos. Querido D. José Tolentino Mendonça, nas suas novas funções romanas, e aí bem no centro da turbulência, não lhe queremos faltar com a nossa profunda amizade e a nossa oração solidária. Todos os cristãos o sabem, desde os tempos antigos: Roma é, paradoxalmente, um lugar de extrema beleza e de inesperados perigos. Como paradoxal é também a sabedoria evangélica: ao mesmo tempo nos desafia a ser simples como as pombas e prudentes como as serpentes.
Reiniciamos as nossas celebrações na Capela do Rato a 16 de Setembro, às 11.30h. Dou as minhas boas-vindas a todos vós, meus queridos irmãos e irmãs. Convoco-vos para o recomeço, que para mim será mesmo começo. Sei que posso contar com o vosso apoio, oração e corresponsabilidade. Para encontramos um ritmo de viver e sentir que seja, verdadeiramente, sinodal, um caminhar conjunto, no acolhimento da experiência singular de cada um. Porque toda a história de vida é bênção de Deus, com os seus limites, fragilidades e dons, como afirma a teóloga francesa Anne-Marie Pelletier, «precisamos de imaginar uma Igreja a várias vozes, que evidentemente incluirá as vozes das mulheres», e outras mais.
Está é a hora de esperar para além do que se vê, do que se deseja e ainda não acontece. Esta é a hora de permanecer na barca de Pedro agitada pela tempestade. Esta é a hora de (re)começar.
P. António Martins
Julho
2018/07/28 - Ordenação Episcopal de D. José Tolentino Mendonça
Está disponível para visionamento o Solene Pontifical de Ordenação Episcopal de Dom José Tolentino Mendonça, bem como o texto com as suas palavras no final da Celebração e notícias da Agência Ecclesia a propósito do acontecimento.
Discurso de Dom José Tolentino Mendonça
Cerimónia de Ordenação Episcopal
Mosteiro dos Jerónimos
28 de julho de 2018
Senhor Presidente da República, Excelência,
Agradeço muito a vossa presença, que me comove muito, porque representa, não só um ato de amizade e deferência para comigo, um português, mas também para honrar uma história de relação entre a nação portuguesa e a Santa Sé, uma história multissecular, de amizade – e que agora vive também esta página interessante de ter mais um português ao serviço da Santa Sé.
Agradeço também a sua presença, que tomo como uma especial deferência para o serviço para o qual o Santo Padre, o Papa Francisco, me nomeou: o Arquivo Secreto e a Biblioteca Apostólica da Santa Romana Igreja.
Quero saudar o Senhor Patriarca, Dom Manuel Clemente, a quem conheci há tantos anos, ainda como Padre Manuel Clemente e que desde então como Bispo Auxiliar de Lisboa, como Bispo do Porto, como Presidente da Comissão Episcopal da Cultura, dos Bens Culturais e das Comunicações Sociais da Igreja, como Patriarca de Lisboa, como Magno-Chanceler da Universidade Católica. Tantos títulos, tantas possibilidades de estabelecer com ele uma relação, de conhecer, apreciar e inspirar-me no seu estilo de Pastor, na sua inteligência e no seu coração sempre amigo.
Por isso, quando o Santo Padre me disse que eu podia ser ordenado por qualquer Bispo Católico, onde quisesse, eu percebi que só podia ser pelas suas mãos, querido Dom Manuel Clemente.
Saúdo também Sua Eminência Dom António Marto, a quem me ligam laços de grande admiração, por ele, pelo seu percurso, pela sua inteligência, por aquilo que ele representa – mas também pela palavra que o Santo Padre lhe disse há pouco tempo: que ele representa na sociedade portuguesa e no coração da Igreja, o carinho de Nossa Senhora, Nossa Senhora de Fátima.
A minha mãe chama-se Fátima e Fátima foi também o primeiro nome que eu conheci de Nossa Senhora. Por isso, associá-lo a esta Ordenação é também entregar todo o meu Ministério aos pés de Nossa Senhora de Fátima.
Queria também saudar o Senhor Dom Teodoro de Faria, que há 28 anos me ordenou Padre, e pela primeira vez enviou aquele jovem, ainda estudante de Teologia, para o Colégio Português em Roma e para o Instituto Bíblico, para formar-se em Ciências Bíblicas.
Agradeço-lhe, Senhor Dom Teodoro, a primeira Ordenação, agradeço-lhe também esta segunda, e agradeço-lhe aquilo que representa aqui neste Mosteiro dos Jerónimos: a minha Diocese de origem, a Diocese do Funchal e todo o seu clero e todo o povo de Deus, onde eu comecei o meu Ministério como Pastor, a que me ligam tantos laços inapagáveis de gratidão.
Em si, Senhor Dom Teodoro de Faria, na sua pessoa, também quero saudar o Senhor Dom António Carrilho que não pode estar aqui presente por compromissos inadiáveis, mas que nestes dias tem manifestado intensamente a sua presença, a sua amizade e a sua comunhão.
Em si saúdo, por isso, todo o povo querido do arquipélago da Madeira e do Porto Santo.
Queridos Irmãos Bispos, comoveu-me muito o número da presença, as mensagens que mandaram, o sacrifício que sei que muitos de vós fizestes para estar aqui presente neste último sábado de julho. É um sinal de comunhão da Igreja portuguesa, à qual eu pertenço e de que vós sois os representantes. E receber pelas vossas mãos o Ministério Episcopal é para mim alguma coisa que me fortalece e me inspira.
Por isso, o vosso sentido profundo de comunhão é alguma coisa que eu levarei para toda a minha vida, no meu coração.
Quero saudar também todos os Padres.
Eu sei que o nome mais belo que se pode chamar a alguém é Pai. E chamar “Padre” foi nestes 28 anos a palavra mais bela, mais desejada do meu coração.
E por isso, queridos Padres, desejo que sintam a mesma alegria no vosso Ministério que eu senti e possam continuar a ser uma presença fecunda de amor e serviço, representando o Jesus Bom Pastor junto do povo de Deus.
Queria saudar a minha família, que está aqui presente, representada, em parte (em parte ausente, por exemplo a minha mãe não pode estar por motivos de saúde) mas sei que eles expressam a comunhão de uma vida que tem sido sempre presente nos momentos mais difíceis e também nos momentos alegres e de esperança, como é o dia de hoje, por isso estou-lhes muito grato.
Uma outra família na minha vida tem sido a Universidade Católica.
E na pessoa da sua Reitora, da equipa Reitoral, dos antigos Reitores, dos Senhores Professores, Diretores, dos Colaboradores e alunos, eu quero dizer que a Universidade Católica é de facto a minha Alma-Mater.
Gostei muito que na Bula de Nomeação o Papa Francisco tivesse dito que eu venho da Universidade Católica Portuguesa, porque é de facto assim que eu me sinto.
A Universidade estará sempre no meu coração e sei que continuará a cumprir a sua missão ao serviço da Educação Superior, ao serviço da Igreja e da comunidade.
Queria saudar todas as comunidades por onde passei ao longo destes 28 anos do meu percurso como Padre, desde o princípio, todas as pessoas que me ensinaram a ser Padre, porque a gente quando chega não sabe ser…
Há 28 anos atrás eu não sabia ser Padre, como agora neste momento, diante de vós, eu não sei ser Bispo. Vou ter de aprender, e aprender com o povo de Deus. E eu dou muito graças a Deus porque tive os melhores mestres. Desde a Paróquia do Livramento onde eu fui pároco, às Paróquias e Comunidades onde fui colaborador aqui em Lisboa: Alcântara, Santa Isabel e depois a comunidade da Capela do Rato, onde fui Capelão cerca de 10 anos.
Queria também recordar as outras realidades pastorais que eu animei, as Equipas de Casais de Nossa Senhora, primeiro no Funchal, depois aqui em Lisboa – e que são para mim a extensão da minha família e que ao longo destes anos me apoiaram e sustentaram, sobretudo com o seu testemunho, e que para mim são de facto um laço de Deus na minha vida.
E quero saudar todas as pessoas com quem eu convivi e que tiveram a generosidade também de estar aqui presentes, com amizade. Eu acredito muito naquilo que recebemos de Deus e aprendemos de Deus através da amizade, e no serviço que eu pude prestar, senti sempre que recebi muito mais do que aquilo que dei e por isso quero agradecer-vos de coração e dizer que vos considero também mestres da minha vida.
Num dia como este nós olhamos para a nossa vida como um filme, em que parece que tudo é possível ver de uma só vez… e eu tenho dois sentimentos muito grandes:
O primeiro é sentir que Deus me ama. Eu não tenho dúvidas disso: Deus me ama. E de uma maneira que eu nem vos digo, que eu nem vos conto, a maneira como Ele me ama. E o Seu Amor abisma-me, o Seu Amor deixa-me sem palavras.
E sei que Deus escolheu amar-me da maneira para mim mais sublime, que foi através de cada um de vós. E isso é alguma coisa que eu agradeço a Deus, Ele ter escolhido amar-me desta forma.
E depois sinto que sou uma obra dos outros. Ainda esta manhã, ao acordar, eu meditava na Palavra de Jesus a Pedro, no Evangelho de João: “Estenderás a mão e outro te cingirá e te levará para onde não queres.”
Sinto que a minha vida não é minha, que a minha vida é uma vida dada, é uma vida oferecida. E sinto que sou obra dos outros e para os outros.
E isso, se por um lado é uma responsabilidade enorme, por outro lado é um ato de amor, um ato humilde de amor – e é assim que eu estou diante de vós, oferecendo a minha vida e contando com a ajuda de todos e com a oração de todos.
Quero agradecer todas as pessoas que desde o dia 26 de junho, quando foi pública a minha nomeação me ajudaram com as suas orações, com as suas palavras de estímulo, com o seu apoio e também com todas as suas ajudas, tudo o que faz um Bispo (desde a preparação das insígnias à preparação dos paramentos, das batinas, de tudo aquilo que é próprio de um Bispo). E agradeço aos artistas, aos artesãos, aos amigos, aos benfeitores que se juntaram para, na minha indigência e na minha necessidade, me ajudarem a encontrar a possibilidade de estar hoje aqui. E agradeço também a todos aqueles que propiciaram e organizaram, de uma forma tão generosa e amiga, o pequeno refresco que depois será servido no claustro.
“OLHAI OS LÍRIOS DO CAMPO”
Quando tive de decidir qual seria o lema do meu escudo episcopal, foram estas palavras de Jesus que assomaram com mais força ao meu coração: “OLHAI OS LÍRIOS DO CAMPO”
E recordei-me de alguma coisa que li sobre a tradição dos Padres do Deserto e dos Poetas Monges que durante séculos foram a alma do mundo a oriente. Na sua despedida, eles confiavam aos discípulos apenas uma frase, apenas uma, mas que fosse capaz de resumir de forma flagrante todo o ensinamento transmitido. Ou então eles próprios, antes de morrerem, peregrinavam ao cimo de uma montanha para gravar essa frase numa pedra, ou a escreviam no tronco de uma bananeira para ser lida, muito tempo depois, por alguém de passagem, que inesperadamente se deixasse tocar por aquelas palavras e permitisse assim, dentro de si, que a história recomeçasse.
Porque as histórias, as nossas histórias, estão sempre a recomeçar.
E essa espantosa plasticidade da vida é a prova que continuamos e continuaremos até ao fim um barro fresco, um sonho possível nas mãos desse Oleiro apaixonado que é Deus.
Por isso, olhemos os lírios.
Extasiemo-nos com o milagre da vida.
Porque só lhe fazemos justiça se formos muitas vezes, ou se formos a cada instante, capazes desse êxtase.
É sempre o nosso olhar que precisa ser trabalhado, curado, refeito, amparado, recriado.
Não é por acaso que os Evangelhos apresentam tantas curas da cegueira ou transmitem tantos ensinamentos de Jesus sobre os olhos. Ele é o terapeuta do nosso olhar, é o reconstrutor do nosso modo de ver.
“OLHAI OS LÍRIOS DO CAMPO”
Se olharmos bem, os farrapos de mendigos que interiormente nos vestem têm a beleza dos lírios. É essa a lição.
Se olharmos bem, as nossas feridas, fragilidades, tudo aquilo que nos rasga é nas mãos de Deus (e com que Amor!) recosido, reparado, salvo. É essa a lição.
Eu sei que estaremos juntos para o resto da vida a olhar para os lírios.
O Santo Padre, o nosso querido Papa Francisco, quis colocar-me ao serviço do Arquivo e da Biblioteca Apostólica. Não sei ainda hoje as razões do seu convite, que expressa para com a minha pobre pessoa uma confiança que filialmente agradeço, mas que não deixa, ainda agora, de ecoar a sua surpresa em mim.
Consola-me pensar que ele, ouvindo-me durante os exercícios espirituais, talvez tenha pressentido que para mim não há diferença entre uma biblioteca e um jardim.
E que por dentro das grandes obras da religião, da ciência, dos grandes monumentos da literatura, das humanidades, da erudição ou do pensamento, eu aprendi que está o desejo, a sede de olhar e ajudar os seus semelhantes a olhar os lírios do campo.
E tenha achado que desta maneira eu também possa servir a Igreja e possa servir a humanidade, configurando a minha vida com a vida de Jesus, o Mestre da sede, o Bom Pastor da vida e da beleza, o Jardineiro dedicado das nossas vidas.
Agradeço-vos e peço que rezem por mim.
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Notícias da Agência Ecclesia:
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2018/07/28 - Ordenação Episcopal de D. José Tolentino Mendonça - anúncio
Como todos sabem, o Papa Francisco nomeou o nosso querido padre José Tolentino Mendonça como arquivista do Arquivo Secreto do Vaticano e bibliotecário da Biblioteca Apostólica, ao mesmo tempo que o nomeou arcebispo, sendo-lhe simbolicamente atribuída a arquidiocese de Suava, no Norte de África. A tomada de posse está marcada para dia 1 de setembro, em Roma.
A sua Ordenação Episcopal vai decorrer no próximo dia 28 de julho, sábado, às 16h00, no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa. A celebração vai ser presidida pelo Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, e terá como Bispos co-ordenantes o Cardeal D. António Marto, Bispo de Leiria-Fátima, e D. Teodoro de Faria, Bispo Emérito do Funchal.
A comunidade da Capela do Rato rejubila com este acontecimento, ao mesmo tempo que está imensamente grata por ter tido a benção de ter como Pastor e Amigo o P. José Tolentino Mendonça.
2018/07/26 - Inauguração da Exposição 'Junto ao Chão', de Carlos Nogueira e Manuel de Freitas
No dia 26 de Julho, quinta-feira, às 19h, na Capela do Rato, será inaugurada a Exposição “Junto ao Chão”, do escultor Carlos Nogueira e do poeta Manuel de Freitas. Esta iniciativa surge no âmbito do diálogo entre o sagrado, a busca da fé e a arte contemporânea, e é um convite a junto ao chão escutamos melhor o céu. A Capela estará aberta para esta iniciativa de quinta a domingo, das 14h30 às 19h, até 9 de setembro.
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2018/07/22 - D. Manuel Clemente na Celebração do Sacramento do Crisma e do Batismo
D. Manuel Clemente, Cardeal-Patriarca de Lisboa, vem à Capela do Rato crismar os catecúmenos que durante este ano se prepararam para esta etapa da sua vida cristã, bem como batizar. Será no domingo, dia 22 de julho, às 11h30. Este é um acontecimento que a comunidade acolhe com muita alegria e esperança renovada.
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2018/07/22 - Padre António Martins, novo Capelão da Capela do Rato
É com muita alegria que a comunidade da Capela do Rato acolhe o seu novo capelão, Padre António Martins, e anuncia que a sua tomada de posse neste serviço pastoral acontecerá na Celebração Eucarística do próximo domingo, dia 22 de julho, presidida pelo nosso Cardeal Patriarca, D. Manuel Clemente. Sinta-se muito bem-vindo e conte com todos nós.
2018/07/18 - Poesia e Oração
No dia 18 de Julho às 21:00 seremos muitos a assistir, e serão diversos os convidados nos nomes, nas vozes, nas artes, para um serão de Poesia e Oração com o Padre José Tolentino Mendonça, o Poeta. Na Capela do Rato, a poesia e a oração serão a substância, o serão será a surpresa, a presença da comunidade será um acontecimento muito especial.
Partilhamos o serão de Poesia e Oração, através do registo por palavras e vídeo da Pastoral da Cultura e da Agência Ecclesia:
http://www.snpcultura.org/
http://www.snpcultura.org/
http://www.agencia.ecclesia.
2018/07/16 - Padre António Martins, novo Capelão da Capela do Rato - anúncio
É com muita alegria que a comunidade da Capela do Rato acolhe o seu novo capelão, Padre António Martins, e anuncia que a sua tomada de posse neste serviço pastoral acontecerá na Celebração Eucarística do próximo domingo, dia 22 de julho, presidida pelo nosso Cardeal Patriarca, D. Manuel Clemente. Sinta-se muito bem-vindo e conte com todos nós.
2018/07/15 - Elogio da comunidade (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
Hoje tenho, pela última vez, a grande graça de me dirigir a vós nesta homilia enquanto vosso capelão e queria fazer o vosso elogio. Queria louvar, bendizer aquilo que cada um de vós é, e esta coisa maravilhosa que é o Mistério da Igreja expresso nas nossas humanidades. Como Deus Se dá a ver na nossa carne, na nossa vida, no nosso estilo, na nossa simplicidade, como Deus Se aproxima da História através de nós. Queria fazer o vosso elogio, pequenina comunidade.
E de facto, quando pensamos no que será o futuro do Cristianismo nós percebemos que será uma realidade marcada por pequenas comunidades, que juntas são capazes de fazer uma experiência, fazer mesmo uma experiência de autenticidade que marque as suas humanidades mas que seja ao mesmo tempo uma experiência de relação, uma experiência de encontro. Mesmo se em contraciclo em relação aos grandes movimentos da História e em relação àquilo que dizem as estatísticas. O Cristianismo do futuro será suportado pela experiência de pequenas Igrejas, assim como a nossa, na malha de um mundo indiferente, de um mundo disperso, distraído mas que nós somos chamados a amar, que nós somos chamados a servir.
Queria fazer o vosso elogio, querida comunidade, e dizer três coisas que, partindo da Palavra de Deus, eu penso que são um legado que já hoje a comunidade afirma aqui, na realidade da nossa cidade.
A primeira coisa é esta que Jesus recomenda no Evangelho quando despede os Seus apóstolos, diz: “Não levem nada para o caminho. Levem apenas as sandálias e levem apenas o bastão na mão. Não levem nem pão, nem alforge, nem dinheiro.” Isto é, não é nos meios que nós temos de colocar a nossa confiança. A evangelização não se faz com uma riqueza de meios. Na pequena comunidade do Rato nós acreditamos na força do nada, na força dos pequenos nadas. Não na força dos grandes recursos, que não temos, mas na força desse despojamento, na força que representa não ter. A Igreja do futuro será uma Igreja necessariamente mais pobre, e essa pobreza será uma vantagem enorme, será uma riqueza muito grande.
Porque, como diz S. Paulo na Segunda Carta aos Coríntios, Cristo fez-Se pobre para nos enriquecer com a Sua pobreza. Queridos irmãs e irmãos, aquilo que enriquece o coração das mulheres e dos homens é sempre a pobreza. Um cristão não é um senhor nem um administrador de nada. É um mendigo, é um enamorado, é um caminhante, é um nómada, é um buscador, é um inquiridor. Não é alguém que está sentado do lado das respostas, é alguém que vive inquieto com as perguntas e alguém que faz dessa inquietação a sua morada, a sua casa, a sua mesa, o seu pão, a sua palavra.
Por isso, o ter menos, ser menos, não é uma desvantagem, pelo contrário, é a atitude espiritual que nós somos sempre chamados a redescobrir. É uma tarefa e uma exigência de sempre porque facilmente nós enchemo-nos de tralha, de coisas desnecessárias e achamos indispensável isto e aquilo e não é. Amemos as mãos vazias, as nossas mãos vazias. Essas mãos vazias que são a essência da oração pura seja também a essência do nosso encontro uns com os outros. As mãos puras. Puras de preconceito, puras de razões, puras de atavismos. As mãos vazias. Mesmo que essa seja uma arte muito difícil. A arte de acreditar que o nada, o não levar nada é levar o essencial.
Depois há uma outra qualidade na comunidade que eu queria elogiar que é a capacidade do acolhimento, da hospitalidade, do viver de portas abertas. Isto que Jesus diz: “Entrai nas casas.” A viagem mais comprida e mais difícil que nós podemos fazer é atravessar a soleira de uma porta, entrar numa casa. Às vezes levamos anos e anos para conseguir entrar numa casa. E entrar numa casa quer dizer entrar num coração, entrar numa vida, entrar numa biografia, entrar numa história. Isso para nós, cristãos, é que é o decisivo. Não é esbarrarmos uns nos outros pela vida fora mas é sabermos entrar na vida uns dos outros, sem invadir, sem colonizar, sem querer dominar mas como hóspedes da vida, como hóspedes da história, como hóspedes desta maravilhosa viagem que é a nossa própria existência. Nós somos hóspedes e temos de nos comportar assim. Não é como quem recebe e quem abriga e quem dá, mas é como quem se torna humilde e depende do outro.
Jesus quando passou pela vida daquelas mulheres e daqueles homens dizia: o Reino de Deus precisa de ti, o Reino de Deus precisa de ti. É importante que a Capela seja um lugar onde isto é dito. E é dito a personagens improváveis. Porque o Cristianismo não pode ser previsível, não pode ser para aquela gente que nós olhamos e dizemos: aquela é uma católica ou aquele é um católico, vê-se na cara. Não, o Cristianismo tem de ser improvável, tem de encontrar outros atores, tem de ir buscar às margens, tem de ir buscar às periferias, tem de se abrir a outros percursos existenciais como Jesus fez com o cobrador de impostos, com a mulher pecadora, com a doente. Jesus vai buscar atores improváveis para escrever a Sua história. E a Capela do Rato tem sido isto, um lugar onde o Cristianismo pode ser vivido por atores improváveis. Isso é um sinal tão grande da vitalidade do Reino de Deus no meio de nós.
A terceira coisa que eu acho muito importante é aquela lição que nos dá o profeta Amós. A profecia não é uma coisa fácil, não é fácil ser profeta. Os nobres diziam a Amós: vai-te embora, tu não deves pregar aqui. E ele continuava a insistir – há uma insistência, há um incómodo na profecia. Os profetas da Bíblia destacavam-se por dois elementos: eles não recebiam dinheiro, porque muitos videntes pregavam por dinheiro, eles pregavam sem ser por nada, pregavam por fidelidade a Deus e eram capazes de sofrer por aquilo que pregavam. Isto também é o sinal de uma liberdade interior. Eu penso que é tão importante no Cristianismo de hoje e de sempre, sentirmo-nos livres. Numa liberdade, num desapego face ao nosso destino, face ao nosso bem-estar para podermos ser fiéis àquilo que é essencial. Sejamos fiéis em cada momento àquilo que é essencial mesmo se tivermos de sofrer por isso.
A Carta aos Efésios não é um texto, é um retrato, é dos arranques mais belos das Cartas de Paulo, porque é um louvor a Deus através de cada pessoa: “Bendito seja Deus porque nos escolheu, porque nos chamou, porque nos predestinou, porque nos libertou, porque nos redimiu, porque nos deu o Seu Espírito. Bendito seja Deus.” Queridos irmãs e irmãos, quando a gente olha, quando a gente põe os olhos em cada um de facto não cessa de bendizer pelo bem, pela arte maravilhosa com que Deus trata cada criatura. Dizer isto é o que nos cura. O Cristianismo do futuro, tem de ser um Cristianismo que acredita na arte de curar, na arte de restabelecer os corações dilacerados.
O Papa Francisco tem chamado a Igreja a ser um hospital que presta os primeiros socorros. E nós temos de ser socorristas, um bando de socorristas, cúmplices com a arte de curar do próprio Deus de dar entusiasmo, de dar alegria aos corações.
Queridos irmãs e irmãos, recebamos o Espírito Santo, o Espírito que nos fortalece e nos ajuda a ser.
A minha última palavra, e queria que a recebessem com a verdade com que eu a digo era, como vosso pastor, pedir-vos perdão por todas aquelas vezes (porque isto acontece sempre numa vida) em que a gente não foi tudo o que podia ser. E se alguma vez, por palavras ou por gestos, eu fui menos delicado ou menos atento, menos pai para cada um de vós, humildemente eu peço perdão e peço que rezem por mim. Eu rezarei sempre por vocês até ao fim dos meus dias.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XV do Tempo Comum
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2018/07/15 - Comunidade da Capela do Rato apoia família de Refugiados
A Capela do Rato acolheu com entusiamo o apelo do Papa Francisco para que cada comunidade cristã se empenhasse no apoio aos imigrantes e refugiados que procuram na Europa uma nova oportunidade para as suas vidas.
Como quem chega precisa de apoio, a Comunidade do Rato, em conjunto com outros parceiros, auxiliou mensalmente uma família, com dois filhos menores, na sua gradual integração na sociedade portuguesa durante dois anos (2016-2018). Findo este período de adaptação, a família que apoiámos visitou-nos no passado dia 15 de julho, ocasião em que agradeceu o acolhimento recebido em Portugal, a sua nova casa, e que nós, enquanto comunidade, pudemos reiterar o nosso compromisso com o apelo do Santo Padre por uma Europa aberta, sem muros e fraterna.
2018/07/08 - Cúmplices do milagre (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
Jesus estava espantado com a falta de fé daquela gente.
Pensemos um pouco no que significa ter fé. O que é ter fé? Ter fé é certamente ter fé em Deus, ter confiança em Deus. A palavra fé, “fides”, tem a ver com confiança – um ato de entrega, de abertura e de abandono à vontade de Deus, à possibilidade de Deus em nós, isso é a fé. Mas a fé não é apenas disponibilidade para o mistério de Deus. A fé, se existe verdadeiramente, torna-se a nossa maneira de ser, a nossa maneira de atuar.
Eu não posso ter fé em Deus e desconfiar continuamente dos irmãos; eu não posso acreditar no mistério de Deus e desacreditar completamente desse mistério que pulsa, que respira na vida, na história, nos acontecimentos… se eu tenho fé em Deus, então a fé é uma atitude de confiança fundamental, transversal, que está em todas as atitudes da minha vida: eu vou acreditar, eu vou acreditar!
Porque não aconteça que nós com mais facilidade acreditemos naquilo que não vemos do que acreditemos naquilo que vemos! A fé em Deus é uma escola, é uma escola de vida – no sentido em que forma o nosso coração, forma a nossa alma para depois confiarmos nos seus filhos e nas suas filhas, para confiarmos nos nossos semelhantes… mesmo que a situação pareça difícil, mesmo que o ponto de partida seja muito frágil, nós precisamos de dar aos outros também a nossa fé, o nosso ato de confiança.
E nós sabemos isto, eu penso que a vida e Deus através da vida mostra-nos isso: quando nós acreditamos e pomos fé, nós vemos milagres acontecer. Quando nós confiamos nos outros e fazemos os outros sentirem-se investidos de uma confiança, de um amor incondicional, então nós percebemos que há muitos limites que se superam, há muitas fragilidades que se transcendem e há muitos pontos de partida frágeis que depois se tornam outra coisa.
O que é que é necessário? É necessário a fé. A fé que o Criador tem quando olha para o barro ou que o escultor tem quando olha para a pedra – e não vê apenas o barro nem vê apenas a pedra, mas já vê a obra-prima que quer realizar. Miguel Ângelo dizia isso de uma forma muito bela, ele dizia: “Quando eu olho para o mármore, não vejo só o tosco mármore, eu vejo já a escultura e o que eu faço é libertar.”
Às vezes o nosso olhar, o olhar que damos uns aos outros não é um olhar que vê a obra-prima nos outros – mas vemos o tosco, vemos o limite, vemos a pedra, vemos o barro. Por isso a nossa relação fraqueja, a nossa relação perde qualidade humana, afetiva e espiritual, porque nós não vemos o outro como Deus o vê, não vemos o outro com os olhos de Deus, mas vemo-lo de uma forma mesquinha, de uma forma incompleta, de uma forma ressentida, de uma forma desacreditada.
Olhamos para os outros sem pingo de fé. Somos crentes em relação a Deus, mas somos ateus em relação aos irmãos.
Ora, é preciso uma fé na pessoa… as histórias mais belas, por exemplo da minha vida de Padre: ver mães e pais que não desistem dos seus filhos, e nós diríamos de fora: “é um caso perdido”; não, não é um caso perdido, não há casos perdidos, porque se há amor, se há quem acredita, aquele caso não é perdido, mas há uma energia de amor, há uma energia revitalizadora, há um milagre que pode acontecer em cada vida.
E esse milagre também depende da confiança que nós colocamos nos outros.
Jesus vai à sua terra e todos começam a dizer: “Mas ele não é o filho do carpinteiro? Mas então como é que ele está a pensar que é um profeta? Mas… nós conhecemo-lo bem, mas o que é isto?” E Jesus diz: “Um profeta não é aceite apenas na sua terra e na sua família.” E não pode realizar ali nenhum milagre.
Às vezes a familiaridade, às vezes a relação que temos com os outros impede que aconteça um milagre. Porque a relação que temos com os outros não é de admiração, mas é de posse. Não é de louvor, não é de fé, não é de confiança no bem que Deus pode fazer no outro, mas é no defeito, na imperfeição, no problema que nós identificamos.
Ora, a Palavra de Deus hoje é uma palavra que nos liberta e diz: Purifica o teu olhar em relação aos irmãos e abre-te àquilo que Deus pode fazer neles, abre-te àquilo que só Deus pode conseguir – conspira, sê cúmplice do milagre, em vez de seres um obstáculo a que o milagre da vida humana possa acontecer.
Porque os milagres não são apenas de doenças físicas, eu diria até que os grandes milagres são de doenças espirituais. E temos de dar muito valor a isso: as pessoas que conseguem vencer um defeito, vencer um problema, reconstruir-se depois de um desabamento. Que são capazes de dar um passo na direção certa depois de ter dado muitos na direção errada…
De facto, quem somos nós para julgar os nossos irmãos? Precisamos, antes, de investir neles esta fé… e vamos pedir ao Senhor que nos dê esta capacidade de acreditar uns nos outros, de transmitir aos outros este capital de confiança, sobretudo àqueles que estão mais próximos de nós. Nós sabemos, por exemplo, que em família isto às vezes é muito difícil de viver, porque antes que o outro abra a boca nós já sabemos todos os disparates que ele vai dizer, e custa-nos muito, e já não estamos para ouvir… e sem darmos conta, nós estamos a impedir que o milagre aconteça.
Temos de nos perguntar se somos favorecedores do milagre ou se somos obstáculos do milagre: na nossa família, entre os nossos amigos, nos nossos lugares de trabalho, na nossa comunidade, na relação uns com os outros, qual é a nossa atitude? É de facilitar, pela confiança, a que a transformação e o milagre aconteçam ou, pelo contrário, nós criamos um muro já de ideias feitas, de preconceitos, de juízos, e já não damos mais nenhuma hipótese…
É claro que é preciso um trabalho interior, não é fácil. Este discurso não é um discurso fácil, é um discurso exigente, que pede uma morte espiritual para nós próprios, porque não é fácil acreditar sempre, não é fácil! Não é fácil perdoar setenta vezes sete, não é fácil! Não é fácil dar mais uma oportunidade depois de todas as que nós demos, não é fácil! E, contudo, não podemos fechar a porta, porque se fechamos a porta somos nós que morremos, se deixamos de acreditar somos nós que perdemos a nossa vida, somos nós que perdemos a nossa esperança…
É muito interessante aquilo que diz S. Paulo na Segunda Carta aos Coríntios que hoje nós lemos, que é um pouco a espiritualidade ou a teologia da fragilidade: Um anjo colocou um espinho no corpo de Paulo. Os teólogos discutem muito o que é que será este espinho que Paulo trazia no corpo. Muitos dizem “É uma doença, Paulo era uma pessoa doente…” ( a imaginação cavalga um bocado e há muitas hipóteses de doenças). Santo Agostinho dizia que era a concupiscência que Paulo trazia na carne, como todos nós trazemos na nossa carne e que esse é um espinho – quer dizer, não podemos pensar que somos anjos, não podemos pensar que somos o que não somos, não! Nós somos feitos de barro, somos tentados, somos provados, vivemos sempre na fragilidade e S. Paulo pede a Deus: “Senhor, tira-me o espinho!” E Deus diz: “Não, não te vou arrancar o espinho, basta-te a minha Graça. Porque é na fragilidade, é na fraqueza que se revela a minha força.”
E às vezes, na nossa vida, nós pedimos a Deus: “ Senhor, arranca-me o espinho! Senhor, tira-me esta dificuldade! Senhor, tira-me este da frente, tira-me esta da frente, Senhor, resolve-me!” E Deus normalmente não resolve assim, mas ajuda-nos a fazer um caminho de confiança: “Basta-te a minha Graça”, porque é quando somos fracos que somos fortes…
Nós temos de aprender esta fraqueza, a abraçar a fraqueza, e nós não aprendemos isso senão no alto da cruz.
É contemplando Cristo de braços abertos e pregado na Cruz, é contemplando esta impotência de Jesus que nós aprendemos o que é o amor, e que aprendemos o que é o perdão, e que aprendemos o que é abraçar a própria fragilidade como caminho para o amor, como caminho para a esperança.
Vamos pedir ao Senhor que nos encha de fé! Encha-nos de fé n’Ele, no que Ele pode fazer em nós, no milagre quotidiano que Deus está disposto a fazer em nós! Mas que tenhamos fé uns nos outros, tenhamos fé na pessoa humana que se abeira de nós, que a olhemos com fé, com confiança, porque isso faz a diferença.
Uma coisa é olhar o outro com duas pedras na mão, na defensiva, outra coisa é olhar o outro e escutar o outro de coração aberto.
Quando fazemos isso, ganhamos sempre, ganhamos sempre…
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XIV do Tempo Comum
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2018/07/04 - ‘Poesia e Prosa Escolhidas’, de G. M. Hopkins – Apresentação
A obra ‘Poesia e Prosa Escolhidas’, de Gerard Manley Hopkins, edição das Paulinas, será apresentada por José Tolentino Mendonça e Mário Avelar, na quarta feira, 4 de julho, às 18h30, na Capela do Rato. Uma iniciativa a não perder e o convite aberto a todos os que queiram vir, como habitualmente.
2018/07/01 - Tocar e ser tocado por Jesus (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
A imagem da nossa humanidade como aparece documentada nos Evangelhos é uma humanidade ferida, é uma humanidade frágil.
Nos Evangelhos, nós temos o retrato das multidões e das mulheres e dos homens desenhados individualmente – na sua dor, na sua solidão, na sua vulnerabilidade, na sua procura, na sua imperfeição, na sua incompletude.
É a realidade que nós próprios vivemos, que aparece muito bem expressa nos Evangelhos.
Não é ao mundo ideal que Jesus veio, Jesus veio ao mundo real, ao mundo de mulheres e homens como nós, atormentados, perseguidos, sedentos, carentes, mendigos do amor de Deus, a precisar de solução, a precisar de encontro… é esse o retrato dos Evangelhos.
Nós sabemos que este estado, esta condição de carência em que nós vivemos não é aquilo para o que Deus não nos criou. Deus não nos criou para o sofrimento, Deus não nos criou para as lágrimas, Deus não nos criou para o desamparo e para o abandono. É essa meditação sobre a beleza da vida no sonho de Deus que hoje o Livro da Sabedoria nos conta, dizendo: “Não há morte, não há veneno que possa matar o homem, não há nada que o possa afetar, porque Deus criou-o para ser incorruptível”. Deus criou-nos para sermos incorruptíveis, para sermos íntegros, para vivermos e saborearmos o esplendor da vida.
Deus tornou-nos semelhantes a Ele… então a nossa humanidade aos olhos de Deus vale muito, vale muito! A nossa humanidade aos olhos de Deus é uma humanidade de filhos, filhos queridos, filhos amados, que é aquilo que cada um de nós tem de sentir, tem de redescobrir, muitas vezes debaixo dos escombros da sua vida. É essa beleza que nós temos de descobrir, porque Deus criou-nos para a incorruptibilidade.
Mas nós não saberíamos esta verdade fundante, arquitetural da nossa vida, se o próprio Deus, na pessoa de Jesus, não viesse ao nosso encontro para nos tocar, para deixar-se tocar e para nos tocar.
Pensemos nas duas personagens que emergem no Evangelho de hoje, nesta página de S. Marcos: aquele pai, chefe da sinagoga, a quem a filha morreu muito doente, ele ainda não sabia que a filha tinha morrido, e num desespero muito grande vem à procura de uma solução. É um grito, é uma ânsia, é um desejo, é a exposição dramática da nossa fragilidade.
Aquele pai representa todos os pais e todas as mães, todas as aflições que na vida nós vivemos, porque não conseguimos salvar os outros, não conseguimos tocá-los da forma que nós queríamos – e então este homem, sendo o chefe da sinagoga, vai ajoelhar-se aos pés de Jesus e suplicar-lhe: “Vem ver a minha filha, vem tocar a minha filha!” .
E Jesus acede e vai ao encontro. E quando está em viagem, cercado por uma multidão, há uma mulher que há doze anos vive numa procura, desenganada dos médicos, a encontrar um remédio para a sua doença. Ela estava sozinha, envergonhada, excluída, no meio daquela multidão. E ela vem tocar Jesus.
Jesus por um lado aceita ir tocar a filha do chefe da sinagoga, mas Ele também se deixa tocar por esta mulher que precisa de vida, que precisa de um remédio, que precisa de um olhar compassivo, que precisa talvez de tocar em alguém. Porque a sua doença tornava-a também uma intocável, tornava-a uma pária social e ela precisava tocar em alguém. Então com fé, ela toca nas vestes de Jesus.
É maravilhoso ver a solicitude de Jesus, porque Jesus imediatamente vai com aquele pai e ao mesmo tempo é sensível no meio de toda a multidão que o constringe e aperta. Jesus é sensível ao toque anónimo daquela mulher. E pergunta. “Quem me tocou?”
“Quem me tocou?”, isto é, dá valor àquele gesto, dá dignidade à procura, à carência daquela mulher, precisa de a olhar nos olhos. E depois no diálogo que tem com ela diz uma coisa muito bonita, diz: “Filha, filha, a tua fé te salvou”. Aquela mulher não estava apenas doente da hemorragia, estava também doente de uma orfandade ontológica, de uma solidão – e Jesus arranca-a da solidão e dá-lhe aquele amor filial: “Filha, a tua fé te salvou”.
Depois Jesus vai ao encontro daquela menina e toca-lhe outra vez na mão e diz-lhe: “Talitha Kum”, “Menina, levanta-te”! E ela levanta-se, viva, revitalizada!
Jesus vem ao encontro da nossa vida para nos tocar, tocar aquilo que nós somos, tocar a nossa solidão, tocar a nossa carência, a nossa escassez. Jesus vem para tocar. E para dar-nos aquela vida que só por nós, nós não conseguimos, e dar-nos aquele entusiamo que por nós sós não chegamos a ele, e dar-nos aquela confiança, aquela alegria que só Deus sabe transmitir, sabe ensinar.
Por isso, confiança, tenhamos confiança! Aquela palavra que Jesus diz ao chefe da sinagoga, “Não temas, confia apenas”, é a palavra que Deus dirige a cada um de nós em cada momento da nossa vida.
Hoje nós temos quatro catecúmenos que o Senhor Patriarca vai batizar e crismar (eles vão receber os três sacramentos da iniciação cristã: o Batismo, a Primeira Comunhão – a Eucaristia- e o Crisma, no dia 22). Eles hoje vão receber o primeiro rito, o rito com o óleo dos catecúmenos: é a Ana, é a Bárbara, é a Rita e é o Miguel.
Vamos rezar por eles, são pessoas jovens que a meio da sua vida têm este desejo de tocar e de ser tocados por Jesus. E que eles o desejem fazer aqui na nossa comunidade é alguma coisa que nos comove muito – porque eles sendo nossos irmãos também são nossos filhos, também é a nossa fé que produz estes frutos, que produz o desejo, a sede de Deus no coração daqueles que nos rodeiam, daqueles que estão connosco.
Nós dizemos à Ana, à Bárbara, à Rita e ao Miguel: “Muito bem-vindos a este caminho mistagógico de iniciação à vida cristã. Desejamos muito que este primeiro passo seja dado com a confiança, com a certeza de que Deus vem para vos iluminar, para sustentar a vossa vida, para dizer a cada um:“ Tu és a minha filha, tu és o meu filho que eu amo, vou colocar em ti o meu amor”. Sintam esta palavra no fundo dos vossos corações. E neste mês peço também que rezem por mim, que esta palavra de Jesus seja uma palavra que eu possa guardar no meu coração, sustentado também pelo amor e pela oração dos irmãos.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XIII do Tempo Comum
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Junho
2018/06/24 - A surpresa de Deus (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
Aquilo que S. Paulo diz neste discurso nos Atos dos Apóstolos é exatamente o modo como nós devemos sentir o encontro com a Palavra de Deus no aqui e no agora das nossas vidas, porque Paulo diz aos seus auditores que “A nós é que foi dirigida esta Palavra de Salvação.” E, de facto, nós somos convidados a fazer deste momento de escuta da Palavra um momento de vida em que nos apropriamos desta Palavra como alimento, como luz para aquilo que somos e para aquilo que vivemos.
Eu gostaria de destacar das leituras de hoje três elementos que me parecem especialmente significativos, ou que hoje a mim me tocam especialmente.
O primeiro tem a ver com o Salmo 138 (139) que nós hoje proclamamos.
Estes dias tive mais uma apresentação do livro “Elogio da Sede” e no final uma senhora já com muitos anos pediu para comentar comigo qualquer coisa. Ela esperou pacientemente que tudo acabasse, e no final veio ter comigo com uma pergunta que à primeira vista parecia estranha, mas depois eu percebi bem o significado e hoje voltei-me a recordar dela. Ela veio ter comigo e disse: “As roupas que hoje certos jovens vestem, umas roupas todas rasgadas, todas esgarçadas, o que é que acha que isso é?” Eu fiquei assim a olhar para ela, mas ela depois continuou, e eu percebi que era um momento muito especial o que ela me estava a oferecer, porque ela disse: “Acha que é porque eles se sentem assim, que eles se sentem assim descosidos, rotos, fragmentados? É que quando eu tinha 20 anos, era assim, precisamente, que eu me sentia…”
E, de facto, ao longo da nossa vida muitas vezes nos sentimos assim. Sentimo-nos como se nos faltasse alguma coisa, como se um mal nos acompanhasse, não nos sentimos filhos, sentimo-nos órfãos, não nos sentimos de casa, sentimo-nos estranhos, sentimos que merecemos não ser amados.
Há uma espécie de desconfiança que nós alimentamos em relação à nossa própria vida. E sobretudo aquilo que nos pesa é o pecado, é a sombra de uma qualquer maldição, e não a alegria e a esperança de uma bênção que Deus faz reclinar sobre nós. Tantas vezes nós caminhamos pela vida com este peso, como se armadilhássemos o nosso próprio caminhar…
Aos 20 anos aquela senhora sentia-se assim, mas é possível sentir-se assim aos 40, aos 60, aos 80, aos 10, ao longo de toda a vida.
Por isto este Salmo maravilhoso é uma oração que nós precisamos urgentemente de rezar. Porque é a oração que fala da maravilha que Deus faz em nós, das coisas maravilhosas que Ele dedicou a cada um de nós: do cuidado, da ternura, do entusiasmo, do amor, da confiança, do deslumbre, da delícia que Deus coloca em cada vida, em cada existência.
Lembro-me muito bem de uma pessoa que eu acompanhei, com uma grande falta de confiança e de amor, e quando aos poucos a fui encaminhando para a descoberta do Amor de Deus e a ajudei a rezar especificamente este Salmo que hoje nós lemos, eu lembro-me de uma conversa em que ela diz: “Sabe, a coisa que eu mais lhe agradeço é ter-me dado a compreensão de que Deus me fez maravilhosamente…”
Porque às vezes nós olhamos para nós e só vemos a pedra, não vemos a obra, só vemos o monte de confusão e não vemos a criatura, só vemos o mendigo e não vemos o filho. E é tão importante esta mudança a acontecer em nós!
De facto, Deus fez maravilhosamente cada um de nós, e se nós formos capazes de sentir isso, não como uma vaidade, não como um orgulho (que isso é uma coisa tão tola!), mas como uma verdade natural que nos funda, que nos arquitecta, então somos capazes de viver a vida com outra liberdade, com outra naturalidade, com outra confiança. Porque é este olhar de Deus que confirma cada um de nós que nos ajuda verdadeiramente a ser, que nos desimpede o caminho e os nós que sem querer nós carregamos anos e anos e depois percebemos que não fazia sentido, que não era aquilo, que aquilo não nos ajudava e que aquilo não tinha nada a ver com Deus…
É importante sentir isto, sentir a força incondicional do Amor de Deus que é oferecido a cada um de nós. E que nós descobrimos não apenas a acontecer a meio da vida mas percebemos depois que é desde sempre, que esse Amor foi o primeiro pensamento que Deus teve acerca de nós e que a nossa vida é uma vida cuidada, é uma vida amparada, é uma vida embalada, é uma vida sustida pelo Amor de Deus.
No Profeta Isaías, nós temos uma daquelas expressões de lamúria e de cansaço que tantas vezes é a nossa, que nos sai com muita espontaneidade. O Profeta diz: “Cansei-me inutilmente, em vão e por nada gastei as minhas forças”. Nos balanços que nós fazemos da nossa vida (o que é que valeu a pena, o que é que não valeu, o que é que eu fiz, o que é que eu consegui, o que é que continua, o que é que fica para trás) muitas vezes os anos nos vão fazendo entrar num pessimismo muito carregado. Olhamos para a vida ou com um cinismo ou com uma dor, incapazes de abraçar isto em nós que nos desgosta, isto que parece que foi inútil, que não valeu a pena.
O Senhor ajuda o Profeta a perceber a sua vida como um caminho. Mesmo estes momentos de cansaço em relação à vida, de desânimo profundo são chamados a uma projetualidade que os redime.
Deus não nos deixa ficar no desânimo, Deus não nos deixa com os braços caídos. Deus quer que nós percebamos, na humildade e na simplicidade da nossa vida, que somos chamados a ser luz, a experimentar a salvação, a saborear a salvação de um modo que muitas vezes não é aquilo que nós sonhámos, não é aquilo que nós pensámos. Mas temos também de ser chamados a fazer um caminho e a não ficar no desânimo, a não ficar no cansaço… é claro, nós chegamos a esta altura do ano, à beira do verão e das férias, e só pensamos na muralha de cansaço, nos escombros, em tudo aquilo que nos pesa neste momento.
Nós somos chamados a olhar a vida de outra forma e isso é também uma conversão ao Amor de Deus, não é apenas um trabalho psicológico, é um trabalho espiritual. É uma reconstrução espiritual da vida que nós precisamos que aconteça. Porque a nossa vida não é só o resultado dos fatores e das variantes que nós dominamos. A nossa vida não é pré-determinada. Às vezes pensamos: “ Com o que eu fiz, com o caminho que eu tive, com as opções que eu tomei, agora o resultado é este, acabou!” Achamos que a vida se tornou irreversível, que a vida agora é atuada por uma espécie de fatalismo que necessariamente nos vai confirmar no desânimo…
Ora, quando aquela mulher estéril dá à luz um filho é preciso pôr-lhe um nome. Hoje nós sabemos como os casais têm imensa dificuldade em porem um nome, porque o nome é uma coisa muito importante. Pôr um nome a um filho é uma coisa muito importante. E naturalmente, isso ainda acontece hoje, vai-se buscar um nome de um parente, um nome de uma família, um nome que transporte a memória de uma determinada história.
Isabel e Zacarias vão pôr ao filho um nome que não tem nada a ver com o seu passado, não tem nada a ver com a sua família, não tem nada a ver com a sua história. Vão buscar um nome inédito, um nome novo, um nome que é um nome de começo, é um novo princípio, é alguma coisa que não é herdada do passado, mas é uma manifestação do futuro, é emergência pura do futuro.
E toda a gente diz: “Mas o que é que vocês estão a fazer, isso não bate certo!”
Também a nossa vida nós não podemos olhá-la apenas como um pré-determinismo, não podemos olhá-la apenas como uma consequência do seu passado, uma consequência dos fatores que estão em ato. A vida também é um salto, a vida também nos chega do futuro, não nos chega só do passado. O hoje não é só o que tem a ver com o ontem, o hoje também é a surpresa de Deus, é este futuro de Deus que se abeira da soleira da nossa porta, da soleira deste instante que nós somos. E é a abertura de coração também a esse futuro, a essa novidade, a esse lado inédito da vida, que nos faz começar a cada momento uma nova história, e nos faz acreditar que é possível, que é possível, que é possível…
Hoje nós celebramos a Festa do Nascimento de S. João Batista. Isto é muito importante porquê? A fé tem protagonistas concretos, a fé não é uma abstração em movimento na história. São vidas concretas, nomes concretos, mulheres e homens que nascem, amam, amadurecem, partem em Deus, mas que no aqui e no agora são capazes de corporizar esse desejo de Deus, esse sonho de Deus.
Por isso, a vida de cada um de nós é muito importante. Aquilo que somos é muito importante! Nós não fomos feitos para a sombra da maldição, mas fomos feitos para a luz de uma bênção.
Cada um de nós se sinta por isso iluminado por esta Palavra que hoje, vinda de Deus, se torna caminho concreto, se torna manifestação de confiança de Deus ao coração de cada um de nós.
Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade do Nascimento de São João Batista
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2018/06/21 - Inauguração Janela para o Céu
Na próxima quinta feira, 21 de junho, o dia com mais tempo de luz, às 18h30, vamos fazer a inauguração da nossa janela para o céu, o belíssimo óculo que o arquiteto João Carmo Simões projectou. O arquiteto apresentará a sua obra e a Luísa Soares de Oliveira falará como crítica de arte sobre o significado da mesma. Todos estão convidados a celebrar a entrada no verão a olhar para o céu.
Mais informação e fotos aqui.
2018/06/21 - Percurso de Preparação para o Crisma
Mais informações aqui.
2018/06/17 - Dar tempo (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
Sabem o que mais me comove nesta página do Evangelho de S. Marcos? É esta pergunta de Jesus que o deixa como que suspenso, como que inexplicavelmente hesitante: “A que havemos de comparar o Reino de Deus, em que parábola o havemos de apresentar?”
É o misterioso amor de Deus manifestado em Jesus que o leva, de facto, a esta espécie de dúvida em relação a si próprio, em relação ao modo, ao processo como a Sua revelação há de acontecer. Ele quer adequar a palavra de Deus e o anúncio de Deus àquilo que nós podemos efetivamente perceber, acolher. Por isso, também S. Marcos diz: “Ele contava muitas parábolas como estas, conforme eram capazes de entender.”
No fundo, Deus não quer dizer coisas que nós não consigamos tocar, perceber, mas há um desejo de adequação em relação àquelas que são as nossas possibilidades, àquela que é a nossa hora concreta neste momento da nossa vida. Jesus não deixa o discurso messiânico, o discurso salvador como alguma coisa abstrata que, quer entendamos ou não, corre na mesma. Não, há um esforço de se fazer ouvir.
E esta pergunta “Como compararemos o Reino de Deus, a que parábola o havemos de comparar?”, para mim é um sinal muito grande do amor de Deus e da ternura tão revelada no próprio Jesus.
Que cada um sinta, mas sinta verdadeiramente, que no seu coração Deus fala e Deus fala de uma forma que nós podemos entender. Deus fala de uma forma que nós podemos captar o sentido. Deus fala a nossa língua, Deus fala com a nossa gramática, Deus adequa-se àquelas imagens que nós podemos tornar nossas. E por isso a poética do Reino de Deus nos lábios de Jesus é tão aberta, é tão franca.
Jesus tem uma linguagem até que não é teológica e em certa medida nem é religiosa como processo. Porque Jesus conta a história deste agricultor que semeia a semente no escuro da terra, no silêncio da terra e depois tem de abandonar, tem de deitar-se e levantar-se e deixar passar o tempo para que a semente possa fazer o seu trabalho. Para entender esta parábola, não é preciso sermos religiosos ou sermos cristãos…é uma parábola que fala do tempo, do dar tempo para que as coisas possam acontecer. E na nossa vida espiritual nós precisamos também de dar tempo, dar tempo…
O Oscar Wilde dizia: “Na vida de todos nós há um momento marcado, que é o encontro com a pessoa de Jesus”. Eu penso que na vida de cada um de nós que estamos aqui em comunidade esse momento ou já foi sentido, ou está a ser sentido, ou ainda estamos à procura de sentir esse momento, mas esse momento está marcado. Precisamos de dar tempo, dar tempo… não viver na ansiedade de quem vai atrás esgravatar a semente, ver se cresceu mais… não! Confiar! Abandonar!
Esta atitude, no fundo, de deixar a semente que Deus plantou crescer em nós é a atitude da própria fé. Como a outra parábola extraordinária de confiarmos na força da própria semente e não apenas nas nossas forças. Porque Deus surpreende-nos, Deus surpreende-nos! Às vezes pensamos: “Mas é tão pequeno, é tão frágil, é tão incerto o destino de uma semente na terra seca do meu coração. Como é que eu posso confiar, conhecendo-me a mim como mulher, como homem, que esta palavra poderá ser fecunda, poderá dar fruto?”
Deixa! Confia! Acredita! Porque no caminho da fé não é apenas com a nossa força que nós contamos, é com a força da eficácia do próprio dom de Deus. Aquilo que Deus acende em nós e no nosso coração tem sempre a natureza de um milagre, de alguma coisa flagrante, tem sempre o inesperado, o imprevisível. A fé não é o caminho que nós já percorremos tantas vezes da mesma maneira, é uma abertura, é um rasgão, eu não sei o que vai acontecer, eu não sei como é que se vai dar… mas eu sei que vai acontecer, e sei que se vai dar em mim.
Santo Agostinho, na linha dos Padres da Igreja, dizia uma coisa tremenda. Ele dizia: “Porque é absurdo, eu acredito”. Às vezes nós desistimos muito facilmente da vida, da nossa própria vida, porque achamos que já não vamos a tempo, que os anos passaram, que perdemos as oportunidades certas e que já não há lugar para nós, ou perdemos a esperança nos outros, desistimos! É muito fácil isto acontecer.
Ora, Deus não desiste, e na fé nós sabemos que mesmo aquilo que nos parece impossível, mesmo aquilo que não está no plano das probabilidades acontecer, também acontece, também se dá a ver.
“Porque é absurdo, eu acredito!” A fé põe-nos à prova: nós, crentes, somos mulheres e homens expostos à prova da confiança, à prova de uma esperança maior que a própria esperança! E que muitas vezes contraria o horizonte da própria esperança… Mas é este fulgor, é esta intensidade que Deus quer colocar no coração de cada um de nós.
Tão extraordinárias as palavras do Profeta Ezequiel que hoje nós lemos – e são palavras tão consoladoras! Porque é o próprio Deus a dizer: “Eu próprio vou arrancar um ramo novo, e vou plantá-lo num monte muito alto e ele lançará ramos e dará frutos, e tornar-se-á um cedro majestoso.”
Nós às vezes só vemos o deserto, só vemos a aridez, só vemos a secura, só vemos aquilo que está a ir declinando, a ir perdendo o seu vigor… Acreditemos naquilo que Deus nos diz: Ele próprio, o Senhor, vai arrancar da nossa vida um ramo novo e vamos ser esse cedro verdejante. O Senhor vela pela fecundidade das nossas próprias vidas.
Por isso, a Palavra de hoje é uma palavra de confiança. E não necessariamente nas nossas forças, que são sempre frágeis. Eu acho que quando fazemos o diagnóstico da nossa vida, estamos a ver bem: somos frágeis, somos fracos, há tanta coisa por purificar, há tanta coisa que nos transcende… É verdade, não estamos numa ilusão, é verdade! É um diagnóstico realista das nossas possibilidades, mas a vida não é só isso e a nossa força não é só a nossa força. Não é só aquela que temos em nós. É a força que Deus deposita, é o fulgor das Suas sementes, é a intensidade da Sua palavra, é a novidade do Seu gesto, é o envolvimento concreto de Deus com cada um de nós que se torna depois o garante, a certeza, a grande razão da esperança…
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XI do Tempo Comum
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2018/06/10 - "Onde estás?" (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
A leitura do livro do Génesis começa com uma pergunta inesperada mas necessária: “Onde estás?” Deus pergunta à sua própria criatura: “Onde estás?”
“Onde estamos nós?” é uma pergunta existencial e espiritualmente obrigatória: porque é partindo do lugar onde estamos que nós podemos fazer um caminho, é abraçando e aceitando o lugar onde estamos que uma transformação pode acontecer, que a receção do dom de Deus e do acolhimento de Deus pode acontecer.
É claro que os rabinos diziam que esta era a pergunta mais estranha que aparecia no Antigo Testamento, porque Deus é Omnisciente, Ele sabe tudo. Se Deus sabe tudo, porque é que Ele pergunta ao homem “Onde estás?”. Então, esta seria talvez a única palavra da Bíblia desnecessária, redundante. Deus faz a pergunta mas já sabe a resposta. E se Deus faz a pergunta e não sabe a resposta, quer dizer que não é Omnisciente, e então esta pergunta também é uma pergunta que coloca problemas colossais em termos teológicos.
Eu acho que o que está aqui em causa não é o debate a saber se Deus faz a pergunta sabendo a resposta ou ignorando a resposta. O importante é que Deus faz a pergunta. Deus fez a pergunta e continua hoje, a cada um de nós, a fazer a pergunta: “Onde estás?”
Porque se Deus tem desejo de vir ao nosso encontro e tem esse desejo incondicional e eterno de tocar a mulher e o homem que nós somos, Deus faz-nos essa pergunta: “Onde estás?”
E “onde estás” não apenas no sentido geográfico, mas no sentido existencial, no sentido psicológico, no sentido biográfico, no sentido invisível: “Onde é que tu estás? O que é que estás a viver? O que é de ti? ”
E nós sabemos que é muito fácil enganar-se nesta resposta.
Aliás, o Evangelho de certa forma é uma expressão do engano, porque quando Jesus começou a sua atuação pública, a sua família ficou muito preocupada, pensou: “Esse lugar onde tu estás não é um bom lugar para ti, esse lugar é um lugar perigoso, esse lugar é um lugar do qual nós temos de retirar-te”… e então vão ter com Jesus precisamente para o retirar daquele lugar, porque não compreendiam ainda, até ao fundo e até ao fim, a missão de Jesus, a identidade de Jesus, o que é que Ele estava a fazer. E julgavam-no como ilegítimo, como um perigo.
Por isso o lugar onde nós estamos é um lugar que cada um de nós tem de responder. E na nossa oração é importante que nós possamos dizer a Deus onde estamos, dizer: “Senhor, eu estou aqui, eu estou neste lugar.”
Porque é desse reconhecimento do lugar onde estamos que nasce verdadeiramente a possibilidade de um encontro, e de um encontro que nos salve.
A vida espiritual não pode ser só um encontro de funções, um encontro de papéis, um encontro de fórmulas. Tem de ser um encontro de pessoas, porque a oração é um verdadeiro abraço de Deus à minha vida, à minha história.
Por isso o que eu transporto, o que eu vivo, o que eu sou, a intercessão das múltiplas variantes da minha existência não são coisas indiferentes. Não é: “Deus tanto me ama a mim como podia amar qualquer outra pessoa diferente do que eu sou….” Não, Deus ama-nos a nós, à nossa vida, Ele está interessado em vir ao encontro exato daquilo que nós somos. E para Ele não há obstáculo, não há limites.
Aqui, de facto, também o Antigo Testamento às vezes até parece blasfemo, está a “esticar a corda” para lá daquilo que é razoável, que põe em causa os próprios atributos de Deus. Porque, por exemplo, o Salmo 23, o Senhor é meu Pastor, vai dizer: “Se eu estiver no Inferno, Deus vai ao Inferno buscar-me, se eu estiver no vale da morte, Deus desce à morte, se eu estiver a atravessar a escuridão, Deus está na escuridão”.
Então Deus está em todo o lado, naqueles sítios em que pensamos “Bem, Deus não pode vir aqui porque esta é a minha miséria, esta é a minha confusão”. Deus vai aí arrancar-nos. Deus vai aí. Qualquer que seja o lugar onde nós estivermos, Deus vai aí ao nosso encontro. Vai para dar-nos uma palavra de esperança. Por isso não vale a pena escondermo-nos. Muitas vezes a nossa relação com Deus é um jogo de esconde-esconde, em que dizemos meias palavras, faz de conta, está e não está…como Adão que, por se sentir nu, esconde-se de Deus. E Deus pergunta: “Mas porque é que te escondes?’” E ele disse: “Porque eu estava nu.”
A nossa nudez, a nossa fragilidade, a nossa vulnerabilidade não é um impedimento. Estou convencido que não é o nosso pecado que nos afasta de Deus.
O que nos afasta de Deus é a descrença no Seu amor, a descrença na possibilidade que Deus tem de transformar a nossa vida. Porque Deus pode tudo. Dirá S. Paulo: “Onde abundou o pecado, superabundou a graça”. Por isso aquela coisa misteriosa que Jesus fala hoje no Evangelho de S. Marcos: “Tudo será perdoado aos filhos dos homens, há só um pecado que não é perdoado, é o pecado contra o Espírito Santo.”
Na história da teologia discutiu-se imenso sobre o que seria esse pecado contra o Espírito Santo que não tem perdão. Mas cada vez é mais claro que o pecado contra o Espírito Santo é não acreditar na força do Espírito Santo, é desarmadilhar, tirar o tapete ao próprio Deus, é dizer: “Não, Tu isto não podes salvar, esta parte de mim nem Deus consegue recuperar, isto é insalvável”… esse é o pecado contra o Espírito Santo. Porque Deus pode tudo, Deus é Deus, e não há nada em nós que Ele não possa salvar.
Por isso, não desesperemos da Salvação. Às vezes numa vida adulta o desespero expressa-se de muitas maneiras. E uma forma com que o desespero se expressa é o cinismo ou uma condescendência, que no fundo revelam o quê? Revelam esta dúvida que Deus possa fazer alguma coisa de mim: “Será que Deus pode de facto fazer alguma coisa de mim?” É importante que sintamos que Deus pode. Deus pode fazer destas pedras filhos de Abraão, Deus pode fazer do meu coração de pedra um coração de carne, Deus pode fazer da minha incerteza, da minha nudez um lugar de encontro, um lugar de reencontro. Deus pode.
O facto de Deus poder enche a nossa vida também de possibilidade, enche a nossa vida de projeto, enche a nossa vida de destino.
Queridos irmãos, esta coisa tão bela que S. Paulo nos diz hoje na Segunda Carta aos Coríntios: “Nós não olhamos só para as coisas visíveis, nós olhamos para as coisas invisíveis.”
Nós estamos aqui não apenas pelas coisas visíveis. E muitas vezes as coisas visíveis da nossa vida é a “espuma dos dias”, é esta coisa incerta, inacabada, impreparada, imperfeita, é este rame-rame, é esta rotina. Muitas vezes as coisas visíveis são o aspeto menos interessante da nossa realidade.
Mas nós estamos aqui não apenas para fixarmos os olhos nas coisas visíveis, nós estamos aqui para olhar para as coisas invisíveis.
E o que é para nós, neste momento das nossas vidas, olharmos para as coisas invisíveis? S. Paulo dá-nos uma ajuda: “As coisas visíveis são passageiras, as coisas invisíveis são eternas.”
Então, a grande sabedoria hoje para a nossa vida é colocar os olhos mais naquilo que é eterno do que naquilo que é passageiro. E isto implica de nós uma conversão, implica de nós uma transformação, mas nós não estamos sós.
Hoje um dos dramas trágicos da cultura contemporânea é que coloca o custo da existência apenas sobre cada um de nós. Nós só podemos contar connosco… ou acertamos ou erramos, mas a culpa é nossa ou o mérito é nosso. E estamos sozinhos perante uma aventura ontológica, uma aventura de ser que claramente é maior do que nós, claramente nos supera, porque nenhum de nós é uma ilha, para bem e para mal. Há coisas que nós herdamos, há coisas que vieram de longe, há coisas que nós não conseguimos mudar, não conseguimos fazer diferente e há coisas de bem que nos excedem, que são maiores do que nós. Mas a cultura contemporânea diz: “Não, é o indivíduo, és tu que tens a responsabilidade. És tu e és só tu!”
A visão cristã e católica da vida não diz isto, diz: “Nós somos responsáveis, nós somos sujeitos da nossa história, mas nós não estamos sós, nem no bem nem no mal. Por isso nós temos este diálogo interessante do jardim: Deus vem perguntar a Adão “Onde estás?” e ele reponde “Escondi-me porque estava nu”, “Mas quem te disse que estás nu?”, “Foi a Eva”, e Deus vai falar com Eva “ Mas então o que é que aconteceu?”, “Olha, foi a serpente”, e Deus no fim dá o castigo à serpente e diz “Olha, tu é que estiveste a enganar estes dois”…
Então, há um pecado social, há uma influência em nós, há um condicionamento da nossa vida que não depende de nós. E saber isto também nos liberta, porque às vezes carregamos o peso todo do mundo, esmagados por aquilo que não conseguimos nem vamos conseguir, porque nós não estamos sós e estamos numa luta que em grande medida é maior do que nós e nos ultrapassa, que é uma luta entre o mal absoluto e o bem absoluto. Por isso é que há a figura de Deus como a figura do bem e há a figura de demónio como a figura do mal, que também nos condiciona, também nos tenta, também nos limita, também nos empurra para a desesperança, também nos tira o chão debaixo dos pés.
O Papa Francisco fala muito desta figura que tenta diminuir a nossa vida.
Às vezes, nós cantamos um cântico de Taizé com uma letra do Irmão Roger que dizia: “Senhor, não deixes que a noite fale ao meu coração”. E às vezes a noite pesada, a noite escura, a escuridão fala ao nosso coração e condiciona o nosso coração. A culpa é nossa? É! Mas a culpa é também de existir noite, e não fomos nós que a inventámos. A culpa também é de tanta coisa má que já existia antes de nós e que nos enreda, que é uma armadilha para nós e nos rouba a nossa liberdade, nos seduz e nos engana.
Por isso a culpa não pode ser só do homem, individualmente, por isso dizemos: ”Não, é o Demónio que te tenta, é o Demónio que te quer vencer”. E Deus vira-se para a serpente e diz: “Tu fizeste isto às minhas criaturas”.
E a mesma coisa em relação ao bem. Há um bem que sentimos que é um dom, não teve mérito, não dependeu de nós, foi-nos dado… e o que nós podemos fazer é agarrar e agradecer, dizer “Obrigado”!
Com esta representação da vida, do bem e do mal, de Deus e do demónio, o que é que nós temos? Temos o Amor de Deus, a Misericórdia de Deus para com o ser humano, frágil no meio disto tudo, tantas vezes incapaz, tantas vezes condicionado.
Isto é para dizer-nos que nós não estamos sós nesta aventura, neste caminho que nós estamos a percorrer e que é no fundo a história da nossa vida. Nós não estamos sozinhos, Deus vem ao nosso encontro, Deus compreende-nos. Ele até compreende que nós falhamos, que nós nos estendamos ao comprido, Ele até entende como entendeu os primeiros pais no jardim.
Mas Ele não deixa de vir ao nosso encontro, Ele não deixa de perguntar “Onde estás?”, e não por uma curiosidade académica, mas por uma curiosidade de Amor. De vir recomprar-nos, redimir-nos, recuperar-nos, reintegrar-nos na dinâmica da Sua Graça, da Sua Ternura, da Sua Esperança.
Sintamo-nos por isso apoiados. Um cristão não está só, nós não estamos sós no meio da nossa noite. Ele está connosco, Ele entende-nos, Ele dá-nos a capacidade de ser, aquela capacidade, aquele reforço de que exatamente nós precisamos.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo X do Tempo Comum
2018/06/07 - Percurso de Preparação para o Crisma
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Maio
2018/05/31 - "Tomai e comei!" (homilia)
Queridos irmãs, queridos irmãos,
O verbo comer é um verbo que nos acompanha desde sempre. Tão antigo, tão necessário, tão presente, tão significativo na nossa vida.
Nós começamos a relação com o mundo pela nossa boca. Essa foi a primeira forma de comunicação, a primeira forma de inscrição neste mundo e também a primeira forma de amor, a primeira forma de compreensão de que há outra coisa, de que há uma sensibilidade que aprendemos – mas isso chegou-nos através da comida.
Pensemos no verbo comer (comer e dormir, dizem, para os bebés é a coisa mais importante, e para cada um de nós também foi) e a aprendizagem do que esse verbo significa ao longo de toda a nossa vida. Pensemos na quantidade de refeições que a nossa vida já experimentou, já viveu e como sem elas a nossa vida não seria, não seria igual, não existiria de todo. Porque há coisas importantes da vida, da vida material, da vida biológica, mas também da vida espiritual, da vida psicológica, da vida como projeto de existência que nos chegam, de facto, através deste verbo comer.
Comer não é apenas engolir coisas, comer é construir-se, comer é criar-se, comer é a capacidade de incorporar, a capacidade de ruminar e de digerir o mundo, comer é fazer uma nova síntese. Não é apenas juntar bocados de realidade externa que passam para o nosso mundo interno, é também um processo de combustão, um processo de transformação. Tudo isso nós tateamos de uma forma mais consciente ou mais inconsciente em torno ao verbo comer, que continua a ser um verbo decisivo, porque todos os dias nós comemos, e comemos de formas diferentes (comemos acompanhados e sozinhos, comemos em todas as horas). Mas comer tem uma coisa para nós humanos: mesmo quando nós o fazemos sozinhos é sempre um ato de relação, é sempre um ato social, se quisermos. Eu tenho uma amiga, a Adília Lopes, que diz: ”Eu como todos os dias sozinha na minha cozinha, mas quando eu como, eu lembro-me sempre que comer é um ato social e penso nos outros”. E, de facto, mesmo quando estamos sozinhos, a comida é um ato comunitário, porque supõe sempre no nosso horizonte o outro, desde o outro que ajudou a criar aquele alimento, aquilo que nos vai servir de comida, até ao outro com quem nós vamos estabelecendo o diálogo fundamental da nossa vida.
Por isso, o verbo comer é um verbo sagrado, é um verbo humaníssimo, é um verbo através do qual nos chegam tantas experiências, e não só experiências “gourmet”, não só experiências gastronómicas. Essas também, mas tantas outras experiências: de conhecimento, de autoconhecimento, de superação, de celebração, de mergulho profundo na vida… é um verbo completamente ordinário, completamente rotineiro e ao mesmo tempo é daqueles verbos que de facto moldam, constroem a vida.
Esta Festa do Corpo e do Sangue de Jesus é uma Festa ligada ao verbo comer que ilumina, talvez abrindo uma outra dimensão, um sentido para este verbo tão nosso, tão humano, tão das criaturas, tão comum.
Nós quando falamos da Páscoa dizemos “celebrar a Páscoa”, mas os judeus dizem “comer a Páscoa”. Porque a Páscoa é comida, porque a Páscoa é uma refeição, e de facto é preciso “comer a Páscoa”.
Nós dizemos “celebrar a Eucaristia“ mas também devíamos dizer “comer a Eucaristia”. E também dizemos: “vamos ouvir a Palavra” mas também devíamos dizer “comer a Palavra”. Porque é disso que se trata.
Nós somos uma comunidade que come, o que nós estamos aqui a fazer é nutrição, é alimentação. Nós viemos aqui para nos alimentarmos, não viemos aqui apenas para uma ritualidade que vai ficar no ar… não, isto tem de entrar dentro de nós, tem de ser incorporado por aquilo que somos. Jesus percebe claramente isso: “Onde é que queres que comamos a Páscoa?”. E Jesus indica o lugar: “Ide à cidade, virá ao vosso encontro um homem, ide atrás dele, e ele há de indicar-vos a sala onde vamos comer a Páscoa”. De maneira que Jesus aceita que o verbo comer é um verbo central, é o verbo da comunicação de qualquer coisa de essencial, de um processo do qual nós precisamos. E, de facto, a mesa abriu-se, eles prepararam o cordeiro, prepararam o pão, prepararam o copo com o vinho que vai passando na ceia judaica da Berachah, da bênção que eles partilham. Estava tudo preparado, mas quando Jesus parte o pão, Ele diz: “Este pão é o meu corpo. Tomai.” E quando Ele pega na taça com o vinho, Ele diz: “Este vinho é o meu sangue.”
Isto faz ou não sentido? O que é que Jesus quer dizer com estas palavras?
A nossa tradição católica quis muito levar à letra estas palavras. Tanto assim que muitas vezes o acento é colocado na materialidade da própria espécie: acreditar que o pão consagrado se torna mesmo o Corpo do Senhor, e por isso nós ajoelhamo-nos em adoração. Hoje pela cidade de Lisboa vamos transportar uma custódia com a Eucaristia e nós acreditamos que aquele pão é o Corpo do Senhor, e acreditamos que o vinho na consagração se transubstancia, isto é, passa a ser outra substância e em vez de vinho se torna Sangue.
Mas temos de entender o que é isto, não é apenas uma desmaterialização ou uma transubstanciação literal da matéria em si. É também um processo de ressignificação do ato de comer, porque se Jesus diz “Este pão não é só pão, é o meu corpo”, Jesus está a dizer até o óbvio, mas sabemos que o óbvio é o mais difícil de enxergar, é o mais difícil de aceitar. Jesus está a dizer o óbvio, e o óbvio é que o pão não é pão. Dizer que o pão é pão é uma coisa banal. Não, pão é vida partilhada, o pão é dádiva, o pão é dom, o pão é entrega que o outro faz, é o desejo que nós queremos que o outro viva. Por isso se inventou o pão. O pão inventou-se não apenas porque alguém estava esfomeado e encontrou alguma coisa para o seu problema, não! O pão foi inventado por alguém que queria que os outros vivessem, e então pensou: “não, é preciso inventar o pão”… porquê? Porque o alimento é o desejo que o outro viva, é o desejo que tu sejas, que tu existas, que tu possas subsistir e possas viver! E Jesus diz isto, não apenas do pão, não apenas dum alimento, mas Jesus diz isto do seu próprio Corpo.
A vida tem de ser dom, a vida tem de ser alimento. Nós temos de nos colocar numa oferta, num serviço à vida dos outros, para que eles possam existir. E o nosso vinho partilhado não é só sinal da festa, o nosso vinho é também o nosso sangue, isto é, é de facto a oferta radical de nós mesmos.
E é no fundo isso que Jesus faz, oferta de si, dizer: “Comam”. E dizer de forma reflexiva: “Comam a Vida que Eu sou. Devorem a Vida que Eu sou. Alimentem-se da Vida que Eu sou, incorporem a Vida que Eu sou, a Carne e o Sangue que Eu sou.” E diz isto de uma forma muito realista, falando de carne e falando de sangue…
Nós não estamos aqui a falar numa dimensão hiper-realista, mas estamos a falar do real mais vivo: sentados à volta desta mesa, de que é que nos alimentamos? Alimentamo-nos de Cristo, comemos Cristo – e não comemos um bocadinho de Cristo, nós estamos aqui para integrar Jesus na nossa vida. Para Lhe dizer: “Tu és o meu alimento, eu vivo de Ti, e és Tu que me trazes essa energia, essa força de que eu preciso para poder ser.”
Mas este exemplo, este testemunho que Cristo nos dá até ao fim dos tempos – e Ele quis que, de facto, a Sua memória fosse celebrada em torno a uma mesa e na repetição desta Sua última Ceia, destas suas palavras – é para que nós tenhamos a medida e o modelo da forma como habitamos o mundo e nos relacionamos uns com os outros.
Porque é assim, quando o bebé está no colo da mãe e está a mamar ele não está apenas a receber o leite maternal, ele está ligado ao peito da mãe e ao mesmo tempo tem os olhos no seu rosto ou fecha os olhos confiado e entrega-se, ele está a alimentar-se da mãe.
Como quando nós nos sentamos à mesa, não comemos só o que está ali materialmente, aquilo é tão pouco! Nós alimentamo-nos uns dos outros. E muitas vezes o alimento até é um pretexto, até é um símbolo, um sinal de alguma coisa muito mais profunda e muito mais decisiva que é a disponibilidade, a abertura que nós temos para nos tornarmos alimento uns para os outros, para fazermos da nossa vida dádiva…
No fundo, por isso é que nós não podemos viver sem a Eucaristia: a Eucaristia não é um momento mágico, não é magia sobrenatural, a Eucaristia é lição de vida, é ensinamento, a Eucaristia é aquilo que se passa na cozinha e na mesa, a Eucaristia é uma lição de nutrição. Porque a vida é isto e Jesus é muito claro.
A vida só se consuma quando ela aceita fazer-se dom, quando ela aceita gastar-se, quando ela aceita ser dádiva até ao fim, de forma tão incondicional que possamos segurar a nossa vida na mão e dizer: “Olha, a minha vida é tua. Tomai e comei! Alimenta-te disto! Alimenta-te do meu tempo, da minha energia, da minha sabedoria, da minha presença, dos meus bens, de tudo o que eu sou, alimenta-te, toma isto como alimento.”
É nesta antropofagia sacramental em que nos alimentamos verdadeiramente da vida uns dos outros que nós percebemos aquilo que Jesus faz connosco.
Quando eles acabam de comer, vão para o Monte das Oliveiras. Mas é esta Ceia que nos oferece a chave para interpretar aquilo que vai começar a acontecer no Monte das Oliveiras: a Paixão de Jesus e a morte de Jesus.
Queridos irmãs e irmãos, o Papa no final do Angelus diz sempre: “Buona Domenica e buon pranzo”. No almoço de Domingo ou no almoço dos dias especiais e no almoço dos dias não especiais, não podemos esquecer que na refeição se joga sempre o encontro, se joga sempre a dádiva mais profunda de nós próprios – e que é isto insistentemente que Jesus diz a cada um de nós.
Às vezes andamos à procura de uma solução mágica, uma coisa especial, uma mensagem do outro mundo e Jesus vem-nos dizer a mensagem mais simples, aquela que no fundo nós experimentamos desde o primeiro dia da nossa existência, isto é: faz da tua vida dom e vais alegrar-te por perceber que a vida se multiplica, que a vida não é passado mas é futuro, que a vida se torna o lugar fecundo da transformação, do encontro daquilo que nós julgamos impossível, torna-se o lugar onde o Invisível se toca e se come.
Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade do Corpo de Deus
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2018/05/27 - O dom da dúvida (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
Celebramos hoje a Solenidade da Santíssima Trindade, o mistério de Deus. Deus é mistério, é inefável, está para lá das nossas palavras. Nós só conseguimos tatear a orla deste grande enigma que é Deus, desta grande Luz, mas Jesus veio revelar-nos coisas importantes sobre o mistério de Deus sem o desfazer.
Porque Deus é mistério e nós temos, no fundo, de preparar sempre o nosso coração para o contacto com o mistério. Deus é transcendente, Deus não cabe nos nossos raciocínios, e por isso é natural que nos faltem palavras, conhecimentos, que tudo pareça escasso perante Deus.
Contudo, Jesus veio iluminar-nos o mistério de Deus e dizer-nos que esse mistério é um mistério de comunhão de pessoas. Deus não é uma solidão para lá do nosso universo e sistema, Deus é comunhão que nos integra, que nos inclui.
Deus é essa diversidade e unidade de pessoas. Deus que é o Pai – e chamar a Deus Pai é já alguma coisa que o próprio Jesus colocou no centro da sua Revelação, isto é, nós não nos relacionamos com Deus como se Deus fosse o motor imóvel de que fala Aristóteles, ou um Arché, um Princípio de que falavam os pitagóricos, mas Deus é uma Pessoa, Deus é um Tu, e é um Tu que nos ama, um Tu que está na origem daquilo que nós somos, porque Ele é o Pai.
Olhar para Deus como Pai tornou-se para nós cristãos a forma da nossa relação com o próprio Deus, mas sabemos que este Deus, sendo o Pai é também o Filho, está também no Filho, repousa também no Filho – e é o Filho que o dá a conhecer, porque Ele participa da própria divindade do Pai.
Esse Filho para nós é Jesus, a imagem por excelência do Filho – e dizer que Jesus, o Crucificado, o Ressuscitado, é o Filho, necessariamente faz-nos atravessar o paradoxo, a contradição: porque como é que se pode ser o Filho de Deus, como é que se pode ser Deus e ser o Crucificado?
Mas é este paradoxo que a Cruz ostenta e expõe diante dos nossos olhos que dá sentido também à nossa fé.
A verdade de Deus é uma verdade crucificada, é uma verdade de Amor levada até ao seu extremo, levada até ao paroxismo: que é amar tão radicalmente que aceita a sua própria autodestruição, que aceita passar pelo suplício da própria Cruz, que aceita ficar com os braços amarrados para poder abraçar verdadeiramente a todos.
Então a divindade de Deus é uma divindade que se manifesta pelo Amor radical, que se manifesta pelo despojamento, aquilo que no Hino aos Filipenses nós vamos dizer: “Jesus não se valeu da sua igualdade com Deus, mas tornou-se semelhante ao homem, e ainda mais se rebaixou, tornando-se igual a um escravo”.
Então nós adoramos um Deus que se faz escravo de cada um de nós, que é capaz de dar a sua vida – e é uma vida que nós não sabemos descrever, porque é não só uma vida humana mas também a vida de Deus, a origem de toda a vida. Deus é capaz de dar essa vida para a salvação e para a vida de cada um de nós.
Então este Deus não é só acreditar que existe alguma coisa, mas é acreditar num Deus pessoal e num Deus com um amor assim em relação à mulher e ao homem que nós somos, em relação à nossa própria vida.
Deus brilha neste Filho, neste Filho que se faz o irmão mais velho e o primeiro irmão de cada um de nós, que dá a sua vida por nós.
E Deus é Espírito Santo.
No Domingo passado celebrámos a grande Solenidade do Pentecostes, o Espírito Santo é o grande Artesão. Jesus estando à direita do Pai, o Espírito Santo é o Deus connosco, é Aquele que está todos os dias connosco, é o Artesão da nossa comunhão, é Aquele que faz arder o nosso coração, é Aquele que nos dá a sede, que nos dá a fome de Deus. É Aquele que nos coloca à procura, mas também é Ele o Consolador, é Ele o Explicador, o Hermeneuta de Deus, é Ele que vai defender a fé dentro do nosso coração, é Ele que nos vai aproximar uns dos outros, é Ele que nos torna criativos, que nos torna cristãos originais, é Ele que nos torna uma Igreja em saída. É o Espírito Santo que nos dá a capacidade de cumprir este mandato de Jesus: “Ide e fazei discípulos em todo o mundo.”
Nós somos capazes disso porque o Espírito Santo está em nós. O Espírito é ânimo, o Espírito é vento, o Espírito é sopro, o Espírito é dynamis, o Espírito é força, o Espírito dá-nos a capacidade de ser, o Espírito não nos deixa de braços cansados, o Espírito é o Artífice e é também essa força de uma fé criativa.
Ao mesmo tempo o Espírito Santo representa o terceiro, o “três”. E o “três” na estrutura da relação é alguma coisa muito importante.
Porque o “um” todos nós percebemos, porque somos um eu, eu sou um e cada um de nós é um…há dimensões da nossa vida em que estamos radicalmente nós próprios, e gostávamos de ser outra coisa, mas somos nós … então, o “um” cada um de nós sabe o que é: para bem e para mal, somos um.
Sabemos também o que é o “dois”, porque o “dois” é o encontro do outro. No amor nós encontramos o “dois”, esse “dois” que complementa, esse “dois” com o qual aspiramos a uma fusão, esse “dois” que nos amplia, esse “dois” que nos conforta, esse “dois” que é tão semelhante a nós na sua diferença, esse “dois” que é a realização do “um”. O “dois” nós sabemos o que é, o “dois” é aquele que está ao nosso lado, o “dois” é a nossa família, os nossos amigos, a nossa tribo, a nossa comunidade, esse é o “dois”.
Mas há o “três”. E o “três” é aquele que rompe muitas vezes essa coisa tão fácil que é o diálogo entre os dois. Esse terceiro obriga-nos a viver uma comunhão muito mais ampla, que não é apenas a comunhão numa reciprocidade, numa semelhança, num diálogo de fusão – mas o “três” obriga-nos a incluir o outro, o estrangeiro, o diferente, aquele que olha o mundo com outros olhos, com outro humor, com outra forma de ser… o terceiro é o outro mais radical, o outro que não nasce da comunhão ou do desejo de comunhão, mas nasce do desejo de uma integração, do desejo de comunhão para lá do desejo imediato de expansão de si. O “três” obriga-nos a acolher o outro enquanto outro.
E Deus é Três – e o modelo de construção da nossa vida também tem que ser trinitário. Isto é, temos de ser nós, temos que ter capacidade de escolher o outro e sentir-se acolhido pelo “dois” e sentir que o “dois” amplia a nossa vida no reconhecimento, na reciprocidade – mas temos de ser trinitários no sentido de criarmos formas de comunhão, formas de abraço, formas de diálogo, formas de encontro com o outro que é mais outro, com o outro que é estranho a mim, que é alheio à minha história e às minhas perspetivas… e essa é a forma trinitária de relação.
Celebramos assim a Festa de Deus, e na Festa de Deus celebramos a festa da nossa inclusão em Deus. É isso que nos diz a Carta aos Romanos: ”todos os que são movidos pelo Espírito de Deus são tornados filhos de Deus.”
De facto, nós não somos estranhos a Deus. Nós estamos colocados no mistério de Deus. Nós somos divinos. Cada um de nós que está aqui é divino, cada ser humano é divino, porque está incluído em Deus, é a expressão do próprio Deus. E isso obriga-nos a olhar uns para os outros de outra forma: não só transportamos uma história sagrada, nós somos filhos de Deus, somos parcela, somos presença do próprio Deus. E isto faz-nos ler a nossa humanidade, a nossa própria e a dos outros, com outros olhos.
No Evangelho de S. Mateus, que hoje nós lemos, há um aspeto curioso: no final mesmo (porque nós lemos as últimas frases do Evangelho, a última palavra é esta de Jesus: “e Eu estarei todos os dias convosco até ao fim do mundo”, estamos perto do ponto final) diz “e contudo quando O viram, adoraram-n’O, mas alguns ainda duvidaram”.
Isto é, chega-se ao fim, ao fim mesmo, e ainda há: “alguns ainda duvidaram”. Então a dúvida faz parte do nosso caminho, a dúvida faz parte da nossa comunidade, isto é, nós nunca vamos conseguir erradicar a dúvida.
Pensemos na dúvida como um dom. Às vezes pensamos na dúvida como um mal, como alguma coisa que enfraquece e que temos de nos libertar dela. E Jesus diz-nos: “Não, a dúvida vai continuar”. Então a dúvida é um dom. Na Igreja, a dúvida é um dom, é um carisma, a dúvida tem de estar presente.
Nós temos de abraçar e amar aqueles que têm esse dom da dúvida. Temos de amá-los, porque eles trazem alguma coisa que nos complementa, alguma coisa que é fundamental. Temos também de ir ao encontro, temos também de consolar aqueles que transportam a dúvida – porque não é fácil… é muito mais fácil ser conformista, é muito mais fácil dizer: “sim, também eu acredito” mesmo o coração não estando inteiro, do que aqueles que se mantém como sentinelas na linha da dúvida. É um caminho muito mais exigente, muito mais solitário, mas é importante dizer que esse caminho é um caminho necessário – e é um caminho em Deus, é um caminho no Espírito.
Por isso vamos hoje pedir também por aqueles que duvidam e que se integram em nós através desse caminho que é a própria dúvida, que é a própria interrogação, porque esse é também um caminho para chegar a Deus. A dúvida não exclui Deus, a dúvida é um caminho positivo para chegar a Deus.
É interessante que Jesus dá a Missão de “irem por todo o Mundo a fazer discípulos” não só àqueles que acreditaram, dá a todos, mesmo aqueles que duvidam recebem esta Missão…
Então há aqui um sentido diferente daquilo que é a dúvida, a dúvida não me põe fora, eu posso caminhar, eu posso estar dentro com a minha dúvida. E a dúvida é também uma forma de interlocução com a fé, muito importante e muito vital para a própria fé.
É mistério? É! A existência crente, a existência cristã é um mistério? É! E teria de ser, porque Deus é um mistério, e então a nossa existência tem de ser um espelho, mesmo que fosco, mesmo que impreciso, do rosto e do sorriso confiante de Deus.
Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade da Santíssima Trindade
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2018/05/17 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2018/05/13 - Chamados a compreender (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
Hoje, na Carta aos Efésios, S. Paulo coloca o dedo na grande questão que a Festa da Ascensão nos põe, e essa palavra que ele ilumina é a palavra compreensão.
Nós temos de compreender. E compreender o quê? Compreender qual é agora o nosso papel, qual é a nossa função. Compreender o que significa sermos, no seguimento de Jesus Cristo. Compreender o que é que nos cabe, o que é que cabe a cada um de nós fazer. Compreender o que há de ser o nosso efetivo caminho, o nosso compromisso, como é que somos artesãos criativos, não só do visível mas também do invisível, como é que vamos dar sentido a esta vida e a esta terra… É essa compreensão que o próprio Jesus trabalha.
É muito interessante olharmos para os textos desta Solenidade da Ascensão do Senhor, porque Jesus tem a preocupação de preparar os seus discípulos para este momento, que se prefigura com uma dupla imagem. A imagem da ausência, porque Jesus parte, deixa de estar connosco da forma como esteve durante o Mistério da sua Encarnação e durante as aparições como Ressuscitado. Ele deixa de estar assim, e então há uma espécie de ausência que agora nós podemos tatear, e tateamos, porque nenhum de nós viu Deus – nós falamos no silêncio de Deus, na ausência de Deus. Mas somos chamados a compreender que essa ausência e esse silêncio, que esse vazio que a Ascensão de Jesus abre deve ser preenchido pelo nosso esforço, pela nossa voz, pelo nosso contributo, por aquilo que cada um de nós é chamado a ser.
Por isso, esta Festa de Ascensão prepara o grande Domingo de Pentecostes que vamos celebrar no Domingo próximo, em que o Espírito Santo, o Espírito que vem de Jesus, que é o próprio Amor de Jesus colocado no nosso coração, nos torna vivos, nos revitaliza, nos dá a energia espiritual de que nós precisamos para vivermos apaixonadamente esta aventura que é a nossa vida.
Mas hoje, Jesus prepara-nos, é o momento da sua partida e ao mesmo tempo é o momento da investidura de cada um de nós.
Por isso, a Ascensão de Jesus não é para nos deixar imobilizados. É às vezes na vida nós estamos como que parados, porque Ele não está, ou porque nós não vemos a razão, nós não vemos o sentido, nós não conseguimos tocar aquilo que nos poderia dar força. Muitas vezes na vida, e mesmo numa vida adulta (não só na adolescência ou na juventude, quando se procura o nosso caminho, a primeira realização de nós próprios), mas às vezes numa vida adulta com os conflitos próprios de uma vida madura, com as suas contradições, a sua complexidade, as suas oportunidades interiores, os seus bloqueios, muitas vezes nós ficamos parados porque não vemos, porque não obtemos uma resposta, porque tudo em torno a nós é um silêncio que só em surdina nos envolve. E, contudo, nós somos chamados a compreender. Somos chamados a fazer memória. Compreendeis o Amor com que fostes amados?
Compreendeis o que significa acreditar em Jesus? Compreendeis o que significa Jesus acreditar em vós? Falar de um Deus que tem fé em nós?
Compreendeis o que significa ser agora a vossa hora, ser agora a vossa vez?
Compreendeis o que significa serdes contagiados de um Amor assim, de um Amor desmesurado, excessivo assim? Um Amor capaz de redimir, um Amor capaz de salvar?
As palavras do léxico cristão são palavras empenhativas, e nós precisamos de uma força suplementar para agarrá-las. Para que o amor, o nosso amor, o nosso pequeno amor nos deixe felizes, nos deixe equilibrados, nos deixe com força para nos levantarmos em cada dia – isso sim, isso pode-se esperar de nós.
Mas para que o amor tenha esta força capaz de Salvar, capaz de Redimir, pede de nós uma compreensão diferente daquilo que o amor pode ser na nossa vida. Por isso somos chamados a compreender.
Que esta semana cada um de nós também gaste tempo a perguntar se compreendeu: será que eu compreendi tudo isto?
Porque o rito ajuda e desajuda. Ajuda porque é de facto uma oportunidade, uma presentificação do mistério na nossa vida, mas desajuda se permanecer fechado, se não se traduzir de uma forma existencial naquilo que somos.
Será que eu compreendi? E compreendi não teoricamente. Será que eu compreendi em termos concretos, naquilo que tem a ver comigo, que me envolve, que me renova, será que eu compreendi?
É interessante aquilo que Jesus diz e o papel em que Ele se coloca. Ele diz: “Eu cooperarei convosco, confirmando a vossa palavra.” Não somos apenas nós que cooperamos com Jesus, que somos cúmplices, parceiros do projeto de salvação, de transformação, de revitalização da ordem do mundo que Jesus vem trazer.
Jesus também coopera connosco. E por isso, nós não estamos sós. Não contamos apenas com a nossa fragilidade, não contamos apenas com o que temos, com o que trazemos, com o que somos. Contamos com mais, valemos mais. Por isso, acreditemos!
A palavra que abre o Evangelho parece uma palavra um pouco inaceitável, que diz assim: “Quem acreditar será salvo, quem não acreditar será condenado.”
Parece uma dicotomia extremada, radical, mas é mesmo assim.
Nós na vida sentimos isto tantas vezes: Quando eu acredito, estou salvo. Por maiores que sejam as dificuldades, eu acredito, eu transcendo, eu vou além, eu saio da zona de conforto… eu acredito, eu arrisco, eu faço a aposta.
Quando eu não acredito, eu condeno-me a mim mesmo, porque fico refém do meu pessimismo, fico refém da minha imobilidade, do meu medo, do meu terror de fracassar, de não estar à altura, da minha insegurança, da minha tristeza, e condeno-me a mim mesmo, condeno a minha vida e perco a minha vida.
Porque, no fundo, é disto que se trata: de ganhar a vida ou perder a vida.
É esta a grande aposta que temos de fazer, e a fé entra como equação necessária nesta aposta.
Querido Joaquim, hoje celebramos o teu Batismo, temos muita alegria em fazê-lo; a maior parte dos que estão aqui são pessoas com a idade dos teus pais, mas também tens pessoas mais novas e outros que foram batizados também nesta comunidade.
Nós estamos muito felizes por fazê-lo e desejamos que aquilo que começa hoje com o teu Batismo seja uma coisa muito preciosa na tua vida.
E que à medida que cresceres e fores descobrindo e desdobrando o seu significado, tu possas sempre sentir a força muito especial que é acreditar.
Conjuga muitas vezes este verbo, o verbo Acreditar, e que ele te faça um homem cheio de confiança, cheio de projeto, cheio de talentos, de dons, capaz de tornar o mundo mais belo, mais justo, mais fraterno, mais autêntico, mais criativo.
Vamos rezar por ti, pedir que o Espírito Santo venha sobre ti, sobre a tua família e te dê esta capacidade de ser.
O Joaquim, na preparação (vou fazer esta inconfidência, mas não é mal), disse: “Eu preferia ser batizado em pequenino, porque assim não tinha de falar.”
Mas ele ainda é pequenino – e sabes, Joaquim, quando nós não conseguimos falar (e não são só os pequeninos que não conseguem falar, os adultos tantas vezes também não sabem o que dizer, também não conseguem falar) Deus fala em nós, e esse é o grande segredo que nós transportamos.
Vamos agora rezar por ti e batizar-te, e sentirmos também, em nós, a força do nosso próprio Batismo.
Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade da Ascensão do Senhor
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2018/05/06 - Transbordar (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
O Cristianismo parece uma proposta fácil e parece uma proposta impossível. A acusação que desde a Antiguidade pesa sobre os cristãos, uma suspeita permanente que sempre tem acompanhado a História ao longo destes dois mil anos, é perguntar se os cristãos são verdadeiramente pessoas religiosas, se o Cristianismo é uma religião e não é uma forma de ateísmo – que é uma acusação que muitas vezes se fez aos cristãos, dizendo: vocês são ateus, não são religiosos, porque o ethos cristão, aquilo que vos distingue, a diferença cristã o que é?
Se dizemos “Deus é amor. E quem ama é que conhece a Deus, quem não ama não conhece a Deus”, de certa forma estamos a deslocar a questão central da religião que é o conhecimento de Deus. Estamos a deslocar de um campo tipicamente religioso para coloca-lo num campo antropológico. Por isso aquela história do militar romano, do centurião romano que Pedro conhece, que é um homem bom, um homem que pratica a justiça, um homem que ama os seus semelhantes e que recebe o Espírito Santo. Não há nenhum impedimento para que o Espírito Santo não desça sobre os pagãos, sobre os gentios, sobre aqueles que desconhecem Deus. Eles desconhecem Deus, mas Deus não deixa de estar neles, não deixa de os conhecer. Isso faz do Cristianismo, e é essa a acusação, uma religião fácil. Porque não é uma religião de uma iniciação rebuscada no conhecimento de Deus, não pede de nós uma ascética em direção ao divino muito peculiar, mas é o amor que nos dá o conhecimento de Deus, que é o grande laboratório do conhecimento de Deus.
E, ao mesmo tempo, o Cristianismo parece uma proposta impossível porque esta passagem do Evangelho de S. João é eloquente. Porque Jesus diz: “O meu mandamento é este: amai, amai-vos uns aos outros como Eu vos amei.” E nós sabemos que podem-nos pedir muitas coisas, mas ninguém nos pode pedir para amar. Amar não depende de uma lei. Não há nenhuma lei que mande amar. As leis mandam respeitar, mandam reconhecer a dignidade, reconhecer os direitos dos outros, mandam ser tolerante, mandam dar lugar, dar um espaço de vida ao outro. Mas amar o outro? Que lei é esta? E como é que nós podemos compreender esta palavra de Jesus que faz do amor uma ordem, um imperativo, um mandato, um mandamento? “O Meu mandamento é este: amai, que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei.”
E nós pensamos: será possível? O Cristianismo será uma proposta razoável para a nossa vida? Não me está a ser pedida uma coisa que eu não consigo realizar? O amor está no centro da experiência cristã e no centro do grande anúncio que Jesus faz de Deus. Deus é dito como o Amor. Que é uma coisa que muitas vezes nós não chegamos a compreender porque vivemos o amor de uma forma transitiva, vivemos o amor como ação. Nós amamos ou não amamos. E, em relação a Deus, o amor não é uma forma de ação, é uma forma de ser. Deus é Amor, Deus é Amor. Deus identifica-se com o próprio Amor. Não há nenhuma separação entre o que Ele guarda em si, guarda no mistério da Sua pessoa, da Sua essência e aquilo que é o Amor. Há uma coincidência total. Que é uma coisa que em nós não existe, não é natural. Mas é um chamamento, é uma construção sobrenatural que tem de acontecer em nós. Nós só poderemos viver o mandamento do Amor se permanecermos no amor. E permanecer no amor não é apenas amar pontualmente este ou aquela, mas permanecer no amor é fazer do amor a sua identidade, é fazer do amor a sua vocação, é fazer do amor aquilo que se é de uma forma estável, de uma forma contínua. É treinar tantas vezes o amor, é buscar tanto o amor, é praticar tanto o amor que o amor se torna a nossa vida e deixa de haver uma distinção, uma diferença. Porque o amor contamina, contagia, infiltra-se em tudo aquilo que somos e isso é permanecer no amor.
A proposta cristã só é possível porque nós somos amados por Deus, porque Deus nos dá esse amor assim. Porque Ele ama-nos primeiro. O amor que nos é pedido, antes de tudo, é um amor passivo, não é um amor ativo. Muitas vezes nós pensamos no amor como uma capacidade de fazer, o amor é antes de tudo uma capacidade de aceitar, uma capacidade de receber, uma capacidade de acolher o dom, aquilo que nos é dado, aquilo que nos visita em cada dia, em cada instante. Poder receber. E talvez o amor mais difícil para nós não seja o amor que nós damos mas seja a nossa incapacidade, os obstáculos que colocamos a ser amados, a receber este amor pleno, este amor total, este amor de que temos medo, este amor de que fechamos as portas, este amor que não interpretamos. Porque, se nós nos situamos dentro do amor, nós percebemos que o amor nos visita continuamente, percebemos que tudo à nossa volta é uma corrente de amor e percebemos muito mais presente na nossa vida do que nós estamos dispostos a reconhecer.
Por isso, aceitar ser amado, aceitar esta passividade do amor, aceitar que o amor nos encha, aceitar que o amor é desde sempre. Porque, quando pensamos no amor, pensamos claramente na nossa história psicológica, no nosso itinerário biográfico. E pensamos: tenho 50 anos, o amor em mim tem 50 anos. Não, o amor em mim é desde sempre, é desde a eternidade, é desde a origem de Deus, é desde o coração de Deus e é com esse amor eterno que eu me tenho de confrontar. Não é apenas com o amor hesitante, relutante, presente ou não presente da minha história com o qual eu tenho de fazer contas, mas eu tenho de ligar-me, de conectar-me interiormente com esse amor eterno, com essa torrente de amor, com esse oceano de amor que vem desde sempre. E é essa eternidade do amor em mim que é capaz de reparar todas as feridas, todas as lacunas, todo o espaço por resolver, toda a pergunta sem resposta. É esse amor eterno capaz de me consolar, capaz de dizer a minha verdadeira identidade, aquilo que eu sou.
Por isso, a experiência fundamental, a experiência fundante é esta experiência de se ser amado. E aqui nós precisamos, na nossa relação com Deus, de fazer uma viragem, de fazer uma mudança de olhar. Porque ainda ficamos dependentes de um Deus que nos julga, de um Deus que só dá o amor se merecemos – aquele ditado português: “Deus castiga mas não é com pau nem com pedra, mas Ele castiga.” Estamos sempre à espera do Deus que nos castiga, do Deus que nos policía, do Deus que é o deus da moral, o Deus que nos impõe um caminho ético, uma decisão ética e que depois nos vai pedir contas – não mergulhamos na intensidade deste mistério deste Amor de Deus que é aquilo que nos pode transformar e nos pode ensinar quem é Deus. Nós precisamos aprender quem é Deus e só o aprendemos, diz S. João, se soubermos a desmesura, a excedência, o exagero, o infinito desse amor, a experiência de um amor assim que nos toca para lá de todo o mérito, para lá de toda a qualidade, para lá de toda a coisa boa que podemos querer ou sonhar. Quando somos maus também Deus nos ama, quando somos miseráveis também Deus nos dá tudo do Seu amor. Quando somos infiéis, Ele continua a ser fiel, porque só a fidelidade a esse amor nos pode salvar, só porque Deus permanece fiel à mulher ao homem que somos é que nós podemos ser salvos.
E por isso, o que é a fé cristã? É a contemplação, é o espanto por um amor assim. Vivermos o espanto, vivermos a contemplação permanente, vivermos a oração de um amor assim. Um amor que está para lá de tudo, é superior a tudo, é que é de facto a medida do amor.
Há um filósofo contemporâneo, Jean- Luc Nancy, que escreveu uma série de textos que intitulou a A Declusão (Desconstrução do Cristianismo) e ele centra-se muito na questão do amor. E diz: “O Deus que os cristãos anunciam é um Deus que vive fora de Si, é um Deus que vive alheio a Si mesmo, que vive completamente em saída.” E o amor é isso, o amor não é eu basear-me naquilo que eu sou, não é eu fazer da minha vida uma trincheira, um repositório de amor. O amor não é uma coisa que eu tenho em mim, o amor precisa dessa saída. O amor é isso. Nós não podemos dizer: o amor é fazer isto ou fazer aquilo. É fazer tudo, é “Ama e faz o que quiseres” como dizia Sto. Agostinho. Mas, o amor é essa saída permanente, esse êxodo permanente, essa capacidade de se colocar no lugar do outro, essa excedência em relação a nós próprios, esse alheamento, esse esquecimento de si, esse tornar a vida dom, dádiva nas minúsculas realidades e nas grandes, é viver esse transbordar. Deus é presença transbordante de amor. É o ato de transbordar, é o ser transbordante.
E é isso que nós precisamos. Vivemos demasiado à defesa, vivemos demasiado a fazer contas do que tu me deste e do que eu dou, vivemos demasiado limitados à ética da retribuição: eu amo aqueles que me amam. Vivemos demasiado nos nossos cálculos, nas nossas contas e perdemos a vida. Porque, se a vida não é o transbordar, nós perdemos a vida, perdemos essa água, deixamos de ser aquilo. Pensamos que aquilo que nos é pedido é manter a água intacta no cântaro, quando o que nos é pedido é este derramar-se. O amor é isso, o amor é um derramar-se, é alagar tudo desse amor. E não pode ser só amar aqueles que me amam, mas tem de ser um alagar todas as coisas, um chegar a todas as coisas. Porque aquilo que é próprio do amor é precisamente essa expansividade, esse alargamento permanente.
E depois, isso é vivido sob a forma da compaixão. Nós precisamos aprender verdadeiramente de Deus este Amor como compaixão. Compaixão uns pelos outros, compaixão pelas criaturas, compaixão pelo mundo, compaixão connosco mesmos (que às vezes é tão difícil), compaixão com o próprio Deus. É interessante como os Pastorinhos de Fátima, naquela simplicidade um bocado rudimentar, primária das crianças, tinham a sensibilidade de dizer que tinham de consolar Deus, que tinham de consolar Nosso Senhor, que Nosso Senhor precisa de ser consolado. E esta consolação é um ato de compaixão. Nós precisamos de colocar no centro como expressão orante da nossa vida a compaixão. O que nos distingue não são as orações que podemos ou não saber, o que nos distingue verdadeiramente é uma prática permanente de compaixão e atenção amorosa aos outros, e atenção comprometida no afeto de uma afetuosa presença ao lado uns dos outros e no meio do mundo.
Hoje nós celebramos o Dia da Mãe. E na figura da mãe nós percebemos muito daquilo que Deus é. A mãe é uma página do Evangelho, porque nos diz sem palavras com a forma de ser aquilo que nós contemplamos em Deus e temos de contemplar em nós. Porque, nós somos mães e pais uns para os outros, nós somos parteiros de vida uns para os outros, nós ajudamos os outros a ser, os outros a viver. E isso é amar a Deus, isso é perceber o Deus que é Amor.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo VI da Páscoa
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2018/05/03 - Percurso de Preparação para o Crisma
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Abril
2018/04/22 - A gramática do Amor (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
Estes dias tenho estado a ler os textos de um filósofo, Hobbes. É ao mesmo tempo terrível e evidente a marca que ele deixa no pensamento moderno, no pensamento contemporâneo. A ideia que ele tem da natureza é que a natureza é uma guerra generalizada de todos contra todos. Na sua autobiografia ele diz esta coisa intensa: “Quando eu nasci a minha mãe teve dois filhos, nasci eu e nasceu o medo.” Porque, para ele, aquilo que pode estruturar a sociedade, aquilo que nos pode orientar é o medo. E por isso, os Estados têm de ser Estados fortes, consolidados, em que o poder de nenhuma maneira pode ser posto em causa porque é o medo que nos governa, é o medo que protege a paz social. E isto ele desenvolve no famoso livro Leviatã, em que trata desta conceção de Estado.
É muito interessante porque, de certa forma, afastando-nos agora das teses do Hobbes. Se calhar também nós podemos dizer “quando eu nasci a minha mãe teve dois filhos, teve-me a mim e teve o medo.” Porque, quando pensamos em nós, nas categorias profundas da nossa vida, o medo é se calhar das coisas mais antigas, mais fortes, mais ambíguas que cada um de nós transporta. E mesmo na nossa relação com Deus o medo, infelizmente, acaba por estar tão presente. Nós que estamos aqui, porque é que estamos aqui? Eu não digo: de nenhuma maneira é por medo (se calhar mesmo numa visão pacificada, positiva, confiada com Deus). O fantasma do medo está lá sempre presente. Nós temos medo que Deus nos castigue, nós temos medo que isto não seja suficiente, nós temos medo de não estar a fazer as coisas bem. Nós temos medo, nós temos medo. E é tão importante nós ouvirmos a palavra de Jesus que nos diz: Não é o medo, é o Amor. “Eu sou o Bom Pastor, Aquele que vem falar do Amor, Aquele que vem revelar o Amor, Aquele que vem dizer: quando eu nasci a minha mãe teve dois filhos, teve-me a Mim e teve o Amor.”
Mas para isso tem de acontecer uma transformação na nossa vida, que não é de um momento para o outro, é o nosso caminho de vida cristã. Em lugar do medo e de pensar a nossa relação com Deus, a nossa relação com os outros, a nossa relação em sociedade, a nossa relação connosco próprios, em chave de medo, como tantas vezes nós pensamos, pensá-la em chave de Amor. Esta é a grande transformação que Jesus nos vem trazer. Ele hoje fala-nos do Amor e apresenta-nos como o Pastor Amoroso, Aquele que nos vem revelar o Amor de Deus.
As leituras todas nos explicitam detalhes sobre esta gramática do Amor que Jesus vem introduzir em nós. O primeiro é o discurso de S. Pedro em Jerusalém, quando Pedro diz: “Este homem e todos os homens são curados pelo nome de Jesus. Então, como é que nós podemos conhecer o Amor de Jesus? Podemos conhecer o Amor de Jesus porque ele nos cura. Ele não se conforma com o irremediável na nossa vida, a dizer: tu tens este defeito, tu tens esta imperfeição, isto não tem remédio. Não, para Jesus é sempre reversível a nossa vida, há sempre um remédio. Ele cura-nos, Ele transforma-nos, Ele é capaz de mudar o nosso feitio, o nosso temperamento. Porque a vida cristã é uma dinâmica também de cura, também terapêutica. Nós vemos nos Evangelhos tantos milagres, não é por acaso, é porque é nesse processo de transformação interior, de sanação interior que nós percebemos quem é Jesus, que nós tateamos o Seu Rosto. É na medida em que nós cristãos podemos dizer: eu mulher/eu homem fui curado, sou curado pelo Amor que Ele me dá, o Seu Amor cura as minhas feridas, transforma a dureza e a violência do meu coração, ensina-me a mansidão, ensina-me a paz, ensina-me o perdão. Ele cura-me, Ele transforma-me, Ele ensina-me. É na medida em que nós podemos dizer isso e dizer isto de uma forma objetiva, concreta, real que nós conhecemos o Amor de Deus.
Querido João Pedro, tu hoje vais receber os Sacramentos de iniciação cristã. O mais importante é sentires que Deus te ama. Aquilo que Simone Weil dizia: “O mais importante não é termos fé em Deus mas é descobrirmos que Deus tem fé em nós.” E podemos dizer: o mais importante não é o amor que temos a Deus mas é descobrirmos com todas as forças da nossa vida o Amor que Deus tem por nós. Descobre o Amor que Deus tem por ti! Esse Amor incessante, esse Amor inconformado, esse Amor constante, esse Amor fiel, esse Amor permanente. Esse Amor que nunca diz: está derrotado, está acabado. Esse Amor que acende debaixo da cinza a possibilidade de fogo, a possibilidade de vida. Aconteça o que acontecer, sente na tua vida que és amado por Deus e faz disso a tua verdade, o teu ponto de partida, o teu caminho.
Depois, a Epístola de S. João abre-nos outro entendimento do Amor que Jesus nos vem revelar. Ele diz: “Jesus vem dizer-nos que somos filhos porque nos permite ver a Deus tal como Ele é.” Em Jesus nós vemos a Deus tal como Ele é. E de facto, nós, cristãos, nunca vimos Deus. O Evangelho de S. João e a Epístola de S. João há de lembrar a Deus nunca ninguém viu. Nós nunca vimos Deus, aquilo que nós vimos de Deus é o que nós contemplamos em Jesus. Aquilo que Jesus nos revela de Deus é a nossa sabedoria de Deus.
Por isso, coloquemos, e João Pedro coloca o teu olhar em Jesus. Faz Dele o Mestre da tua vida, o Mestre de todas as horas, Aquele que te revela ao Pai, Aquele que te conduz a cada momento ao Pai e te dá esta certeza de que não é o medo o companheiro da nossa vida mas é a confiança, mas é o Amor e que isso seja a alavanca necessária a cada momento para nos levantarmos do peso das coisas e vivermos como ressuscitados.
E depois, no Evangelho, nesta página extraordinária escrita por S. João. Jesus diz uma coisa curiosa, Jesus diz: “Eu sou o Bom Pastor.” Podemos traduzir assim. O adjetivo kalós . “Eu sou o Bom Pastor.” Mas, o primeiro sentido de kalós, não é o bom, é o belo. Eu sou o Belo Pastor. E nós estamos aqui porque Jesus sacia a nossa fome de bondade, é verdade; porque Jesus sacia a nossa fome de verdade, é certo. Mas também porque Jesus sacia a nossa fome e sede de beleza. Nele nós saciamos a nossa ânsia de beleza, de uma beleza que nos salve, de uma transparência, de uma consistência, de uma harmonia que tantas vezes nós não encontramos na vida e ficamos esfomeados dessa beleza, desse sentido. Que não seja só isto, que não seja só o que os nossos olhos veem mas seja essa outra coisa que nos ilumine, que nos fascine, que nos arrebate, que nos assombre, que seja também o nosso êxtase. Porque a vida tem de ser também êxtase. A vida tem de nos espantar, tem de nos fazer abrir a boca, tem de nos assombrar. A vida não é só o fazer as coisas certas. Claro que isso é bom e importante mas nós precisamos de um assombro. Como na tua vida, João Pedro, quando descobriste a Catarina com quem te vais casar. Foi um momento de assombro, de espanto. Porque, é alguma coisa que não estava em ti e de repente encontraste. Isso abriu a vida, deu um sentido novo à vida e estás disposto a mudar tudo por causa dessa beleza que descobriste.
E isso é assim no amor e é assim numa fome e numa sede fundamentais que nós humanos carregamos na nossa vida. Porque nós somos poeira mas poeira enamorada, precisamos de nos enamorar de alguma coisa, precisamos que a vida seja esse êxtase. E Jesus é o Pastor dessa fome do nosso coração porque Ele é o Belo Pastor. É Aquele que nos dá um espanto perante as coisas, perante a realidade. Esse espanto que é a nossa oração de cada dia, que nos dá um sentido de outra coisa que alimenta aquela fome, aquela inquietação indizível que o nosso coração transporta. Aquilo que Sto. Agostinho diz: “O meu coração andava inquieto, sem descanso enquanto não repousei em Ti.”
Querido João Pedro, tu também andavas inquieto e o teu coração também procurava em tantas perguntas até chegares a Jesus. Procura que seja Ele o Belo Pastor da tua vida e responda às questões mais amplas, mais decisivas, mais determinantes que o teu coração a cada momento fará. E que seja assim com todos nós.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo IV da Páscoa
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2018/04/19 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2018/04/16 - Avaliação do Curso “Quando a Filosofia e a Literatura se cruzam”
Está disponível a avaliação dos participantes relativamente ao curso “Quando a Filosofia e a Literatura se cruzam”. Desta forma ficamos a perceber melhor o que significou esta experiência para quem nela participou e o que somos desafiados a fazer em iniciativas futuras do mesmo género.
Pode consultar a avaliação aqui.
Mais informações sobre o curso aqui.
2018/04/16 - Curso “Quando a Filosofia e a Literatura se cruzam” - José Tolentino Mendonça
Está disponível para ouvir a sessão de José Tolentino Mendonça sobre a obra “A Paixão segundo G.H.” de Clarice Lispector, no Curso “Quando a Filosofia e a Literatura se cruzam”.
Mais informações sobre o curso aqui.
2018/04/09 - Curso “Quando a Filosofia e a Literatura se cruzam” - Manuel João Pires
2018/04/08 - A Ressurreição a acontecer (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
Se nós pensarmos no processo da Paixão de Jesus, tudo correu mal na relação dos discípulos com ele. Jesus chamou aqueles homens para viverem com Ele uma experiência de comunidade, revelou-lhes o fundamental do Seu projeto, deu-lhes sinais, ajudou a consolidar a sua convicção mas na hora decisiva eles demandaram. Traíram-no, foram cobardes, pensaram em si mesmos, em salvar a sua pele, deixaram-No sozinho, disseram que não O conheciam de lado nenhum. E, quando chegou a hora da cruz Ele estava sozinho, tinha as mulheres. E as mulheres foram as primeiras testemunhas da Ressurreição porque elas não tinham nada a perder, elas viviam aquele amor por Jesus e queriam perfumar o Seu corpo, queriam visitá-Lo, queriam chorar junto da Sua tumba. Mas os homens não, os discípulos tinham todos fugido, tinham-se refugiado, pensado agora é o fim, “nós vamos apanhar a ressaca de tudo isto, vamos também ser perseguidos, sabe-se lá o que nos vai acontecer.” E estavam longe.
Nós ouvíamos os discípulos de Emaús que imediatamente deixaram Jerusalém e foram para um lugar mais seguro na periferia e pensamos: como é que depois vai ser o primeiro encontro com Jesus? Quer dizer, Jesus vem ao encontro destes que o abandonaram, destes que O negaram, destes que O traíram. Como é que vai ser o encontro de Jesus com estas pessoas? E o que é maravilhoso é percebermos que Jesus vem ao encontro deles na paz, na reconciliação, no perdão. Jesus não vem para um ajuste de contas. A Ressurreição não é um ajuste de contas, não é um triunfo sobre a fragilidade dos discípulos. Pelo contrário, é um alargar, é um reforçar, é um encher, é um abraçar as lacunas, é um dialogar com aqueles que O haviam abandonado. Jesus não abandona aqueles que O haviam abandonado. E isto para nós é Ressurreição pura a acontecer. Porque, o que é para nós a morte é a lógica do ajuste de contas. O que não nos deixa saída, o que não nos dá futuro é quando nós pagamos o mal com o mal. O que para nós é um vicolo fechado, uma rua estreita é quando, perante o sofrimento que os outros nos infligem, nós queremos fazer o mesmo. A Ressurreição é uma rutura com a lógica do olho por olho, dente por dente, com a lógica do egoísmo, com a lógica da vingança, da revanche, é uma rutura com isso.
Jesus vem e eles têm as portas fechadas e Jesus vem na mesma. E vem dizer: “A paz esteja convosco.” A Ressurreição é esta capacidade de criar a paz em situações, em ambientes, onde parece que a paz já não é possível, onde a rutura se consolidou. Mas Jesus não aceita o irremediável da vida, não aceita o irremediável da nossa história e vem dizer: Não, Eu vou-me pôr no meio e vou dizer “a paz esteja convosco”. E depois Jesus faz um gesto: sopra sobre eles. E este sopro é a Vida, é a transmissão do Espírito, é a nova criação. Como Deus insuflou o ar nas narinas do primeiro Adão que moldou da terra, Jesus também insufla o Seu Espírito nestes discípulos para que eles possam verdadeiramente ser. Então, a vulnerabilidade, a fragilidade, a miséria dos discípulos não impede a Ressurreição.
Queridos irmãs e irmãos, nada impede a Ressurreição, a força da Ressurreição, o poder da Ressurreição. Não são as nossas portas fechadas que impedem Jesus de vir, de soprar sobre nós e de nos recriar. O tempo da Ressurreição, o tempo Pascal é tempo para nos sentirmos novos, renovados, recebendo um Espírito novo. Que é um Espírito que vai para lá da nossa fragilidade, que vai para lá das próprias feridas que trazemos. Jesus é capaz de fundar uma nova etapa e de trazer a paz, de encher o coração de paz, dar a força que precisamos e isso é Ressurreição e isso é Ressurreição a acontecer.
Se calhar, neste momento das nossas vidas nós estamos de portas fechadas, se calhar, neste momento das nossas vidas nós estamos acossados com medo, se calhar, neste momento da nossa vida nós vivemos a ressaca disto, de cobardias, de traições, de abandonos, de incompreensões e Jesus vem para soprar sobre nós, para transmitir-nos o Seu Espírito. Este é o primeiro momento.
A segunda experiência da Ressurreição é aquele encontro pessoal com Tomé. E Tomé diz: “Não, eu preciso de ver. Eu duvido, eu não acredito que isso seja possível.” E Jesus não tem medo das dúvidas de Tomé, Jesus não as desconsidera. Jesus toma a sério a palavra de Tomé. E isto para nós é muito importante, porque como é que a nossa fé se constrói? A nossa fé constrói-se porque Deus toma a sério as nossas dúvidas, a nossa incapacidade de acreditar, de ir mais longe. Ele toma a sério e traz precisamente aquilo que Tomé pede, “Eu preciso de ver as feridas”. Então Jesus traz as Suas feridas, “Então toca nestas feridas”, e esta disponibilidade de Jesus para caminhar segundo o nosso passo, para vir ao encontro. Por mais absurdos que sejam o tipo das nossas reivindicações, é a força da Ressurreição a entrar na nossa vida.
Normalmente, as feridas continuam a ser uma marca do conflito. Nas feridas nós lemos as nossas lágrimas, as nossas dores, a agressão. As feridas são uma espécie de documento da guerra, daquilo que aconteceu. Jesus transforma as feridas que são inapagáveis, Jesus transforma-as numa fonte de encontro. E isto também para nós é Ressurreição. A Ressurreição só acontece com a transformação das nossas vidas, do sentido das nossas feridas. Temos de deixar de olhá-las apenas como uma coisa que nos foi tirada, como a coisa que sofremos e olhar para as feridas como a marca do nosso dom, da nossa dádiva, da nossa entrega, da oferta de nós mesmos. Como Jesus olha agora para as suas feridas, não como a vitalidade que Lhe foi tirada mas, pelo contrário, são o documento de um amor, de uma entrega, de uma paixão pela vida, de uma doação até ao fim.
Quando formos capazes de transformar o sentido das nossas feridas nós estamos a ressuscitar, estamos a ressuscitar e isso é alguma coisa que fazemos no tempo, é alguma coisa que precisamos fazer. Todos nós somos pássaros feridos, de um lado e de outro, cheios de amolgadelas. Mas que sentido é que isso tem? O que é que eu posso fazer com isso? Que património é esse? É um património apenas de dor, de sofrimento, de agressão que eu transporto pela vida fora? Ou é alguma coisa que eu ressuscito, que eu interpreto de outra forma, que eu sou capaz de dar um sentido? Á maneira daquele sentido que Jesus deu às Suas próprias feridas. Isso também é ressuscitar, reinterpretar o nosso sofrimento, isso também é ressuscitar. Passar da lógica apenas vitimária para a lógica da doação, para a lógica do dom.
Jesus não conta a Sua vida como um sacrifício que Lhe foi infligido, Jesus conta a Sua vida como uma história de amor. E contar a sua própria vida como uma história de amor isso também é ressuscitar, é ressuscitar com Jesus.
E o terceiro aspeto desta página do Evangelho de S. João é aquela frase misteriosa que Jesus diz a Tomé, diz aos que estavam ali reunidos, aos onze: “Tu porque viste, acreditaste. Felizes os que acreditam sem terem visto.” Aqueles que vivem uma dinâmica da Ressurreição na história, no mundo, ao lado uns dos outros são aqueles que acendem a luz da esperança, acendem a luz da promessa no seu coração. E não precisam de ver para lutar. Não precisam de ver para permanecer fiéis numa esperança, numa espectativa, aqueles que vivem a história não a partir do terreno seguro de uma história cheia de garantias, mas aqueles que avançam no tempo da incerteza que é o nosso com o coração colocado mais adiante. Sem garantias, sem certezas. Mas o amor é também o risco de ser, a fé é também o risco de viver. E a Ressurreição também é um risco. É viver a vida arriscando, acreditando que pode ser assim, que vai ser assim. E é esta fé quando é o motor da nossa vida que se torna também uma máquina de ressuscitar vida, de alargar horizontes.
Queridos irmãs e irmãos, a tarefa é nossa. Nós estamos aqui e sobre nós desce o Espírito do Ressuscitado. Quer dizer, Jesus vive em nós. Ele está vivo em nós, Ele está vivo em cada um de nós. E como é que isso se vê? Como é que isso se toca? Como é que isso se torna motivo de fé? Ele está vivo em cada um de nós.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo II da Páscoa
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2018/04/05 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2018/04/02 - Curso “Quando a Filosofia e a Literatura se cruzam” - Carlos João Correia
2018/04/01 - O pequeno Evangelho de Emaús (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
Nós hoje lemos este capítulo 24 do Evangelho de S. Lucas, o capítulo final, uma das suas secções, a dos discípulos de Emaús, que é chamado o pequeno evangelho de Emaús. Porque, neste episódio tão bem contado pela maestria narrativa do narrador de Lucas, nós temos uma síntese do que é o Evangelho e do que é o caminho cristão.
E o que é o caminho cristão à luz deste relato? É aprender a ver. A Ressurreição, o impacto da Ressurreição de Cristo em nós, é isso, uma nova aprendizagem do olhar. Nós somos chamados a ver de outra maneira, a olhar, a que os nossos olhos se abram – os nossos olhos tantas vezes fechados, incapazes de ver o óbvio, aquilo que está a nosso lado, aquele que caminha connosco, o sentido profundo das Escrituras que lemos, a razão do pão que repartimos uns com os outros. Os nossos olhos incapazes de colher o sentido profundo são hoje chamados a abrir-se.
Há uma tradição muito bonita, popular do norte da Itália, da zona do Véneto: as pessoas vão aos rios, aos vaus, nesta manhã de Páscoa, lavar os olhos. E esta água batismal que nós recebemos sobre as nossas cabeças verdadeiramente é um colírio para os nossos olhos. A Páscoa é um colírio que cura a nossa visão das coisas. Nós somos chamados a construir uma nova visão sobre a realidade, a visão alargada pelo acontecimento do Ressuscitado.
Nós, muito viciados no empirismo, no positivismo, naquilo que nós podemos tatear (e com razão, porque nós também somos isto, somos esta matéria, mas não somos só isto) achamos que precisamos de ver para crer, só quando virmos é que vamos acreditar. Contudo, nós somos chamados a dar um salto e a Páscoa é esse salto da fé de que fala Kierkegaard, descrevendo o ato de acreditar que é sempre um salto, que é sempre uma aposta que nós fazemos, uma aposta sustentada numa relação de confiança, uma aposta garantida pelo acontecimento da Ressurreição. Para nós, mulheres e homens, é sempre uma aposta o ato de crer, esta aposta de rasgar os olhos e acreditando vendo.
É interessante como Jesus aceita fazer o caminho com cada um de nós. Estes dois discípulos de Emaús, que não têm nome porque eles chamam-se Tolentino e Manuel e Maria e Ana, chamam-se todos os nomes. Eles não têm nome, são mais um. Eles dois já estão fora de Jerusalém, vão já distantes do espaço sagrado e vão apenas com a sua história. A história de uma desilusão, a história de um desalento, a história de olhos fechados que não conseguiram ver nada. É a nossa história. Andamos assim, com os olhos colados aos sapatos, com os olhos colados àquilo que nós achamos que são as evidências ou que são as prioridades e não vemos a vida, não vemos a grandeza, não vemos o milagre da vida, não vemos. Porque estamos ali, com os olhos colados, com os olhos presos. E estes tinham os olhos presos a tudo aquilo em que tinham apostado, e que tinham visto no fundo falir, não acontecer. A experiência da perda e da desilusão, da imperfeição, do fim é a experiência que todos nós fazemos e eles levavam consigo essa experiência que lhes agarrava mais os olhos entre si.
E aparece este terceiro. E o terceiro é aquele que vem descolar-nos do fatalismo fusional. Nós e a nossa dor, nós e a nossa ilusão, nós e nós, nós e nós. O terceiro vem e começa a trabalhar outra coisa, outra possibilidade. Nós precisamos de um mestre, precisamos de um guia, precisamos de uma palavra para fazer o caminho da nossa vida. O caminho espiritual não se faz sozinho. Por isso nós estamos aqui, uns com os outros, mestres uns para os outros, a escutar esta Palavra que nos guia, cheios do Espírito Santo para podermos ser isto na vida uns dos outros: aqueles que ajudam a escutar. E Jesus começa por perguntar e por dar tempo a que cada um diga porque é que os seus olhos estão fechados. O que é que neste momento me faz serrar os olhos. Jesus está aqui, ao lado de cada um de nós a escutar isso e a fazer caminho com isso. E depois, vai trabalhando lentamente, porque os olhos talvez não se abram de um momento para o outro. Há uma instantaneidade na conversão, na transformação, no ver, na nova visão Pascal. Mas, ao mesmo, tempo há um processo, há um fazer, há um construir e o construir vai muito por esta escuta também que eu faço, depois de me sentir escutado, de sentir quem eu sou. Ele sabe quem eu sou, Ele sabe o que é que eu trago dentro de mim. Eles começam a escutar esta lição que Jesus faz começando em Moisés e passando pelos profetas, explicando-lhes tudo. Isto é, vai deixando a semente da Palavra nos seus corações. No coração de cada um de nós há tantas sementes!
É interessante que uma das imagens do Ressuscitado Maria Madalena confunde-o com um jardineiro. E a escritora Marguerite Yourcenar diz isto: “Que maravilhosa imagem para Jesus, Ele que acorda tantas sementes no nosso coração.” Dentro de nós há tantas sementes. Deixemos que o Jardineiro Divino seja capaz de acordar em nós essas sementes, esse jardim.
E Jesus continua com eles o caminho, e essa experiência de um caminho acompanhado é também a experiência Pascal. Nós não estamos sós na descoberta deste novo olhar, Ele está connosco. É porque Ele está connosco, é porque Ele vem caminhar ao nosso lado que esta transformação é capaz de acontecer.
E depois, dá-se isto: ontem, lendo o Evangelho de Marcos na Vigília Pascal, o homem vestido de branco diz às mulheres: ”A partir de agora Ele vai à vossa frente.” E de facto, Jesus vai à nossa frente como Ressuscitado. Mas os discípulos dizem: “Senhor, já é tarde, fica connosco, permanece connosco.” E Jesus, num gesto de amor, de condescendência amorosa diz: “Eu fico convosco. ”Este pedido, esta prece, esta oração, este grito tantas vezes fazemos na nossa vida. Senhor, fica connosco porque se faz tarde. Senhor, fica connosco porque a noite já desce. Senhor, fica connosco. É esta certeza de que Ele fica sempre connosco e Se senta à nossa mesa, na quotidianidade da nossa vida, no ordinário daquilo que somos. Aceita a nossa humanidade, senta-se à nossa mesa, come connosco. Mas é Ele que parte o pão.
E neste gesto do partir do pão, aqueles olhos estalam e eles compreendem que Ele está vivo. E deixam de O ver, mas deixar de O ver já não é um problema porque o importante foi eles fundarem a sua vida nesta nova visão. Por isso, vão a correr a Jerusalém dizer: nós vimos. E ouvir: o Senhor ressuscitou verdadeiramente e apareceu a Simão, a primeira profissão da Igreja primitiva.
Queridos irmãos, hoje também nós vamos partir o pão. E que ao partir do pão se parta também o nosso olhar e descubramos uma nova visão das coisas, aquela visão que a fé é capaz de nos dar, que o sepulcro vazio é capaz de instituir em nós. Que é perceber que tudo não acaba aqui, perceber que não é só isto, que não é apenas isto; perceber que a Vítima é capaz de ser o grande transformador da história, de ser Aquele que inspira uma nova história. A Vítima não é apenas Aquele que ficou eliminado, Aquele que ficou descartado mas Ele vem ajudar-nos a escrever uma nova história. E que o dom de amor radical que é a hospitalidade de todos que Ele representa na cruz continua a ser para nós a grande lição, o grande caminho, a grande verdade, a verdadeira vida que nós somos chamados a viver.
Ao partir do pão que os nossos olhos se abram.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo de Páscoa
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2018/04/01 - Tatear o Mistério da Ressurreição (homilia)
Queridos sacerdotes, queridos irmãs e irmãos,
Nós, como leitores do Evangelho, temos curiosidade por saber como é que o Evangelho termina. E, quando se conta uma história ela pode ser contada de formas diferentes, depende do ponto de vista que nós tomamos, que escolhemos para relatar a própria história.
A Ressurreição pode ser contada de duas formas. Os evangelistas podiam (e este “podiam” tem de ser colocado entre aspas) ter escolhido contar a história do ponto de vista de Jesus. Explicar como é que ele estando morto, tendo sido colocado no sepulcro não foi encontrado lá. O que é que Lhe aconteceu? Podiam ter contado a história do como a Ressurreição aconteceu. Contudo, não foi esse o caminho dos evangelistas que ajudam a construir a nossa fé. Eles não contam como Cristo ressuscitou, eles contam que Cristo ressuscitou. Contam a história não do ponto de vista de Jesus, mas do ponto de vista das suas testemunhas. Ou melhor, contam a história do nosso ponto de vista. Por isso, nós estamos aqui para celebrar a Ressurreição de Jesus. Certo. Mas nós estamos aqui para perceber qual é o nosso papel nisto.
O que é que nós, mulheres e homens, temos a ver com esta história? E porque é que ela é contada envolvendo-nos? Porque no lugar desta Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e Salomé estamos nós todos. Depois, quando chegarem os apóstolos homens estamos nós todos representados. Então, qual é o nosso papel no meio disto tudo? Porque é que o Evangelho nos conta a Ressurreição falando de nós, falando de mim, falando de ti? O que é isto? Que desafio representa para a nossa vida?
Eu penso que há quatro etapas fundamentais neste breve texto do final do Evangelho de Marcos. A primeira etapa é pensarmos na natureza das testemunhas, destes primeiros que se abeiraram do túmulo vazio. Eram três mulheres, Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e Salomé. Normalmente, quando é uma grande descoberta nós ouvimos nos telejornais, nas revistas científicas. As grandes descobertas são feitas por grandes cientistas, por equipas que andam a estudar, que vão aos confins das galáxias ou que vão ao fundo da matéria humana, à sua parte mínima através de potentes instrumentos técnicos para fazer as grandes descobertas. O que é insólito é que a maior descoberta da História da Humanidade foi feita por três mulheres. Isto é, foi feita por interlocutores que nós diríamos personagens imprevistos, personagens que não estão exatamente à procura de uma descoberta da ciência que faça avançar isto ou aquilo. São personagens que vêm numa fidelidade a um amor, a uma história de amor que não aceitam que morra ali, que acabe daquela forma. Sentem a morte de Jesus e trazem perfumes para perfumar aquela morte e elas vêm no caminho, no meio da incerteza dizendo: “Há uma pedra grande na boca do sepulcro, quem rolará para nós essa pedra?” Quer dizer, o gesto delas, a viagem delas pode ser inútil, pode não servir para nada porque se a porta estiver fechada elas não vão entrar, não vão perfumar o corpo de Jesus. Mas elas na mesma fazem a viagem, pode ser inútil, pode não ser. O amor que têm dentro de si é mais forte, é alguma coisa que não as deixa ficar paradas em casa. Elas organizam-se, não vem uma, vêm três. Organizam-se em grupo, vêm sem saber, mas vêm. Vêm porquê? Vêm porque amam, vêm porque têm piedade, vêm porque choram, vêm porque sentem, vêm porque a morte de Jesus as abalou profundamente tal como a vida de Jesus as tinha abalado muito mais, e elas não eram as mesmas. Elas vêm arriscando tudo porque aquele Jesus era a fonte de sentido das suas vidas.
A Ressurreição, queridos irmãos, quem é que a descobre? Descobrem os misericordiosos, os piedosos, os que fazem suas as lágrimas dos outros, os sofrimentos dos outros. Descobrem os cuidadores, aqueles que até ao fim e para lá do fim continuam a exercer o cuidado pelos seus irmãos. Descobrem os enamorados, aqueles que se apaixonaram, aqueles que guardam o amor na sua vida que até pode ser inútil, até pode nunca se realizar. Porque, a pedra que está na boca do sepulcro há de impedir tudo, mas é essa força no seu coração, é a força do amor que leva aquelas mulheres ao sepulcro, a força da piedade.
Não deixa de ser interessante que sejam elas as primeiras testemunhas da Ressurreição. A Ressurreição não é uma verdade antes de tudo para as nossas cabeças, não é uma verdade para lermos numa revista científica. A Ressurreição é uma verdade que encontramos tatuada no nosso coração, nos gestos de amor; que encontramos dentro das nossas lágrimas; que encontramos quando o pacto que temos com os outros, a aliança de amizade, de afeto, de cumplicidade vai até ao fim e para lá do fim. Estas três Marias que vão a caminho do sepulcro são para nós um desafio muito grande, que explica como é que nós vamos tocar o Mistério da Ressurreição.
A pedra está rolada e elas entram. E é uma surpresa enorme para nós porque não há nada, não há nada. Cristo ressuscitou. Que prova é que nós temos a que nos podemos agarrar? O que é que indica como sinal? Qual é a coisa indubitável? Nada! Nós não temos nada, nós aqui não temos nada. É um vazio, não temos nada. Ele não está aqui, Ele não está aqui. A Ressurreição não é nos agarrarmos a uma certeza, não é nos agarrarmos a um corpo, não é nos agarrarmos a uma realidade física, a uma explicação. Continua a ser um mistério! E um mistério que brilha no vazio, um mistério que brilha no despojamento, um mistério que brilha no silêncio.
Onde é que nós, cristãos, vamos tocar a Ressurreição? Muitas vezes é no vazio, é no nada, no nada, no nada. Muitas vezes é no incrível despojamento da nossa própria vida. É aí que tateamos o Mistério da Ressurreição. O Mistério da Ressurreição não é para encher, é para nos esvaziar. E, nesse vazio, nós sentirmos que há alguma coisa para lá de nós.
As mulheres, perante aquele vazio, elas não estão sós. Elas são desafiadas a ler o vazio através de uma Palavra. Nós viemos aqui, personagens improváveis. A NASA, as grandes agências espaciais não nos contratariam, a nenhum de nós – não sei, talvez os mais jovens, que são futuras promessas da ciência mundial, a mim não me iam contratar para descobrir grandes verdades, eu sou um personagem completamente improvável. Talvez por isso nós estejamos aqui. E estejamos aqui a tatear nada. É bom que não associemos a Ressurreição a um monte de certezas, a uma reposição. Não é o filme que nós vimos que agora vai passar, não é uma reposição de Jesus. É bom que nós sintamos que o sepulcro está vazio, Ele não está aqui. Mas que nós sintamos isto confiados numa Palavra, num anúncio tão inusitado, mais inusitado do que o próprio vazio.
“Não vos assusteis. Procurais a Jesus de Nazaré, o Crucificado? Ressuscitou.” E é esta Palavra que nos é dita. Por isso, esta noite é a noite de uma Palavra que nos alerta, de uma Palavra que nos alarma, de uma Palavra que nos desassossega, de uma Palavra que não nos deixa mais em paz, de uma Palavra que é dita ao nosso coração. “Ele não está aqui, Ele ressuscitou.” E é a Palavra que em nós desembrulha a vida, desembrulha o sudário em que nós manietamos a nossa vida. Desamarra, desembrulha os limites, desembrulha as dúvidas, desembrulha as limitações, as imperfeições, o medo de morte que os discípulos têm nestas horas. É esta Palavra que desembrulha. Por isso, é este o alegre anúncio Pascal. A Ressurreição, nós tateamo-la num anúncio que nos é feito, num anúncio que vem de Deus, num anúncio credível no qual nós podemos confiar. “Ele não está aqui, Ele ressuscitou.”
E qual é a grande implicação disso? É aquilo que depois o jovem vestido de branco diz às mulheres e que é o quarto ponto, que é dizer: “Ide dizer uns aos outros, ide dizer aos seus discípulos: Ele vai adiante de vós para a Galileia, lá O vereis.” Ele vai adiante de vós. Como é que nós experimentamos o Ressuscitado na nossa vida? Não experimentamos Jesus simplesmente como uma memória do passado, como grande figura histórica, extraordinária. Eu ainda estes dias folheava a biografia que escreveu o Ernesto Renan, um escritor um pouco de moda durante muito tempo mas que procurava uma perspetiva simplesmente racional de Jesus. Ele diz: “Jesus é o homem mais extraordinário que apareceu na terra.” Isto para nós não basta, isto para nós não chega. Não chega que Ele tenha sido o maior de todos os tempos, não nos basta o seu passado. Agora, hoje, esta noite nós sabemos que Ele caminha adiante de nós e que nós seguimos os Seus passos.
Isto, queridos irmãs e irmãos, dá um sentido novo à nossa vida, um sentido outro àquilo que somos, um sentido luminoso à nossa noite. Nós cantamos: “Feliz noite! Ditosa noite.” Porque, precisamente, é nesta noite que nós descobrimos que os nossos passos vão atrás dos passos de Jesus. E por isso, quando olhamos para a frente não é o vazio, não é o nada mas sabemos que Ele é o ramo verde, que Ele é o anunciador da Páscoa, que Ele é o inaugurador de horizontes, é o Deus connosco que está a nosso lado, todos os dias até ao fim dos tempos.
Vamos viver esta Vigília sentindo que somos nós os implicados, sentindo que somos nós que a partir do nosso amor vamos ao sepulcro. Que lá somos desafiados a abraçar o nada, o nosso próprio nada, a alargá-lo mais, a dimensioná-lo mais, a escutar uma Palavra. Uma Palavra a que nos podemos agarrar, uma Palavra para confiar. “Ele ressuscitou e Ele vai à vossa frente, Ele preceder-vos-á na Galileia.” Sintamos que Jesus é o homem da frente, é Aquele que caminha a nosso lado como aquela luz que no meio da noite nos dá a força para endereçarmos os nossos passos.
Pe. José Tolentino Mendonça, Vigília Pascal
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Março
2018/03/30 - Música na Paixão do Senhor
O quarteto vocal composto por Sara Afonso, Margarida Simas, Rui Aleixo e Pedro Morgado vai interpretar obras de Bach, Berthier, Bruckner e Mozart na Celebração da Paixão do Senhor, na Sexta-Feira Santa, 30 de março, às 15h, na Capela do Rato.
2018/03/29 - O elogio da mesa (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
No centro da nossa liturgia está a mesa. Esta Quinta-Feira Santa nós podemos entendê-la como um elogio da mesa, daquilo que a mesa significa. Na nossa vida, a mesa acompanha-nos sempre. É daquelas peças de mobília da nossa casa que podem variar mas estão sempre presente, e têm um papel fundamental.
A mesa que é o altar não tem uma função decorativa. É uma mesa verdadeira. O altar é uma mesa verdadeira. É o símbolo, é a imagem, de todas as mesas que construíram a nossa vida e ao mesmo tempo é a mesa do futuro que se abre para nós. Porque, esta mesa ensina-nos a arte de construir comensalidade, de construir relação, de construir vida partilhada. Por isso, nós sentimos que esta pobre mesa onde a cada domingo nós nos juntamos é a medida da nossa vida, é o propulsor daquilo que nós somos.
Façamos o elogio da mesa. Esta mesa que é a continuação natural da nossa própria vida. Porque, não há mesa sem dádiva. Não há mesa que se abre sem coração que se dá, sem vida suada, oferecida, entregue, transmitida aos outros. Façamos o elogio da mesa. A mesa que começa por ser a imagem da vida, daquela nutrição essencial que reflete o cuidado pela própria vida. A nossa primeira mesa foram os braços da nossa mãe, foram o corpo da nossa mãe – foram a nossa primeira mesa. Ou foi o colo do nosso pai. Foram a nossa primeira mesa. Aí nesses dias e noites, nós começamos esta aventura maravilhosa e há mulheres e homens que são mesa uns para os outros. A mesa não é só uma mesa física. A mesa é isto: a mesa é o cuidado fundamental da existência. E não é por acaso que àqueles dois foi confiada a coisa mais sagrada que é nutrir, garantir o pão e garantir a sede daquelas criaturas que eles geraram. É a missão sagrada de ser mesa, de embalar na vida. Por isso, a mesa há-de ser sempre o lugar onde se expressa o cuidado mais recôndito, mais essencial pela vida.
Na mesa, nós nem nos damos conta, mas na mesa joga-se a vida ou a morte, joga-se o sim ou o não, joga-se aquilo que somos ou a destruição de nós mesmos. Na nossa mesa e nesta mesa. Por isso, a mesa é um lugar de afirmação da vida fundamental. Façamos o elogio da mesa, dessas mesas que são a expressão do quotidiano. Acontece tantas vezes que depois nós perdemos a conta, perdemos o número. Quantas vezes nos sentamos à nossa mesa? Refeições banais, a correr, apressadas, coisas que não nos ficam na memória mas que depois, no conjunto, tornam-se a nossa biografia, tornam-se a seiva que nos alimenta. Porque nós somos feitos de vida comum, de vida ordinária, mas somos feitos dessa fidelidade permanente, repetida, mantida. Às vezes com que esforço, mas somos fruto dessa fidelidade àquilo que a mesa significa. A mesa que nos dá a ver o quotidiano e também o extraordinário.
Quando há uma festa nós abrimos a mesa. E a mesa, no seu brilho, na sua excedência, no seu ouro torna-se um lugar onde nós experimentamos o sabor que é ainda maior que o sabor habitual. Nós celebramos a vida. Sentimos não apenas a necessidade do corpo mas também sentimos o desejo da alma. E por isso, a mesa é também o lugar da festa. Porque a mesa não alimenta apenas o nosso corpo. Alimenta também a busca de sentido, a busca de verdade, a busca de beleza que cada um de nós é chamado a fazer.
Façamos o elogio da mesa. Eu tenho uma amiga que vive sozinha, ela disse-me um dia: “Eu como todos os dias na cozinha. E na cozinha só tenho uma cadeira na minha mesa pois sei que como sempre sozinha, mas não há vez nenhuma que eu me sente à mesa e não diga isto: «a mesa é comunidade.»” E diz ela: “Isso ajuda-me.” Eu próprio, os padres seculares que muitas vezes vivem sós, e se calhar muitos de nós que estamos aqui, também todos os dias comemos muitas vezes sozinhos. Mesmo quem tem uma família grande lhe acontece tomar uma refeição sozinho, ou em determinados momentos da nossa vida. Mas, é importante dizer no nosso coração: “A mesa é comunidade.” E que isso nos faça sentir que nós não estamos sós, sentir que a mesa nos conta uma história. Conta a história de todos os artesãos invisíveis que conspiram para que o milagre da nossa vida seja possível, e que ela se expanda, e liga-nos à fome e a sede de todas as mulheres e de todos os homens da terra. E liga-nos ao esforço, ao sentido da festa, liga-nos àquilo que cada um está a viver neste mundo vasto e largo de Deus. Rostos que nós nunca veremos mas que, na expressão da mesa, estão ali reunidos, estão ali presentes. A mesa é comunhão, a mesa é comunidade.
Não foi por acaso que Cristo na Última Ceia quis fazer o elogio da mesa. E a Eucaristia é o elogio da mesa. Porque no centro da Eucaristia está a Palavra que nós comemos, a primeira mesa. E depois está a mesa do pão, a mesa do vinho que se torna vida, porque é na mesa que nós compreendemos aquilo que Jesus nos fez, aquilo que Jesus pede a cada um de nós. Na mesa nós lavamos os pés uns aos outros, às vezes lavamos o rabo uns aos outros, cuidamos uns dos outros até ao extremo, até onde for preciso. Não temos de escolher, a vida não é de escolhas, a vida é o que é. À volta da mesa nós às vezes queríamos não ter isto, não ter aquilo. Não, é o que temos. E temos de abraçar a mesa, abraçar a mesa. Porque na sua vulnerabilidade, na sua fragilidade, a mesa é o lugar do abraço à nossa humanidade.
Jesus faz o elogio da mesa e Ele não tem dúvidas. O que é que é uma mesa? A mesa é a extensão do corpo. Como a nossa primeira mesa foi o corpo dos nossos pais, o colo da nossa mãe. O que é hoje uma mesa verdadeira? Uma mesa verdadeira não é uma mesa, é mais do que uma mesa, é a fraternidade que somos capazes de construir uns com os outros, é aquilo que colocamos lá. Mas é tudo o que nos levou a colocar aquilo na mesa e tudo aquilo que gostaríamos de colocar e muitas vezes fica por dizer, fica por nomear. Mas a mesa é o lugar onde podemos tocar mais profundamente a vida uns dos outros, nesse gesto arcaico, selvagem e sagrado que é comer. Que é colocar uma coisa que está fora dentro do nosso corpo e ela transforma-se no nosso corpo. É uma coisa primitiva, mas ao mesmo tempo é o gesto mais radical de uma hospitalidade mais radical. E não é por acaso que Jesus identifica a hospitalidade do ato de comer, e do ato de comer em companhia à hospitalidade de Deus, à hospitalidade que Deus nos oferece. Porque é assim: Deus torna-nos seus, Deus dá-Se-nos, Deus oferece-Se como alimento para que nós O comamos e para que a nossa vida se torne uma vida transformante e transformada por essa presença divina; que, na mesa, de uma forma sacramental nós podemos tocar, nós podemos beber.
Façamos, queridos irmãos, o elogio da mesa e que nas nossas vidas nós percebamos que a Eucaristia não é simplesmente um ritual estanque que fica aqui. Esta mesa é um porto, esta mesa é um ponto de partida. Desta mesa nós partimos para as nossas mesas, esta mesa é uma multiplicadora de mesas, é uma reconciliadora de mesas, é uma inventora de mesas. Cada um de nós tem de ser a mulher mesa, o homem mesa que é capaz de dizer: “Olha, estou aqui ao serviço. Ofereço-me, dou um passo em frente, estou contigo. Se posso ajudar, se posso solidariamente estar a teu lado, estou aqui.” Isso é perceber a lição fundamental de Jesus.
É claro, esta mesa, nós só percebemos iluminada pela cruz. Porque não há mulheres mesa nem homens mesa que não aceitem viver essa forma radical de amor que nós lemos hoje no Evangelho de S. João como introdução ao Tríduo Pascal. “Antes da festa, sabendo Jesus que chegara à Sua hora, Ele que amara os Seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim.” Até onde nós estamos dispostos a levar o nosso amor? Até onde nós estamos dispostos a levar a nossa dádiva?
O que nós vamos viver neste Tríduo Pascal é seguirmos Jesus. Como as mulheres e os homens, os discípulos seguiram Jesus. Um bocado desalentados, acabrunhados, desorientados, sem saber bem, amedrontados mas seguindo Jesus como puderam. Sigamos Jesus como pudermos, sigamos. Mas, coloquemos o olhar, vejamos o que Ele faz. Porque, como Ele diz no Evangelho: “Eu deixei-vos um exemplo. Eu deixei-vos um exemplo.” Queridos irmãos, nós vamos continuar a nossa celebração. Hoje é um dia de festa, porque à volta desta mesa nós sabemos o que é a comunidade, nós sabemos que não estamos sós. E sabemos que Ele é para nós o alimento que nos ajuda a ser alimento, para os outros.
Ainda a semana passada, passei no Colégio Moderno, fui lá falar a um grupo grande de jovens, mais de 200, miúdos do décimo primeiro, décimo segundo. Uma grande conversa sobre o mundo, a sociedade, a Igreja. E no final, uma miúda veio ter comigo, com aquela timidez bonita da puberdade e disse-me: “E o que é a vocação? Pode falar-me um pouco da vocação?” E eu disse-lhe: “Olha, a vocação é aquele lugar onde tu vais sentir que a vida é mais feliz, essa é a tua vocação.” E ela disse: “Eu quero ser feliz. Eu quero muito ser feliz.” E eu disse: “Se eu te posso dar um conselho, à luz daquilo que Jesus nos ensina é este: se queres mesmo, mesmo, mesmo ser feliz torna feliz o maior número de pessoas à tua volta. Porque, a felicidade dos outros vai-te contagiar para a felicidade que tu buscas, que tu anseias e que tu mereces.”
Pe. José Tolentino Mendonça, Quinta-feira Santa – Missa da Ceia do Senhor
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2018/03/26 - Curso “Quando a Filosofia e a Literatura se cruzam” - Isabel Caldeira Cabral
2018/03/22 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2018/03/21 - Celebrar a mulher: poesia e prosa a várias vozes
Na semana em que celebramos a Anunciação a Nossa Senhora, vamos celebrar as mulheres em verso e prosa, a diferentes vozes, homens e mulheres, crentes e não crentes, para descobrirmos a unidade na diversidade. Será no dia 21 de março, às 18h, na Capela do Rato. A iniciativa é do movimento Nós somos Igreja, em parceria com a Capela do Rato.
Teremos o gosto de ter connosco António Carlos Cortês, Camané, Carlos Alberto Moniz, Filipa Vicente, Gilda Oswaldo Cruz, Inês Pedrosa, Jorge Wemans, José Manuel Pureza, Luisa Ribeiro Ferreira, Margarida Pinto Correia, Maria Antónia Palla, Nelida Piñon, Simoneta Luz Afonso e Vitorino.
2018/03/19 - Curso “Quando a Filosofia e a Literatura se cruzam” - Isabel Rocheta
2018/03/16 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2018/03/12 - Curso “Quando a Filosofia e a Literatura se cruzam” - José Miranda Justo
2018/03/11 - Fixar os olhos em Jesus (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
A liturgia deste quarto domingo da Quaresma centra-nos no drama da renúncia, da recusa. Nós somos visitados, a nossa vida é visitada. Nós temos, no centro da nossa fé cristã, o Mistério da Cruz, Aquele que está levantado sobre a cruz. A imagem da serpente que Moisés ergueu na vara e que curava todas as enfermidades é apenas uma imagem, uma metáfora, desta realidade nova que é a do próprio Deus, do Filho de Deus crucificado na cruz, que nos cura e que nos salva.
Contudo, como diz o Evangelho de S. João, Ele veio aos que eram os Seus e os Seus não o receberam. É este o drama da recusa da fé, dos meios da fé, dos meios da graça, da visita de Deus à nossa vida que tantas vezes nos encontra cegos e surdos em relação à Sua passagem. Nós não estamos verdadeiramente disponíveis, criamos uma espécie de impermeabilização espiritual. Chove, a Palavra vem, o encontro eucarístico acontece mas verdadeiramente não nos molha, não nos transforma, não toca em profundidade aquilo que eu sou. Porque, sem eu me dar conta até ou de forma deliberada, mas sub-reptícia, eu construo uma estratégia de escape. É muito comum nós, cristãos, sermos escapistas profissionais em relação a Deus, em relação à Sua Palavra, à dimensão profética que nos critica e nos questiona. Nós encontramos sempre forma de escapar por entre os pingos da chuva e não ficar molhados, não ficar tocados.
Mas, este escapismo espiritual tem um preço e o preço é a nossa própria destruição. Nós não temos força de lutar contra aquilo que nos tenta, contra aquilo que nos sitia. E, quando damos por nós, somos como as muralhas de Jerusalém, as nossas muralhas, as nossas defesas estão todas em baixo, nós estamos completamente escravizados. Somos escravos, já não somos pessoas livres. Não temos desprendimento, não temos desapego. Dizemos: “Vou fazer.” Mas depois não fazemos. Dizemos: “Eu comprometo-me com isto.” Mas não somos capazes desse compromisso. Cremos, achamos, é por aqui. Mas depois não temos a força interior de ir por ali. Porquê? Porque estamos escravizados. Parece que vivemos em nossa casa, parece que cada dia chegamos ao nosso endereço, parece que somos senhores da nossa vida, mas não somos. Somos um joguete nas mãos daquilo que nos escraviza. Seja o que for. Seja o dinheiro, seja o poder, seja o orgulho, seja a autossuficiência, a autorreferencialidade, seja um erotismo mal vivido, seja a escravidão da internet, disto e daquilo. Tanta coisa que nos escraviza.
A História do Povo de Deus é, muitas vezes, uma história em que ele é escravo, em que ele está no exílio, em que perdeu a sua independência, em que a sua unidade, o seu território eclipsou-se, passou para as mãos de outro. E isso é uma imagem daquilo que acontece realmente na nossa vida. Porque, tantas vezes a chave da nossa casa, a chave do nosso coração, o elmo da nossa liberdade nós entregamos na mão de outro. E não temos essa capacidade. E olhamos para nós: custa-nos reconhecer mas somos fracos, não somos donos de nós mesmos, não fazemos aquilo que sentimos que devemos fazer. Acabamos por viver na espuma daquilo que é mais fácil.
Hoje, esta leitura do livro de Crónicas conta a ida do Povo de Israel para Babilónia. É um retrato chapado daquilo que nos acontece. Nós vivemos em Babilónia, grande parte da nossa vida estamos na Babilónia, não estamos na Terra Prometida, estamos submetidos a poderes que nós não tivemos a força de enfrentar, que nós não tivemos a coragem de dizer “não”. Dizemos um “nim”, tornamo-nos pragmáticos, achamos que conseguimos mas depois não conseguimos.
Por isso, é importante que cada um de nós entre dentro de si e faça um efetivo diagnóstico da sua situação. Porque, não são só os outros que estão no exílio, possivelmente eu também estou no exílio.
Aquilo que Sophia de Mello Breyner diz num poema: “Numa disciplina constante procuro a lei da liberdade medindo o equilíbrio dos meus passos, mas as coisas têm máscaras e véus com que me prendem e se eu um momento detida me esqueço, a força perversa das coisas ata-me os braços e atira-me, prisioneira de ninguém mas só de laços, para o vazio horror das voltas do caminho.” E é verdade, nós andamos assim. Somos prisioneiros de laços que não vemos, não vivemos na nossa terra, vivemos num exílio, numa pátria dividida. Como voltar? A questão da Quaresma, a questão da Páscoa é esta: como voltar a experimentar a liberdade? É possível sendo velho nascer de novo? É possível com todas estas escravidões, esta miséria, sentir um elan de um renascimento, de um rejuvenescimento interior? É possível que a primavera não seja só das tílias da minha rua mas seja também do meu coração, do meu interior? É possível isso?
Hoje a Carta aos Efésios e o próprio Evangelho de João centram-nos na fé, e dizem-nos isto: “Povo de Deus, acredita. Povo de Deus, tem fé.” Que é como dizer: “Maria, José, Manuel, João, Tolentino, Madalena, Duarte tem fé, acredita. Porque a fé é que te dá a capacidade de renascer, de recomeçar.” E este é o tempo para isso, o tempo para descobrir a força que é a fé na minha vida. Porque, não são as obras que nos salvam ou não é a nossa vontade que é tão débil, mas é a fé. Isto é, o acontecimento de Jesus Cristo na vida de cada um de nós determina um ser novo, qualquer que seja o estádio em que a nossa vida esteja. É possível. É possível porque a fé traz-nos ressurreição, a fé traz-nos vida nova. Por isso, temos de fixar os nossos olhos em Jesus. O tempo da Quaresma é um tempo cristológico, que nos enfoca na pessoa de Jesus e neste olhar de amor, de misericórdia que Ele dedica a cada um de nós. Deus está pronto a ir-nos arrancar ao exílio. Deus está pronto a ir-nos buscar ao exílio, Deus está pronto a ir buscar-nos, a arrancar-nos ao sepulcro, Deus está pronto a ir buscar-nos ao silêncio dos infernos, onde tantas vezes nós esgotamos a nossa vida. Deus está pronto a ir arrancar-nos.
E a Páscoa é isto. Um povo pascal o que é? É um povo acordado, é um povo desperto, é um povo que não se conforma a viver no exílio, é um povo que não se conforma à escravidão mas que tem ânsia de liberdade. E é assim: todos nós sabemos o que é isto. Em cada um de nós isto se traduz de uma determinada maneira. Mas agarremos esta oportunidade. A Quaresma é uma oportunidade, é a grande oportunidade para fixar os nossos olhos em Cristo e sentir que a cruz é a alavanca de uma mudança, de uma conversão, de um renascimento, de uma transformação espiritual que pode verdadeiramente acontecer em nós.
Rezemos uns pelos outros, para não ficarmos parados, para não acharmos que já não é para nós, para não acharmos que burro velho já não se converte. Mas pelo contrário, acreditarmos que é possível, para lá dos imbróglios, da frieza, dos muros que nos separam e atravancam a nossa vida e verdadeiramente não nos deixam ser, não nos deixam viver com autenticidade. Para lá disso há uma possibilidade que Deus inaugura para nós – é possível, é possível, é possível! Um homem velho pode nascer de novo? Pode. Digamos isto no fundo do nosso coração e esta certeza nos ajude a dar os pequenos passos da confiança, da procura, da misericórdia, de um caminho de libertação interior. Porque, só assim, naquele domingo em que nós vamos a correr ao sepulcro, nós encontramos um sepulcro vazio. E o sepulcro que é preciso esvaziar é o nosso, é o da nossa própria vida.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo IV da Quaresma
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2018/03/08 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2018/03/05 - Curso “Quando a Filosofia e a Literatura se cruzam” - Maria Luisa Ribeiro Ferreira
2018/03/04 - Destruir e reconstruir (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
É curioso o modo como este passo do Evangelho de S. João termina, porque não deixa de ser desconcertante. Jesus naquela páscoa faz sinais, faz milagres, em Jerusalém. Há quem acredite nesses sinais mas Jesus desconfia dessa fé. Jesus não acredita na crença, na reação que os Seus milagres despertam naquelas pessoas.
Isto é desconcertante porque nós podemos achar que é uma coisa boa: as pessoas assistem a milagres, acreditam em quem os faz. Isso em si é uma coisa boa. É ou não é? É uma coisa boa. Então, como é que Jesus é crítico, afasta-Se, não acredita naquela fé?
Para nós dá que pensar, porque isto também questiona o conteúdo da nossa própria fé. O que é que nos faz acreditar? O que é que nos aproxima de Jesus? O que é que é o cerne da nossa própria religião? O que é que nos liga? É uma fome de milagres? É uma vontade de prodígios? É uma necessidade que Deus resolva as nossas carências, as nossas necessidades? É porque Deus vem, de certa forma, compensar algum buraco, alguma necessidade urgente em nós? É isso que é a razão da nossa fé ou nós seguimos Jesus por outra coisa? Já não é por aquilo que Ele nos dá, já não é por aquilo que Ele nos premeia, que Ele nos oferece, que Ele nos dá a ver? Ou é pela Sua vida, pelo testemunho daquilo que Ele é, daquilo que Ele fez que nós estamos aqui?
A palavra de Jesus desconserta, mas ao mesmo tempo é uma chamada à purificação da nossa própria religião. A religião também precisa ser purificada. Não a religião em abstrato, mas a nossa própria religião, aquilo que está no cerne da nossa relação com o próprio Deus, com o próprio Jesus. Porque, esta imagem que é descrita no Evangelho de S. João do templo, muitas vezes é essa imagem que está dentro de nós – os cambistas, os vendedores disto, os vendedores daquilo. Porque, no fundo, sem darmos conta, reduzimos a religião ou transformamos a religião numa espécie de comércio interior, num sistema de trocas, num mecanismo de compensação, numa expetativa que nós temos em relação a Deus ou que achamos que Deus tem em relação a nós. E, de repente, o Templo já não é um Templo mas é uma praça de comércio e a religião já não é a experiência da gratuidade e do dom, mas é uma troca de serviços, uma troca de benefícios.
Jesus põe em causa este modelo de religião em que muitas vezes assenta a nossa própria espiritualidade e a nossa prática religiosa. Jesus põe em causa esse modelo de religião e desafia-nos a olharmos para o religioso de uma outra forma, como lugar de escuta radical de Deus. Escutarmos a Sua voz, escutarmos a Sua palavra como lugar de uma oração que seja pura, no sentido de que não seja para a imediata satisfação das nossas necessidades, mas seja o colocar a vida em Deus nesta experiência de gratuidade. Amamos a Deus sem ser por nada, como é o verdadeiro amor. O amor por causa disto ou por causa daquilo não é ainda o verdadeiro amor. Amar Deus sem ser por nada, acreditar em Deus sem ser por nada, acreditar por aquilo que Ele é, acreditar como entrega total do que somos. Isso é tornar o templo um Templo.
Quando os judeus tentam aferir porque é que Jesus toma a iniciativa de derrubar, de armar o banzé naquele átrio do Templo, Jesus usa dois verbos que nos fazem mergulhar neste processo de conversão a que a Quaresma nos desafia. Jesus diz: “Destruí este templo e Eu o reedificarei em três dias.” Destruir e reconstruir, apagar e reescrever, morrer e renascer. É o binómio que o próprio processo quaresmal nos desafia a viver. Há coisas a destruir em nós para poderem ser reconstruídas. Há uma imagem que tem de ser superada para poder nascer outra imagem, há práticas que têm de ficar para trás para poderem surgir outras práticas. Há um esvaziamento da nossa vida que é necessário para podermos verdadeiramente renascer. E Jesus, quando falava do destruir e do reconstruir, falava do Templo que é o Seu próprio corpo.
Quando Jesus entra no templo de Jerusalém não é para purificar o templo mas é para o arrasar. Arrasar quer dizer superar aquele modelo de religião em que o espaço físico, a monumentalidade do lugar, a exterioridade ou a lei ainda são o fundamento, em que os ritos ainda são o centro, o âmago. Jesus vem parar esse modelo religioso e vem dizer: agora é o Meu corpo, agora é o vosso corpo, o Templo. Agora é a vossa vida o lugar, esse lugar onde o encontro com Deus, onde o verdadeiro sacrifício, a verdadeira oferta (não é a oferta de uma coisa mas é o dom de si mesmo) ocorre. Por isso, Jesus centra a religião não num templo mas no Seu próprio corpo. E, quando olhamos para o Crucificado nós percebemos que Ele é o nosso Templo, que Ele é o nosso lugar. E, que naquele corpo, naquele corpo vencido, naquele corpo esmagado pelo sofrimento, naquele corpo que é o ícone do amor, que é o ícone do dom, Deus está inteiro. Naquele corpo que morre gritando: “Meu Deus, meu Deus porque Me abandonaste?” Naquele corpo que é o sinal da ausência de Deus, do silêncio de Deus está também a voz de Deus, a palavra de Deus para todos os tempos, para as mulheres e para os homens de todos os tempos.
Por isso, queridos irmãos, é no nosso corpo, é na nossa vida que a expressão de Deus Se manifesta. Isso dá-nos uma responsabilidade por aquilo que somos, por aquilo que vivemos, pela qualidade que empregamos no dia a dia nas pequenas coisas, nas transações da vida, nos seus tráficos que tantas vezes nós abandonamos porque achamos que depois resolvemos a religião de outra maneira, fora da vida ou fazendo um gesto extraordinário, ou estabelecendo um milagre, um protocolo qualquer externo àquilo que vivemos.
E Jesus diz: não, é no teu corpo, é no que és, é no fundo do teu ser que tens de exprimir a verdade desta relação. “Destruí este Templo e em três dias Eu o reconstruirei.” Para que serve a Quaresma? Para que serve este tempo que é também um tempo de prova, um tempo exigente, um tempo de ter propósitos. Um tempo em que pelo jejum, pelo encontro fraterno com os irmãos, pela oração nos somos chamados a ir além do habitual, a ir além daquilo que já fazemos, a crescer, a sairmos de nós, a irmos ao encontro de Deus e dos irmãos. Para que serve este tempo? Este tempo serve para reconstruir a vida. E, de facto, irmãs e irmãos, nós precisamos reconstruir os laços da nossa vida, dar força àquilo que vivemos, emprestar aí, a esta vida deslaçada, a esta vida tantas vezes medíocre, a esta vida que fica aquém daquilo que ela pode ser, a esta vida que não nos satisfaz, a esta vida que não reflete o melhor de nós mesmos, aquilo que Deus já criou em nós e que não aparece verdadeiramente expresso nos nossos gestos, nas nossas palavras, nas reações, nos projetos que nos mobilizam. O tempo da Quaresma é um tempo de revisão, é um tempo de formação, é um tempo para nos vermos ao espelho e dizer: não, a vida não pode ser o rame-rame, a vida não pode ser o deixa andar, a vida não pode ser esta coisa automática em que eu rotinizo o meu coração, em que eu me esgoto de forma sonolenta. A vida tem de ser outra coisa.
Esse rasgão, essa abertura, essa brecha, essa possibilidade nova é que é em nós a Páscoa. Jesus faz-nos tomar a sério a nossa vida, faz-nos tomar a sério aquilo que somos. Por isso, nós temos de olhar para este instante, para este momento no seu dramatismo. Porque, no instante, no presente se joga o definitivo. Neste momento eu posso decidir o bem absoluto ou posso decidir perder a vida, posso decidir não escolher o amor.
Por isso, na primeira leitura do livro do Êxodo, Deus é tão perentório a dizer assim: é agora, é no aqui e no agora que se joga a salvação ou a perdição. E nós, cristãos, herdámos essa conceção da vida. Para nós, este momento que estamos a viver, o nosso corpo, não é uma ilusão. Este momento não é apenas um intervalo, este momento é o palco onde a nossa vida se decide nas pequenas coisas. Mas onde o bem, onde o futuro de Deus já se pode tocar, já se pode encontrar. O presente é uma fábrica de transformação de vida, é a nossa manjedoura. A quaresma para os cristãos é um lugar de nascimento e renascimento.
“Destruí este templo e em três dias Eu o reconstruirei.” O Senhor está empenhado em reconstruir a nossa vida. Aceitemos a misericórdia de Deus, o desafio que Deus nos lança e façamos desta Quaresma um tempo em que damos horizonte à nossa própria vida, em que sentimos que estamos a caminhar. Já vamos no terceiro domingo. Até pode acontecer que até aqui nada tenha acontecido e que os nossos propósitos de Quarta-feira de Cinzas (onde é que eles já estão?) já os abandonámos, não somos capazes, não conseguimos, fomos irrealistas, o que julgávamos que íamos fazer não fizemos, por pequenino que fosse. Aconteceu isto, aconteceu aquilo e pronto, os melhores propósitos já se dissiparam. Vamos recomeçar.
No terceiro domingo vamos relançar o nosso caminho quaresmal e acreditar que os pequenos gestos ascéticos que nós fazemos não são em vão. Não escutemos as palavras de Deus em vão e não esgotemos esta oportunidade em vão. Mas procuremos colhê-la como uma hipótese para a nossa vida. Por tonto que nos pareça dizer: eu não vou comer chocolates na quaresma ou eu não vou beber vinho na Quaresma, eu não vou tomar tantos cafés. Parece uma coisa tola, tonta. Quer dizer, não é de pessoas adultas. Mas as pequenas privações num caminho ascético fazem reflorescer a vida, temos de acreditar na proeza das mediações. Por pequeno que seja sejamos fiéis a elas.
Há uma história de um noviço em que o mestre de noviços lhe diz: “Olha, tu todos os dias vais regar uma planta que está seca.” Ele vê a planta seca mas o mestre mando-lhe regar todos os dias. Muitas vezes ele sente a vontade de desanimar, de atirar o balde, colocar a água noutro sítio. Quer dizer, regar a planta seca de que é que vale isso? Mas na história há um momento em que ele vira as costas e que a planta refloresce. É como a nossa vida. Muitas vezes parece que já não vale a pena, parece que já não há remédio, já não há cura para este caminho torto que eu vivo ou esta incompletude. Já sou assim, já tenho de me adaptar aos meus defeitos, já não me consigo corrigir, já não me vou transformar. E, quando volto costas, alguma coisa se consegui, alguma coisa se fez.
Por isso, este caminho quaresmal que seja um caminho de confiança. São pequenos passos, são pequenos gestos, são pequenos propósitos mas recomecemos. Se for o caso, neste terceiro domingo, senão continuemos. Mas façamos verdadeiramente este caminho de exercícios, de manobras espirituais, de transformação, de desapego para podermos chegar à Páscoa e perceber que Ele é sabedoria para nós.
Aquilo que S. Paulo nos diz na Carta aos Coríntios é um desafio muito grande. Eu tenho de transformar o Crucificado num mestre para mim. Aquele que está pendurado na cruz é o meu mestre. Quer dizer, como é que Ele me ensina a viver, como é que Ele me traz a sabedoria, me ilumina o caminho da minha vida?
Rezemos uns pelos outros, irmãos. Ajudemo-nos neste caminho, confirmemo-nos neste caminho e que na oração ao longo da semana tenhamos presente todos os irmãos com quem celebramos ao domingo a nossa fé.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III da Quaresma
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2018/03/04 - Oração a pedir o bom humor
Oração escrita por São Tomás More e rezada diariamente pelo Papa Francisco, oferecida à comunidade da Capela do Rato pelo P. José Tolentino Mendonça, como gesto de agradecimento pela oração da comunidade durante o retiro ao Papa Francisco e à Cúria Romana.
Oração a pedir o bom humor
Dai-me, Senhor, uma boa digestão,
mas também qualquer coisa para digerir.
Concede-me a saúde do corpo e o necessário
bom humor para mantê-la.
Dai-me, Senhor, uma alma simples,
que saiba aproveitar tudo o que é bom
e não se assuste demasiado perante o mal,
mas encontre maneira de recolocar
as coisas no lugar devido.
Dai-me uma alma que não fique refém do tédio
nem de resmungos, impaciências ou lamentações,
e não permitais que me atormente
para lá do razoável
com essa coisa turbulenta chamada “eu”.
Dai-me, Senhor, um sentido de humor apurado
e a capacidade de receber o que aí vem a sorrir
vivendo o que me cabe com alegria
e partilhando-a sem custos acrescidos
com os outros. Ámen.
Oração escrita por São Tomás More
e rezada diariamente pelo Papa Francisco
Fevereiro
2018/02/26 - Curso “Quando a Filosofia e a Literatura se cruzam” - Maria Luisa Ribeiro Ferreira
2018/02/25 - A fé que nos costura (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
A religião pode ser muita coisa, e muita coisa diferente, e muita coisa em contraste. A religião não começou com a Bíblia, a religião é própria do ser humano, começou com o primeiro Homem que habitou a terra, com este desejo, este não sei quê, esta vontade de uma relação não apenas com o visível mas com este vestígio de infinito que cada um de nós trás dentro de si. Isto começou cedo e de formas muito diferentes.
Nós colhemos um bocadinho da cultura clássica, um bocadinho do mundo egípcio, um bocadinho do mundo mesopotâmico. Todos aqueles grandes impérios e civilizações que rodeavam o pequenino Israel, todos aqueles povos eram profundamente religiosos. Dos Romanos dizia-se que eram os mais religiosos dos Homens. De maneira que a religião é uma experiência humana, antropológica muito difundida. E, de facto, pode ser muita coisa, e foi muita coisa ao longo do tempo. Quando nós olhamos para os livros de antropologia e tentamos perceber um bocadinho o que eram as religiões arcaicas, nós percebemos que o modelo dominante, é o modelo da rivalidade de deus com o Homem. Pensem, por exemplo, no mito de Prometeu. Prometeu que vai roubar o fogo aos deuses e que depois é castigado por isso. Os mitos gregos implicam desejo de autonomia do Homem e ao mesmo tempo o castigo que o divino impõe ao humano. É um esquema de rivalidade e de satisfação. Os deuses têm de estar satisfeitos. Por isso, a religião é também em grande medida uma religião de sacrifício. O modelo sacrificial é o modelo que acompanha religiões em geografias diferentes. É preciso imolar ao deus, imolar a própria humanidade, oferecer os sacrifícios, os holocaustos porque o deus tem de estar satisfeito e não sentir o Homem como uma ameaça.
O que é que é típico da religião bíblica, da revelação judaico-cristã? É o esvaziamento do esquema sacrificial. Porque Deus, mais do que os sacrifícios, está interessado em criar com o ser humano uma relação de amizade e de amor, uma relação de confiança, uma verdadeira aliança. Deus não quer a nossa pele, Deus não quer o nosso sofrimento, Deus não quer torturar-nos. Nós não somos escravos de Deus, nós somos filhos e Ele quer-nos para Si numa relação de amor, numa relação de amizade, numa verdadeira confiança. E temos esse texto paradigmático, um texto também fundamental, muito comentado ao longo dos séculos, que lemos nesta passagem do livro do Génesis que conta a subida de Abraão, pai de todos os crentes, ao monte y para sacrificar o filho Isaac. Deus diz: “Abraão, sacrifica-me o teu filho.” E ele aceita fazer esse caminho. É uma subida que nós podemos imaginar atordoada, noturna. Abraão sobe despedaçado, Isaac não percebe o que é que está a acontecer, mas sobem assim ao monte Moriá. E quando estão no alto do monte e Abraão está com a faca para cortar o pescoço de Isaac, o Anjo do Senhor pega-lhe na mão e diz: “Não é isso que eu quero.” Agora há uma coisa mais importante que o sacrifício e que esvazia a própria dinâmica sacrificial que é a aliança, que é a confiança. A fé não vai ser mais tu sacrificares ao Deus, mas vai ser tu fazeres um caminho na confiança com Deus e uma confiança que é paradoxal.
Porque é que Deus coloca Abraão naquela situação? É para que ele experimente que a confiança, a nossa confiança em Deus, é muitas vezes uma confiança no limite, uma confiança para lá daquilo que são as nossas expetativas, a nossa razão. É uma confiança que nos contradiz na nossa própria esperança. Esperar contra toda a esperança, a fé é isso. Uma relação de confiança absoluta, que é uma coisa que se calhar nem sabemos bem o que é, ficamos a tatear o que é mas é poder experimentar que Deus está mesmo no paradoxo – foi aquilo que Abraão experimentou.
Por exemplo, Madre Teresa de Calcutá dizia: “Eu creio em Deus não por aquilo que Ele me dá, mas por aquilo que Ele me tira.” Só uma grande crente pode dizer isto! Reparem: nós não dizemos isto sem as nossas entranhas se mexerem. Nós acreditarmos em Deus por aquilo que Ele nos dá é bom, é óbvio, é natural. Mas acreditarmos percebendo que mesmo o silêncio de Deus, mesmo a interrogação de Deus, mesmo este caminho que muitas vezes nós fazemos sentindo que ninguém nos acompanha, que Deus não nos vale, que Deus não nos ouve, mesmo fazendo este caminho na confiança e sentindo que essa é uma forma de aliança, que essa é uma forma de comunhão, não é fácil.
De maneira que o que é que Abraão representa para nós? Representa a fé esvaziada de sacrifício, que já não é o sacrifício mas que é uma relação de amizade, uma relação de confiança onde eu vou até ao paroxismo da própria confiança: “Eu vou para lá de tudo, eu sei que eu não vejo, eu não sinto, eu não compreendo, eu não entendo como é que isto vai ser mas eu sei que Tu estás aí.” E é, no fundo, esta a fé de Abraão e é uma fé que nos costura. O fundamento da nossa fé é a fé abraâmica.
É interessante o texto que nós lemos da Carta aos Romanos, uma pequenina passagem do capítulo VIII que usa uma linguagem sacrificial e que muitas vezes nos confunde, nos baralha. Quer dizer, Deus não poupou o seu próprio Filho mas entregou-O à morte por nós. Nós ouvimos isto e caímos de lado. Mas como é que Deus pode ser assim, pode entregar a coisa mais preciosa que Ele tem, pode não poupá-Lo, quando nós, humanos, fazemos tudo para poupar os nossos filhos e Deus não poupa o seu próprio Filho? Como é que isto é possível?
É interessante perceber como nos Evangelhos (já o antigo Testamento faz isso, mas no Novo Testamento isso é muito claro) se usa uma linguagem ainda sacrificial, mas para esvaziar, para subverter radicalmente a teoria do sacrifício. Porque, o que é que é o sacrifício? As nossas sociedades, mesmo as nossas sociedades contemporâneas, que muitas vezes até se dizem sociedades pós-religiosas, sociedades secularizadas, são sociedades onde há uma lógica vitimária, há uma lógica de sacrifício. Há uma violência latente nas nossas sociedades que se cumpre ritualmente assim: para tudo encontra-se um bode-expiatório que carrega com as culpas de toda a gente, ele é imolado diante de todos – agora é imolado na praça pública – e nós respiramos de alívio porque encontramos uma vítima que tinha os pecados de toda a gente. As pessoas não assumem, não contamos mas ele carrega as culpas de toda a gente como se ele fosse o único culpado e ele torna-se a vítima sacrificada. A sociedade respira de alívio porque se libertou de uma fonte de mal, de uma coisa muito perniciosa. Agora podemos voltar à vida normal.
Este movimento de rivalidade e morte, que se traduz sempre no sacrifício do outro, é alguma coisa que as nossas sociedades vivem no coletivo e que nós vivemos individualmente. Porque também nós temos esta rivalidade mimética, esta rivalidade uns com os outros. Achando que o outro é que é o nosso problema, que o outro é que nos dá cabo da paciência, que se o outro não existisse a nossa vida seria muito melhor. Então, de uma maneira ou de outra, não chegamos a vias de facto, mas simbolicamente nós fazemos um ritual de sacrifício do outro. Afastamos o outro, cancelamos o outro, eliminando-o da nossa vida, e respiramos fundo porque o problema era o outro, não era o caminho que nós não fizemos, o percurso não cumprido em nós. O problema era o outro.
O que é que temos em Jesus? Jesus é o contrário da lógica vitimária. Porquê? Porque Ele faz da Sua vida dom, Ele diz: não vou ficar a rivalizar, eu ofereço-Me, eu Sou dom. E o que é que os Evangelhos dizem? Ao contrário daquilo que as sociedades dizem às cegas: aquele que é o bode-expiatório é o culpado, a vítima é sempre culpada. No Cristianismo nós dizemos: a vítima é inocente. Ele foi morto, Ele foi pendurado na cruz mas Ele é inocente, Ele é inocente. Então, nós colocamo-nos ao lado da vítima. E, em termos de civilização, em termos de cultura, em termos de humanidade, em termos de sociedade, em termos daquilo em que nós acreditamos é um salto total. Porque, um cristão tem de estar ao lado da vítima, um cristão tem de esvaziar as lógicas sacrificiais de todo o tipo, religiosas, políticas, económicas, humanas. Tem de esvaziar essas lógicas sacrificiais que estão metidas dentro de nós. Porque há uma violência que não é do mundo, é nossa, que nós carregamos dentro e precisamos de nós purificar dessa violência. E como é que nos purificamos dessa violência? É percebendo que a vítima é inocente e que o caminho de redenção não é o sacrifício mas é a dádiva, é o amor, é a oferta de si, é esta radical abertura, é este abraço que fica para sempre tatuado na cruz, é isto que nos salva.
Nós hoje, neste segundo domingo da Quaresma, lemos o texto da Transfiguração. É um texto muito belo, uma experiência espiritual forte que os Apóstolos tiveram no meio das suas dúvidas. Mas, eu só sublinho a conclusão dessa experiência espiritual da transfiguração. O texto de Marcos diz assim: ”De repente, olhando em redor, não viram ninguém a não ser Jesus.”
Queridos irmãos, o que é este caminho quaresmal que nós estamos a fazer? É isto, é desimpedir a nossa visão. Porque, na nossa visão, Jesus está lá dentro mas está tanta tralha. Jesus está aqui mas nós vemos através de tantos ramos, de tanta deformação, de tanta conveniência. Não, o olhar desimpedido: “Não viram mais ninguém a não ser Jesus com eles.” A experiência quaresmal, a experiência pascal, queridos irmãs e irmãos, é isto: cada um de nós sentir na vida concreta Jesus consigo. Mas olhando para Ele e entendendo-O. Entendendo o que significa Aquele que desarmou a lógica sacrificial, que Se oferece a Ele próprio como vítima, que está inocente mas faz a oferta de Si. Ele connosco a inspirar-nos, a dizer-nos qual é o caminho, isto é que é o itinerário quaresmal.
Vamos rezar ao Senhor, eu acho que há muito trabalho que precisamos fazer. Cada um de nós. Porque, um Cristianismo adulto pede de nós um conhecimento de Jesus percebendo o que é que está ali em causa. Porque a Cruz não é uma devoção. A devoção é bonita, mas a devoção tem de estar baseada num fundamento racional. E o fundamento racional é compreendermos o que é que este gesto significa de transformação, de mudança, de inversão do modelo, de paradigma e o novo modelo que a cruz representa.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo II da Quaresma
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2018/02/22 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2018/02/19 - Curso “Quando a Filosofia e a Literatura se cruzam” - Viriato Soromenho Marques
2018/02/15 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2018/02/08 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2018/02/05 - Curso “Quando a Filosofia e a Literatura se cruzam” - Teresa Seruya
Janeiro
2018/01/29 - Curso “Quando a Filosofia e a Literatura se cruzam” - Filipa Afonso
2018/01/28 - Aventura de liberdade (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
Nesta liturgia do quarto domingo temos um conjunto de leituras que nos fornecem entradas no mistério cristão, mas também na construção da nossa própria identidade. Nós, como discípulas e discípulos do Senhor, temos uma forma de existência que se vai construindo no tempo e que se vai alimentando com a Palavra. Por isso, nós somos uma comunidade de leitura, nós precisamos de fazer este exercício de estar de pé ou sentados a escutar uma Palavra e depois permitir que essa Palavra ressoe dentro de nós. Porque é a relação vital, umbilical, com esta Palavra que também vai construindo a pessoa que cada um de nós é chamada a viver à medida de Jesus Cristo, à forma interior do próprio Jesus.
Sabemos que isso é um caminho, é um caminho de descoberta da própria proposta cristã e é um caminho de descoberta também de nós mesmos, daquilo que nós somos nesta relação com Cristo. Que não é uma relação estática, pré-determinada, pré-feita, mas é uma relação que se vai construindo. É uma vocação. É alguma coisa que se plasma, que se constrói, que se urde no próprio tempo ao longo da nossa vida. Há que colher três imagens destas três leituras, porque nós somos também muito construídos interiormente pelas imagens e as imagens trazem uma sugestão que não é apenas racional, mas também emocional, desce também às profundezas da nossa própria consciência.
Na primeira leitura do livro do Êxodo há uma imagem inesperada: Deus está a falar com Moisés, e Moisés vem fazer o relatório dos desejos de Deus. E um dos desejos é que Deus não se manifesta diretamente porque eles não aguentam. Não aguentam que Deus Se manifeste através de sismos, de labaredas, de vulcões, que mexa com a ordem cósmica. E pedem a Deus: Senhor, não Te queremos ver diretamente. E há a coisa espantosa, Deus diz a Moisés: “Eles têm razão.” Deus dá-lhes razão. É inesperado. O que é que Deus quer dizer com isto, que nós temos razão?
A revelação de Deus tem de se adequar à pessoa que nós somos, não se pode revelar de uma maneira que nós não consigamos suportar essa forma, ou que seja uma gramática ininteligível para nós. Não, a revelação de Deus, por vontade do próprio Deus, mas também por declaração das nossas limitações e da nossa singularidade, a revelação de Deus adequa-se. De maneira que Deus não fala uma língua estranha, uma língua que nós não sabemos, Deus não vai bater à porta onde nós não estamos e não passa no caminho que nós não frequentamos, não, Deus adequa-se, Deus vem ao nosso encontro. Deus quer falar uma linguagem que nós podemos acolher. Isso é muito importante na história que nós, mulheres e homens, vamos construindo na vida. Onde é que nós encontramos Deus? Às vezes pensamos: Deus é um mistério tão grande, Deus ultrapassa-me. Por um lado é verdade, mas por outro, Deus faz-se acessível, Deus torna-Se compreensível, Deus deixa-Se achar, deixa-se encontrar.
No livro de Isaías, que depois S. Paulo há de recuperar, há esta frase espantosa: “Deus deixa-Se encontrar até por àqueles que não O procuram”, quanto mais por aqueles que O desejam, quanto mais por aqueles que têm sede, têm fome do Seu rosto, da Sua revelação. Deus deixa-se encontrar. Por isso, tenhamos confiança, tenhamos confiança. Às vezes no fundo de nós sentimo-nos órfãos, sentimos que Deus está distante, sentimos a necessidade de uma palavra que não vem, de uma luz que não vemos. Tenhamos confiança. Deus manifesta-se de uma forma que nós podemos tocar. E, se a sua revelação parece demorada, aprendamos também a abraçar as demoras de Deus, sabendo que Deus é fiel à pessoa que nós somos. Deus é fiel. Deus manifesta-Se na nossa vida e manifesta-se de um modo que não nos emudece de medo, que não nos apavora de susto, mas manifesta-se de um modo que nós possamos colhê-Lo na Sua força, podemos dialogar com Ele.
Por isso, Deus instituiu os profetas, para falarem em Seu nome ao Povo de Deus e serem presenças de Deus, serem catequistas, transmissores da sua Palavra, da sua exortação. Isto é, Deus tem muitos meios, Deus chega à nossa vida através de muitas mediações. Por isso, a primeira palavra é uma palavra de confiança.
Depois temos esta leitura da Primeira Carta aos Coríntios, do capítulo VII, que parece um bocado estranha, aqui no nosso contexto. Quer dizer, a maior parte de nós somos casados e de repente é um elogio das virgens, das pessoas que ficam solteiras porque diz: esses podem preocupar-se apenas com o Senhor, todos os outros andam divididos. De maneira que parece uma leitura estranha para ser lida numa comunidade como a nossa, parece uma leitura que só poderia ser lida num mosteiro, num convento e não numa igreja aberta à vida e à existência como é a nossa.
O que é este capítulo VII da Primeira Carta aos Coríntios? Nós temos de ter em conta o contexto para poder entender o texto de Paulo. Que contexto é este? No mundo antigo não há espaço para o sujeito individual, um homem que nasce já tem o seu destino cumprido. E tem o seu destino cumprido porquê? Porque o Homem não se pertence a ele mesmo. A sua raça, a etnia em que nasce marca definitivamente o percurso da sua vida. E depois é o Estado, ou a Cidade-Estado, ou o Reino. A pessoa é propriedade do Estado, ou é propriedade de uma família e não há espaço para o indivíduo. O que para nós hoje é uma coisa absolutamente sagrada, consignada na Carta dos Direitos Humanos, é uma coisa muito nova e para a qual o Cristianismo deu um contributo absolutamente decisivo. Porque este texto, que nos parece um bocado alienado e patético de S. Paulo, no fundo, é um grande manifesto sobre a liberdade humana. O que Paulo está aqui a fazer é a defender a liberdade individual. O que Paulo diz é assim: não é obrigatório as pessoas casarem-se, o Estado não é dono do meu corpo, a família não manda em mim, eu posso ser livre para construir um destino alternativo, um destino diferente. O que Paulo está a fazer é a fazer o elogio, isto é, está a rasgar no mundo do seu tempo a possibilidade para a liberdade individual. Que é dizer: nós já não estamos sujeitos à lei do coletivo, nós não somos propriedade de uma raça ou de um Estado mas nós vivemos um chamamento que é individual. Então, cada pessoa tem de ter a possibilidade de viver o seu chamamento, de viver a sua vocação.
Então, Paulo não está a desclassificar as mulheres casadas que andam preocupadas com os maridos e não com Deus, ou os homens casados que querem agradar às mulheres e não a Deus, mas Paulo está aqui a transformar a sociedade do seu tempo, abrindo espaço para a vocação individual.
No fundo, este é um contributo civilizacional do Cristianismo. Hoje, muitas vezes, pensa-se que o Cristianismo coarta a liberdade individual, que o Cristianismo tem um discurso que impede os indivíduos de viverem as suas opções. Ora, isso é uma ignorância histórica porque na História do mundo, na História da nossa Civilização foi precisamente o Cristianismo que potenciou a emergência do indivíduo. S. Paulo – às vezes encontramo-lo com tão má imprensa – é de certa forma o fundador do sujeito. Um pensador a quem devemos textos fundamentais acerca do corpo, e daquilo que é a corporeidade fazendo o elogio daquilo que é próprio de cada um. Por isso, este texto é um manifesto da liberdade cristã. Reparem: S. Paulo esteve preso várias vezes por liberdade de pensamento. O Cristianismo começou por ser um delito, começou por ser crime de pensamento. Porque apareciam uns grupos, umas igrejas, umas associações a pensar completamente diferente do que a sociedade e a desmantelar a organização social daquele tempo. O Cristianismo está sempre associado à aventura de liberdade. E nós, mulheres e homens cristãos, temos de dar o testemunho de que o Cristianismo nos liberta, nos torna livres, potencia a nossa capacidade de ser. O Cristianismo abre espaço, abre espaço para a própria pessoa. Coloca no centro a pessoa e não o Estado e não o clã e não a raça. Não é por eu ter nascido judeu ou não-judeu que estou mais próximo ou mais longe de Deus, porque isso já não depende de uma eleição étnica, depende da identidade que eu vou construindo. Eu posso construir essa identidade seja eu quem for. Isto é uma revolução. É uma coisa completamente nova e que abre um espaço inacreditável para o mundo.
Por isso é que é muito importante o contexto. Porque assim percebemos que quando Paulo está a elogiar esta mulher que não se casa, no fundo, está a dizer: cada pessoa tem de ter a possibilidade de viver a sua vocação seja ela qual for. É um exercício de liberdade que Cristo nos dá e que deve continuar hoje a animar-nos. A Igreja tem de ser também uma escola de liberdade, que nos ensine liberdade, o que é o verdadeiro espírito de liberdade. Como diz Paulo na Carta aos Gálatas: “Cristo libertou-nos para sermos verdadeiramente livres.” Verdadeiramente livres.
Por isso, nós cristãos, temos de ter liberdade para pensar o mundo. Temos de ter uma criatividade, temos de ser uma vanguarda profética no mundo. Não somos apenas herdeiros de uma forma, de uma organização, de um modo de ser. Não, nós somos herdeiros de um Espírito, de um Espírito. Que muitas vezes nos faz perguntar: porque não? Porque não ir por ali? Somos herdeiros desse Espírito que nos faz olhar para o mundo com os olhos de Deus. Sem as grades, sem as margens, sem as classes, sem as estruturas que muitas vezes são caixas para arrumar e para dividir e para descartar partes da humanidade. Por isso, este manifesto da liberdade que Paulo nos dá, neste capítulo VII da Carta aos Coríntios, tem de continuar a animar as nossas vidas.
Depois temos o Evangelho, o maravilhoso Evangelho de S. Marcos. São 16 capítulos numa linguagem muito simples, mas parece que nós estamos a ler um romancista russo, parece que estamos dentro de um romance de Dostoiévski. E assim, nesta leitura que nós ouvíamos hoje, Jesus entra na sinagoga e há um endemoniado, há gritos, há um homem que se arrasta violentamente, há as entranhas que explodem, há os demónios que falam. Parece que nós estamos a viver um romance gótico e o Cristianismo também é isso. Porque é assim: o que é que é este encontro com Jesus? Até onde é que Ele vai? O que é que Jesus toca em mim?
O Evangelho de Marcos mostra-nos desde o princípio que Jesus vem tocar as profundezas do meu ser. Jesus não toca só a minha pele, Jesus não toca só o exterior ou não toca só o mental ou não toca só o religioso. Jesus toca a totalidade da pessoa humana no seu mistério, no seu enigma, na sua luz e na sua treva, na sua profundidade insondável. Jesus toca para resgatar a pessoa completamente, a pessoa na sua totalidade. Por isso, a salvação não é um exercício de manicure, um exercício de plástica, não é um melhoramento. É um encontro que resgata a pessoa na sua totalidade, na sua profundeza.
Deixemo-nos tocar por Jesus, deixemo-nos tocar. Se calhar há zonas de nós que nós nunca permitimos que Deus entrasse, que Deus descesse até elas. Deixemo-nos tocar na profundidade do nosso ser, naquilo que é mais denso em nós, deixemo-nos tocar. Que a Boa Nova do Evangelho chegue às profundidades do meu ser, do meu consciente, do meu inconsciente, do meu desejo, do meu sonho e que nos deixemos de facto evangelizar. Que a luz de Cristo chegue a todos os pontos da nossa vida. Porque Ele vem para isso. Salvar é resgatar por inteiro a pessoa que nós somos. Nas alegrias, nos nossos medos, nas nossas coisas altas ou no nosso rés da terra. É salvar tudo aquilo que nós somos.
Deixemo-nos ao longo deste ano chamar, tocar. Sabendo que Jesus não se escandaliza connosco. Jesus abraça-nos por inteiro, Jesus ama-nos. Jesus vem-nos trazer a misericórdia de Deus. Por isso, a Palavra que o Evangelho nos lança, descrevendo-nos estes encontros com Jesus, é de uma profunda confiança.
Vamos pedir por nós, por esta semana que começa, por este ano comum que estamos a viver para que seja uma grande oportunidade para a vida de cada um de nós.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo IV do Tempo Comum
Clique para ouvir a homilia
2018/01/25 - Percurso de Preparação para o Crisma
Mais informações aqui.
2018/01/22 - Curso “Quando a Filosofia e a Literatura se cruzam” - Pedro Mesquita
Está disponível para ouvir a sessão de Pedro Mesquita sobre “Fédon – Platão”, no Curso “Quando a Filosofia e a Literatura se cruzam”.
Pode aceder aqui à apresentação da sessão.
Clique aqui para consultar a obra Fédon de Platão, na tradução de Jorge Paleikat.
Clique aqui para consultar a obra Diálogos de Platão (O Banquete, Fédon, Sofista e Político), da Coleção Os Pensadores.
Mais informações sobre o curso aqui.
2018/01/21 - Ele vem a cada instante (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
Nós estamos a começar o Tempo Comum, hoje estamos no terceiro domingo. O Tempo Comum é aquele eixo fundamental que atravessa o nosso ano litúrgico. Temos o Advento e o Natal que celebram o mistério da encarnação de Jesus, temos a Quaresma e a Páscoa que nos centram no mistério da nossa Salvação. Mas, o Tempo Comum acaba por ser o grande leito por onde a nossa vida flui, onde as águas do nosso coração correm.
A começar, com o sabor de começo, há esta reflexão que a Palavra de Deus nos propõe sobre como é que havemos de viver, como é que há de ser o tempo da nossa vida e que coisa é o tempo do ponto de vista cristão. Porque, o Cristianismo não é apenas uma proposta para ser vivida no espaço individual das nossas vidas, tem também uma visão global da própria história. Não serve apenas para pessoas, tomadas singularmente, mas é uma visão do destino humano, uma visão da própria criação, da própria realidade que o Cristianismo apresenta. Nesse sentido, é muito importante este passo da Primeira Carta aos Coríntios que hoje nós lemos e que pode soar até um pouco estranho aquilo que Paulo diz. Iremos a isso e faremos desse texto a base da nossa meditação.
Mas ainda queria, em jeito de introdução, dizer que no século XIX, no século XX revisitou-se muito a origem do Cristianismo e leu-se muito o Cristianismo na chave apocalíptica. Olhava-se para os primeiros cristãos, para Pedro, João, Paulo, para os seus escritos e aquilo que se entendia era isto: os primeiros cristãos viviam numa expectativa do regresso de Jesus, mas um regresso iminente. Paulo estaria convencido que ele próprio ainda assistiria à última manifestação de Jesus. E depois, como Jesus se foi demorando, como a escatologia não se realizava, os cristãos e o Cristianismo adotaram uma espécie de real politique, uma espécie de pragmatismo histórico a dizer assim: nós não podemos ser apocalípticos toda a vida porque já vimos que isto vai demorar um bocado, não sabemos nem o tempo nem a hora, então, vamo-nos adaptar pelo menos neste mundo vivendo na lembrança e na expectativa sempre do que virá, do que será, do que se revelará.
Hoje nós percebemos os limites desta interpretação do Cristianismo, considerando-o como uma forma apocalíptica de religião. Porque, de facto, o Cristianismo não é apocalíptico, o Cristianismo é messiânico, e nós somos um Povo messiânico. E o messianismo olha para o tempo de uma outra forma, de uma outra maneira. S. Paulo ajuda-nos muito a perceber qual é a essência do tempo cristão. Ele começa, nesta leitura que nós lemos do capítulo VII da Primeira Carta aos Coríntios, com uma imagem muito forte, ele diz: “Irmãos, o tempo foi abreviado.”
O que é que ele quer dizer com isso? A palavra em grego é usada para duas coisas. É usada, por exemplo, quando um animal está para dar um salto e encolhe-se todo para depois se esticar no ar. Isso é o verbo que Paulo usa para dizer que o tempo foi abreviado. Ou então, quando nós baixamos uma vela para depois a voltar a erguer. Então, o tempo é breve não quer dizer que temos um tempo breve, o tempo é o que é. Mas o tempo foi abreviado no sentido em que o tempo foi transformado. A experiência que nós agora fazemos do tempo não é a mesma. Do tempo cronológico, hoje ser domingo, amanhã ser segunda, hoje ser quase meio-dia, depois haver a tarde e a noite. A maneira de vivermos o tempo é transformada, é outra. E é transformada como? Como é que nós vemos isso? É transformada porque agora o tempo é messiânico, porque agora nós contamos com a experiência de Jesus. Jesus já veio, Jesus já Se revelou como o Messias, o Messias de Israel e o Messias universal. E isso dá-nos um entendimento outro da vida. Jesus não está atrasado. Na visão apocalíptica podemos dizer: os cristãos tinham expectativas que não se cumpriam e depois adaptaram-se pragmaticamente à realidade. Não, Jesus não está atrasado, no sentido em que nós podemos dizer que um comboio está atrasado. Não, Ele vem a cada instante, Ele vem a cada minuto.
O filosofo Walter Benjamin dizia: “Cada instante é a pequena porta por onde entra o Messias.“ Então, cada segundo da nossa vida, cada momento é o lugar onde Ele vem, onde Ele Se manifesta, onde Ele chega. É interessante que Paulo, e encontramos isso também nos Evangelhos sinópticos, fala de Jesus como oerkomenos, que é um particípio presente em grego do verbo vir, que quer dizer vir. Jesus é aquele que vem, é aquele que chega, não é aquele que chegou é aquele que está a chegar, que está chegando a cada instante da nossa vida. E isso, claro, tem consequências, tem de ter consequências na maneira como nós entendemos e vivemos a vida. E a consequência é uma espécie de revogação do modo habitual de viver. A forma da nossa existência que foi revogada. Por isso é que Paulo diz:” Os que têm esposas procedam como se não as tivessem, os que choram como se não chorassem, os que andam alegres como se não andassem, os que compram como se não possuíssem.” É uma revogação que acontece, mas uma revogação que diz: encontra na tua existência uma nova compreensão do teu lugar, encontra um novo uso para aquilo que és e vive a tua vida, vive o modo da tua existência oferecendo-lhe um outro significado.
É interessante que mesmo antes deste parágrafo que nós lemos do capítulo sétimo da primeira a Coríntios, S. Paulo está a dizer: “Se és escravo não desesperes com a tua situação mas percebe que como escravo também serás salvo, não desesperes porque também assim serás salvo.” Trata-se de percebermos que tudo aquilo que somos está como que marcado, assinalado por um significado outro. Se eu sou casado eu vivo o casamento com um significado outro, se sou celibatário vivo a minha condição com um significado outro, se as coisas me correm bem vivo o meu sucesso com um significado outro, se estou na tristeza, em momentos crucificantes vivo esses momentos de uma outra maneira dando um outro uso à minha vida. Quer dizer, não absolutizo as formas mas percebo que elas são apenas formas e que nelas eu tenho de encontrar as mediações de um uso novo. O Cristianismo não é o outro tempo, não é para nos preparar para o mundo que há de vir, mas é ajudar-nos a ver que Jesus é aquele que vem em cada instante, em cada momento. Por isso, nós não estamos à espera do fim dos tempos. Nós, no nosso presente histórico, já estamos a viver o tempo do fim.
Isto é, já ligamos cada instante, cada manifestação da nossa existência atual àquilo que é em plenitude o próprio Messias. Por isso, não estamos à espera daquele momento em que tudo vai acabar. Não, nós já vivemos o tempo do fim, já relacionamos cada parte da nossa existência a essa manifestação do próprio Senhor. Encontramos assim uma nova qualidade para o tempo da nossa vida e percebemos que não somos um povo desmobilizado. Pelo contrário, um povo messiânico é um povo mobilizado. Por isso, Jesus começa o seu anúncio, a sua vida pública também com uma palavra sobre o tempo. Jesus diz: “Cumpriu-se o tempo, o tempo encontrou a sua plenitude.” O tempo é o kairós, chronos é o kairós, o tempo é kairológico, o tempo é um momento oportuno. O tempo não é só tempo, não é este instante cego atrás de outro instante cego, este Chronos que devora os próprios filhos como é a experiência psicológica que tantas vezes nós fazemos do tempo, que não temos tempo e sentimo-nos devorados pela própria ideia de tempo. Não é isso, o tempo é um tempo kairológico, no sentido de que nos faz ver que este instante da nossa vida é o momento oportuno, é a oportunidade. Os cristãos olham para o tempo como uma oportunidade. Este momento das nossas vidas que estamos a viver é a oportunidade que Deus nos está a dar para vivermos plenamente o seu mistério, a sua relação com Ele, para acolhermos em plenitude, para o nosso coração ser a tal pequena porta por onde Ele entra.Faz-nos olhar para o tempo como um lugar onde o chamamento acontece. Por isso, queridos irmãs e irmãos, a nossa existência é vocacional. Nós somos mulheres e homens chamados, como Jesus passou à beira do lago e disse a Simão e André: “Vem comigo.” E disse a Tiago e a João: “Vem comigo.” Ele passa hoje na nossa vida e diz: “Vem comigo, vem comigo.” E é esse estar com Ele, esse fazer coincidir o nosso coração com o coração Dele que dá um outro sentido ao tempo da nossa vida.
Por isso, queridos irmãos, o Cristianismo não nos atira para lá da história. Não está interessado apenas nas razões últimas. O Cristianismo é muito interessado nas razões penúltimas, está muito interessado no aqui e no agora da nossa vida. Porque o tempo é um templo. O presente é já o futuro de Deus, é já o lugar teofânico, é já o lugar da irrupção desse grande encontro com o Senhor. Que esta compreensão do tempo nos mobilize, que este tempo comum não seja o anticlímax da nossa vida, dizendo: o tempo comum não é um tempo forte, é o mês de janeiro, é aquele mês para tentar recuperar forças e cabeças depois das loucuras todas de dezembro, depois fevereiro é para entrar um bocado na linha depois do Carnaval. Vivemos a vida um bocadinho como um anticlímax à espera dos momentos extraordinários. Não, a visão cristã do tempo não é essa. Cada momento do nosso presente é já a plenitude de Deus. Por isso, confiança, confiança, confiança. Por isso, vigilância naquilo que vivemos, por isso, compromisso com o Senhor que passa no aqui e no agora trémulo, inacabado, imperfeito, mas no agora Ele passa e dá um significado àquilo que vamos vivendo.
“O que tenho a dizer-vos, irmãos, é que o tempo abreviou-se.” O tempo abreviou-se, o tempo concentrou-se para poder dar o salto. Sintamos esta concentração, concentração do nosso coração, da nossa carne, dos nossos projetos, sintamos isso como desafio àquilo que somos, aos cristãos que somos. Porque Cristianismo vive no mundo com uma certa pretensão. Há coisas que nos fazem um bocadinho rir, não sabemos a origem das coisas. Por exemplo, a palavra “paróquia”. Nós dizemos: isso é paroquial. Olhamos para a paróquia como um velho uso que veio de séculos passados, que a gente não sabe o que é. Há dois verbos em grego para dizer os habitantes. Como hoje, há os cidadãos de pleno direito, que pagam os seus impostos ou nasceram aqui, ou de cidadania e, pronto, estão aqui, estáveis na cidade. E há aqueles que estão de passagem. Ou porque são turistas, têm um visto que vai expirar na data certa, ou porque são clandestinos. Esses são os de passagem e há os estáveis. A palavra “paróquia”, paroikos, quer dizer: “os de passagem”. Então, uma paróquia quer dizer a circunscrição daqueles que estão de passagem, daqueles que não são daqui, não estão aqui estavelmente. E de facto, nós somos esse povo. Esta pequena comunidade são pessoas que assumem a compreensão que estão de passagem, que não pertencemos aqui. Temos de viver qualificando o tempo de outra forma, à maneira de Jesus, seguindo-o à maneira destes que deixaram tudo e foram viver com Ele.
Sigamos Jesus. Ouçamos a Sua Palavra e façamos da Sua vida a oportunidade para a nossa própria vida.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III do Tempo Comum
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2018/01/15 - Curso “Quando a Filosofia e a Literatura se cruzam” - Fernanda Henriques
2018/01/11 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2018/01/01 - Um olhar de bênção (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
Este detalhe da narrativa de S. Lucas sobre a forma como Maria acompanhava Jesus é precioso para nós. Porque é uma espécie de programa espiritual.
“Maria conservava todas estas coisas no seu coração, meditando nelas.” É isto que nós somos chamados a fazer. Nós acompanhamos Maria em três etapas.
Nós acompanhamo-la primeiro no Advento, no mistério da sua Anunciação. Quando, na sua liberdade, Maria é colocada perante a vontade de Deus que lhe diz através do anjo que ela ia ser mãe, ia ser parceira desta grande aventura que é o mistério da Encarnação e Maria diz: “Sim”, “Fiat”, “faça-se.”
Depois, vemos Maria a colocar o Menino Jesus na Terra, na vida, colocando-o de forma simbólica sobre aquela manjedoura. É a segunda etapa.
E a terceira etapa da maternidade de Maria é esta em que Maria acompanha Jesus, a partir do seu coração. Conservando, guardando o que a Ele diz respeito e meditando, maturando, ruminando o mistério da vida de Jesus.
Maria é exemplo para nós porque, a aproximar-se o fim do ciclo do Natal, o que nós somos chamados é a permanecer. E a forma de permanecer é guardar no coração. Não vamos guardar o presépio apenas numa caixa, não vamos guardar os símbolos num saco à espera do ano novo. Vamos guardar no nosso coração aquilo que vivemos. Vamos ruminar, vamos meditar, vamos estender no tempo o sabor daquilo que, de uma forma tão intensa, nós meditamos no Mistério do Presépio.
E o que é que nós vimos acontecer? Vimos acontecer o Deus connosco, o Deus que toma a nossa carne, que toma a nossa humanidade. Essa é a forma mais extraordinária de bênção que Deus dá a cada um de nós. É colocar Cristo na nossa vida como companheiro daquilo que somos. No fundo mais fundo do nosso coração, de todos nós, mulheres e homens, crianças, adultos há o desejo de uma bênção. Cada um de nós precisa de uma bênção, como a terra seca precisa da água. Uma bênção é aquilo que a própria palavra quer dizer: dizer bem, dizer o bem que nos habita. Nós precisamos sintonizar a nossa vida com a luz de uma bênção que em cada momento nos recoloque na esperança, que em cada momento diga a beleza que nós somos. Mesmo no provisório, no vulnerável, mesmo no meio da imperfeição, que diga não o mal que é sempre óbvio, não o tosco que se vê logo, mas veja a beleza daquilo que nos habita. Nós precisamos desse olhar. Aquilo, por exemplo, que o escultor Miguel Ângelo dizia: “Quando eu olho para uma pedra, para um mármore, eu não vejo um mármore tosco, primitivo, em bruto. Quando eu olho vejo já a escultura, vejo já a obra-prima. E o que eu faço é libertar a forma daquele mármore bruto.”
Quando Deus nos olha não vê o nosso pecado, não vê a nossa miséria, não vê a nossa imperfeição, não vê que nós somos fracos, não é isso que Ele vê. O que Ele vê em nós a cada momento é a obra-prima, e este olhar é um olhar de bênção. Nós precisamos de ser olhados assim, de ser amados assim. Porque, só isso é que nos dá a força e a capacidade de não sucumbir sob o peso da nossa imperfeição e da imperfeição do mundo. Só isso nos dá a força de não nos apagarmos completamente no deserto da nossa própria sede. É este olhar de bênção que Deus nos dá. Dentro de nós há essa sede profunda. Mas não só dentro de nós, dentro de cada homem, dentro de cada mulher há essa sede profunda.
Às vezes nós olhamos para uma pessoa e julgamo-la rapidamente. Olhamos muitas vezes para uma criança: que mal comportada, que isto, que aquilo! E às vezes não pensamos que uma criança de quatro anos já sofreu mais que muitos adultos. Não pensamos nisso, na carga de sofrimento que há naquela pessoa. E às vezes vemos cenas ou vemos gestos que não compreendemos, sem pensar que por detrás daquilo existe uma dor. Nós só conseguimos perdoar quando conseguimos perceber que a dor que o outro provocou em nós é mais pequena que a dor que ele transporta, que o faz ferir os outros daquela maneira. A dor que ele nos provoca é mais pequena do que a dor que o habita. Quando percebemos isso nós somos capazes de perdoar.
Nós vivemos este 2018 num mundo em transformação, num mundo com tantas imperfeições, tantas coisas novas, num mundo que é uma espécie de vulcão de acontecimentos. E que atitude nós devemos ter? Nós, cristãos, face aos grandes acontecimentos, face aos pequenos, aos quotidianos, aos da nossa escala que atitude devemos ter? Nós devemos abençoar, nós devemos sintonizar com a fome de bênção e tentar saciá-la, nós devemos dizer o bem que há no outro. E isso passa por mantermos uma relação de esperança, de confiança, de hospitalidade com a própria vida. Porque recusar a vida, fechar-lhe as portas, condicionar apenas a vida ao que já vivemos, às nossas convicções e convenções é muito estreito.
Nós temos de viver na abertura, temos de ser bons condutores desta bênção de Deus que se fez homem, que não nos quer como escravos, mas nos quer como filhos e como herdeiros. Sintamo-nos como herdeiros, e como herdeiros com capacidade de condividir, de partilhar.
Hoje, neste Dia Mundial da Paz, o Santo Padre escreveu uma mensagem baseada nos emigrantes, refugiados e migrantes, homens e mulheres à procura da paz. E, nessa mensagem, o Santo Padre desafia-nos a olhar para os migrantes e para os refugiados não apenas como pessoas que precisam, como pessoas que estão carentes e vêm buscar o pão, vêm buscar o emprego, vêm buscar o nível de vida, vêm buscar isto, vêm buscar aquilo. Ele diz: “Olhemos antes de tudo para os outros como pessoas que vêm buscar de mãos cheias.” O Papa Francisco diz: “Os migrantes e os refugiados chegam a nós de mãos cheias, porque trazem tanta coisa para nos dar, trazem uma vontade incrível de sobreviver, trazem-nos uma coragem perante as dificuldades que nos falta a nós, trazem uma capacidade de se vencer a eles próprios, trazem um desejo muito grande de vida, vida plena. Querem reunir as suas famílias, têm um desejo profundo de paz no seu coração. Não querem maldição, querem bênção. Trazem as suas culturas”
Então nós temos de os olhar não como alguém que vem buscar o que temos mas alguém que vem nos dar o que nós não temos. Por isso, a hospitalidade é sempre uma troca. Quando eu recebo alguém em minha casa, quando eu acolho, quando eu partilho dos meus bens, eu não estou apenas a dar. Muitas vezes o que nós damos na hospitalidade é tão pouco perante a dimensão daquilo que recebemos. Por isso, o Santo Padre diz: “Para este ano eu deixo-vos quatro palavras que são como pedras miliares para o tempo que começa. E essas quatro palavras são: acolher, proteger, promover e integrar.”
Acolher, proteger, promover e integrar. Se nós formos capazes de traduzir estas palavras na nossa vida o nosso ano será um ano de bênção. Será um ano em que nós estamos sintonizados com as coisas fundamentais, em que a meditação do Presépio continua a acontecer na nossa vida.
Queridos irmãs e irmãos, estamos a começar. E Deus ajuda quem começa. Nós estamos a começar o ano, nós somos sempre novos, nós somos sempre inéditos. Não somos apenas a continuação, nós damos saltos, nós avançamos. Não podemos dizer: eu agora estou escravo disto. Não, não. Podes estar e podes não estar, podes dar saltos. A vida avança por saltos. Não conta o que nós fomos, conta o que nós somos, conta o que nós queremos ser. Não conta o peso do passado, conta a alegria do hoje, conta o chamamento do futuro. Por isso, sintamo-nos inéditos, sintamo-nos a começar um tempo novo. O ano que começa não é apenas o calendário, é a oportunidade da vida, é o “kairós”, é o momento da Salvação que pode acontecer. Por isso, cada um de nós invista no tempo a confiança, cada um de nós invista no tempo a bênção. Porque, se eu estou sedento de bênção, o outro também está sedento de bênção. Então, caminhemos para o Senhor de todas as bênçãos em cada dia.
Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus
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