Dezembro
2019/12/25 - Jantar de Natal na Capela do Rato organizado pelo Comunidade de Sant’Egídio
Com a participação e a ajuda de muitos – homens e mulheres, jovens e idosos – que decidiram viver o Natal como gostaríamos de viver todos os dias, não excluindo ninguém e não deixando ninguém do lado de fora da porta, tornámos este jantar de Natal verdadeiramente para todos, em especial para 25 das crianças e familiares da escola da paz do Bairro Portugal Novo e para 6 dos idosos que visitamos no lar das Irmãzinhas dos Pobres.
Este jantar foi verdadeiramente um milagre de Natal, pois pudemos pela primeira vez em Lisboa, receber os pobres na casa de Deus e partilhar à volta de uma só mesa este dia como uma grande e alegre família que se reúne em torno do anúncio do Natal.
Esperemos no próximo ano aumentar os lugares à volta desta mesa, para que todos os corações cresçam e a generosidade se espalhe, pois o Natal é uma festa que traz luz e que traz alegria, que se espalha e ilumina muitos lugares escuros da existência humana como também ilumina muitos corações escurecidos.
Como agradecimento ao Padre António Martins e à Comunidade do Rato, partilhamos algumas fotografas deste dia.
Ana Rita Gomes
Comunidade de Sant’Egídio Portugal
Calçada Bento da Rocha Cabral 1B,
1250-012 Lisboa
2019/12/22 - Domingo IV do Advento
2019/12/19 - Celebração penitencial de Advento
Nesta época acelerada, densa de apelos ao consumo, é oportuno questionarmos o sentido da nossa diferença cristã. Como traduzir na experiência cristã estilo de vida sóbrio, frugal, minimalista e solidário?
2019/12/15 - Concerto de Natal – Coro LNEC
2019/12/15 - Domingo III do Advento
2019/12/12 - Percurso de Preparação para os Sacramentos da Iniciação Cristã 2019/2020
2019/12/11 - Lançamento do livro «John Henry Newman», de Paolo Gulisano
O Cardeal Newman testemunhou, na Inglaterra do Século XIX, uma prodigiosa aventura intelectual e espiritual de diálogo ecuménico (entre a Igreja Católica e a Igreja Anglicana). Reclamava uma fé lúcida, inteligente, em diálogo com a cultura e a tradição patrística (o passado). Antecipou o Vaticano II com a sua compreensão da soberania da consciência. Foi um motivar da intervenção dos leigos na sociedade do seu tempo. A sua recente canonização, em 13 de outubro pelo Papa Francisco, é estimulo para se aprofundar o seu pensamento e a novidade do seu testemunho.
2019/12/09 - Falar de Vida e Fé
O ciclo inicia-se dia 4 de novembro, às 18.30h, com Lígia Silveira a falar com Pedro Vieira, humorista, editor do Canal Q e guionista do programa «O Último Apaga a Luz», da RTP3. É ainda responsável pela comunicação do Cinema S. Jorge e autor do romance «Maré Alta».
Dia 11 de novembro, Leonor Xavier fala com o escritor Rui Zink e dia 18 Alice Vieira conversa com Nelson Mateus, jornalista da SIC.
Dia 25 de novembro, António Marujo convida Estela Gameiro, mestre em direito do ambiente, que já foi voluntária num campo de refugiados.
A 2 de dezembro, Jorge Wemans conversa com o jornalista, cineasta e comentador televisivo Vicente Jorge Silva.
Por fim, no dia 9 de dezembro, a encerrar o ciclo, Leonor Xavier conversa com Maria Antónia Palla.
Os encontros decorrem todos à segunda-feira, sempre às 18.30h, na Capela do Rato (Calçada Bento da Rocha Cabral, 1 B).
2019/12/08 - Domingo II do Advento
2019/12/07 - Paragem de Advento 2019
No próximo dia 7 de dezembro, com começo pelas 10h, a Comunidade da Capela do Rato propõe um tempo de paragem (silêncio), de interiorização/escuta atenta da Palavra e de celebração festiva.
O encontro decorrerá no próprio espaço da Capela do Rato (Calçada Bento da Rocha Cabral, 1B, Lisboa) e terá o seguinte horário:
10h.00: Acolhimento
10h.30: Primeira meditação
11h.00: Tempo de silêncio orante
12h.00: Celebração da eucaristia
13h.00: Almoço partilhado
14h.30: Segunda meditação
16h.00: Tempo de adoração eucarística
16h.30: Vésperas solenes da Imaculada Conceição
17h.00 Encerramento
As inscrições poderão ser feitas, no próximo domingo, na própria Capela do Rato, ou enviadas para o seguinte email: capeladorato@gmail.com.
O almoço será partilhado com o que cada um(a) trouxer.
Clique para ouvir a meditação da manhã:
Clique para ouvir a meditação da tarde:
Clique para ouvir a homilia:
2019/12/02 - Falar de Vida e Fé
O ciclo inicia-se dia 4 de novembro, às 18.30h, com Lígia Silveira a falar com Pedro Vieira, humorista, editor do Canal Q e guionista do programa «O Último Apaga a Luz», da RTP3. É ainda responsável pela comunicação do Cinema S. Jorge e autor do romance «Maré Alta».
Dia 11 de novembro, Leonor Xavier fala com o escritor Rui Zink e dia 18 Alice Vieira conversa com Nelson Mateus, jornalista da SIC.
Dia 25 de novembro, António Marujo convida Estela Gameiro, mestre em direito do ambiente, que já foi voluntária num campo de refugiados.
A 2 de dezembro, Jorge Wemans conversa com o jornalista, cineasta e comentador televisivo Vicente Jorge Silva.
Por fim, no dia 9 de dezembro, a encerrar o ciclo, Leonor Xavier conversa com Maria Antónia Palla.
Os encontros decorrem todos à segunda-feira, sempre às 18.30h, na Capela do Rato (Calçada Bento da Rocha Cabral, 1 B).
2019/12/01 - Domingo I do Advento
2019/12/01 - Despertos, vigilantes e atentos (homilia)
Queridos Irmãos
O maior perigo em que podemos cair é a distração. O perigo de vivermos desatentos ao que acontece à nossa volta, ao que nos vai acontecendo. Vivemos como que desligados do nosso ser profundo, da razão dos próprios acontecimentos, mergulhados na banalidade e na superficialidade acelerada do nosso viver quotidiano. Somamos gestos repetidos, banais, necessários certamente. Vivemos entregues, sem discernimento, à lógica das exigências do quotidiano.
E assim corremos o risco de vivermos como que autómatos respondendo às solicitações imediatas (familiares, profissionais, pastorais até…), sempre produtivos e hiperativos, mas desligados da nossa interioridade. Vivendo nesta voragem, a nossa vida pode caminhar para o naufrágio. Podemos perder a ligação vital às razões profundas do acontecer e do ser das coisas e de nós mesmos. Podemos alienar o nosso futuro pela inconsciência e distração com que vivemos o nosso presente.
Começamos hoje o tempo denso do Advento. Este tempo litúrgico apela a nos concentrarmos no essencial, a acordarmos da sonolência em que podemos estar a cair, levados pela embriaguez do consumo e da publicidade exteriores. O Advento oferece-nos critérios de resistência, de motivação contra corrente, de alternativa à lógica dominante do mercado. O Advento quer fazer-nos despertar; apela-nos a estarmos vigilantes e acordados, bem atentos ao que nos acontece, ao sentir profundo de nós mesmos.
É também a nós que Paulo se dirige: «Chegou a hora de nos levantarmos do sono, porque a salvação está agora mais perto de nós do que quando abraçámos a fé». Veja cada um de nós o sono anestesiante em que vive; as decisões que adia, a causas a que passa indiferente, as pessoas concretas a que volta as costas. Acordemos, pois, da nossa banalidade e superficialidade quotidianas. «Chegou a hora de nos levantarmos do sono». Chegou a hora de não adiarmos mais as decisões vitais e decisivas do nosso futuro. Chegou a hora de nos decidirmos, de tomarmos uma reorientação profunda e radical.
Começa hoje (I Domingo do Advento) um novo ano litúrgico (o Ano B). Ao longo deste ano seremos guiados pelo evangelho de Mateus. O texto que hoje lemos é retirado do longo capítulo escatológico (Mt 24) em que Jesus anuncia a sua vinda futura como Senhor e juiz do universo («a vinda/parusia do Filho do Homem»), revelando a verdade da história e das consciências. A sua vinda constitui um acontecimento de crise, de separação entre o trigo e o joio, a verdade e a mentira, o novo e o velho que, no presente, coabitam dentro de nós, nas nossas relações e instituições. A expetativa da vinda em glória de Cristo dá orientação ao nosso viver quotidiano, marcado por crises, por imprevistos, por tensões e conflitos, que havemos de viver com discernimento, em estado de alerta.
Jesus recorda, para agitar as consciências dos seus ouvintes, os tempos antigos do dilúvio, esse cataclismo natural que pôs fim a um mundo de pecado e violência. A destruição do caos pelas águas apanhou de surpresa os contemporâneos, distraídos com a banalidade das preocupações do dia a dia. Inconscientes perante os sinais perturbadores do presente, não souberam prevenir nem antecipar o caos que se avizinhava: «comiam e bebiam, casavam e davam em casamento». O trágico desses comportamentos vitais e necessários era uma vida distraída e alienada: «não deram por nada, até que veio o dilúvio, que a todos levou».
Mas houve um homem que com a sua família antecipou a crise do dilúvio construindo uma barca salvadora para si, para os seus e para a criação. Temos aqui, pelas palavras de Jesus, uma lição de vida: a maior fatalidade das crises é apanhar-nos impreparados, distraídos, embriagados na superficialidade da vida. O risco é sermos levados, simplesmente, na enxurrada das águas. Esta é a ousadia a que nos convocam a fé e a esperança cristãs: esperar o inesperado, conhecer antecipadamente o desconhecido, preparar o surpreendente. Isto, à primeira vista, parece ilógico, mas em profundidade é o decisivo da sabedoria cristã. Somos chamados a viver em permanente estado de vigilância e de alerta, de antecipação preventiva do futuro. «Portanto, vigiai, porque não sabeis em que dia virá o vosso Senhor».
Nada sabemos da imprevisibilidade dos acontecimentos futuros. Não sabemos quando virá o Senhor, nem de que modos e em que circunstâncias passará a sua presença/manifestação em nossa vidas. O desconhecimento do futuro abre-nos à surpresa e à expetativa; mas compromete-nos também, e ao mesmo tempo, numa atenção ao concreto, num perceber o sentido da voz do vento, o rumo das águas, o grito de esperança que, silenciosamente, ressoa na revolta das populações em Hong Kong, em Santiago do Chile ou no sul do Iraque. É o novo que, confusamente, emerge; é o advento da humanidade que já começa, impercetível, enigmático e confuso. Cada crise, cada perturbação, cada conflito tem sempre uma marcada de novidade, trás sempre uma oportunidade de futuro. E se não estivermos atentos e despertos, a oportunidade dos acontecimentos passa-nos ao lado. «Por isso, estai vós também preparados, porque na hora em que menos pensais, virá o Filho do homem».
Preparamos a vinda definitiva do Senhor, atentos à sua vinda permanente nos acontecimentos da história e da nossa vida. Porque o Senhor é aquele que continuamente vem a nós, para nos atrair para Ele. Ele vem a nós por caminhos insólitos, sem hora marcada, fora de esquemas e programas. Vem a nós na surpresa do imprevisto: «Compreendei isto: se o dono da casa soubesse a que horas da noite viria o ladrão, estaria vigilante e não deixaria arrombar a sua casa». Estranha comparação a da vinda do Senhor com a vinda do ladrão. A relação está apenas no imprevisto da hora, que suscita em nós vigilância e atenção.
Num encontro, ontem, organizado pela Comunidade de Santo Egídio em Portugal, tivemos aqui na Capela do Rato o testemunho do jurista e comissário de polícia norte-americano George Kain na sua luta nos EUA pela abolição da pena de morte, e como a legitimação jurídica e estatal da mesma brota do desejo de vingança que habita no coração humano. E como a justiça às vítimas não se faz abatendo o agressor, porque no corredor da morte todos sofrem, silenciosamente. A luta pela dignidade da vida humana é uma causa de advento, porque aí se decide o futuro do humano, que é o desejo e a promessa de Cristo: «eu vim para que tenha vida e a tenha em abundância».
Na próxima terça feira, dia 3 de Dezembro, celebramos o dia internacional da pessoa com deficiência. A realidade humana da pessoa com deficiência continua a ser muito escondida e ignorada na nossa vida eclesial: a sua ausência das nossas comunidades significa ainda tantos medos, tantas resistências a vencer. Levamos tempo em acolher a sua diferença como dom de Deus a todos nós para crescermos, mais ricos em humanidade, uns com os outros, numa comunhão de fragilidades que faz a força da Igreja. Esse é o Advento que ainda nos faz, o caminho de futuro que vamos adiando. Vencidos pela ignorância do medo.
Um grupo de quatro mães de pessoas com deficiências publicaram nestes dias um manifesto. Todas quatros estiveram presentes, dando o seu testemunho, aqui na Capela do Rato, no passado mês de Março. Escrevem: «Neste dia, gostaríamos de contrariar o medo, chamar a atenção para a indiferença. Convidando cada um a mover-se pelo impulso humano de nos colocarmos nos “lugares uns dos outros. Nasceu assim um manifesto, não sobre as pessoas com deficiência, mas antes um manifesto da nossa deficiência, que não diminui, é universal e parte da nossa condição humana» (ver artigo aqui). Porque o imprevisto de uma deficiência pode acontecer a qualquer um de nós, sem hora marcada.
Nunca sabemos a que horas vem o ladrão. Nas palavras centrais do evangelho de hoje: «Vigiai, portanto»; «estai vós também preparados». Vigiemo-nos, discernindo os apelos e os impasses da nossa vida interior. Vigiemos uns aos outros, não para controlar mas para ativar um cuidado atencioso; para testemunharmos, em palavras e gestos, que a vida tem futuro. E o seu futuro decide-se hoje, no concreto das nossas escolhas.
Com alegria expectante, vivamos em Advento.
Pe. António Martins, I Domingo do Advento
Clique para ouvir a homilia
Novembro
2019/11/30 - Cidades pela Vida
2019/11/28 - Percurso de Preparação para os Sacramentos da Iniciação Cristã 2019/2020
2019/11/25 - Falar de Vida e Fé
O ciclo inicia-se dia 4 de novembro, às 18.30h, com Lígia Silveira a falar com Pedro Vieira, humorista, editor do Canal Q e guionista do programa «O Último Apaga a Luz», da RTP3. É ainda responsável pela comunicação do Cinema S. Jorge e autor do romance «Maré Alta».
Dia 11 de novembro, Leonor Xavier fala com o escritor Rui Zink e dia 18 Alice Vieira conversa com Nelson Mateus, jornalista da SIC.
Dia 25 de novembro, António Marujo convida Estela Gameiro, mestre em direito do ambiente, que já foi voluntária num campo de refugiados.
A 2 de dezembro, Jorge Wemans conversa com o jornalista, cineasta e comentador televisivo Vicente Jorge Silva.
Por fim, no dia 9 de dezembro, a encerrar o ciclo, Leonor Xavier conversa com Maria Antónia Palla.
Os encontros decorrem todos à segunda-feira, sempre às 18.30h, na Capela do Rato (Calçada Bento da Rocha Cabral, 1 B).
2019/11/11 - Falar de Vida e Fé
O ciclo inicia-se dia 4 de novembro, às 18.30h, com Lígia Silveira a falar com Pedro Vieira, humorista, editor do Canal Q e guionista do programa «O Último Apaga a Luz», da RTP3. É ainda responsável pela comunicação do Cinema S. Jorge e autor do romance «Maré Alta».
Dia 11 de novembro, Leonor Xavier fala com o escritor Rui Zink e dia 18 Alice Vieira conversa com Nelson Mateus, jornalista da SIC.
Dia 25 de novembro, António Marujo convida Estela Gameiro, mestre em direito do ambiente, que já foi voluntária num campo de refugiados.
A 2 de dezembro, Jorge Wemans conversa com o jornalista, cineasta e comentador televisivo Vicente Jorge Silva.
Por fim, no dia 9 de dezembro, a encerrar o ciclo, Leonor Xavier conversa com Maria Antónia Palla.
Os encontros decorrem todos à segunda-feira, sempre às 18.30h, na Capela do Rato (Calçada Bento da Rocha Cabral, 1 B).
2019/11/10 - A insustentável leveza da esperança (homilia)
Queridos Irmãos
Até onde chega a nossa esperança? O que esperamos, verdadeiramente, da vida? É pelo caminho da esperança que avançamos no futuro, de peito aberto, resistimos ao vazio da vida e ao seu caminhar para o nada. Uma esperança sem limites e um novo estilo de amar, até os próprios inimigos, são a marca subversiva da novidade cristã. Paradoxalmente, o Apóstolo Paulo diz de Abraão que ele esperou contra toda a esperança, contra toda a evidência que lhe assegurasse um futuro seguro; esperou o futuro no vazio das provas e seguranças.
A esperança é aquela dimensão da vida cristã que, em nossos tempos perturbados e de mudanças imprevisíveis, mais precisamos de ativar. Pode correr até o risco, na Igreja e em cada um de nós, de ser a dimensão da vida cristã mais frágil e mais exposta a debilidade. Diz-me a força da tua esperança, dir-te-ei a densidade da tua fé, poderíamos dizer.
Todas as nossas expectativas de futuro se confrontam com o inevitável da morte, a crise de toda a esperança. Não vale a penas fazermos projetos longos porque a vida é breve, sempre demasiado breve para os nossos sonhos e desejos. Todos temos um desejo de perenidade, de prolongamento da vida, de uma vida em plenitude. Gerar filhos, deixar descendência era e é, para a maioria, a forma de perpetuar a vida. Na continuidade biológica, os filhos prolongam-nos, de certo modo. Esse desejo de continuidade estava expresso numa permissão do livro do Levítico: uma mulher que ficasse viúva podia voltar a casar com o irmão do marido para lhe garantir descendência.
Ainda hoje é difícil falar de ressurreição. A maioria não acredita, e mesmo aqueles que acreditam, por vezes, hesitam em expressar a sua esperança. Foi no passado e continua a ser no presente um aspeto problemático da fé; e, todavia, é aí que se decide a novidade cristã: a de uma esperança que é mais forte do que a morte.
À dificuldade, de sempre, de conceber uma vida ressuscitada, plena, inteira, cumprida, há a resposta, descrente e profundamente materialista: tudo acaba na evidência aniquiladora do vazio da morte. Importa dizer que uma esperança para além da morte, a vencer a própria morte, durante largos séculos não existia no judaísmo, e quando existiu era coisa muito marginal, quase facultativa. Outra resposta, também perigosa, é a de conceber a vida eterna como prolongamento desta, mas em estado imortal. Esta ingenuidade ainda existe a dar origem a conceções muito fantasiosas e caricatas da ressurreição.
Nem negação nem ingénua fantasia de um prolongamento. Mas a proclamação de que a ressurreição será o triunfo da vida, da força da vida de Deus em nós, e só Deus pode ressuscitar. A ressurreição será, então, essa graça plena, definitiva, do amor de Deus que dá vida, cria e ressuscita, porque é amante da vida, e não pode permitir que os seus filhos e filhas muito amados sejam destruídos e esvaziados na morte. A ressurreição é como que o certificado de credibilidade e de autenticidade do próprio Deus. Um Deus que não seja capaz de ressuscitar, de restaurar a vida da/na morte, seria um Deus falido, não credível. A ressurreição será o triunfo de Deus em nós, o definitivo da graça que dá vida e vida em plenitude.
Percurso largo, este, para aterrarmos nos textos de hoje. Vem aquela história, caricata, para «entalar» Jesus, para fazer ver que a ressurreição é uma pura fantasia de ingénuos e incrédulos: Com qual marido, dos sete, fica a mulher, depois de todos terem morrido e ela também? Pobre mulher que corre de mão em mão qual objeto de consumo, à espera, em vão, de um prolongamento da vida num filho que nunca chegou…
Todos os sete se serviram dela; ela, pobre viúva, para viver precisava de mais um marido, deixando-se usar: era a inevitabilidade do seu destino. Para viver precisava de maridos que a retirassem do seu estado de viúva pobre, sem proteção. Há uma tentativa de manter a vida, de a prolongar nos filhos, que nunca aparecem. A continuidade biológica não existe, e o reino da morte, por fim, triunfa sobre tudo e sobre todos. Todos morrem. Aquela viúva é o símbolo do triunfo da morte sobre a esperança de uma continuidade biológica.
A resposta de Jesus, desmontando a «caricatura» apresentada pelos saduceus, não alinha com fantasias ingénuas. A vida de ressuscitados tem algo de absolutamente novo, não previsível, de desconhecido para nós. Os ressuscitados «são como os Anjos, e, porque nasceram da ressurreição, são filhos de Deus». Anjos, símbolo da transparência relacional, símbolo da comunicação direta, sem equívocos, símbolo da beleza luminosa da vida de Deus em nós. Símbolo da nossa vida cumprida em Deus, inteiramente por Deus. Anjos é um termo para assinalar a novidade absolutamente divina, e que ultrapassa os nossos conceitos e a nossa experiência, da ressurreição.
Dessa dimensão da vida futura, absolutamente divina e gratuita, nada sabemos de factual. A linguagem serve para assinalar e orientar a nossa esperança, não para expressar a evidência de uma realidade. Nascer da ressurreição é nascer absolutamente de Deus, o nosso pleno cumprimento de filhos e filhas muito amados. Nascer da ressurreição será o nosso nascimento eterno como filhos de Deus. Ressuscitados como nascidos definitivamente para a vida.
Pergunto a mim mesmo se uma esperança assim nos habita? Se não vivemos demasiado à maneira dos saduceus, como se o definitivo da vida não existisse, ou então não nos interessasse? A nossa esperança pode correr o risco de parar às portas da morte, de hesitar em atravessar o abismo e o vazio aniquilador da morte. Talvez tenhamos medo de dizer que a ressurreição é o motor da nossa esperança. Hesitamos em falar disso e talvez em viver isso.
Foi a fé na ressurreição que esteve no fundamento da revolta dos Macabeus à ocupação e hegemonia cultural gregas. Porque acreditavam na força criadora de Deus, que não pode deixar na morte aqueles fiéis que em seu nome deram a vida; que se entregam, confiantes, no meio da violência e da tortura do opressor/do ocupante. A esperança da ressurreição, da intervenção triunfante do Deus da vida, leva a relativizar a morte, a atravessar a violência do martírio a resistir à tirania do opressor: «Vale a pena morrermos às mãos dos homens, quando temos a esperança em Deus de que Ele nos ressuscitará».
Possa a esperança na ressurreição ser fogo que nos atiça nas nossas resistências e adversidades. Alimentados pela esperança na ressurreição, atrevemo-nos a esperar contra toda a esperança. Que o Senhor firme os nossos pés nessa esperança que, não nos livrando da morte, nos desperta e ergue do seio da morte.
Pe. António Martins, XXXII Domingo do Tempo Comum
Clique para ouvir a homilia
2019/11/07 - Lançamento de livro de Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio
Andrea Riccardi, historiador e académico italiano, é o fundador da Comunidade de Santo Egídio. A missão e o carisma desta Comunidade, predominantemente laical, tem sido a reconciliação entre os povos, a atenção às periferias e aos excluídos (pois nasceu em 1968 nas periferias de Roma), o acolhimento dos refugiados, o diálogo inter-religioso como meio para construir a paz. A Comunidade de Santo Egídio está presente em Portugal, e reune-se em oração à quinta feria, na Capela do Rato, pelas 20h30.
Desde o início do seu pontificado, o Papa Francisco tem convocado a Igreja ir ao encontro das periferias, geográficas ou existências, descentrando-se de si mesma. A novidade do evangelho nasce nas periferias e a elas se dirige, preferencialmente. O presente livro de Andrea Riccardi procura interpretar as periferias, a partir do magistério do Papa Francisco, como uma oportunidade para a Igreja atual, sobretudo nas grandes metrópoles.
2019/11/04 - Falar de Vida e Fé
O ciclo inicia-se dia 4 de novembro, às 18.30h, com Lígia Silveira a falar com Pedro Vieira, humorista, editor do Canal Q e guionista do programa «O Último Apaga a Luz», da RTP3. É ainda responsável pela comunicação do Cinema S. Jorge e autor do romance «Maré Alta».
Dia 11 de novembro, Leonor Xavier fala com o escritor Rui Zink e dia 18 Alice Vieira conversa com Nelson Mateus, jornalista da SIC.
Dia 25 de novembro, António Marujo convida Estela Gameiro, mestre em direito do ambiente, que já foi voluntária num campo de refugiados.
A 2 de dezembro, Jorge Wemans conversa com o jornalista, cineasta e comentador televisivo Vicente Jorge Silva.
Por fim, no dia 9 de dezembro, a encerrar o ciclo, Leonor Xavier conversa com Maria Antónia Palla.
Os encontros decorrem todos à segunda-feira, sempre às 18.30h, na Capela do Rato (Calçada Bento da Rocha Cabral, 1 B).
2019/11/03 - Amor imenso sem condições (homilia)
Queridos Irmãos,
A primeira leitura, do livro da Sabedoria, oferece-nos uma das mais belas invocações de Deus, em toda a Escritura: «Senhor, amigo/amante da vida». Tudo o que existe, vive, respira, os diferentes ecossistemas, cada pessoa, cada povo, tudo, contemplado na fé, é expressão do amor criador de Deus. Deus cria porque ama. E só um Deus de amor pode criar, porque o seu amor dá vida: «Vós amais tudo o que existe e não odiais nada do que fizeste». Podemos dizer que a alegria criadora, o prazer amoroso de fazer acontecer, de dar ser e vida é o fundamento de todas as coisas, de todas as criaturas.
Terminou no passado domingo o Sínodo sobre o Amazonas, em que o povo de Deus dessa região, juntamente com os seus bispos, expressou a consciência da urgente necessidade de salvar a selva amazónica e os povos indígenas que nela habitam. Como refere o documento final: «A Amazónia é hoje uma formosa formosura ferida e deformada, um lugar de dor e violência. Os atentados contra a natureza têm consequências contra a vida dos povos». Viveram-se intensos dias de autêntico e fecundo debate eclesial. Houve festa, celebração, alegria e profecia. Houve uma vontade de soltar a palavra, sem freios nem filtros; um dar a palavra ao povo que sente, sofre, vive, celebra e espera respostas concretas dos seus pastores.
Este Sínodo trouxe às comunidades cristãs do Amazonas uma renovação do impulso conciliar: a Igreja cumpriu-se de forma sinodal, ouvindo e discernindo o sentir dos crentes. «Foi uma nova experiência de escuta para discernir a voz do Espírito que conduz a Igreja para novos caminhos de presença, evangelização e diálogo intercultural na Amazónia» (Documento final). Neste Sínodo, que muitos de dentro e de fora tentaram inviabilizar, deturpar e esvaziar, sai uma Igreja mais reforçada na sua vontade de renovação; confirmam-se o estilo e os desafios do Papa Francisco que convoca a Igreja para acolher as periferias, escutar o clamor do pobre, e cumprir-se, em missão, no cuidado das feridas da humanidade e da criação. Reconheceu-se a necessidade de ampliar a participação laical, a urgência de promover ministérios para homens e para mulheres de forma equitativa. Foi pedido o diaconado permanente para mulheres e proposto que se possam ordenar padres diáconos permanentes. Saiu deste Sínodo uma maior e mais fina consciência de uma Igreja sinodal, samaritana, misericordiosa, a traçar novos caminhos de renovação pastoral.
O texto do evangelho de hoje oferece-nos o encontro inesperado e insólito de Jesus com Zaqueu, chefe dos publicanos, quando atravessava a cidade de Jericó. Trata-se de um episódio que só Lucas narra. Vale a pena perceber o improvável daquele encontro e quanto o mesmo tem de subversivo e de audaz da parte de Jesus. O publicano é a figura do judeu colaboracionista com o poder ocupante romano; cobra impostos nas fronteiras das cidades, violentando os seus concidadãos com a proteção da força militar ocupante; e mais, parte do que extorquia, em nome do ocupante, era para proveito próprio. Este homem, chefe da «quadrilha» dos publicanos, e ainda por cima rico com uma riqueza suspeita, feita de corrupção, de violência e de falsificação, era alguém que um justo judeu, e possivelmente cada um de nós, não queria ter por amigo, com quem não se poderia dar.
Zaqueu, o publicano rico, é pobre em estatura; era pequenino e todos lhe passavam à frente; no meio da multidão, ficava sufocado, perdia as vistas. Mas é um homem imaginativo e pragmático. Aproveita-se das possibilidades da realidade para alcançar o seu desejo de ver Jesus: sobe a um sicómoro. Há nisto algo de caricato, de indigno, de impróprio. Mas aquele homem não se importa nada com os juízos dos outros, habituado que está à maledicência alheia. Age por si, e com grande liberdade. Não há situações humanas ideais para experimentar o encontro com o Senhor; qualquer situação humana, mais a mais caricata, mais pequenina e humilde, mesmo no maior obstáculo, pode ser uma situação de encontro redentor. Estamos no otimismo tão próprio de Lucas, desse seu singular olhar de misericórdia para com as fragilidades e os limites humanos, os de cada um de nós também.
Zaqueu quer dizer puro, inocente; mas esse nome no personagem do texto resulta contradição. Zaqueu, homem rico, era um homem excluído, um maldito, um impuro, de quem todos se afastavam. Este homem que procura ver Jesus, acaba por ser visto e encontrado por Jesus, devolvido em sua humanidade recuperada. «Quando Jesus chegou ao local, olhou para cima e disse-lhe: “Zaqueu, desce depressa, que Eu hoje devo ficar em tua casa”». Que bela inversão do olhar: o que procurava olha, é visto. Porque o olhar de Jesus, olhar de misericórdia e de compaixão, é sempre primeiro; é pelo seu olhar que podemos ver com mais clareza o mundo, os outros, a nós mesmos. Jesus devolveu a Zaqueu o verdadeiro Zaqueu, o homem puro, integro, inocente. Devolve a humanidade mais profunda de cada ser humano, sufocada por tantos juízos sociais, por tantas cumplicidades com os poderes dominantes, por tantas experiências negativas. Há um Zaqueu em nós a recuperar, a restituir.
Jesus faz-se pedinte da nossa hospitalidade; solicita o nosso dom. Vem até Zaqueu pelas possibilidades do dom e não pelos caminhos da condenação nem da acusação. Vem até Zaqueu, e até nós, solicitando o melhor de nós próprios, pedindo a nossa mais pura e mais bela humanidade, a de acolher: «Hoje devo ficar em tua casa». Jesus pede a Zaqueu hospitalidade, não a sua conversão; ser recebido em sua casa, sem nenhuma garantia de mudança ou de justiça. Jesus não pede condições. E isso impressiona-nos pelo excesso de nada. Não há troca, não há exigências; há encontro livre entre pessoas livres que se acolhem. E esse encontro é redentor; nele começa para Zaqueu uma nova vida, e começa de sua livre iniciativa.
O pedido de Jesus de permanecer junto de Zaqueu não comportava restituição dos bens às pessoas a quem lesou. «Senhor, vou dar aos pobres metade dos meus bens e, se causei qualquer prejuízo a alguém, restituirei quatro vezes mais». A amizade antecipa a conversão. Jesus não dá sermões, faz-se amigo, companheiro de vida. Não aponta erros, faz-se presente, quer viver connosco a nossa própria vida. Dá-nos crédito: o pecador descobre-se amado. E tudo recomeça, uma nova vida tem início.
Porque nos podemos reconhecer amados e perdoados sem condições, somos capazes de nos converter, de sermos justos, de corrigirmos os nossos erros e desvios. No evangelho, só o amor tem poder para curar e salvar; para regenerar a nossa humanidade inocente e sufocada. É também a nós que o Senhor diz: «Hoje entrou a salvação nesta casa, porque Zaqueu também é filho de Abraão. Com efeito, o Filho do homem veio procurar e salvar o que estava perdido».
Pe. António Martins, XXXI Domingo do Tempo Comum
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2019/11/01 - Só Deus basta (homilia)
Queridos Irmãos
A santidade parece-nos dimensão impossível, ao menos para nós mergulhados na vida quotidiana, com as suas tensões e contradições. Lendo as histórias de santos, cheias de fantasia miraculosa, as suas vidas parecem extravagantes, estranhas à nossa normalidade. A sua violência ascética feita de renúncias, a luta corpo a corpo com o demónio, a visões do céu e do inferno, a relação pacificada com as feras, a resistência heroica às perseguições, à difamação, são para nós difíceis de seguir como exemplos. Vista por este prisma, a santidade parece apenas possível a uma elite de extravagantes, de loucos e de marginais, de pessoas excessivas e fora do comum. Precisamos de redescobrir e viver a santidade como a expressão e a experiência mais própria da vida cristã, como estilo evangélico possível a qualquer pessoa, em qualquer situação existencial, em qualquer estado de vida.
Todos os cristãos são chamados à santidade, à experiência profunda do amor a Deus e do amor ao próximo no dia-a-dia, no concreto da existência. Pois essa é a vontade de Deus, como bem lembra o Concílio Vaticano II: «… todos na Igreja, quer pertençam à Hierarquia quer por ela sejam pastoreados, são chamados à santidade» (LG 39). A santidade é, pois, a marca própria da diferença e da originalidade cristãs, o acolhimento da gratuidade da misericórdia de Deus que vem ao nosso encontro, em nossa fragilidade, para nos humanizar.
Na sua obra «Contos Exemplares», Sophia de Mello Breyner Andersen apresenta «O Retrato de Mónica», retrato ácido e profético de um modo de viver que pode ser uma tentação permanente da vida cristã; o contrário do evangelho e das bem-aventuranças. Mónica era uma autêntica mulher de sucesso, influente, com poder, reconhecida, empenhada, ativa, exigente consigo mesma. Escreve Sophia: «De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade». Renunciou à beleza e à verdade profunda da vida; renunciou à sua mais profunda humanidade. «A santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias». Esta diária negação da graça é a tragédia do humano, a sua perdição, caminho de alienação, desperdício de tempo e de vida, vida perdida, vida inútil. E como se poderá viver numa permanente negação do dom e de si mesmo? Isso dá tanto trabalho.
Dá mais trabalho negar o dom da santidade do que acolhe-lo e vivê-lo. «É por isso que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às vezes quando os casacos já estão prontos, as crianças já morreram à fome». Sim, na vida de Mónica há muitas obras de caridade, mas nenhuma bem-aventurança desejada, praticada, aproximada. «O Retrato de Mónica», caricato e trágico, é o retrato de uma possibilidade das nossas vidas, que nada tem de bem-aventurado.
Lemos o evangelho das bem-aventuranças, e vemos o mundo ao avesso, e esse avesso, para nós impensável e indesejável, é o próprio lugar onde se pode experimentar e viver a felicidade, a alegria e a exultação de uma vida marcada pela bondade e pela beleza. Haverá felicidade a partir dos excluídos, dos pobres, dos descartados, dos que sofrem injustiça e são perseguidos, dos humilhados e dos que choram? Poderá haver felicidade evangélica nos lugares de infelicidade humana? Sim. É possível uma vida autêntica, bela, bem-aventurada em situações de carência e de perseguição.
Basta um olhar puro, transparente, liberto de posse e de instrumentalização dos outros e das coisas: «Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus». Basta um despojamento interior das próprias certezas, a renúncia voluntária à riqueza, ao domínio e ao poder: «Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos Céus». Basta resistir na perseguição e na injustiça, e acreditar numa alternativa possível, lutando para que aconteça: «Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é o reino dos Céus». A desgraça pode ser o lugar onde se reinventa a esperança, uma vida humanizada como alternativa à desumanização. «Bem-aventurado», «feliz» é outro modo de dizer e viver a santidade. As bem-aventuranças são a alternativa da vida cristã.
Pergunto a mim mesmo se não somos um pouco como Mónica: esquecemo-nos da santidade, vivemos indiferentes à diferença cristã. A felicidade evangélica das bem-aventuranças pode passar-nos ao lado: é coisa poética sem viabilidade prática, porque as exigências concretas da vida são luta e competição, aumento da riqueza e do poder, posse e influência, expansão do domínio e da força. Ninguém fica isento da atração dos valores dominantes da sociedade, dos apelos atrativos a uma vida de sucesso, reconhecida e influente. A santidade pode acabar por ser uma renúncia prática, que não temos a coragem de reconhecer e de admitir. Ficamos como que impermeáveis à novidade do evangelho, dizemos que não é para nós e vamos fazendo pactos secretos com os senhores deste mundo, para assegurarmos o nosso lugar. Quantas cedência ao desejo de possuir e de dominar! Talvez haja uma Mónica em cada um de nós, aquela Mónica que renuncia à santidade, a uma vida bem-aventurada e feliz.
A santidade é a nossa vocação primeira, o decisivo da vida cristã, a marca da nossa diferença, o divino apelo que nos faz viver e agir. É o desejo de uma vida bela e feliz que, silenciosamente, grita, com gemidos inefáveis, no mais profundo do nosso ser e que recusamos ouvir, distraídos por tantas solicitações imediatas. Precisamos de cultivar o desejo de sermos santos, porque é isso a que Deus nos chama. Santos na família, santos no trabalho, santos na empresa, santos na amizade, santos nas estradas, no lazer, nos afetos, em tudo o que somos, pensamos e agimos. A santidade é o desejo de unificação e inteireza da nossa vida, e a orientação exigente nesse sentido, nas possibilidades concretas da existência, com a ousadia do passo possível a cada momento.
Todavia, convém dizer que não sabemos muito bem o que é a santidade, por onde passa, como se experimenta, quem é santo. Procuramos, tateamos, tentamos. Vivemos da procura, e não da certeza da posse; num caminhar incessante, feito mais de desapropriações do que de aquisições, Quem é santo, como se vive a santidade, só Deus sabe. Na santidade há uma dimensão inconsciente, desconhecida, de ignorância, se me atrevo a dizer. O santo nunca sabe bem que é santo, pois experimenta cada vez mais uma maior distância na sua aproximação de Deus. Sublinho a particularidade da passagem do livro do Apocalipse, lido na primeira leitura de hoje: Quem é santo, no fundo, só Deus sabe. «Meu Senhor, vós é que sabeis»; «São os que vieram da grande tribulação, os que lavaram as túnicas e as branquearam no sangue do Cordeiro».
O critério decisivo da santidade é ter vivido na própria carne a páscoa de Cristo, num testemunho que pode ir até ao martírio, esse lavar as próprias túnicas no sangue do Cordeiro, a expressão maior da santidade. Enquanto vivermos, a nossa vida está em aberto, pendente entre a santidade/a bem-aventurança e a maldição/a desgraça, entre a felicidade e a tragédia. Somos vidas em aberto, promessa ainda por cumprir, «ainda não se manifestou o que havemos de ser». E nenhum passado condiciona o encontro redentor/santificador com Cristo. No evangelho da santidade, não há determinismos, nem vidas condicionadas. Vivemos entre a oportunidade e o risco, a cada instante, até ao momento derradeiro. A santidade bem pode ser o triunfo da graça, num último instante, numa vida de pecado que se rende, por atração e fascínio, à beleza redentora do amor e do perdão, como foi o caso do bom ladrão.
Recordemos, a concluir, quanto nos desafia o Papa Francisco, em sua exortação apostólica «Alegrai-vos e exultai/Gaudete et exsultate», dirigindo-se a cada um de nós, diretamente: «Não tenhas medo de apontar para mais alto, de te deixares amar e libertar por Deus. Não tenhas medo de te deixares guiar pelo Espírito Santo. A santidade não te torna menos humano, porque é o encontro da tua fragilidade com a força da graça. No fundo, como dizia León Bloy, na vida “existe apenas uma tristeza: a de não ser santo”» (GE 34). No meio das nossas tristezas quotidianas possa fermentar em nós o desejo da alegria da santidade.
Não tenhamos medo de procurar ser santos: seja essa a nossa alegria, procurada e renovada em cada dia, feita de pequenos e corajosos passos.
Pe. António Martins, Solenidade de Todos os Santos
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Outubro
2019/10/14 - Agradecimento pela vida e testemunho de Manuela Silva
No seu percurso evangélico de compromisso com a justiça, várias vezes Manuel Silva se cruzou com os dinamismos eclesiais e proféticos da Capela do Rato.
Neste momento em que sentimos a irreparável perda da sua presença, queremos honrar, agradecidos, a qualidade e singularidade da sua coerência evangélica.
Partilham-se os textos lidos na celebração da eucaristia em agradecimento pelo dom da vida cumprida de Manuela Silva (uma admonição inicial, a oração dos fiéis e dois textos escritos pela própria: o primeiro é uma leitura atualizada muito pessoal das bem-aventuranças, o seu programa de vida; o segundo, intitulado «Vidas luminosas», é o nosso modo de dizer e reconhecer quanto a sua vida nos iluminou e nos desafiou).
Admonição inicial
A comunidade da Capela do Rato é hoje o lugar de acolhimento e encontro dos amigos, crentes e não-crentes, aqui reunidos, para recordar e rezar com e pela Manuela e dar graças pela sua vida cheia que tanto apreciava.
A Manuela com o seu jeito especial de ser e a multiplicidade dos seus talentos, que soube pôr a render, permanece em nós como Profeta de um outro modo de viver, de conviver, de analisar os problemas sociais, económicos e políticos, e de procurar soluções, mesmo quando tal parecia impossível.
Era uma Mulher de Esperança. Não desistia, nem das pessoas, nem das causas em que se envolvia e nos comprometia.
Ancorada numa sólida experiência de Fé, era por isso na Igreja, também uma “fundadora” à maneira de Teresa d’Ávila dos nossos dias, nas múltiplas iniciativas para mudar o modo de ser Igreja, mais fraternal e menos piramidal, mais ecológica, dando voz às mulheres e às periferias excluídas de que fala o Papa Francisco.
Deixou-nos alertas importantes sobre o tipo de economia que a Universidade Católica tem promovido. Já não vai poder participar no encontro sobre economia que o Papa convocou, na linha do que a Manuela sempre trabalhou.
Aqui juntos e em conjunto, renovamos o compromisso de continuar os empenhamentos que anunciou e concretizou e nos deixou como legado, e lutar por uma economia, pelo e com o ser humano, só possível, com equidade, justiça, solidariedade, paz e sustentabilidade desta Casa Comum que é nosso mundo, uno e inteiro, e assim o devemos preservar.
Finalmente, afirmamos, bem alto, que a Manuela deve estar, muito contente, pelo facto de, hoje mesmo, ter sido atribuído o Prémio Nobel da Economia a três empenhados investigadores, pelo seu trabalho sobre a pobreza, trabalho que não é feito, apenas, nos gabinetes, mas, também na terra onde estão os injustiçados.
(Texto de Alfreda Ferreira da Fonseca e Manuel Brandão Alves)
Oração dos Fiéis
– Reuniste-nos aqui hoje, Senhor, porque nos deste a graça de sermos próximos de Manuela Silva que chamaste para ti e agora te conhece face a face. Damos graças pelo dom da sua vida, acolhe-a como filha amada que retorna à casa do Pai. Ajuda-nos a sermos fiéis às causas a que se entregou. Oremos juntos.
– Seguindo o exemplo da Manuela, lembramos todas as pessoas que, crentes e não crentes, profetas de um mundo novo, ousam percorrer desde já os caminhos da justiça e da paz. Oremos juntos.
– Por toda a Igreja de Jesus Cristo, diversa e una na fé, para que cada dia e em cada lugar, busque o caminho da perfeição no maior dos dons: o amor. Oremos juntos.
– Pelos Pastores que na Igreja procuram mostrar o rosto de Deus, o Papa Francisco, o nosso Patriarca Manuel e todos os que anunciam o evangelho por palavras e obras. Oremos juntos.
Textos de Manuela Silva lidos no final da eucaristia
Felizes os que reconhecem o Amor na sua vida e acreditam n’ Ele,
porque só o amor é gerador de vida.
Felizes os que vivem o dom da confiança,
porque possuem, em permanência, uma fonte de serenidade.
Felizes os que estão atentos aos sinais portadores de futuro,
porque são construtores do Reino de Verdade, de Justiça e de Paz.
Felizes os que cuidam da Criação,
porque tomam parte na Obra criadora de Deus.
Felizes os que têm um coração compassivo,
porque suavizam a vida.
Felizes os que se deixam conduzir pelo Espírito,
porque conhecerão a liberdade interior.
Felizes os que são fiéis a si mesmos e guardam a sua inteireza,
porque neles se revela a presença inefável de Deus.
Felizes os que semeiam a alegria,
porque a alegria é uma janela aberta para a esperança.
Felizes os que se empenham na construção da justiça e da paz,
porque estão ao serviço do projecto de Deus e do bem da Humanidade.
Felizes os que são capazes de aceitar as várias situações de morte,
porque as vêem como germens de vida.
Felizes os que amam o Belo e nele se reveem,
porque transportam consigo o olhar amoroso de Deus sobre a criação.
(https://fundacao-betania.org/os-estranhos-caminhos-da-felicidade/)
Vidas luminosas*
Há pessoas cuja presença é, por si mesma, um feixe de luz que irradia, tanto para os lugares onde habitam como para as outras pessoas à sua volta. São pessoas com quem nos sentimos bem. Delas nos vem inspiração e energia para conduzirmos a nossa própria vida. Com elas, intuímos realidades que estão para além daquelas que os nossos olhos vêem ou as nossas mãos tocam. Junto delas nos sentimos como gente que é reconhecida, acolhida e amada.
Pergunto-me porque assim sucede. Donde vem este dom? Qual a fonte escondida de uma tal energia?
Em cada ser humano uma centelha de luz existe sempre, mas por vezes quase parece ter-se apagado, tão enterrada foi pelos cuidados terrenos e tão desviada do foco se encontra, por força de critérios que não são de vida verdadeiramente humana, mas sim produtos de ilusão e das múltiplas idolatrias que abundam nos mercados da cultura contemporânea.
Quem soube vencer as barreiras do materialismo, do hedonismo e do individualismo e ousou saltar os muros do seu egoísmo ao encontro do amor deixou que a centelha de luz que o habita se atiçasse, passou da noite à luz e conheceu o amor.
Quem deixou que a razão e as suas emoções se transfigurassem pela força impulsionadora do amor criativo e zeloso do bem passou da morte à vida e entrou na luz que irradia, aquece e comove, a luz que, silenciosa e misteriosamente, faz avançar a história.
Estas pessoas existem. Conheci e conheço algumas pelos seus nomes próprios, tenho de memória os seus rostos e maneiras e posso testemunhar que a sua presença me foi bem mais imprtante que os muitos livros que fui lendo. É que o testemunho de uma vida luminosa vale muito mais que mil palavras, por mais sábias que estas sejam.
O nosso mundo precisa de vidas luminosas, que brilhem nos locais de trabalho, nas escolas, nas instituições, nos serviços públicos, nos media, nas instâncias de decisão política ou, simplesmente, nos olhares que se cruzam nas ruas das nossas cidades e aldeias.
[…]
Maio 2009
[Manuela Silva, Ouvi do Vento, Pedra Angular, 2009, 192-193]
Sites onde foram publicadas justas referências ao percurso de vida de Manuela Silva
Notícia da Ecclesia: https://agencia.ecclesia.pt/portal/igreja-sociedade-manuela-silva-recordada-pelo-seu-compromisso-social/
No jornal on line Sete Margens, texto escrito por António Marujo: https://setemargens.com/manuela-silva-gostei-de-viver/
2019/10/09 - A Casa Comum precisa de todos nós
Espera-se que esta sessão possa conduzir à criação de um Foco de Conversão Ecológica na Capela do Rato.
Decorrido já algum tempo sobre a publicação da encíclica Laudato Si’, temos de reconhecer que ainda estamos longe de corresponder ao apelo que o papa Francisco dirigiu a crentes e não-crentes quanto ao cuidado da casa comum.
Compareça e traga os seus amigos também.
Sinta-se parte activa desta rede!
Setembro
2019/09/29 - A nossa bússola (homilia)
Queridos Irmãos
A vida cristã é feita do quotidiano, do ordinário. Acreditamos em milagres, porque o modo de Deus intervir não conhece limites. Talvez até gostássemos que os problemas e as dificuldades da nossa vida se resolvessem milagrosamente. Mas é caso para dizer: não contemos com isso. O próprio evangelho de hoje é um estímulo a não vivermos na expetativa de uma aparição, de uma intervenção do além no quotidiano das nossas vidas, a dizer como temos de decidir e nos orientar. Não virão mortos ressuscitados a dizer-nos, a partir do céu, como havemos de viver, na terra, uma vida mais justa, mais solidária e mais fraterna.
Temos já tudo o que precisamos para nos orientar: a Escritura (Moisés, os Profetas, o Evangelho), a doutrina social da Igreja. Temos a Escritura para nos guiar uns aos outros e para guiar cada um por si. Esta é a normalidade da vida cristã: Palavra proclamada, Palavra ouvida e Palavra que vamos tentando viver e pondo em prática. Aqui estamos, semana após semana, para nos formarmos, continuamente, pelo evangelho do Senhor. Quer o texto do domingo passado, quer o de hoje, são um apelo, uma provocação na nossa relação, sempre problemática e tensa, com os bens materiais e com a riqueza.
No evangelho de hoje Jesus narra-nos a parábola de um homem rico, opulento; vestia luxuosamente de púrpura e linho fino, banqueteava-se todos os dias. A seu lado, mesmo à sua porta, jazia um homem pobre «coberto de chagas». O homem rico permanece anónimo; do pobre sabemos o nome, «Lázaro», que significa «Deus é a minha ajuda». Aquela ajuda que parece não existir, invisível, mas que não seu tempo se revelará. Estes dois homens, com condições de vida opostas e improváveis pontos de encontro, partilham um destino comum, a morte. A morte é a coisa mais democrática que existe: iguala-nos a todos na mesma condição. Torna-nos todos pobres; todos ficamos empobrecidos, despojados da nossa riqueza, e a maior riqueza é a vida. Se a morte iguala a condição de pobreza, o destino eterno é invertido: o homem rico é atormentado pelas chamas na morada dos mortos; Lázaro, por seu lado, é acolhido, festivamente, no coração de Deus, segundo a linguagem do texto, «no seio de Abraão». Mas onde nos quer fazer chegar este evangelho?
Podemos dizer que o texto não está preocupado em nos revelar a geografia da vida após a morte (ainda que não possamos ignorar a linguagem própria da época sobre o além). O texto não está tanto preocupado com o destino eterno, quanto com o aqui e o agora da nossa vida, com o modo como nos relacionamos com a riqueza e fazemos dela relação com os outros. A preocupação do texto está na nossa relação direta com a riqueza, como cuidamos dos pobres e como podemos colmatar o abismo entre ricos e pobres, entre países ricos e países pobres, entre miseráveis bairros periféricos e os opulentos centros das grandes cidades. Este abismo social começa dentro de nós. O abismo eterno, definitivo, intransponível, pode ser evitado, mudando os abismos sociológicos, relacionais, políticos, económicos, tão presentes nas nossas sociedades. Os abismos do presente são transponíveis, e depende de nós criar pontes onde imperem abissais separações, discriminações e indiferenças.
Outro aspeto que emerge da narrativa do evangelho deste domingo é o seguinte: as nossas escolhas, as nossas atitudes, os nossos comportamentos têm valor eterno. Podemos dizer que Deus confirmará as nossas escolhas que fizemos durante o tempo da nossa vida, respeitando o valor definitivo da nossa liberdade (mas isto é apenas uma parte da esperança cristã). A parábola do evangelho de hoje procura iluminar e, ao mesmo tempo, julgar o valor definitivo das decisões que vamos tomando no concreto da nossa vida. Podemos até admitir que o homem rico pudesse ser alguém religiosamente justo, com uma profunda piedade em sua relação com Deus. Poderia até considerar-se, na melhor tradição religiosa judaica, que a sua riqueza era uma bênção de Deus.
Mas não: a sua riqueza torna-o cego e insensível aos pobres que o rodeiam, que vivem a seu lado. Aqui está onde a parábola do evangelho nos quer conduzir: o problema não está na riqueza mas no uso que fazemos dela, como a partilhamos e através dela construímos o bem comum e a justiça social. O homem rico da parábola faz da sua riqueza uma ostentação, cego e indiferente ao grito do pobre. O seu comportamento contradiz o evangelho, porque não acolhe os pobres, os abandonados, os desprezados nos banquetes que dá. Lembramos aqui aquela parábola, também de Lucas, de um homem que convida para o banquete de casamento do seu filho pobres, estropiados, cegos e cochos que encontra pelos caminhos (cf. Lc 14,21-24). No uso da usa riqueza não há sensibilidade social, mas apenas esbanjamento.
É bom que as empresas tenham responsabilidade social. Uma responsabilidade social não burocrática e distante mas atenta às necessidades concretas das pessoas que estão ao nosso lado. Podemos com toda a facilidade ser generosos em campanhas de solidariedade mas continuarmos indiferentes e cegos a quem está perto de nós, a quem é carente e vulnerável, a quem está marcado por alguma pobreza, tantas vezes envergonhada, disfarçada e oculta. A atenção à pessoa concreta que está a nosso lado, à nossa porta é o maior desafio quotidiano. E sejamos honestos: tantas barreiras sociais e culturais, tantos preconceitos nos separam. Há pessoas que vivem lado a lado sem se conhecerem, sem se saudarem, numa profunda ignorância relacional. Através da parábola narrada, o texto do evangelho de Lucas deste domingo apela-nos a esse esforço contínuo de atenção e de cuidado pelos nossos irmãos mais vulneráveis, não deixando que os cães lambam as suas feridas, expressão de uma cegueira e indiferença, de uma dureza de coração incapaz de compaixão.
O evangelho de hoje é um radical apelo a superarmos os abismos de indiferença que estão dentro de nós. É dentro de nós que começam os abismos de discriminação racial, de estatuto social. Estes demónios que existem dentro de nós transformam-se depois em estruturas de injustiça social. Encontramos neste texto uma provocação à conversão quotidiana do nosso olhar e do nosso agir. A treinarmos a nossa capacidade de atenção aos nossos irmãos mais vulneráveis e indefesos, aos mais expostos em suas fragilidades, para fazermos dos nossos dons – e são tantos – partilha. A cultura, a afetividade, a sensibilidade também são riqueza a partilhar.
Não partilhamos apenas a riqueza material, mas também a riqueza dos valores, dos afetos e das relações.
Talvez o aspeto mais importante do evangelho de hoje seja a conversão do olhar e do coração. Este olhar para cada pessoa em concreto, para a sua circunstância, para a sua necessidade. O Senhor que protege os mais vulneráveis (os peregrinos, os órfãos, as viúvas, nas expressões do Salmo), ilumine o nosso olhar e nos cure da cegueira da indiferença e da insensibilidade.
Pe. António Martins, Domingo XXVI do Tempo Comum
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2019/09/22 - A herança comum (homilia)
Queridos Irmãos
Na sequência da Palavra que lemos e acolhemos em cada domingo, somos chamados a discernir as realidades que vivemos, pessoais, nacionais e mundiais. A Palavra de Deus é um critério orientador na nossa esperança, do modo como preparamos o nosso futuro pessoal, familiar e coletivo, no hoje da nossa vida, na complexidade da sociedade que é a nossa e da qual somos protagonistas. Porque o futuro pessoal de cada um de nós está ligado ao futuro de toda a humanidade; depende, no presente, das escolhas de cada um de nós que configuram o nosso viver em sociedade.
Neste e no próximo domingo, o evangelho de Lucas propõe-nos um discernimento sobre o modo como administramos a riqueza e nos relacionamos com o dinheiro. Sejamos honestos: a nossa relação com o dinheiro, será sempre tensa e ambígua. O dinheiro é uma necessidade, um instrumento necessário ao nosso viver, cumpre a sua finalidade social; dele depende a qualidade da nossa vida e das nossas relações. Mas se esquecermos que a riqueza e o dinheiro são meios e não fins em si mesmos, corremos o risco de fazer deles ídolos perante os quais nos prostramos. As parábolas de Lucas têm essa finalidade de nos alertar, de nos provocar, de nos convocar a um discernimento lúcido, arguto, consequente em nossa relação com a riqueza.
Assim começa a parábola de hoje: «Um homem rico tinha um administrador, que foi denunciado por andar a desperdiçar os seus bens». O texto reenvia-nos para a situação económica e social da Palestina, no tempo de Jesus, marcada por grandes latifundiários (senhores/patrões), que viviam nas grandes metrópoles. As suas terras eram administradas por administradores locais, que fixavam com os donos um preço, ficando responsáveis por cumprir o acordado. Tinham margem de manobra para fazer os próprios negócios a partir dos bens dos grandes patrões. A história reenvia-nos para um administrador que é despedido por «andar a desperdiçar os bens» do seu patrão.
Mas a parábola tem sempre um valor teológico, evangélico: através da mesma é a nossa relação com Deus (o senhor), enquanto administradores da criação, posta em processo de avaliação. Na sequência do texto, não podemos deixar de perguntar a nós mesmos se não temos «andado a desperdiçar os bens» que nos são confiados, a vida, o ar, a água, o ambiente, a criação inteira. Não somos donos (patrões) mas administradores. Tudo o que existe tem um destino coletivo, é para o bem comum, e não apenas para meu uso excluso, para minha posse e consumo. Quer a vida cristã, quer a cidadania são um contínuo prestar contas do que nos é confiado. Porque temos uma herança a deixar às gerações futuras; precisamos de assegurar o futuro da vida, do ambiente aos outros, com a mesma qualidade, ou ainda melhor, do que recebemos.
Perante o despedimento do seu cargo, aquele administrador interroga-se, num diálogo interior que vemos em direto, com as suas dúvidas e respostas, sobre o seu futuro: o que deve fazer, já hoje, para assegurar um futuro tranquilo, uma vida com qualidade? «Que hei-de fazer?», é a pergunta dirigida a de cada um de nós. Porque o futuro da vida decide-se no concreto dos desafios imediatos da realidade, alguns imprevisíveis e inesperados, mediante processos de discernimento, entre possibilidades e urgências. Com audácia, sentido de oportunidade, inteligência e modo prático de realização. O discernimento não teoriza: vê realidades e possibilidades, procura soluções viáveis numa fidelidade à própria consciência, conciliando realização pessoal com o bem comum.
A solução (a iluminação da decisão oportuna) está, da parte do administrador, em sacrificar a comissão dos bens devidos ao patrão. Renuncia àquilo que ele devia retirar para si, em sua qualidade de administrador: «‘Quanto deves ao meu senhor?’. Ele respondeu: ‘Cem talhas de azeite’. O administrador disse-lhe: ‘Toma a tua conta: senta-te depressa e escreve cinquenta’». Não se trata de enganar o patrão nem de falsificar a contabilidade, mas de renunciar à parte da riqueza que lhe era devida para fazer amigos. Pois todos aqueles a quem ele renunciou à sua comissão lhe ficaram gratos.
A dimensão evangélica da exemplaridade deste administrador não está no modo como desperdiçou, mas no modo como renunciou à riqueza pessoal para criar uma rede de amigos que lhe assegurassem o futuro: «Arranjai amigos com o vil dinheiro, para que, quando este vier a faltar, eles vos recebam nas moradas eternas». A riqueza e o dinheiro têm destino provisório; mas as relações e as amizades, feitas através da riqueza distribuída, da posse a que se renuncia em favor de outros, têm um destino eterno. A riqueza e o dinheiro destinam-se a criar relações mais fortes, pessoas mais felizes; a aumentar o bem comum, a intensificar uma justiça social. No fundo, a servir a dignidade da pessoa humana e a sua qualidade de vida.
O risco está, precisamente, nessa dimensão idolátrica, de endeusamento do dinheiro e da riqueza. «Nenhum servo pode servir a dois senhores (…). Não podeis servir a Deus e ao dinheiro». Podemos viver obcecados a pensar na riqueza e no modo de a multiplicar. Sabemos bem quando a riqueza é causa de tantas divisões familiares, de tantas disputas, manipulações, falsificações, mentiras, comportamentos corruptos. Recordamos aqui a severa admonição do profeta Amós, esse grito profético que denuncia a falsidade dos negócios realizados pelos próprios crentes: «Faremos a medida mais pequena, aumentaremos o preço, arranjaremos balanças falsas. Compraremos os necessitados por dinheiro e os indigentes por um par de sandálias». Precisamos todos, mais ricos ou mais modestos, de uma vigilância contínua na nossa relação com o dinheiro.
Preparamos o futuro do País escolhendo as políticas e as pessoas que nos próximos quatro anos irão administrar a «coisa pública». As próximas eleições legislativas são a oportunidade para um profundo discernimento no vasto leque de propostas partidárias. Que partidos e propostas políticas melhor servem a dignidade da vida humana (da conceção ao morrer), sobretudo dos mais frágeis e dos mais débeis, aqueles que devem ser os primeiros destinatários das opções políticas. Todos sabemos e reconhecemos: a democracia é um bem ao nosso cuidado; uma conquista a preservar dos assaltos populistas e demagógicos. O bem comum está acima dos interesses individuais, de grupo, sectoriais. Este é o princípio estruturante da doutrina social da Igreja.
A ajudar o discernimento dos católicos nos atos eleitorais do presente ano (a eleições para o Parlamento Europeu, decorridas em junho, e as eleições no nosso País para o próximo governo e legislatura), os bispos portugueses publicaram, em 2 de maio, uma carta pastoral com o título: «Um olhar sobre Portugal e a Europa à luz da doutrina social da Igreja». Perante os desafios e as urgências da realidade e das decisões políticas, os nossos pastores oferecem-nos uma leitura atualizada da doutrina social da Igreja, a orientar o discernimento dos católicos. Não para substituir a sua decisão e a sua consciência, mas a iluminá-la. Esta carta será publicada no site da Capela do Rato, na janela «Vemos, ouvimos e lemos».
Em resposta ao apelo de Paulo, rezemos por todos os homens e mulheres, por aqueles que exercem funções políticas de administração do bem comum, no mundo, na Europa, em Portugal. Com o seu zelo, empenho, lucidez, inteligência e ousadia, «possamos levar uma vida tranquila e pacífica».
Pe. António Martins, Domingo XXV do Tempo Comum
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2019/09/15 - Reencontrados por Cristo (homilia)
Queridos Irmãos
Finalmente voltamos a estar juntos, após esta diáspora de dois meses. É certo que alguns de nós fomos mantendo contactos, até nos encontrámos, ou partilhámos tempos de férias. A comunidade da Capela do Rato, e é importante dizê-lo, não se esgota no ritmo eucarístico nem nas dinâmicas dos encontros: é maior do que o previsto no calendário. Porque é feita de pessoas que se querem bem, que gostam de se encontrar, partilhar vida, afetos, cultura, saber e cuidar uns dos outros. Porque nos sentimos irmãos e queremos viver a nossa fraternidade no concreto da vida. Também no tempo de férias.
Confesso: já tinha saudades de vós, da qualidade e intensidade afetiva das nossas celebrações. Já me faziam falta para o meu viver de cristão e de padre. Aqui estamos, de novo, para iniciarmos mais um ano pastoral, mais um ano académico, mais um ano laboral, ou simplesmente mais um ano após as férias. Com a promessa do recomeço, o desejo e o ânimo de voltarmos a viver, uns com os outros, esta aventura de sermos crentes, marcada pela fecundidade do Espírito, que age no interior dos corações, e pela responsabilidade das nossas escolhas e dos nossos compromissos.
A comunidade da Capela do Rato é, antes de mais, um dom de Deus a cada um de nós, um lugar para nos acolhermos uns aos outros em nossa humanidade. Mas é, igualmente, o resultado da generosidade, da corresponsabilidade, do compromisso, do pensar e do agir de cada um de vós. A comunidade do Rato somos todos nós: é um dom e uma tarefa permanentes, minha e vossa, de cada um de nós. Nunca está concluída. Porque humana e sujeita ao tempo, a comunidade necessita continuamente de reorganização, de novas motivações, de revisão de vida, de recomeços. Porque há desgaste, porque nos cansámos, porque surgem tensões e conflitos. Porque somos humanos, limitados, imperfeitos e frágeis. Aqui estou eu, vosso padre/pastor, a consagrar-vos na unidade. A caminhar convosco na fé, a tentar ser sinal humano da humanidade de Cristo bom Pastor, que vai ao encontro da ovelha perdida. Peço-vos que continuamente rezeis por mim e pela minha missão, convosco.
Recomeçamos, para mais um ano, esta peregrinação que é o nosso viver crente. Com as suas previsões de calendário, que nos orienta, mas abertos ao imprevisível. Com o afeto e o conhecimento uns dos outros, mas disponíveis para acolher novos irmãos, que queiram caminhar connosco, ou simplesmente beber, de passagem, desta fonte. Aqui estamos para marcar, pela hospitalidade, pela inclusão e pela ternura, a diferença de um viver e ser eclesial possíveis. Que ninguém de nós fique indiferente a quem nos visita ou por aqui passa; mas faça sempre as honras da casa em nome do evangelho: Vinde benditos(as) de meu Pai e aqui encontrareis alívio e consolo para as vossas vidas. Queremo-nos cumprir como uma comunidade que sabe acolher e incluir cada pessoa em sua singularidade e percurso de vida.
Continuamos a leitura fracionada do evangelho de Lucas. A litúrgica apresenta hoje, por inteiro, essa exclusividade de Lucas que é o capítulo XV. Um evangelho dentro do próprio evangelho, a marca da originalidade de Lucas, porque ele é o evangelista da misericórdia, da ternura incondicional do Pai. Como nenhum outro evangelista, Lucas narra o «fraquinho» de Jesus pelos pecadores, por aqueles que sabem que precisam de médico e têm consciência das próprias feridas. Disso é expressão as três parábolas de hoje (a do louco e insensato pastor à procura de uma ovelha, a da mulher varredora de casa procurando uma moeda perdida, a de uma família disfuncional mas em processo de reconciliação, aquele pai com os seus dois filhos, tão opostos, tão contraditórios…).
Jesus frequenta a mesa dos pecadores e dos publicanos, aqueles que o típico judeu piedoso só podia excluir do seu convívio e da sua relação. Jesus, expondo-se à contestação, partilha o destino de exclusão dos pecadores. Por estes é procurado e ouvido: «os publicanos e pecadores aproximavam-se todos de Jesus, para o ouvirem». Porque a sua palavra dá vida, salva, perdoa, cura, renova, recupera… Por isso o modo de Jesus se relacionar provoca escândalo, cria contestação.
Nestas parábolas está contida a novidade de Jesus: não há situação de desgraça humana que não possa ter salvação, não há situação de morte que não possa voltar à vida, não há perda que não possa dar lugar ao encontro e à recuperação. E tudo como acontecimentos de intensa alegria entre o céu e a terra, de uma alegria comunicante e contagiante que se partilha com vizinhos e amigos. É a alegria do arrependimento, a promessa de um recomeço, a possibilidade de uma vida que volta a ser feliz depois de ter caído no fundo, de ter atravessado o abismo da perda, da perdição. Ser reencontrado(a), liberto(a) dos perigos de morte, voltar a casa, ser abraçado(a) é festa contagiante.
Sublinhamos o pormenor do texto: Jesus dirige-se, diretamente, àqueles que o contestam e criticam, provocando-os: «Quem de vós, que possua cem ovelhas e tenha perdido uma delas, não deixa as outras noventa e nove no deserto, para ir à procura da que anda perdida, até a encontrar?» Talvez a primeira reação dos ouvintes tivesse sido esta: esse pastor é um louco. Por causa de uma ovelha põe em risco um rebanho inteiro. Ninguém, com sensatez e responsabilidade, se atreve a tanto. Mas o evangelho não vai pela racionalidade nem pelo óbvio. Vai pelo excesso, pela loucura do amor, pela intensidade de uma procura que não quer perder nada nem ninguém. Entre proteger os de dentro (o rebanho) e perder uma ovelha, e colocar em perigo o rebanho mas não perder nenhuma ovelha, o insólito pastor da parábola opta pela segunda. Porque o seu amor não suporta nenhuma perda.
Podemos imaginar os perigos por que passou a ovelha que se perdeu, exposta às feras, enleada e presa em silvas, perdida de sede na noite do deserto, caída nalgum precipício ou caverna… Como podemos imaginar também os perigos e o esforço por que passou o pastor, a sua angustia de não encontrar, o seu desânimo, a tentação de desistir da procura, o remorso por ter deixado o rebanho exposto ao perigo. Aquele coração vai inquieto, divido, mas não desiste até encontrar. Porque vai movido por um amor que quer recuperar o perdido. Mas Lucas foca-se apenas na alegria contagiante e comunicativa do encontro; é esse final feliz que ele quer narrar: «Alegrai-vos comigo porque, encontrei a minha ovelha perdida». «Assim haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se arrependa, do que por noventa e nove justos, que não precisam de arrependimento».
Não posso silenciar a parábola da dona de casa que procura a sua dracma perdida. A narrativa sugere-nos que Jesus não passou indiferente ao viver e ao trabalho femininos. Importa dizer que as casas rurais da Palestina eram feitas de pedra e barro a unir as pedras, de lajes no solo, com muitas frestas entre elas. Esta mulher não desiste; pacientemente, «acende uma lâmpada, varre a casa e procura cuidadosamente a moeda até a encontrar». A nota curiosa de Lucas é, através da parábola, nos sugerir um Deus feito dona de casa, a varrer no meio do pó. Pastor que procura a ovelha, mulher a varrer o pó à procura da dracma, pai a reconciliar os filhos: rostos humanos do Deus que vem ao encontro da nossa pobreza, que vem recuperar o que está perdido. Porque, para Deus não há casos perdidos.
Outra dimensão presente no evangelho de hoje é a forte admonição aos de dentro, aos do rebanho constituído, à dinâmica identitária e protecionista de todos os grupos, de todas as comunidades cristãs. A comunidade corre sempre o risco de se proteger dos perigos exteriores, de fechar-se em si mesma. Vivemos hoje tempos de construções e recuperações ferozes de identidades nacionalistas e religiosas. Precisamos de vigiar constantemente o perigo identitário, para que pastores e comunidades não ignorem os perigos a que estão sujeitos tantos irmãos nossos em humanidade e que estão fora das nossas comunidades, que não são dos nossos, ou simplesmente se perderam nos labirintos da vida.
Inspirados nas palavras de S. Paulo, cada um de nós possa reconhecer: É o Senhor que me julga digno de confiança. Também eu necessito, continuamente, de misericórdia. Por isso «dou graças Àquele que me deu força, Jesus Cristo, Nosso Senhor».
Pe. António Martins, Domingo XXIV do Tempo Comum
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2019/09/15 - Início do ano pastoral 2019-2020
Queridos Irmãos
Após a pausa estival, a nossa comunidade da Capela do Rato vai reiniciar a celebração dominical da eucaristia no próximo domingo, dia 15 de setembro, às 11.30h. O tempo de férias foi para todos nós de dispersão em termos comunitários (e que saudades já tenho de todos vós, e da nossa festa da eucaristia!…). As férias cumpriram-se, certamente, como uma oportunidade para refazer energias físicas e espirituais, rever amigos e familiares, conhecer novos lugares, ou simplesmente viver um tempo sereno em contacto direto com a natureza (com o mar, o sol, as montanhas, os rios…). Damos agora a nós mesmos, e uns aos outros, a graça e a alegria esperançosa do recomeço.
Transportamos connosco o júbilo pela recente nomeação para cardeal do nosso querido amigo e irmão D. José Tolentino, que a comunidade da Capela do Rato guarda com saudade e ternura. Não lhe queremos faltar, nesta nova, desafiante e imprevisível missão, com a nossa amizade e a nossa solidariedade orante. Como cardeal, D. José Tolentino passa a cooperar, de um modo imediato, com o Papa Francisco no governo na Igreja universal. Estamos conscientes das exigências desta missão na hora atual e decisiva da vida da Igreja, e de quanto esta nomeação (juntamente com a dos outros cardeais) ajudará a consolidar a continuidade das reformas iniciadas pelo Papa Francisco. Alguns de nós estaremos em Roma a 5 e 6 de outubro, para oferecer ao nosso querido D. José Tolentino a nossa presença e a nossa oração fraterna in loco.
A comunidade da Capela do Rato, numa fidelidade criativa à sua memória, quer continuar a cumprir-se como um espaço de diálogo descomplexado, de corresponsabilidade sinodal, de abertura e de inovação, em sintonia com as urgências destes tempos que são os nossos. Privilegiamos o diálogo com a cultura (a literatura, a filosofia). Disso será expressão a nossa edição do curso que já se tornou «marca da casa», a começar em janeiro de 2020, este ano intitulado «O Prazer de Ler e de Pensar».
Temos diante de nós, como apelo à conversão do nosso agir, as grandes urgências do Papa Francisco: o cuidado da casa comum (a conversão ecológica), o drama dos refugiados e uma economia de comunhão. Serão criados três momentos para debate destas causas, valorizando uma atualização da doutrina social da Igreja. Num conjunto de quatro encontros (entre outubro e novembro) procuraremos criar um espaço em que crentes e não crentes possam falar de Deus. Voltaremos à feliz experiência de reflexão e partilha do ano passado intitulada «Situações Limite e Espiritualidade», para abordar as adições (dependências) e as demências.
É minha intenção criar uma estrutura de corresponsabilidade e de participação permanente (uma espécie de conselho pastoral), que seja expressão da diversidade da nossa comunidade. Possam aí ser elaboradas propostas de ação, com liberdade e criatividade, sobre o futuro da Comunidade da Capela do Rato, da Igreja em geral e da sua inserção no mundo de hoje, marcado por tantas perplexidades e urgências.
A celebração dominical da eucaristia, como lugar privilegiado de encontro, de inclusão e de bênção da nossa frágil condição humana, constitui o centro da vida da nossa comunidade. É também o lugar para o exercício de uma corresponsabilidade ativa e sinodal dos diferentes serviços e ministérios (coro, leitores, ministros extraordinários da comunhão, decoração, cuidado das alfaias e dos paramentos, acolhimento…). Serão valorizados os tempos penitenciais do Advento e da Quaremos com pausas de aprofundamento da vida espiritual. Procuraremos que os tempos fortes do Natal e da Páscoa sejam marcados pela festa, pela beleza, pela densidade celebrativa e humana: somos uma comunidade em que a proximidade e a festa são possíveis. E isso é um dom que resulta também do empenho e da participação de cada um(a) de nós.
Bem-vindos a mais um ano de aventura na Comunidade da Capela do Rato.
P. António Martins
2019/09/01 - 2019/09/01 - D. José Tolentino Mendonça, novo cardeal português
Julho
2019/07/14 - D. Manuel Clemente na Celebração do Sacramento do Crisma e do Batismo
Está disponível para ouvir a homilia de D. Manuel Clemente na Celebração do Sacramento do Crisma e do Batismo de dia 14 de julho, na Capela do Rato.
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Junho
2019/06/30 - Homilia de José Alberto Lopes Costa, na sua apresentação à comunidade como Diácono
Esta palavra Espanto tem vindo, principalmente nos últimos 5 anos, a ganhar uma força e uma intensidade dentro de mim. Tem sido uma constante na minha vida.
Há vários anos que digo à Família e aos Amigos que, se tiver vida e saúde, aos 70 anos gostava de mudar de vida. As pessoas, normalmente, diziam-me “para fazer o quê?” e eu respondia “Não sei, logo se verá”.
Há cinco anos, no meio de uma conversa sobre temas de Gestão, o Pe Tolentino, sem que nada o pudesse prever, desafiou-me para este caminho do diaconado – o meu espanto não poderia ser maior e, nessa altura, apenas lhe consegui dizer, sem muita convicção, que ia pensar no tema. Cheguei a casa e falei com a Rita que, para meu espanto, não desaprovou a ideia e me disse “se achas que esse é o teu caminho, eu estou ao teu lado”. Depois contei aos meus filhos, João e Francisco, que, também espantados, não aprovaram mas também não desaprovaram a ideia. Quinze dias depois, disse ao Pe Tolentino, sem muita convicção, que “não fechava os olhos à luz”, que podia iniciar o caminho da formação e que, ao longo dos cinco anos, iria ter muitas oportunidades para perceber melhor se este seria ou não o meu caminho. Os cinco anos passaram, a ideia foi, a pouco e pouco, ganhando corpo e, ontem fui Ordenado para servir o Povo de Deus, na Diocese de Lisboa.
O meu Espanto, foi também grande, ao ir percebendo, de muitos modos, a maneira como a Comunidade aceitou, apoiou e incentivou este desafio que o Pe Tolentino me colocou.
Espanto, por estar hoje aqui, paramentado com uma estola, colocada em diagonal, numa Capela que me viu crescer, onde conheci a Rita, onde nos casamos há 41 anos, onde os meus netos mais velhos foram Batizados e onde fiz muitos Amigos, alguns dos quais já partiram para junto do Pai e que, hoje, recordo com muita saudade.
Há umas semanas, atrás, o Pe António disse-me que contava comigo para a Proclamação de Evangelho e da Homilia no dia 30 de Junho, domingo logo a seguir ao dia da Ordenação. Aqui não fiquei espantado, mas aflito. Que leituras me iriam calhar? Quais eram as leituras do XIII Domingo do Tempo Comum? Ao lê-las, no Lecionário, mais uma vez, fiquei espantado: que coincidência!!! Nos textos de hoje vi-me, algumas vezes, ao espelho, sentindo a responsabilidade e o peso da opção feita.
A primeira Leitura conta-nos a história do profeta Elias e do profeta Eliseu. Eliseu estava com os seus bois e o seu arado a trabalhar na terra, as espectativas dele seriam continuar ali, e passa o profeta Elias e lança-lhe a capa. Isto é, desafia-o a começar um destino novo com o qual ele não contou. O profetismo acontece, muitas vezes, de surpresa ou seja Deus manifesta-se na vida de forma surpreendente e, por isso, é importante estarmos abertos para as surpresas de Deus. O modo como Deus vai entrar na vida de cada um de nós é um modo único, é um modo diferente. Por isso, é importante estarmos abertos para essa surpresa que, muitas vezes, nos espanta.
Eliseu começa esse tempo novo de vida, de uma forma muita bonita, com um momento de dádiva – mata as juntas de bois e com a madeira do próprio arado faz um banquete para os seus e despede-se. Transforma aquilo que tem numa dádiva, numa oferta aos outros. Isto é para nós um desafio muito grande – O que é nós fazemos com aquilo que possuímos? Como é que sentimos que estamos a ser chamados?
O Evangelho também nos apresenta uma sucessão de imagens significativa do modo de atuar de Jesus. Jesus tomou a decisão de Se dirigir a Jerusalém e mandou mensageiros à sua frente para lhe prepararem um lugar na Samaria, mas, como os samaritanos odiavam os judeus, quando sabem que Jesus vai para Jerusalém fecham-lhes a porta. Os discípulos dizem “Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu que os destrua?” E Jesus repreendeu-os e tomou outra opção para ultrapassar o conflito: “Não, vamos para outro lugar”. Às vezes nós ficamos presos a lutas que não vão a lado nenhum, às vezes ficamos a combater por causas que só aumentam a violência, impossibilitando o encontro. Este ir embora é, no fundo, também uma possibilidade de começar uma coisa nova, noutro sítio.
No caminho, alguém disse a Jesus “Seguir-Te-ei, para onde quer que fores”. E Jesus diz-lhe “As raposas têm as suas tocas e as aves do céu os seus ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça”. Isto é, nós seguimos Jesus não para chegar a um determinado lugar mas para arriscar viver uma vida na confiança, acreditando na Palavra, muitas vezes, sentindo o silêncio de Deus.
Mais à frente Jesus diz a outros: “Segue-me”. É uma palavra muito forte que desassossega. Um responde a Jesus: “Senhor, deixa-me ir primeiro sepultar o meu pai”, o outro responde: “ Seguir-Te-ei, Senhor, mas deixa-me ir primeiro despedir-me da minha família”. São pedidos sensatos, são pedidos que fazem sentido. Mas a ambos Jesus diz: “Não, deixa lá isso. Quem tiver lançado as mãos ao arado não pode olhar para trás senão deixa de ser digno de Mim”. Com este tipo de resposta Jesus diz-nos que nós temos de ser capazes de experimentar, na nossa vida, a prioridade de Deus, a prioridade do Reino de Deus.
Na 2ª leitura, S. Paulo na Carta aos Gálatas, diz ao “discípulo” que o caminho do amor, do dom da vida, é um caminho de libertação. Responder ao chamamento de Jesus, identificar- -se com Ele e aceitar dar-se por amor, é nascer para a vida nova da liberdade a que fomos chamados. Não podemos desistir de dar, na nossa vida, prioridade ao Espírito, colocando-nos ao serviço uns dos outros, porque toda a Lei se resume na frase “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”.
Ao ouvir estes textos, no dia a seguir à minha Ordenação Diaconal, a minha primeira atitude foi, mais uma vez, de espanto, pelas maravilhas que o Senhor tem vindo, de forma quase sempre inesperada, a realizar na minha vida, muitas das quais eu ainda não reconheço ou não me apercebi.
Fui ontem ordenado Diácono para “servir” o Povo de Deus, ser sinal de Cristo-Servo – Recebe o Evangelho de Cristo, que tens missão proclamar. Crê o que lês, ensina o que crês e vive o que ensinas. Que o Espírito Santo me fortaleça com os seus sete dons e me ilumine neste caminho, que seja o meu guia, e me dê forças para ser fiel à missão recebida. A todos, peço também que me ajudem a cumprir esta missão que me foi confiada. A todos peço o favor de me incluírem nas vossa Orações.
Diácono José Alberto Lopes Costa, Domingo XIII do Tempo Comum
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2019/06/29 - Ordenação diaconal do José Alberto Lopes Costa
Na mesma celebração da eucaristia serão ordenados também dois presbíteros e mais cinco diáconos. Vamos acompanhá-los com a nossa oração, e se possível com a nossa presença. Será para todos nós um momento de ação de graças pela disponibilidade destes irmãos, como padres e como diáconos, que se colocam ao serviço da Igreja de Lisboa.
Na eucaristia do dia 30 de junho, às 11.30h, na Capela do Rato, o querido José Alberto exercerá o seu ministério de diácono, proclamando o evangelho.
2019/06/17 - Percurso de Preparação para os Sacramentos da Iniciação Cristã
2019/06/17 - Percurso de Preparação para os Sacramentos da Iniciação Cristã
2019/06/09 - Mestre interior (homilia)
Queridos Irmãos
Como os Apóstolos, também nós estamos aqui reunidos todos no mesmo lugar, neste pequeno espaço físico mas de grande riqueza humana que é a Comunidade do Rato. Somos diferentes, cada um portador da singularidade da sua história de vida, grandiosa mesmo em sua pobreza e fragilidade. Uns vieram de mais perto, outros de mais longe. Uns trazem a objetividade das suas competências (musicais, vocais, estéticas), mas todos trazemos o dom da nossa presença, este estar aqui na alegria do encontro, da festa partilhada. Assim nos cumprimos como Comunidade reunida pelo Espírito Santo, o sopro da fecundidade do amor e da vida de Deus em nós.
É no e pelo Espírito que a comunidade cristã se realiza como corpo inclusivo de diversidades, no concreto dos espaços, das vidas e das situações. Cada um de nós se sinta reconhecido e agradecido em sua singularidade, mesmo naquela mais discreta ou mais silenciosa. Cada um(a) em concreto e todos em comunhão complementar: este é o sentido da Solenidade de Pentecostes.
No relato dos Atos dos Apóstolos, o dom do Espírito divino divide-se e reparte-se em forma de línguas de fogo: sobre cada um dos Apóstolos e de Maria poisa e repousa uma língua. O mesmo impulso divino, que enche toda a casa pessoaliza-se, indo ao encontro de cada pessoa concreta. Na repartição do dom do Espírito não há eleitos nem excluídos; todos são integrados, confirmados e consagrados.
A solenidade que hoje celebramos é a festa fundante da vida em comunidade, a festa da Igreja-comunhão feita da partilha de dons, de alegrias e dores, de experiências luminosas e dramáticas, de histórias de vida, de serviços: «Em cada um se manifestam os dons do Espírito para o bem comum», diz-nos Paulo na segunda leitura. É no Espírito Santo que nos cumprimos como comunidade: unida na riqueza das suas diferenças. Deus quer-nos diferentes, únicos, singulares, mas com as nossas diferenças quer-nos complementares. O Pentecostes é a festa da diversidade mas também a festa da unidade. «Há diversidade de dons espirituais, mas o Espírito é o mesmo».
No relato do evangelho de João, hoje proclamado, Jesus despede-se dos discípulos em sua partida para o Pai através da páscoa (do dom da sua vida até ao fim). Neste adeus, Jesus prepara os discípulos para a sua ausência, para serem testemunhas no mundo do seu amor pelo Pai e pelos irmãos. Por eles e por todos os crentes do futuro reza: para que sejam um como Ele e o Pai são um. Nessa oração pede ao Pai o dom do Paráclito para «estar sempre com eles/connosco». Para que não se sintam só, perdidos, entregue a si mesmos.
«Paráclito» quer dizer defensor, consolador, aquele que vem em socorro do nosso grito e da nossa dor, aquele que escuta a nossa carência e por nós intercede. Por vezes entramos na lógica da acusação, de quem só aponta defeitos e assinala erros e carências. O Paráclito ensina-nos, continuamente, a ir em socorro dos mais débeis porque também nós somos socorridos, a consolar porque somos consolados; ensina-nos a ver promessas e possibilidades para além dos limites e das carências; a defender, a promover, a cuidar e a consolar.
Enviado pelo Pai a pedido do Filho, o Espírito Paráclito tem a missão de nos «ensinar todas as coisas» e de nos «recordar de tudo» o que Jesus disse. O Espírito é o nosso mestre interior, o nosso pedagogo, o nosso catequista, o nosso teólogo; é quem nos guia na escola do amor do Pai e do Filho. Ele garante, continuamente, a memória viva em nossos corações das palavras e dos gestos de Cristo. Pelo Espírito, a Palavra de Cristo continuamente se interioriza, se descobre com novos significados. Não é uma palavra estagnada, mas uma Palavra de vida a suscitar novas experiências, novas leituras, novas linguagens, novas interpretações. Na memória do Espírito, o evangelho de Cristo é permanente novidade.
Neste dia de Pentecostes, da festa das línguas e da linguagem («cada qual os ouvia falar na sua própria língua»), desejei que se voltasse a (re)interpretar, no próprio acontecer da eucaristia, a missa que o nosso querido João Madureira compôs para o Pentecostes e que dedicou a esta Comunidade do Rato em 2010. Uma feliz convergência de possibilidades torna este desejo realidade. Agradecemos a disponibilidade dos Sete Lágrimas que dão voz e som, tonalidade e entoação às composições musicais do João. Não estamos perante um espetáculo nem perante um concerto em que somos mero público que assiste. Estamos todos a celebrar a eucaristia de Pentecostes, numa diversidade de desempenhos e contributos. Nas vozes e nas interpretações dos Sete Lágrimas é uma comunidade inteira que celebra, um povo que canta a ação inspiradora do Espírito. Eles são a nossa voz em louvor; eles cantam por nós um cântico novo, jubiloso, agradecido e suplicante.
João Madureira é um dos compositores mais originais da sua geração. Pertence a esta Comunidade e connosco caminha na fé. Dá-nos a alegria da sua presença. A sua inspiração e criatividade é dom que queremos acolher, agradecer e honrar. A sua música é bem expressão de um encontro inspirador entre tradição e renovação. Não se deixa explicar por ideologias tradicionalistas nem por retóricas vanguardistas. A sua música não é uma reprodução de escola, nem exercício de academismo. É música empenhada eticamente, sem se tornar um panfleto. É música em busca dos lugares espirituais, sem se deixar capturar pelos catálogos da «música de igreja». No trabalho sobre a memória bíblica e cristã, a sua música aproxima-se tantas vezes do contínuo extático e do silêncio místico. A sua música exige que aprendamos a ouvir. Na escuta da sua música educamos o nosso ouvido, e podemos sem dúvida dizer que nessa atenta escuta também somos ensinados pelo Espírito.
A Missa de Pentecostes, do João Madureira, apresenta-se como um todo, feito de fragmentos, num discurso musical e estético aberto. A tradição do cântico gregoriano dialoga com as vanguardas contemporâneas, numa transgressão fecunda de fronteiras. As heranças musicais recebidas cruzam-se com novas linguagens musicais. As partes próprias do ordinário da Missa (ordo) sucedem-se, na sequência litúrgica, num feliz encontro entre tradição e inovação. Nas palavras do próprio João Madureira, «A Missa de Pentecostes é um lugar em que se procura interrogar a tradição gregoriana através das práticas da música contemporânea – e vice-versa. Revistar a tradição medieval. Recontextualizar as tradições populares, abraçar a tradição tonal, abrir portas a momentos marcados pela herança da música espectral… É um discurso musical aberto, em que cuidadosamente se evita a supremacia de qualquer linguagem sobre outra».
O latim litúrgico coexiste e dialoga com a poesia contemporânea de Teixeira de Pascoais, de Sophia de Mello Breyner, de Mário Cesariny, de Maria Gabriela Llansol, de José Augusto Mourão. O canónico abraça o mundano, não em sentido pejorativo, mas em seu sentido mais próprio e profundo, a verdade e a realidade das coisas criadas que nos são dadas a ver, a habitar, a cuidar: a água, a luz, o céu, o mar, a flor, a noite, o amanhecer, o jardim, o vento, a estrada… Os poemas contemporâneos convocados celebram a alegria encantatória do epifania do mundo (da criação) diante de nós: o espetáculo maravilhoso da gratuidade do puro ser das coisas que existem sem nós e para nós.
Na missa do João Madureira celebramos o dom da inspiração e da criatividade, a memória da tradição em sua contínua inovação; a beleza da imanência do mundo marcado pela transcendência do Espírito que o habita. Na voz deste canto, que é nosso, todo o fragmento de matéria se transfigura. Esse é o destino da eucaristia, santificar e consagrar a matéria, através da nossa humanidade, pela invocação do Espírito: «Enviai Senhor o vosso Espírito e renovai a face da terra». Por isso mesmo, a Missa do João Madureira é uma bela expressão litúrgica do Pentecostes.
Cumprimo-nos como Igreja (comunidade crente, no seu todo), e singularmente como pessoas que buscam um sentido para o nosso viver quotidiano, em permanente epiclese/invocação do Espírito. Gritamos de desejo ao Espírito Santo para que nos santifique, nos inspire, nos renove, nos console e nos socorra. Porque somos frágeis e carentes, porque a nossa vida corre riscos, porque a bênção e fecundidade de Deus nunca nos abandonam. Todos os nossos gestos de bondade e de beleza, todos os nossos momentos de paz, de inteireza e de dádiva, todos os encontros conseguidos, são dons do Espírito. O Espírito respira em nós em nossa própria respiração. Porque o Espírito é a respiração da vida, do universo. Agradecidos pela vinda do Espírito, gritemos-lhe a nossa urgência, com as belas e ousadas palavras de José Augusto Mourão:
vem, defensor do pobre
vem, sinal rumoroso da voz
que move o mundo
vem, memória de água
barqueiro do nosso olhar
entre a luz e o seu véu
vem, testemunha da dor
e da angústia sem nome
vem, força da vida
Pe. António Martins, Domingo de Pentecostes
Clique para ouvir a homilia
2019/06/09 - Missa de Pentecostes, de João Madureira, pelos Sete Lágrimas
2019/06/06 - Percurso de Preparação para os Sacramentos da Iniciação Cristã
Maio
2019/05/27 - Ciclo de reflexão sobre situações-limite e espiritualidade - Pessoa, Solidões e Espiritualidade
Na sequência da última mesa redonda do ‘Ciclo de reflexão sobre situações-limite e espiritualidade’, com a temática “Pessoa, Solidões e Espiritualidade”, partilhamos os contactos dos apoios para quem se sente em solidão, divulgados nessa iniciativa.
APOIO TELEFÓNICO
- SOS Voz Amiga – linha de apoio emocional que se disponibiliza a ajudar todos aqueles que se encontram em situações de sofrimento causadas pela solidão, ansiedade, depressão ou risco de suicídio.
Contacto:
Conversa Amiga (diariamente das 15h às 22h) – 808 237 327 – 210 027 159
SOS Estudante (diariamente das 20h às 01h) – 239 484 020
Telefone da Esperança (diariamente das 20h às 23h) – 222 080 707
Telefone da Amizade (diariamente das 20h às 23h) – 222 080 707
Voz de Apoio (diariamente das 21h às 24h) – das 225 506 070
APOIO PRESENCIAL
- GEscuta, Gabinete de Escuta – acompanhamento psicoemocional gratuito a qualquer pessoa que esteja em situação de crise ou vulnerabilidade, nomeadamente em situação de doença, solidão, luto, desenraizamento, maus relacionamento com os outros ou consigo mesmo, ausência de sentido para a vida ou, simplesmente, necessidade de ser escutada.
Contacto: 964 400 675 – gescuta@gmail.com - Lata65 – projeto que estende a arte urbana a todas as gerações
Contacto: https://www.facebook.com/Lata65/ - Universidade Sénior da Freguesia de Santo António (Paróquia de S. Mamede) – informações e inscrições nos Polos da Freguesia ou info@jfsantoantonio.pt
- Amigos Improváveis – grupos de voluntários comprometem-se a fazer regularmente (semanalmente) visitas domiciliárias a pessoas com mais de 65 anos
Contacto: Juntas de Freguesia e/ou https://amigosimprovaveis.weebly.com - Coração Amarelo – assegurar, através de voluntários devidamente selecionados e formados, apoio e acompanhamento a pessoas idosas, em particular, às que se encontram em situação de isolamento, solidão e/ou dependência, quer vivam no seu domicílio habitual de vida quer se encontrem a residir numa instituição.
Contacto: 217 958 167 - Associação Mais Proximidade Melhor Vida – apoio à população idosa residente na Baixa de Lisboa e Mouraria
Contacto: 213 425 268 – https://www.mpmv.pt/ampmv/ - Centro Social Paroquial de S. Francisco de Paula – https://www.cspsaofranciscodepaula.pt/sobre-nos | https://www.facebook.com/centrosocialsaofranciscodepaula/
- Ao 3º dia – grupo de cristãos com doença grave ou crónica que procuram encontrar sentido e luz, num caminho de maior aceitação e integração da realidade
Contacto: https://grupoao3dia.wordpress.com | grupoao3dia@gmail.com | Mariana Abranches Pinto – 918 991 537 | Vasco Mina (Lisboa) – 918 807 806
SUGESTÕES DE LEITURA
- “The Call Of Solitude: Alonetime In A World Of Attachment” de Ester Scha Buchholz (Simon & Schuster). ISBN 9780684872803
- “Sobre o Amor e a Solidão” de J. Krishnamurti (Cultrix). ISBN 9788531605208
- “Na Liberdade da Solidão” de Thomas Merton (Vozes). ISBN 9788532625755
- “La Gráce de solitude” de Albin Michel, Paris 2006
- “Solitudes, nuit et jour” de Véronique Margron, Bayard, Paris 2014
- “Nós e os outros. O poder dos laços sociais” de Maria Luísa Pedroso de Lima, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2018
2019/05/23 - Percurso de Preparação para os Sacramentos da Iniciação Cristã
2019/05/22 - Rezar com os Salmos - «Vou interpretar o meu enigma ao som da lira» – a música dos Salmos, com Alfredo Teixeira
A proposta de um percurso pelo Livro dos Salmos, sob o signo da música, tem múltiplas portas de entrada. Não precisamos de ficar reféns da discussão acerca da sua origem histórica ou presos às indicações explícitas das práticas musicais que os próprios salmos descrevem. Precisamos apenas de recordar que se trata de poesia orante. Poesia que habita milenarmente as vozes dos crentes, nas suas comunidades, como um contínuo partilhado. Talvez seja na leitura ou no canto de um salmo que mais facilmente experimentamos algo de decisivo para a condição crente: sentir-se gerado.
Propõe-se um encontro meditativo com alguns lugares da grande tradição da música ocidental, descobrindo aí modos de ler a literatura sálmica. Os salmos habitam os ritos cristãos, e esse foi o laboratório de grande parte da criação musical europeia. Nessa rota histórica, sabemos, esses ritos perderam alguma da sua força social, mas não pode dizer-se o mesmo dos salmos. Para além dos contextos rituais e litúrgicos, a criação musical descobriu nos salmos uma palavra vibrante sobre os enigmas da experiência humana.
Aquilo que trago aqui é um mapa possível, não é a própria viagem, que deixo à iniciativa de cada um. A viagem permite-nos recordar que o habitat litúrgico cristão foi um dos principais laboratórios da música escrita de tradição europeia. Mas também é certo que a modernidade estética se afirmou numa via de autonomização em relação a esse meio. O século XX, entre a amnésia e a anamnese, entre o esquecimento e a rememoração, mostra-nos um universo musical muito diversificado, com leituras da memória cristã emancipadas de um programa ritual. Mas não necessariamente contra a tradição que os ritos transportam. Por vezes, essa afirmação de autonomia do artista conduz-nos a lugares inesperados, ao desvelamento de núcleos adormecidos da mensagem bíblica e cristã. Tomo como exemplo dessa emancipação o gesto de Peter Eötvös, que em memória de Frank Zappa escreveu o «Salmo 151» – uma obra para percussão, muito próxima do silêncio, na demanda de uma mística da matéria
https://www.youtube.com/watch?v=0jtB1EEtTgw
Recentemente, o Lincoln Center, em NY, programou uma ambiciosa série de concertos exclusivamente centrada nos 150 salmos bíblicos: 150 compositores para 150 salmos. É uma boa expressão da vitalidade da relação deste livro bíblico com a cultura. David Lang, um dos compositores mobilizados para este projeto, que ganhou o Prémio Pulitzer de Música em 2008, referiu-se ao Livro de Salmos como «um catálogo de todas as maneiras pelas quais podemos conversar com Deus».
https://www.nytimes.com/2017/10/31/arts/music/psalms-white-light-festival-lincoln-center.html
Esta é uma boa perspetiva sobre as leituras (ou reescritas) do Livro dos Salmos no curso da história da música ocidental: a intimidade e a extroversão, o trágico e o épico, a comemoração e a profecia, a confiança e a justiça, a aflição e o júbilo. São palavras sobre Deus, dirigidas a Deus. Mas nessa polifonia descobrimos algo da singularidade do Deus bíblico e cristão. É um apelo ao desejo de Deus. São palavras acerca de um Deus sensível – que escuta, que acolhe, que protege com a sua sombra, que se levanta para defender, que se deixa transcrever nos enigmas humanos, como a vibração de um instrumento musical.
Começamos a nossa viagem com um exemplo das grandes arquiteturas vocais quinhentistas: o moteto sálmico Qui habitat, atribuído a Josquin des Prez (compositor franco-flamengo). A obra é construída a partir de quatro cânones a seis vozes, que se entrelaçam. O ostinato harmónico e os processos canónicos tornam-se quase uma espécie de mantra que apela à criação de um espaço de intimidade com Deus, ou mesmo de arrebatamento – sob a metáfora da sombra acolhedora, que o salmo evoca. Trata-se de música ao serviço de um programa ritual que transporta até nós as grandes arquiteturas religiosas.
Da catedral para a corte, numa época de trânsitos entre o político e o religioso, encontramos Lalande, um dos compositores do palácio de Versalhes. A obra que escolhi corresponde à figura do «grande moteto», com o esplendor próprio das cortes do século XVII, num tempo em que tudo aspira à grandeza. Escolhi, no entanto, um dos números que não se deixa descrever pela retórica da grandiosidade. Uma ária para soprano, que dialoga (numa espécie de dança mística) com um oboé – Bach irá «coreografar» muitas destas danças. O trabalho composicional valoriza as novas aquisições técnicas no tocante ao canto profissional, no século XVII. São técnicas ao serviço de uma cultura emergente, a cultura do indivíduo. Expressividade e subjetividade são qualidades que dialogam bem com este De profundis, salmo que os ritos latinos associam à liturgia dos defuntos. No fragmento escolhido, encontramo-nos perante um Deus que se espera como os vigilantes esperam pela manhã.
Bem diferente é o mundo do chamado «Saltério dos Huguenotes». É uma recolha de 150 salmos, versificados e metrificados, em língua francesa, por Clément Marot e por Théodore Bèze, inscritos no universo reformado (calvinista), tanto para uso no culto, como noutras práticas de canto coletivo, bem como nas mais diversas situações quotidianas. Neste novo contexto, o salmo pode ser um embalo, uma canção de trabalho, ou um hino mobilizador. Passamos do mundo de uma língua ritual, reservada, para o mundo vernacular das línguas mátrias ou pátrias. Esta coleção de cantos monódicos conhecerá um rico trabalho de reconstrução harmónica pela mão de compositores como Claude le Jeune ou Claude Goudimel. Essa forma coral, com um substrato estruturalmente monódico, ampliado por um trabalho de verticalização harmónica, tornar-se-á um emblema da música protestante.
Encontramos outa forma de vernaculização já do século XIX. No verão de 1828, Franz Schubert compôs uma obra sobre um texto em hebraico: o «Salmo 92». Estava-se na via de uma certa desritualização do canto dos salmos. Neste caso, o recorte popular dos materiais melódicos estabelece uma relação de enraizamento com uma dupla tradição – judaica, pela língua, e protestante, pela forma. No fragmento selecionado para a audição, o salmista recorda que dia e noite, todas as horas, podem ser de louvor – o louvor perene.
Essa dupla tradição exprime-se de forma diferente na biografia de Felix Mendelssohn-Bartholdy, um judeu que se havia convertido ao protestantismo, e que travou várias lutas para ser aceite na sua nova religião. Mendelssohn participou nos debates da sua época acerca do lugar e da função da música de igreja. O salmo-cantata que selecionei é um dos resultados artísticos dessa reflexão. No fragmento que escolhi ouvimos a memória da arte do arioso, distintiva da música de Bach. Neste salmo sobe o desejo de Deus, Mendelssohn aproxima-se do legado de um dos mais importantes representantes de uma compreensão da composição musical como ato que prolonga a criação divina – refiro-me a J. S. Bach.
Os ecos da tradição coral protestante chegaram também ao século XX. Na segunda década do século XX, Gustav Holst deu particular atenção à escrita de obras corais, com um expressivo recorte festivo, como é o caso do seu trabalho musical sobre os Salmos 86 e 148. Têm o espírito próprio da grande assembleia, muitas vezes expressão não só de uma comunidade local, mas também de uma comunidade nacional. Trata-se de uma melodia recolhida no Saltério do Huguenotes, recriada num novo universo harmónico.
Os séculos XX e XXI dão corpo a uma enorme diversidade de leituras dos salmos. Do meu ponto de vista, há um certo contraste entre aqueles que se relacionam com este livro como um património literário e étnico e aqueles que revalorizam o seu contexto ritual, comunitário e orante, promovendo um movimento algo inesperado – como que a continuação da liturgia para fora dela própria, numa trajetória em que uma tradição religiosa se pode abrir ao espaço público partilhado.
Uma das obras emblemáticas da música do século XX é feita da matéria dos salmos. Refiro-me à Sinfonia de Salmos de Igor Stravinski. Trata-se de uma obra com as características próprias de uma peça sinfónica, entre o épico e o trágico. A obra não tem uma relação evidente com os contextos litúrgicos e orantes que os salmos evocam – mesmo se alguns preferem ver em algumas texturas corais a homofonia da música da Igreja ortodoxa russa. Na sua gramática, é uma obra emancipada dessa memória. Aqui, Stravinski, como noutras obras, ficciona um mundo pré-cristão, dando voz a um certo «primitivismo» estético que se transcreve na exuberância dos elementos rítmicos. Mas deixou os salmos inscritos, assim, de forma inapagável, na história da música do século XX. O primeiro andamento, a partir do Salmo 39, envolve-nos num ambiente tenso. O «grito de súplica» é, talvez, o núcleo de sentido mais valorizado neste primeiro andamento.
A obra Chichester Psalms de Leonard Bernstein é igualmente uma página incontronável da música do século XX. Resulta de uma encomenda do deão da catedral de Chichester. Uma encomenda arriscada a um compositor judeu americano fortemente associado aos sons da Broadway. A obra dialoga, de facto, com diversos estratos da cultura norte-americana. O andamento que escolhi está, talvez, mais próximo do lirismo de algumas baladas hebraicas, acentuado pela escolha da língua original. Pelo menos foi recebido como tal. É um salmo para o orante sem medo, confiante.
Esta prioridade dada às sonoridades da língua hebraica é também uma característica do trabalho composicional de Steve Reich, também ele um americano de ascendência judaica. O seu interesse pelo hebraico (que o título da obra, Tehillim, explicita sem equívocos) traduz a vontade de renovar os materiais da música ocidental a partir de substratos extraeuropeus. O resultado não é, no entanto, uma proposta musical marcada por elementos folclóricos. O que Steve Reich descobre nesse mundo culturalmente diversificado é o que de mais universal se pode descobrir nas práticas musicais: a periodicidade, a pulsação, a harmonia. Escolhi, para o nosso exercício de escuta o Salmo 19. Como podemos ouvir, o salmo é tratado com uma objetividade rítmica que evoca a formalização e o esquematismo ritual. Mesmo se podemos ouvir algo das formas de cantilação hebraica dos salmos, o compositor não deixa de privilegiar um certo abstracionismo.
Outros compositores trabalham de forma mais vinculada à tradição orante da comunidade religiosa em que se inscrevem existencialmente. Einojuhani Rauatavaara, compositor finlandês, escreveu, na década de 70, a obra Vigilia, que transcreve estritamente a estrutura dos ofícios litúrgicos ortodoxos, recriando, mesmo que se trate de um concerto, uma temporalidade característica dos ritos litúrgicos ortodoxos. No fragmento que escutamos, as palavras emergem das profundezas, um espaço de interioridade.
As raízes da vocalidade dos ritos da ortodoxia na Rússia estão patentes, também, numa importante obra coral do século XX, os «Salmos de arrependimento» de Alfred Schnittke. O compositor, apesar de ter feito parte do mainstream da cultura da Rússia comunista, conheceu algumas dificuldades com o regime. Esta obra corresponde já a uma fase de aproximação à Igreja ortodoxa.
O seu reconhecimento e os seus contactos na Europa ocidental foram importantes no acolhimento de um outro compositor, também ele habitado por um itinerário de reidentificação religiosa, o estoniano Arvo Pärt, que se viria tornar um dos principais símbolos do incremento das dimensões espirituais na música europeia contemporânea. Escolhi, para a nossa experiência de escuta, o início da obra De profundis, uma das primeiras que gravou na editora que viria o consagrar como um dos compositores vivos mais interpretados no mundo.
Depois de um período de silêncio, o seu regresso à composição foi precedido por uma longa meditação sobre a música antiga. De profundis inscreve-se nesse desejo de visitar uma certa representação da música pré-moderna, identificando-se com a figura do compositor anónimo – como que um exercício de ascese autoral. Este é o período em que Arvo Pärt forja um idioma próprio, marcado pela sua viagem pelas paisagens musicais pré-modernas e pela sua aproximação à Igreja Ortodoxa – ele que vinha de uma família luterana secularizada. O compositor cunhou essa técnica composicional com o termo tintinnabuli (pequenos sinos). Trata-se de um particular cruzamento entre as técnicas de cantilação de origem judaica e cristã e as formas mais arcaicas de contraponto. Este aspeto idiomático não transcreve apenas uma técnica. A meu ver, a referência simbólica ao sino é uma metáfora espiritual de grande alcance. Na Europa cristã, a paisagem sonora está marcada pela vibração dos sinos, seja na fração do tempo, seja na evocação do canto, ou na gestação de uma comunhão orante assinalada pelo seu bamboar litânico.
No contexto protestante, são vários os compositores que propõem obras fortemente vinculadas à sua tradição religiosa. Selecionei uma obra de Gabriel Jackson, Psalm 112, compositor que fez a sua socialização religiosa e musical como menino cantor numa das escolas das catedrais anglicanas. A sua música coral continua a respirar essa tradição, reinventando algumas das primeiras técnicas de polifonia, privilegiando sempre uma enorme inventividade rítmica, no que diz respeito à dicção dos textos litúrgicos. A sua leitura do Salmo 112 é luminosa, por vezes estonteante, como uma alegria que não se pode conter.
No campo católico, gostaria de destacar James MacMillan, compositor fortemente ligado ao catolicismo escocês. Com uma carreira internacional, também como maestro, arriscamo-nos a vê-lo dirigir, ao domingo, o pequeno coro da sua comunidade paroquial, se o visitarmos em Glasgow. James MacMillan escreveu um Miserere que rapidamente se tornou uma obra de referência na literatura musical sobre os salmos. Como que ouvimos, de novo, Josquim des Prez, nessa capacidade de nos envolver em linhas polifónicas ou em texturas diversas de densidade vocal. Mas ouvimos também formas de ornamentação que estabelecem uma ponte explícita com a vocalidade gaélica. No caso de James MacMillan, o apelo do universal convive com o desejo de transportar a memória do lugar que habita.
As dimensões de etnicidade que, de modos diversos, descrevem a nossa contemporaneidade musical dialogam de forma direta com uma história dos séculos XX e XXI marcada pelo choque das identidades. Por vezes é uma linguagem de resistência. Outras, uma celebração ou uma comemoração. Cyrillus Kreek representou, na Estónia da primeira metade do século XX, essa vontade de memória, incorporando elementos autóctones nos seus processos de construção. Isso está bem patente na sua coleção de «Salmos de David». escritos entre 1914 e 1944. Ouvimos o Salmo 1, na sua característica ornamentação vocal, na sua energia rítmica. Kreek transforma esta oração sapiencial, meditando sobre o caminho da retidão, num salmo aleluiático. Na leitura do compositor, esse caminho de retidão é, certamente, um caminho feliz.
Em Portugal, Eurico Carrapatoso é o mais importante herdeiro desta tradição de autoctonização da criação musical, numa linhagem que inclui Fernando Lopes Graça. A sua leitura do último dos salmos bíblicos é um bom exemplo do seu ecletismo criativo. A obra é uma verdadeira celebração de louvor. No exemplo que trago, reconhecemos três secções. Uma primeira estruturada em acordes sublinhados expressivamente por formas de ataque que apelam a uma solenidade festiva. Mas essa gravidade festiva dá lugar a uma alegria quase histriónica, numa segunda secção, cujos materiais nos transportam para a cenografia de um teatro musical. Mas a terceira secção é surpreendente. Eurico Carrapatoso retoma uma melodia religiosa tradicional (já antes recriada num ciclo de música coral), moldada com as cores da mais pura harmonia. A orquestra extingue-se e permanece o que de mais sagrado tem a música: a voz humana.
Salmo 91(90), 1-2
Aquele que habita sob a proteção do Altíssimo
e se acolhe à sombra do Omnipotente,
esse poderá exclamar: «Ó Senhor,
Tu és o meu Deus, em quem confio!»
Josquin des Prez, Qui habitat, Moteto sálmico (XV-XVI)
https://www.youtube.com/watch?v=EAbotoF2ZDo
Salmo 33 (32), 1-2
Exultai, ó justos, no Senhor;
aos que são honestos fica bem louvá-lo.
Louvai o Senhor com a cítara;
com harpa de dez cordas entoai hinos.
Saltério dos Huguenotes, Clément Marot, Théodore de Bèze (Genève, 1562)
https://www.youtube.com/watch?v=fb6GCMzyHrU
Salmo 130 (129), 5-6
Eu espero no Senhor. Sim, a minha alma espera!
E confio na sua palavra!
A minha alma volta-se para o Senhor,
mais do que as sentinelas para a manhã
Michel-Richard de Lalande, Sustinuit anima mea, in De Profundis (1689)
https://www.youtube.com/watch?v=XJe9y0prFGs
Salmo 92 (91), 2-3
Como é bom dar graças ao Senhor,
e cantar hinos ao teu nome, ó Altíssimo!
É bom anunciar de manhã a tua misericórdia
e a tua fidelidade durante a noite,
com a lira de dez cordas e a cítara
e ao som melodioso da harpa.
Franz Schubert, Psalm 92, D 953 (1828)
https://www.youtube.com/watch?v=R4T9lA0Ujkw
Salmo 42 (41), 3
A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo,
Quando poderei entrar para ver a face de Deus?
Felix Mendelssohn, Psalm 42, Op. 42, MWV A15 (1837-38)
https://www.youtube.com/watch?v=E0saNS3yLF0
Salmo 148, 1 e 3
Louvai o Senhor do alto dos céus,
louvai-o nas alturas.
Louvai-o, Sol e Lua;
louvai-o, todos os astros luminosos!
Gustav Holst, Psalm 148: Lord, who hast made us for thine own (1912)
https://www.youtube.com/watch?v=QyJSM4vQHnw
Salmo 39 (38), 13-14
Escuta, Senhor, a minha oração
e atende o meu grito de súplica;
não fiques insensível às minhas lágrimas.
Pois sou um forasteiro a viver junto de ti,
um hóspede, como todos os meus antepassados.
Igor Stravinski, Exaudi orationem meam, in Sinfonia de Salmos (1930)
https://www.youtube.com/watch?v=7ct26nwqO2E
Salmo 23 (22), 4
Mesmo que ande por vales tenebrosos,
não temerei mal algum.
Porque Tu estás comigo,
a tua vara e o teu cajado me dão coragem.
Leonard Bernstein, Chichester Psalms (1965)
https://www.youtube.com/watch?v=QcF3t-W3Wi8
Salmo 1, 1
Feliz o homem que não segue o conselho dos malfeitores,
que não se detém, no caminho dos pecadores
e não toma parte em reunião de maldizentes.
Cyrillus Kreek, Onnis on inimene, in Taaveti laulud (1914-44)
https://www.youtube.com/watch?v=6xw-oQJQwPk
Salmo 103 (102), 1 e 6
Bendiz, ó minha alma, o Senhor,
e todo o meu íntimo bendiga o seu nome santo.
O Senhor garante a justiça
e direito para todos os oprimidos.
Einojuhani Rautavaara, Psalm 103, in Vigilia (1971-72)
https://www.youtube.com/watch?v=fmgirMuWHh0
Salmo 130 (129), 1-2
Do profundo do abismo clamo a ti, Senhor.
Senhor, ouve a minha voz!
Estejam os teus ouvidos atentos à voz da minha súplica.
Arvo Pärt, De profundis (1980)
https://www.youtube.com/watch?v=tdoafPTSQpE
Salmo 19 (18), 2-3
Os céus proclamam a glória de Deus,
e o firmamento anuncia a obra das suas mãos.
Um dia passa mensagem ao outro dia
e uma noite dá a conhecer à outra noite.
Steve Reich, Psalm 19, in Tehillim (1981)
https://www.youtube.com/watch?v=Wbu0_YObi3Q
Salmo 10 (9, 22-39), 14
Mas Tu vês a angústia e o pesar;
Tu o observas e o tomas em tuas mãos.
A ti se abandona o pobre, confiante;
Tu és o amparo do órfão.
Alfred Schnittke, VIII – Se desejas superar uma tristeza sem fim, in Salmos de arrependimento (1988)
https://www.youtube.com/watch?v=0eGXFYvieiM
Salmo 113 (112), 1-2
Aleluia!
Louvai, ó servos do Senhor,
louvai o nome do Senhor.
Bendito seja o nome do Senhor,
desde agora para sempre.
Gabriel Jackson, Psalm 112: Laudate Pueri (2004)
https://open.spotify.com/album/2fJNW1mNpA9C62ZGjAA5h9
Salmo 51 (50), 3-4
Tem piedade de mim, ó Deus, pela tua misericórdia;
segundo a tua grande compaixão, apaga a minha culpa.
Lava-me inteiramente da minha iniquidade
e purifica-me do meu pecado.
James MacMillan, Miserere (2009)
https://www.youtube.com/watch?v=st2E_uhy5Mo
Salmo 150, 3-5
Louvai-o ao som da trombeta;
louvai-o com a harpa e a lira!
Louvai-o com tambores e danças;
louvai-o com instrumentos de corda e flautas!
Louvai-o com címbalos sonoros;
louvai-o com címbalos de aclamação!
Eurico Carrapatoso, Salmo CL, nº 3 (2000)
https://www.youtube.com/watch?v=W7FT33I9maY
Lista de reprodução: https://open.spotify.com/playlist/0fuVIvE5p0ln8Musi3gXZ7
Capela do Rato, 22-05-2019
2019/05/18 - Congresso sobre Etty Hillesum com início na Capela do Rato
Audio Completo
Abertura e Momento de Oração
Momento musical – Bach e João Madureira
Apresentação e preleção Klaas Smelik
Momento de leitura – Luís Miguel Sintra
Momento de leitura – Maria Rueff
Filipe Condado
D. José Tolentino Mendonça
Pe. António Martins
O primeiro congresso internacional em Portugal sobre Etty Hillesum, organizado pelo Centro de Estudos Comparatistas, da Faculdade de Letras da Universidade Lisboa, tem o seu início na Capela do Rato, às 18h00 do dia 18 de maio, sábado. Neste dia, D. José Tolentino Mendonça vai apresentar o livro “Nos passos de Etty Hillesum”, com imagens do fotógrafo Filipe Condado, da editora Sistema Solar-Documenta, projeto nascido no seguimento de uma peregrinação à Holanda, coordenada pelo arcebispo, então capelão da Capela do Rato.
A sessão, com entrada livre, será marcada pela estreia de uma peça do compositor João Madureira, com interpretação de Maria José Barriga e Ana Sofia Sequeira, e a participação de Luís Miguel Cintra e Maria Rueff na leitura de textos extraídos do “Diário” e das “Cartas” de Etty Hillesum.
Consulte aqui o programa do congresso.
Mais informações:
https://setemargens.com/nos-passos-de-etty-hillesum-pre-publicacao/
https://www.snpcultura.org/luis_miguel_cintra_le_etty_hillesum.html
https://www.snpcultura.org/maria_rueff_le_etty_hillesum.html
https://www.snpcultura.org/nos_passos_de_etty_hillesum.html
https://www.snpcultura.org/joao_madureira_escreve_sobre_ecos_evocacao_de_etty_hillesum.html
2019/05/16 - Curso de 'Filosofia, Literatura, Espiritualidade' – A Biblioteca do Vaticano – D. José Tolentino Mendonça
Pode também consultar aqui o artigo da Pastoral da Cultura referente a esta sessão.
Mais informações sobre o curso aqui.
Tal como já foi anunciado, a última sessão do curso Filosofia, Literatura, Espiritualidade contará com a presença do arcebispo D. José Tolentino Mendonça, responsável pelo Arquivo Secreto do Vaticano e pela Biblioteca Apostólica. Esta sessão, com entrada livre, realiza-se no dia 16 de maio, quinta feira, às 18h30, na Capela do Rato e não no local anunciado anteriormente.
D. José Tolentino Mendonça irá partilhar connosco, sua comunidade de origem, a experiência recente na sua missão atual. Refira-se que, enquanto anterior capelão da Capela do Rato, esteve muito ligado à criação do curso de filosofia, tendo participado também em todas as anteriores edições como conferencista.
A comunidade da Capela do Rato acolhe com muita alegria e expectativa esta sua visita tão especial.
Pode consultar aqui o artigo da Pastoral da Cultura referente a esta sessão.
2019/05/09 - Percurso de Preparação para os Sacramentos da Iniciação Cristã
2019/05/06 - Curso “Filosofia, Literatura, Espiritualidade – Teolinda Gersão - Isabel Rocheta
Abril
2019/04/29 - Curso “Filosofia, Literatura, Espiritualidade – Marguerite Yourcenar - Pe. António Martins
2019/04/22 - Curso “Filosofia, Literatura, Espiritualidade – Shusako Endo - Pe. Adelino Ascenso
Mais informações sobre o curso aqui.
2019/04/21 - Correr por amor (homilia)
E se a Páscoa começasse com uma grande maratona? Uma daquelas maratonas com todos, crianças, jovens, adultos, até de canadianas e de cadeira de rodas?… A começar logo pelo raiar da aurora, com a noite ainda persistente. Talvez não imaginássemos que fizesse parte da linguagem da páscoa uma maratona de madrugadores.
É, de facto, essa a nota que o evangelho de João hoje nos narrada: uma maratona de três, uma mulher, a primeira a correr, e dois homens, um mais jovem que corre mais veloz e chega primeiro, outro mais idoso, mais pesado, mais cansado, que se atrasa, e chega depois. Por que correm estes madrugadores? Quem os faz correr? Porque correm logo tão de manhã? Coisa estranha, mesmo insólita: a páscoa é coisa de atletas, de gente apresada, de pessoas com urgência.
Gosto, particularmente, desta linguagem tão laica, tão pouco religiosa, tão humana e natural, coisa de pessoas reais; não há aqui ritos religiosos estereotipados, templos vistosos, sacerdotes, procissões, liturgias solenes; apenas coisas da vida, concretas, uma corrida de gente louca, de madrugada. Levamos tanto tempo a perceber e a viver que a experiência cristã, em sua autenticidade, é coisa do quotidiano, da vida de cada dia; tem uma entranhada vulgaridade, aquela densidade humana própria do viver, do amar, da amizade, do morrer, do sofrer, da alegria do encontro e da tristeza da perda. Tudo tão natural, tão nosso, e, por isso e por tanto, tão evangélico.
A primeira a correr é Maria Madalena. Corre para o sepulcro de Jesus, corre para o Amado, corre porque não se conforma com a perda daquele que a curou. Corre movida pela perda, com a coração apertado e sufocante de dor, corre porque acabou o sábado e já pode fazer alguma coisa. Corre porque não pode ficar mais paralisada, tem de agir. Corre porque correr é a única coisa que pode fazer, o que o coração lhe pede; e pede-lhe que corra para junto da sepultura do Amado. Corre levada pela chama de um amor que não morre. Maria de Madalena é essa urgência de madrugada, essa não resignação à derrota do amor pela morte do Amado.
Mas o Amado (morto) não está lá: há choque, surpresa e escândalo. Daqui brota uma nova urgência: encontrar o corpo morto de Jesus leva Maria Madalena a uma nova corrida, agora para junto dos discípulos; há que devolver o corpo morto de Jesus ao reino dos mortos (a sepultura); a sua ausência de entre os mortos é perturbadora, impensável, impossível. Jesus morto só pode estar sepultado, ali sobre a pedra tumular, a decompor-se na corrosão do tempo. Queremos que os mortos descansem em paz, e quando isto não acontece ficamos chocados e perturbados. O primeiro pensamento de Maria Madalena é que «levaram Jesus do sepulcro e não sabemos onde o puseram».
Madalena não faz apenas uma suposição, conta a autenticidade do seu sentir: alguém levou o Senhor (não está ali), e há um não saber onde esteja. Terminaremos a leitura do evangelho percebendo que o Senhor foi elevado (não roubado ou levado); e está para além de algum lugar, pois está para além da estreiteza do espaço e do tempo. De futuro, será Ele a vir ao nosso encontro, a vir aos nossos lugares. Mas Maria Madalena ainda não chegou a essa etapa de compreensão (ao ver da fé). Grande corredora é esta mulher, corre para a sepulcro, corre para os discípulos para lhes contar o escândalo do desaparecimento do corpo morto do Amado. Maria continua a correr por amor. Só o amor faz correr (aquele amor que combate e vence a morte).
Depois aparecem mais dois a correr, Pedro e o discípulo que Jesus amou (não se diz que é João). Começam por correr ao mesmo tempo, e podemos imaginá-los numa primeira etapa lado a lado. Mas depressa o discípulo amado se apressa e se adianta, ultrapassando Pedro e chegando primeiro. Também este discípulo corre por amor, porque só o amor nos faz correr para o que vale a pena, o que tem sentido, o que nos compromete por inteiros. Também para este discípulo há a impossibilidade de aceitar o desaparecimento do corpo morto de Jesus. Dois a correr, inicialmente ao mesmo ritmo, depois com ritmos diferentes, mas os dois juntos do sepulcro. Com a delicadeza e respeito o discípulo amado espera por Pedro para que este entre primeiro.
Encontro aqui uma bela imagem da nossa vida concreta eclesial de hoje e de sempre. Não temos todos de ter o mesmo ritmo. Uns caminham mais acelerados, e criam vanguardas, vão à frente, rasgam caminhos, são pioneiros. Estes atrevidos, por vezes incompreendidos, até mesmo marginalizados, são necessários: são eles que abrem caminhos novos, são eles que antecipam o futuro, criando pensamento, beleza, apontando dimensões não exploradas do evangelho. É um suicídio comunitário, uma mutilação quando uma comunidade não sabe integrar o atrevimento daqueles que correm mais rápido.
Depois há aqueles que correm lento, por cansado, por fadiga, por acomodação, por preguiça de esforço, por desadaptação às novas exigências… tantas razões. O que o evangelho não comporta é aqueles que ficam presos ao passado, imobilizados no tempo, querendo preservar tradições mortas e fossilizadas, prisioneiros de uma mentalidade integrista. Mas quem vai à frente, no momento da decisão, espera pelos irmãos retardados, num exercício de uma paciência caridosa e respeitosa. Porque a comunidade cristã é um todo, e só como todo, em sua diversidade de ritmos, pode ser católica, ou seja, atravessar o sepulcro vazio, interpretando os sinais e sendo capaz de reconhecer neles traços do Ressuscitado.
Mesmo atravessando a evidência do vazio do sepulcro, esse lugar de ausência, vendo os mesmos sinais (as ligaduras no chão e o sudário à parte), há ritmos de compreensão diferentes. Pedro vê/contempla (theoreô) que quer dizer conhecer em profundidade, ligar os fatos, relacionar as coisas, criar explicações; daí as palavras teoria e teorizar. Pedro teoriza (procura relacionar os sinais). Mas não tira conclusões. A narrativa do evangelho de João sugere-nos que ele ainda está em processo: é lento no correr, é lento na compreensão; não é um defeito, é a sua circunstância, a sua realidade concreta e pessoal. Cada pessoa tem o seu ritmo, o seu caminho, o seu momento de evidência e de revelação. Ainda não chegou o de Pedro, como pode muito bem ainda não ter chegado o nosso. Mas, como Pedro, procuremos ligar os sinais da vida presentes nos acontecimentos de morte; relacionar as coisas, «teorizar», ver em profundidade (contemplar) para além da estreiteza do imediato.
O discípulo mais jovem, aquele que Jesus amara, vê o mesmo que Pedro, mas vê mais longe, vê mais fundo; tem uma «visão», ou seja, vê nos sinais das ligaduras e do sudário a indicação de uma ação de Deus. O evangelho de João assinala a qualidade visionária desse ver que leva à fé, a uma adesão sincera e incondicional: «viu e acreditou». Porque só este discípulo chega à fé, neste contexto?… Ele continua a ser o corredor mais veloz, o que a todos se antecipa, aquele que vê mais longe, porque há nele o fogo da memória do amor do Senhor por ele. Não é ele o discípulo amado, o amigo do Senhor? Porque quem ama acredita, quem ama ressuscita. Quando somos incondicionalmente amados, já estamos em ressurreição.
O Amado do Senhor é agora o primeiro crente na ressurreição: porque a fé e a ressurreição são uma questão de amor. Na fonte do amor ressuscitador do Pai, atraídos pelo amor incondicional «até ao fim» do Filho, também nós amando, como Jesus, ressuscitamos. Somos erguidos, acordados, despertados, elevados, introduzidos na fonte eterna da Vida que nos torna fecundos: Porque se o amor é tão forte como a morte, como afirma o Cântico dos Cânticos, a ressurreição de Cristo (e a nossa) assinala que o amor é mais forte do que a morte.
Só o amor vence a morte.
Pe. António Martins, Domingo de Páscoa
2019/04/19 - A hora da cruz (homilia)
«Está tudo consumado», grita o Crucificado: o que havia de ser feito foi feito; a missão foi levada até ao fim; o cálice foi bebido até à última gota. Tudo está consumado; tudo é posto a nu; todas as profundas intenções humanas são descobertas; a violência oculta nos corações não é mais disfarçada; os inimigos (judeus e romanos) tornam-se aliados para eliminar a vítima inocente, numa conjugação oportunista de interesses. Esta é a hora apocalítica (da revelação) dos corações: ninguém se pode esconder mais; acabam os disfarces e as máscaras; nenhum traço de hipocrisia ou de indiferença permanece oculto.
Esta é também a hora em que se coloca a cada um de nós a questão: «A quem procurais?» Como procuramos Cristo, com que intenções, com que desejos profundos? Que razões temos ainda para seguir um Crucificado, desnudado e abandonado, exposto e consumado pela violência organizada, sem dignidade nem reconhecimento?… Se procuramos um Cristo triunfalista, a legitimar as nossas pretensões de domínio, de afirmação, de prestígio, encontramos um rosto desfigurado, um homem rejeitado, a quem repugna olhar. Um homem que perdeu, na profecia de Isaías, a aparência de um ser humano.
A cruz será sempre o rosto desfigurado de uma Igreja que, seguindo Cristo, passa pela humilhação, pela rejeição, pela acusação. A cruz é o ícone provocador de uma Igreja que só se pode cumprir fiel a Cristo no despojamento e na pobreza. Capaz, nas mais duras horas da prova, de testemunhar uma fidelidade resistente e uma esperança contra toda a esperança. Também como Cristo, os seus discípulos precisam de ser expostos na praça pública, para, com Ele e somente por Ele, serem revestidos de perdão e de misericórdia, capacitados com aquela força que só pode vir do alto.
É na hora da cruz que se mede e se julga o contraste abissal entre a fidelidade filial e fraterna de Cristo e a inconsistência e traição dos seus discípulos. Assinalamos o contraste entre o «Sou eu» de Cristo, a afirmação da verdade do seu ser (divino) e da sua origem (o Pai), a força interior de uma vida unificada entre ser e agir, e por isso inteira verdade, túnica sem costura, e as contradições e mentiras de Pedro, a salvar a vida, fugindo ao compromisso, ao testemunho, à confissão da sua pertença: «Não sou»: não sou seu discípulo nem seu seguidor. Por um lado, a afirmação de Cristo e, por outro, a negação de Pedro: Perdoa-nos, Senhor, uma vez mais e sempre, as traições à nossa verdade mais profunda, ao teu amor incondicional, o amor que nos faz ser nós mesmos.
Na hora da cruz iluminam-se, paradoxalmente, todas as horas da humanidade, as dores tão pessoais e únicas que cada um de nós experimenta, por vezes numa profunda solidão. A hora da cruz revela a crueldade do sofrimento, a violência organizada das instituições e dos poderes, a ferocidade das multidões manipuladas, a brutalidade de que um ser humano é capaz de infligir a outro ser humano. Na narrativa do evangelho de João: tanta gente armada, a agredir, a manietar, a manipular, acusar, a violentar…; tanta espada desembainhada, tanta raiva em explosão. A cruz revela a brutalidade do humano, a sua mais profunda e violenta desumanização. Cristo é vítima inocente de toda a violência do mundo; é o rosto de cada excluído da história, de cada homem e mulher rejeitados em sua identidade, daqueles que foram silenciados para que triunfassem os mais fortes.
Mas é também a hora em que na dor brota a mais profunda compaixão; em que no meio do absurdo de todos os projetos desfeitos, é possível encontrar uma pacificação, escolher a bondade e a ternura, estender uma mão que ampara e consola, uma toalha que limpa … José de Arimateia, discípulo oculto com medo dos judeus, revela-se agora, e pede a Pilatos o corpo de Jesus para lhe dar sepultura. Também Nicodemos aparece em plena luz, ele que se tinha aproximado de Jesus durante a noite, para não ser visto nem reconhecido. Prepara-lhe agora a sepultura uma cara mistura de mirra, num excesso de generosidade sem preço.
Podemos ler também a hora da cruz como a hora da revelação do masculino e do feminino. Há uma masculinidade, brutalmente viril, presente nos militares, nos governantes e nos sacerdotes, até na força de Pedro (tira a espada da bainha pronto para a violência): os protagonistas da violência são todos homens armados. Homens com poder, mas homens hesitantes; homens com armas mas homens ambíguos. E no meio de um grupo de mulheres com nome e identidade (Maria, mãe de Jesus, Maria mãe de Tiago e Maria Madalena), estranhamente, está um homem, que não está do lado do poder, nem das armas, nem da violência.
Este jovem junto à cruz, entre três mulheres, é a figura do discípulo fiel (o discípulo amado). É a este homem, aparentemente tão pouco viril, que Jesus confia, como herança, sua Mãe: «Filho eis a tua mãe». O discípulo amado, José da Arimateia, Nicodemos assinalam a capacidade de ternura masculina, a coragem que vence o medo, a fidelidade no meio da provação, a grandeza dos pequenos gestos, a dignidade de uma presença fiel. Eles são, na narrativa de João, os autênticos homens viris, de coração desarmado, densos de humanidade.
A hora da cruz é, paradoxalmente, a hora da mais profunda humanidade de um ser humano. A revelação das entranhas de compaixão. A violência e a brutalidade da dor não têm de ser a vitória do humano. A história humana não é uma trágica fatalidade, sem saída; é um drama de amor divino, uma redenção do humano a partir do seu (do nosso) mais profundo inferno: «pelas suas chagas fomos curados».
Pe. António Martins, Sexta-feira Santa – Celebração da Paixão do Senhor
2019/04/15 - Celebração Penitencial
2019/04/15 - Curso “Filosofia, Literatura, Espiritualidade – Simone Weil - Fernanda Henriques
2019/04/11 - Rezar com os Salmos - A vida feita oração - Os Salmos pascais
Teremos a honra de ter connosco, para nos orientar nessa leitura orante dos Salmos, o conhecido Pastor e orador João Martins, da Igreja evangélica «A Casa da Cidade», em Lisboa. A identidade comum das Igrejas cristã encontra na Palavra de Deus a sua expressão e o seu fundamento. Os Salmos são, por excelência, um lugar ecuménico.
2019/04/11 - Percurso de Preparação para os Sacramentos da Iniciação Cristã
2019/04/08 - Curso “Filosofia, Literatura, Espiritualidade – James Joyce - Carlos João Correia
2019/04/06 - Percurso de Preparação para os Sacramentos da Iniciação Cristã
2019/04/03 - Celebrar a Mulher
Desde há 21 anos, e sempre evocando a Anunciação a Maria, o Movimento Nós Somos Igreja celebra a Mulher. Lembramos hoje a primeira vez, em Março de 1998, quando aqui na Capela concelebraram o Bispo Jacques Gaillot, (na sua primeira vinda a Portugal), o Padre Peter Stilwell, o Frei Bento Domingues, o Frei Luis França e o Pastor Dimas de Almeida.
2019/04/01 - Curso “Filosofia, Literatura, Espiritualidade" – Franz Kafka - José Pedro Serra
Mais informações sobre o curso aqui.
Março
2019/03/28 - Percurso de Preparação para os Sacramentos da Iniciação Cristã
2019/03/27 - ‘Verdadeiramente Humanos’, de Jean Vanier – Lançamento
Apresentação pelo Pe. António Martins
Tornamo-nos «Verdadeiramente humanos» quando abraçamos a nossa irrenunciável vulnerabilidade, e nos reencontramos em nossa comum humanidade. Os nossos limites, físicos ou psíquicos, as nossas deficiências e vulnerabilidade podem desconcertar, excluir, criar medos, mas quando aceites são fontes de crescimento em humanidade, pessoal e em comunidade.
Jean Vanier é um dos profetas do nosso tempo, que alguns de nós tivemos o privilégio de conhecer, de crescer com ele na fé e em humanidade, de aprender com ele a arte de amar e incluir a pessoa diferente, com deficiência, solitária, excluída, fragilizada…No mundo da feroz concorrência capitalista, dominado pela lógica da eficácia e do mais forte, Jean Vanier tem sido uma serena voz profética. Inspirado pelo Espírito, propõe-nos o caminho alternativo do evangelho, capaz de ser fermento de humanidade, de cultura e civilização novas.
Estamos reunidos esta noite na Capela do Rato para partilhar o seu pensamento, num encontro de sinergias entre a Comunidade cristã que aqui se reúne, a Editora Princípia que editou o seu livro Verdadeiramente Humanos, e o Serviço da Conferência Episcopal para as Pessoas com Deficiência que tem em Jean Vanier um inspirador e guia.
Agradeço a presença de todas as pessoas que aqui estão: tanto aquelas que vêm dar um contributo mais explicito, como aquelas que, de forma mais discreta, assegu(ra)ram a realização deste encontro. Com alegria damos as boas vindas a Ana Rita Bessa, mulher de causas públicas, com o sentido do bem comum; ao meu colega e amigo P. José Manuel Pereira de Almeida, vizinho do lado (Santa Isabel) e Vice-Reitor da UCP, que bem conhece de perto a dinâmica de L’Arche; ao casal Joana e Miguel Morais e Castro, que com generosidade vêm partilhar connosco o seu testemunho de vida.
Gostaria também de agradecer à Carmo Diniz, à equipa diocesana de Lisboa da pastoral às pessoas com deficiência, pela ativação dos contactos e divulgação, e à Isabel Vale e a toda a equipa, por si coordenada, do serviço Nacional de Pastoral às Pessoas com Deficiência, na organização deste encontro. E à comunidade do Rato que assegurou a logística do espaço.
O meu agradecimento aos amigos (e aos amigos dos amigos) que passaram a palavra, divulgaram o livro e trouxeram outros amigos. Obrigado por terem vindo.
Terminaremos o nosso encontro com um momento celebrativo, alterando a leitura de textos de Jean Vanier com momentos de silêncio e cânticos.
Dou, de imediato, a palavra ao Henrique Mota, editor, para nos dar as razões desta publicação, e à jornalista Lígia Silveira, membro da nossa Comunidade do Rato, para apresentar os participantes e moderar a reflexão.
Pe. António Martins
2019/03/25 - Curso “Filosofia, Literatura, Espiritualidade" – Daniel Faria - Maria Teresa Dias Furtado
Mais informações sobre o curso aqui.
2019/03/24 - Caminhos de terra prometida (homilia)
Perguntamos pelo significando das tragédias que vão acontecendo, como nos últimos dias as vítimas (mais de 417) do ciclone tropical Idai, em Moçambique, com a devastação de populações já fragilizadas em sua precaridade, agora violentamente devastadas pela catástrofe. Todos os acontecimentos desafiam a nossa interpretação, a nossa consciência cívica e crente, a nossa ação solidária.
É com referência a tragédias humanas, que estavam ainda na memória dos seus contemporâneos, que Jesus nos continua a desafiar a essa mudança de rumo e de lógica de pensamento e de ação, que se chama «conversão/metanoia», e a que vamos resistindo em nossos hábitos e comportamentos adquiridos. Duas tragédias, uma política e outra natural. A política: a violência de Herodes que mandou matar revoltosos galileus enquanto prestavam o seu culto (sacrificavam), sem qualquer respeito pelas suas crenças. É a violência instituída do Estado, que sempre se justifica em nome da paz social. O outro episódio foi a queda da Torre de Siloé, em Jerusalém, que fez 18 vítimas. Nem num caso nem noutro há castigo de Deus, mas desafio a ler nesses sinais apelos à conversão, a uma radical reorientação de vida: «se não vos arrependerdes, morrereis todos de modo semelhante».
Todos os acontecimentos do mundo, positivos ou negativos, são para nós interpelações de Deus, ocasiões para atuar o discernimento sobre o modo como vivemos, como nos cumprimos. No nosso adiamento, nessa morna continuação dos nossos modos habituais de vida, pode estar inscrito um risco de perigo e de morte, um risco de catástrofe, a evitar futuramente. Jesus continua a dizer-nos que a vida é um projeto de liberdade, pessoal e coletiva. E que, a qualquer momento, podemos rever a orientação que levamos, introduzir novos rumos, arrepiar caminhos, inverter, se necessário, direção.
E com que ternura e consolo não lemos nós a parábola da figueira estéril, imagem possível de cada um de nós, no presente de uma aridez, de uma secura? Ou a imagem, forte, entre o espetáculo do culto das aparências (uma figueira viçosa, verdejante, com folhas de intenso verde) e sem aquela fecundidade (os figos) da doçura, da ternura, do perdão e da compaixão? Mas também podemos ler a forma violenta, condenatória, ruinosa com que pomos fim a relações, que julgamos infecundas e ruinosas? Ou ainda o modo como descarregamos a violência condenatória dos nossos juízos sobre pessoas que não correspondem às nossas expetativas e às nossas medidas? Todas estas dimensões, que bem podem ser as nossas, ali estão na imagem da figueira.
Saliento o contraste entre o julgamento decidido do dono da vinha, onde se situava a figueira, e o cultivador quotidiano da vinha (o vinhateiro) que a vigiava, a cuidava, e bem sabia esperar, com paciência, o tempo da floração e da frutificação. Ele sabia, também, por experiência adquirida pela prática no tempo, que podem passar anos sem uma árvore dar fruto. Depende do solo, da intensidade do sol, da qualidade da rega e do cuidado da terra. O dono da vinha manda cortá-la porque «está inutilmente a ocupar a terra». Três anos de inutilidade é tempo demais, numa lógica de pura produtividade. É necessário uma outra cultura agrícola mais produtiva, com resultados mais imediatos. Será a capacidade de produtividade imediata o único critério para avaliar pessoas e relações? Essa é a lógica dominante de uma sociedade de lucro imediato em que as pessoas são avaliadas pela sua «produtividade», pela capacidade imediata de dar frutos. E o tempo interior de crescimento, de maturação, as crises e os impasses da vida quem os tem em consideração?… Não entra na lógica dos processos de avaliação.
Mas o vinhateiro, homem do quotidiano e do concreto, homem da paciência da espera, que aceita o ritmo do tempo do crescimento próprio, tem outra solução, não drástica nem violenta: «Senhor, deixa-a ficar ainda este ano, que eu, entretanto, vou cavar-lhe em volta e deitar-lhe adubo». Que pedagogia de esperança ele nos oferece, desarmante. Com uma confiança sem cálculos, de não rendição à pura utilidade. Este cultivador introduz-nos a lógica de uma paciente espera ativa em seu compromisso, em seu empenho e investimento relacional e afetivo: «Senhor, deixa-a ficar ainda este ano, que eu, entretanto, vou cavar-lhe em volta e deitar-lhe adubo».
Que palavra bela este «entretanto», palavra de esperança, de futuro a partir do empenho no presente, de ação decidida e concreta, de mãos à obra, com esforço, com dedicação e entrega: cavar-lhe à volta, deitar-lhe adubo, preparar o terreno, estimular, acrescentar, motivar, são verbos de ação que bem podem ser concretizações pedagógicas e relacionais em nossas vidas. O homem que cuida da vida não pensa em destruir; não lhe passa pela cabeça arranca-la pelas raízes. Acredita na vida e por isso acredita que o que se faz hoje de empenho pela fecundidade da vida tem futuro, tornará a própria vida ainda mais fecunda, mais realizada, com frutos/figos doces.
E, contudo, não há nenhumas garantias que possa dar fruto no ano seguinte: «Talvez venha a dar frutos». Talvez sim, talvez não… Mas por esta lógica da espera, que é a lógica da misericórdia de Deus para nós, há sempre mais um tempo a acrescentar. Deus não desiste de nos esperar. É o Pai esperante, pacientemente. Para celebrar connosco da festa do encontro, e devolver-nos o anel e a veste de filhos amados. Como rezamos no Salmo, «o Senhor é clemente e compassivo, paciente e cheio de bondade».
A espera de Deus é razão para a nossa urgência, para a reorientação dos nossos caminhos, para buscar outras alternativas nos ritmos seguros das nossas vidas rotineiras, feitas da segurança dos hábitos adquiridos. É preciso ousadia, atrevimento, para arriscar caminhos alternativas e acolher, nesses desvios, as surpresas de Deus. Para isso nos aponta o belo texto do livro do Êxodo, na primeira leitura. Moisés, com 80 anos, cuida, tranquilamente, os rebanhos do sogro, na pacatez dos ritmos próprios de um idoso, que não gosta da vida alterada nem que lhe retirem as seguranças do quotidiano.
Mas, não se sabe por que razão, ou sem nenhuma razão justificada, este homem, um dia, por acaso, sem previsão nem planificação, «leva o rebanho para além do deserto e chega ao monte de Deus, Horeb», para além das suas rotas habituais de pastor. Nesse inesperado desvio das rotinas, por um homem com certeza cheio de rotinas, encontra a surpresa de Deus e um novo destino, impossível e impensável: voltar ao Egipto, de onde tinha saído como fugitivo, expulso pelos egípcios e pelos seus compatriotas, para os libertar da opressão.
Quando estamos abertos à surpresa, quando saímos das nossas zonas de conforto, quando avançamos num «para além» do conhecido, do habitual, há revelação, encontro e recomeço. Podemos voltar ao lugar de onde fomos expulsos, onde fomos feridos e excluídos, porque regressamos outros, curados por graça, e capazes de ajudar outros a crescer. Porque os caminhos de libertação pessoal só se podem traduzir em caminhos de terra prometida com os outros. Esse é o novo êxodo de Moisés, não regresso ao passado, mas passo no futuro com um povo de irmãos, convocados por Deus para a libertação.
Esse novo êxodo poderá ser também o nosso. Na paciência da espera de Deus, tomemos consciência da urgência da nossa frutificação. O tempo é breve.
Pe. António Martins, Domingo III da Quaresma
Clique para ouvir a homilia
2019/03/24 - Ajuda a Moçambique
Cáritas “Fundo de emergências internacional” – PT50 0033 0000 01090040150 12
Fundação Gonçalo da Silveira (ONGD Jesuíta) – Emergência Moçambique 2019 – PT50 0036 0000 9910 59181487 7
2019/03/20 - Ciclo de reflexão sobre situações-limite e espiritualidade - Pessoa em luto e espiritualidade
2019/03/18 - Curso “Filosofia, Literatura, Espiritualidade" – Etty Hillesum - Maria Filomena Molder
Mais informações sobre o curso aqui.
Foi ainda apresentado o Museu de Vilar Formoso – “Fronteira da Paz” – Para ouvir a apresentação do Museu e ver o respetivo vídeo clique aqui.
2019/03/17 - Traços de eternidade (homilia)
Pedro acaba de reconhecer que Jesus é «o Cristo de Deus», o Ungido, o Messias enviado. Quanta esperança e quanta ambiguidade neste reconhecimento. Jesus acautela os discípulos para o equívoco de um messianismo compreendido em jeito de triunfo político, revolucionário, justiceiro, de um Deus que se afirma pela força. Prepara os discípulos para a sua futura páscoa e a passagem pelo sofrimento da cruz: «É necessário que o Filho do homem sofra muito, seja rejeitado…, seja morto e ressuscite ao terceiro dia». Convoca-os para um modo de agir que passa pelo dom de si mesmo, pelo serviço, pela vida que se ganha consentindo perde-la, numa lógica profundamente em desencontro com as tendências dominantes do poder, do prestígio, da eficácia, do ganho sempre garantido. E essas eram/são as tentações a que esteve (estamos) exposto(s).
Jesus desconcerta as expetativas dos discípulos, desarruma-os, vira-os do avesso: um messias assim não lhe passava pela cabeça; era, para eles, uma violência, uma impossibilidade mental e teológica: o Cristo de Deus só poderia vir pela força, trazendo uma libertação do domínio político romano. Essa era a profunda expetativa de um povo inteiro, da qual eles comungavam. Por isso Jesus desconcerta-os. Podemos imaginar que entram numa profunda crise. Atravessam a insegurança, a ameaça, o risco, o perigo. É neste contexto que vemos Jesus tranquilizar e consolar os discípulos, ou ao menos o núcleo duro, os mais próximos: Pedro, Tiago e João. Faz com eles uma viagem. Sobem a um monte, e aí Jesus expõe-se em oração ao Pai. Essa viagem, com Cristo, é uma antecipação da páscoa, uma profecia da ressurreição para o presente do nosso tempo presente, quando marcado pela crise e pela incerteza.
A oração é esse lugar onde somos transfigurados pelo Espírito, onde se vive, no discreto do quotidiano dos nossos dias, a morte e ressurreição, a passagem da desolação à consolação, da revolta à aceitação, do medo à confiança. Na oração somos ressuscitados, transfigurados, pelo Pai que nos consola, nos acolhe pelo abraço do Espírito. Diz-nos Lucas: «Enquanto orava, alterou-se o aspeto do seu rosto, e as suas vestes ficaram de uma brancura refulgente». Em oração Jesus revela a sua profunda identidade de Filho, aquela eterna comunhão de vida e de amor que o funda e lhe dá ser. A oração é essa ligação permanente de Jesus ao Pai, à fonte da sua identidade de Filho, a razão do seu ser e do seu agir. A alteração do rosto é uma forma simbólica, visual, estética, colorida, para assinalar a presença ativa do amor de Deus em nossas vidas, e como somos, positivamente, alterados, quando procuramos sintonizar a nossa vida (o nosso sentir e o nosso agir) com o apelo que nos funda, a vocação profunda que nos habita, o desejo de Deus que grita no mais profundo do nosso ser.
A Quaresma exercita-se como um tempo de oração. Esta deve ser percebida e vivida, não tanto como um recitar de fórmulas, mas mais como silêncio hospitaleiro, repousante, do gemido de Deus nas profundezas da nossa consciência e do nosso sentir. Somos convidados a organizar em nossas vidas um tempo/horário habitual (quotidiano) para, no silêncio, esperar Deus, numa passividade recetiva e expectante, onde nada fazemos mas consentimos fazer, onde somos escuta e não dizer. Consintamos, positivamente, ser alterados na presença de Deus pela oração.
Em oração, Jesus entra em comunicação com Moisés e Elias, atravessa o tempo, é eterno presente, e todos os crentes de todos os tempos lhe são contemporâneos. Passado e futuro coincidem no presente orante: a oração é comunhão que atravessa o tempo e o espaço. Mas Moisés e Elias são as representações do AT, da Lei e dos Profetas, com quem Jesus dialoga, porque é Ele é a Palavra viva, o cumprimento das Escrituras. O êxodo, a páscoa de Cristo, a sua morte, são vistas a partir da glória de Deus, da intensidade do seu amor e da sua beleza. Com Cristo, pela sua Palavra, atravessamos toda a Escritura; Ele é o critério de leitura, Ele é o nosso interprete, o nosso mestre, como o fez com os discípulos de Emaús. Em Lucas, Jesus apresenta-se ressuscitado com intérprete das Escrituras, como profecia cumprida.
«Despertando, viram a sua glória». Em Lucas, nos momentos mais importantes e intensos da vida de Jesus, os discípulos são vencidos pelo sono, e ficam ausentes dos acontecimentos, como que alienados. Isso volta a acontecer na agonia do Calvário. Jesus em oração, suando sangue, pedindo várias vezes companhia, e os discípulos rendidos ao sono. O seu sono é bem o símbolo da nossa fragilidade, do peso do cansaço, da angústia, de uma inconsciente fuga aos desafios do presente. Quando acordam a intensidade do diálogo de Jesus com Moisés e Elias já passou; apanham o final do acontecimento, como tantas vezes acontece em nossas vidas. Apanhamos restos: restos de vida, de notícias, de vivências, de oportunidades, de momentos profundos. Chegamos atrasados, vencidos pelo nosso sono. Mas chegamos ainda, e isso é a beleza do texto. Alguma coisa se vive ainda, se apanha, se vê, se presencia. Há a graça de um resto que se nos oferece. Essa é a beleza de Lucas: a graça de Deus nunca nos falta, mesmo que seja de passagem, à última da hora, como o bom ladrão.
Aquele resto de beleza, de intensidade fugidia ainda apanhada, de presença que se ausenta, Pedro quere-a agarrar, fazer dela um estado permanente de vida. «Mestre, como é bom/belo estarmos aqui! Façamos três tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias». Não sabia o que estava a dizer». Pedro e nós todos, não sabemos o que estamos a dizer. Mas estamos no direito de intuir a beleza, a bondade, a inteireza, a santidade como o definitivo e o pleno da vida. E nisso estamos certos.
O desejo de Pedro é autêntico na origem mas equívoco na concretização. Porque a vida é passagem, é viagem, itinerância e trânsito, é êxodo, e por isso não nos é possível parar e permanecer na intensidade dos momentos belos, de inteireza sentida, de presença de Deus vislumbrada, de pacificação experimentada. Isso são traços de eternidade na continuidade do tempo que passa, no trânsito da vida, em que nada é fixo, permanente e definitivo. Todos os momentos de transfiguração são graças, a acolher com gratidão, que nos ajudam a atravessar o nosso tempo de deserto, de crise, de aridez. São profecias da nossa páscoa definitiva no entretanto da vida, marcado pela sombra, pela ausência, pela solidão, pelo risco da liberdade que elege e escolhe, pela invenção do quotidiano.
No meio das nuvens, apela-nos a voz do Pai: «Este é o meu Filho, o meu Eleito: escutai-O”». Escuta, atenção à presença, hospitalidade do silêncio, jejum da palavra que ordena, comanda, organiza. Tempo para ouvir, de dentro, outras vozes que nos chamam a ser. Por aí também se viaja em tempo de Quaresma.
Pe. António Martins, Domingo II da Quaresma
Clique para ouvir a homilia
2019/03/14 - Percurso de Preparação para os Sacramentos da Iniciação Cristã
2019/03/11 - Curso “Filosofia, Literatura, Espiritualidade" – Maria Gabriela Llansol - João Barrento
Mais informações sobre o curso aqui.
2019/03/10 - "Conduzido pelo Espírito" (homilia)
Queridos Irmãos
Para introduzir o evangelho de hoje, convido-vos a recordar o texto que ouvimos, em Janeiro, na festa do batismo do Senhor. Uma voz vinda do céu declarava: «Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência». A voz do Pai, diz-nos Lucas, foi acompanhada por um sinal visível, «em forma corporal, como uma pomba», a assinalar a presença do Espírito, essa força vital de Deus que confirma Jesus como Filho ao nosso lado, na fila dos pecadores. Naquele Filho muito amado, também nós somos filhos e filhas muito amados pelo mesmo amor do Pai. O texto do batismo de Jesus precede o texto das tentações, que lemos neste primeiro domingo da Quaresma.
«Cheio do Espírito Santo», Jesus retirou-se das margens do Jordão para o deserto. «Conduzido pelo Espírito, e foi tentado pelo Diabo». Aparentemente parece-nos uma contradição. Levado pela força de Deus, Jesus vai para o lugar da prova, da tentação, do despojamento, da verdade nua e crua da condição humana, que é o deserto. O deserto é esse lugar onde o Espírito nos verifica, nos experimenta e nos confronta. No deserto não há seguranças; aí somos expostos à sede, ao risco das feras. Podemo-nos perder na orientação do caminho. O deserto é um lugar de confronto entre a vida e a morte. Torna-se na Escritura símbolo de todo o itinerário de conversão do Homem para Deus: foi no deserto que o Povo de Deus foi tentado no seu caminho para a terra prometida. Mas o deserto é também o símbolo de todos os nossos itinerários interiores de despojamento, de confronto, de risco e de perigo. São momentos em que pomos tudo e todos em questão; em que, literalmente, entramos em tentação.
Jesus foi tentado durante quarenta dias. No final do texto que lemos diz-nos Lucas que «o Diabo, tendo terminado toda a espécie de tentação, retirou-se da presença de Jesus, até certo tempo». «Retirou-se até certo tempo», mas há de voltar, porque a vida humana está, permanentemente, sujeita à tentação. Não nos escapamos nunca de vivermos expostos à prova, no fio da navalha. Temos de decidir entre opções sedutoras e contraditórias, entre «dois amores» que nos atraem. Precisamos, continuamente, de discernir, de pedir a iluminação interior e a clareza para acolher aquela dimensão de vida que mais liberdade nos trás, que mais vida nos acrescenta (a vontade de Deus).
Não vamos imaginar o «diabo» como um bicharoco com um rabinho e uns chifres; isso são representações mitológicas. A palavra «diabolos» significa o que divide, rasga, separa o que deve estar unido. Com rigor, podemos e devemos dizer que o «diabólico» é a rutura interior do coração, a dimensão conflituosa das relações, uma orientação possível de vida. É, como nos diz S. Paulo, a luta entre a vida «segundo o Espírito», de serviço e de acolhimento da verdade de Deus e dos outros, e a vida «segundo a carne», em que quero estar no centro e me quero realizar como senhor do mundo. Isto é o diabólico, é a tentação.
«Se és Filho de Deus manda a esta pedra que se transforme em pão». A tentação que Jesus atravessa é a de se cumprir como Messias pela via da força, da eficácia, da abundância. A primeira tentação narrada é a posse das coisas. Temos em nós mesmos uma dimensão de um desejo permanentemente insatisfeito. Todos nós trazemos um desejo devorador que se pode transformar numa apropriação violenta de bens e pessoas, numa insatisfação permanente de comer ou de prazer. O ser humano não consegue aguentar o limite da insatisfação e acha-se no direito a estar, permanentemente, satisfeito com a abundância de bens. Jesus, renunciando à posse e à abundância, reenvia para outras dimensões, para um outro desejo para além do desejo de comer e de satisfação imediata, o desejo de Deus: «Nem só de pão vive o homem mas de toda a palavra que vem da boca de Deus». No desejo de Deus os nossos desejos são vividos como limite, não como possibilidades de realização permanente. A primeira tentação assinala a necessidade de todos nós nos confrontarmos com os limites dos nossos desejos. Não nos podemos cumprir como pessoas devoradoras, que querem e podem tudo.
A segunda tentação tem a ver com o poder, com o domínio sobre os outros: «Dar-te-ei todos os reinos da terra». Esse domínio sobre os outros tem um preço: que Jesus se vergasse perante a lógica do mais forte, do senhor destruidor do servo. Não a prostração perante Deus que dá vida, mas perante o império da violência e da morte. Jesus recusa essa lógica. Podemos fazer um esforço para perceber que até ter recusado, talvez Jesus se tenha deixado seduzir. Toda a pessoa, num momento ou noutro da sua vida, fica seduzida por um reconhecimento público, por um nome na história, por uma influência social ou política, por um domínio sobre os outros. Esta tentação humana, minha e de todos vós, foi também a de Jesus. No limite da tentação Jesus aceita a missão de ser Filho de Deus pelo meio de quem dá a vida, de quem se coloca ao serviço dos seus irmãos: «Só a Deus prestarás culto».
A terceira tentação é a de um Deus mágico, milagreiro, que resolve todos os problemas com um clique. Pensando que Deus resolve todos os nossos problemas pessoais, corremos riscos, não medindo os nossos limites: «Atira-te daí abaixo e espera que os anjinhos façam uma rede, um para-quedas para não caíres». Não brinquemos com Deus; não tenhamos esta mentalidade mágica de um Deus para-quedas que nos pode impedir de cairmos nas contradições, nos limites e nos perigos da vida.
Jesus Cristo (ontem meditávamos nisso na nossa recoleção) é este caminho humano de fidelidade, de obediência a Deus nas provas da vida. As tentações são essa vida ilusória de quem quer fugir do limite, do risco, do precário, em nome de uma vida sempre triunfante, de sucesso e de força: tentações que todos nós temos e que Jesus ajuda-nos a atravessar, a viver e a resolver. Na fidelidade a este Deus que nos quer verdadeiramente humanos para que, com os nossos limites, possamos aprender o que é o amor e o serviço, a vida que se cumpre no dom de nós mesmos.
Pe. António Martins, Domingo I da Quaresma
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2019/03/09 - Rezar com os Salmos - Tempo de paragem da Quaresma
O segundo encontro sobre Rezar com Salmos coincide com a proposta de um dia de paragem, a preparar o início do Tempo da Quaresma. Durante o dia, propõe-se uma dinâmica de leitura orante de alguns Salmos penitenciais da Quaresma (lectio divina), entre silêncio, partilha e celebração. O dia termina com a celebração das Vésperas I do Primeiro Domingo da Quaresma.
DATA E LOCAL
Seminário da Luz
9 de Março de 2019
10h-17.30h
HORÁRIO
10.00h: Acolhimento
10.15h: Primeira Meditação
10.45h: Tempo de Silêncio
12.00h: Eucaristia
13.00h: Almoço partilhado
14.30h: Segunda Meditação
15.00h: Tempo de Silêncio
16.30h: Celebração de Vésperas
INSCRIÇÕES
Na Capela do Rato, no final da Eucaristia Dominical das 11h30 ou pelo e-mail capeladorato@gmail.com
2019/03/03 - A palavra que nos mede (homilia)
Queridos Irmãos e Irmãs
Avançamos hoje recordando o que Jesus disse no evangelho do domingo passado: «Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso. Não julgueis e não sereis julgados. Não condeneis e não sereis condenados». É com esta palavra que nos medimos. Ela é o nosso juízo. O modo de Deus ser para nós, misericordioso, há de imprimir a forma do nosso ser, do nosso pensar e do nosso agir. Há de tomar corpo em nós e marcar a novidade do estilo da vida cristã, dessa ousada diferença, como fermento no mundo. E, reconheçamos com profunda humildade, frequentemente somos carrascos uns dos outros, marcados por prejuízos e por julgamentos ferozes, mesmo condenatórios, pelo simples facto de não agirem e pensarem segundo os nossos critérios.
Aprofundemos o evangelho de hoje, que concretiza um pouco mais o que ouvidos no domingo passado. Somos chamados, continuamente, a nos vermos e a nos julgarmos em profundidade. Aliás, é sobre nós e de nós que devemos ser severos juízos, para descermos à nossa pobre verdade humilde, conhecermos os nossos limites, as nossas vulnerabilidades, os nossos defeitos que tanta dificuldade temos em aceitar. Os julgamentos que fazemos dos outros mais não são do que a projeção de nós mesmos: acusamos nos outros dimensões que em nós temos dificuldade em aceitar, que não queremos ver. «Porque vês o argueiro [a palhinha] que o teu irmão tem na vista e não reparas na trave que está na tua?».
Jesus, no evangelho de Lucas, convida-nos a não julgar, ou a julgar sobretudo a si mesmo, esse ver a própria trave (bem grande e bem visível) que transportamos nossos nossos olhos. Condenamos e julgamos os irmãos, e isso frequentemente acontece nas nossas relações de amigos, em família, com os colegas de trabalhos, com os irmãos da própria comunidade cristã: estamos prontos a acusar, a apontar, a denunciar, e não nos olhamos na nossa verdade, na nossa humanidade também defeituosa, deficitária, imperfeita e limitada. Essa pobre humanidade é a nossa verdade mais profunda, e também a fonte de compaixão para com os irmãos.
«Hipócrita, tira primeiro a trave da tua vista e então verás bem para tirar o argueiro da vista do teu irmão». A hipocrisia, a falsidade, ou essa máscara de santidade que podemos pôr, protegidos por uma prática religiosa rígida, formal, certinha, esconde, muitas vezes, tanta falsidade, tanta incapacidade de se reencontrar com a própria verdade, humilde e pobre. O Papa Francisco tem continuamente denunciado essa rigidez, tão típica dos intransigentes. E para não se confrontarem consigo mesmos acusam e excluem os outros. Não estaremos todos a pagar um alto preço por um falso e hipócrita moralismo, fácil em denunciar os pecados dos outros e a encobrir os próprios?… Somos todos pecadores solidários uns dos outros numa pobre e frágil humanidade que precisa de compaixão e de misericórdia.
Ver a própria trave, ver-se na sua pobre verdade, conhecer-se em sua miséria, para, assim, poder acolher a misericórdia de Deus e ser misericordioso com o seu irmão em humanidade, em dificuldade, com limites, defeitos e incapacidades. A pior cegueira é a daquele que vendo recusa ver os próprios limites, o próprio pecado, a própria miséria, e coloca máscaras, camuflagem, aponta baterias aos outros e faz julgamentos ferozes, assassinos da sua dignidade. E assim vai adiando o seu caminho de cura e de libertação, pois é a verdade que nos torna livres. Ver-se a si mesmo na pobre verdade dos seus limites, para não jugar nem condenar, mas para se colocar em permanente estado de discernimento, de exame de consciência e de autocrítica.
Somos a densidade dos nossos gestos e das nossas palavras; eles revelam-nos, expõem a nossa nudez, dizem a bondade ou a maldade que nos habita, o nosso sentir profundo. Tudo brota, pois, dessa fonte interior de motivação que é o coração. Como nos diz o Livro de Ben Sirá, na primeira leitura: «O fruto da árvore manifesta a qualidade do campo: assim as palavras do homem revelam os seus sentimentos». Ver a própria trave é acolher o próprio sentir, a densidade contraditória dos sentimentos e das emoções, também em sua negatividade, em sua violência por vezes não verbalizada. Perceber o que dizem de nós mesmos no momento atual, qual é a verdade sobre nós que anunciam. O caminho do evangelho, que Jesus nos apresenta, é sempre de regresso à nossa verdade interior, mais profunda, ainda que difícil, ainda que dolorosa, ainda que profundamente sombria. «O homem bom, do bom tesouro do seu coração tira o bem; e o homem mau, da sua maldade tira o mal; pois a boca fala do que transborda do coração».
Perguntemo-nos, pois: Que abundância interior nos habita? Que emoções e sentimentos levedam no tesouro do nosso coração?
Pe. António Martins, Domingo VIII do Tempo Comum
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Fevereiro
2019/02/28 - Percurso de Preparação para os Sacramentos da Iniciação Cristã
2019/02/25 - Curso “Filosofia, Literatura, Espiritualidade" – Saint-Exupéry - Helena Buescu
Mais informações sobre o curso aqui.
2019/02/21 - Percurso de Preparação para os Sacramentos da Iniciação Cristã
2019/02/18 - Curso “Filosofia, Literatura, Espiritualidade" – Jean-Paul Sartre - Isabel Matos Dias Caldeira Cabral
2019/02/13 - Rezar com os Salmos - A vida feita oração
A oração na experiência dos limites
Introdução
Na vida humana emerge a dura experiência do mal, com essa dimensão de violência ora padecida, ora provocada. O mal, a experiência dos limites, a violência da doença, da perseguição, o envelhecimento, a solidão, altera a consciência que temos de nós mesmos, da relação com os outros e com Deus. Tudo fica posto em causa. O Mal agride e agride mais quando protagonizado por humanos. O mal sofrido, do qual somos vítimas, pode desencadear a violência da vingança e da agressão, perpetuando a cadeia do mal. O sofrimento provocado pela dura experiência do mal (a perseguição do inimigo, a ameaça mortal da doença, a caducidade da vida que se aproxima da morte, a desordem interior e relacional do pecado…) é o contexto para o crente/o salmista gritar por Deus, pedir socorro, compaixão, ajuda, perdão.
A oração dos Salmos que hoje sublinhamos brota da brutal experiência do mal, expressa-se num grito suplicante, que é de confissão visceral de uma profunda angústia, e expressão de uma confiança sem limites em Deus, em luta, em combate, em agonia, entre a vida e a morte. A vulnerabilidade é o contexto em que se experimenta o perigo da existência, mas também em que se experimenta essa transformação interior que é crescer e renascer na confiança e na esperança, para além das poucas expectativas imediatas. O grito orante do Salmista é já libertação, saída da estreiteza do círculo da violência e da angústia, abertura a uma promessa de futuro que está para além do imediatamente previsível. O sofrimento, nos Salmos, aparece como um lugar onde se reinventa a confiança e a esperança, onde se reelabora o sentido da vida; é um poderoso lugar para atravessar e decifrar. A fragilidade humana, e esse é o testemunho orante dos Salmos de súplica, pode ser experimentada não apenas como um lugar de desgraça e de humilhação, mas como um lugar onde se experimenta um novo renascer humano, onde se experimenta a ternura de Deus e a própria pacificação.
Os Salmos de súplica narram o carácter excessivo do mal, são confissão visceral e uma violência padecida, de uma radical passividade em que não há fuga. Narram a radicalidade do drama da existência humana que é sempre combate entre a vida e a morte. No seu grito de súplica, o Salmista clama a Deus socorro. Mas com a mesma sinceridade com que se expõe e grita a sua dor perante o Deus em quem confia, igualmente com a mesma sinceridade põe Deus em causa pelo silêncio da sua inação, pelo retardamento do seu agir. O grito confiante e suplicante dos salmos é também um grito contra Deus, um grito acusador pelo seu silêncio. Atrevidamente são uma provocação a Deus, uma denuncia do seu silêncio. Nos Salmos podemos estar diante de Deus contra Deus. Gritar de protesto e de confiança, com raiva e com fé, clamar justiça e consolação, expondo um coração e um corpo feridos à pacificação e à reconciliação. Os Salmos de súplica assinalam a incapacidade radical do ser humano sair, por si mesmo, da dura e violenta experiência do mal. Sente o mal mais forte do que as suas forças, mas acredita que Deus seja mais forte do que o mal. Deus pode dar vida no coração do mal: «Tem compaixão de mim, Senhor, que vivo atribulado, os meus olhos consomem-se de tristeza, a minha alma e o meu corpo definham. A minha vida mirrou-se na amargura, e os meus anos em gemidos. A aflição acabou com as minhas forças: os meus ossos consumiram-se» (Sl 31,10-11). Esse é o testemunho orante dos salmos que hoje queremos celebrar. Grito e louvor, súplica e júbilo: assim oscilam os Salmos. Mas para que possam terminar em júbilo e gozo, começam por narrar a carência, os limites, as ameaças. O júbilo é o momento final, consolador, reconfortante da súplica e do grito.
Assim se compreende que o Livro dos Salmos se diga em hebraico, Sefer Tehillim («Livro dos Louvores»). Por que nessa compilação de orações de louvor encontramos orações de súplica, lamentações, imprecações, gritos de violência e de acusação, gritos de revolta e de dor? A este propósito afirma o biblista belga André Wenin: «Talvez porque os editores do Saltério tenham compreendido que o que consente exprimir perante Deus súplicas, lamentos ou sede de vingança, não seja senão o próprio espírito do louvor que canta a vida mais forte do que a morte. Talvez, para além do grito, do lamento ou da raiva, tenham percebido que o que move tais palavras nada mais é senão aquela força de vida que explode em louvor quando sai do beco cego [da violência] ou quando atravessa a morte»[1].
Com linguagem que todos compreendemos, apresente assim os Salmos o saudoso cardeal de Milão, Carlo Maria Martini: «Há inimigos ou amigos, há a vida ou a morte, a saúde ou a doença, a dor ou a alegria e, a maior parte das vezes, não há cambiantes ou gradações. As palavras são como pedras e as poesias como penedos esculpidos a cinzel»; «Os Salmos são um pouco como os carreiros da montanha, simples especialmente quando se caminha sobre a neve, mas que conduzem aos cumes; são carreiros em direção aos cumes do encontro com o Senhor»[2]. Escreve André Chouraqui na sua tradução da Bíblia a partir do hebraico: «De facto, o Saltério bem mais do que um livro escrito num longínquo passado, permanece um ser vivo, que fala e vos fala, que sofre, geme e morre, para ressuscitar e cantar fora do tempo, da perenidade do presente do homem, e que vos toma, vos envolve, do começo ao fim. Sim, este volume esconde um mistério, para que as sucessivas gerações não cessem de voltar a este canto, de se purificar nesta fonte, de interrogar cada versículo, cada palavra da antiga oração, como se nos seus ritmos batesse a pulsação do mundo»[3].
- Na perseguição e na injustiça: Salmo 7
1Lamentação que David dirigiu ao Senhor,
a propósito de Cuche, o benjaminita.
2SENHOR, meu Deus, a ti me confio;
livra-me de todos os que me perseguem e salva-me.
3Que não me arrebatem como o leão
e me dilacerem, sem que ninguém me valha.
4SENHOR, meu Deus, se fiz algum mal,
se há injustiça nas minhas mãos,
5se atraiçoei o meu amigo,
se poupei o agressor injusto –
6então, que o inimigo me persiga e me apanhe;
que ele pise no chão a minha vida
e a minha glória tenha de morar no pó.
7Levanta-te, SENHOR, na tua ira,
e faz frente à fúria dos meus inimigos.
Desperta, ó meu Deus, e decreta a sentença.
8Junta em redor de ti a assembleia dos povos,
vem presidir a ela do alto do teu trono.
9O SENHOR julga os povos;
julga-me, então, SENHOR, segundo o meu direito
e segundo a minha inocência.
10Peço-te: acaba com a malícia dos ímpios;
fortalece os que são justos,
Tu, que perscrutas o íntimo dos corações,
ó Deus de justiça!
11A minha proteção está em Deus,
que salva os de coração sincero.
12Deus é um justo juiz,
que, a todo o momento, pode castigar.
13Se o ímpio não se converter,
pode afiar de novo a sua espada,
retesar o arco e apontar a seta:
14contra si prepara armas de morte,
das suas flechas faz tições ardentes.
15Pode conceber a maldade,
gerar a iniquidade e dar à luz a mentira.
16Abre um fosso profundo para os outros,
mas cai na cova que ele mesmo fez.
17A sua malícia recairá sobre a sua cabeça,
e a sua violência, sobre a sua fronte.
18Louvarei o SENHOR pela sua justiça
e cantarei o nome do Deus Altíssimo.
Meditação:
É recorrente nos Salmos o tema da «justiça de Deus», que não abandona o justo/o inocente) mas intervém contra os perseguidores e os opressores, em socorro das vítimas e dos desprotegidos: «Protegei o fraco e o órfão, fazei justiça ao pobre e ao necessitado. Libertai o fraco e o indigente, livrai-o da mão dos ímpios» (Sl 82,3-4). O presente Salmo (7) é a súplica de um inocente injustamente acusado, que apela, confiante, ao juízo de Deus. Tem a forma estilística de um processo judicial em que o inocente argumenta, perante o juiz (aqui Deus), em defesa da sua inocência. O Salmo abunda em expressões judiciais: «injustiça», «julgar», «agressor injusto», «sentença», «Deus de justiça», «castigar»… O acusado pronuncia um juramento de inocência (vv. 4-6), acusa os adversários; o juiz (Deus) é chamado a instruir o processo (vv. 10-12) e confia numa sentença de absolvição (v. 10: «acaba com a malícia dos ímpios, fortalece os que são justos»). Há recurso a linguagem bélica… «A minha proteção/o meu escudo está em Deus que salva os de coração sincero» ( v.11); «… afiar a espada… e apontar a seta» (13). É um Salmo que proclama a justiça de Deus. O que acusa faz uma descrição psicológica dos agressores: «O ímpio pode conceber a maldade, gerar a iniquidade e dar à luz a mentira» (v. 15).
Ninguém colocaria este Salmo entre os seus preferidos. Não fala de amor, nem de misericórdia, mas apenas de justiça, de inimigos, de acusação. É um Salmo mal conhecido, mal-amado e nunca citado no NT[4]. Faz eco de uma conceção de justiça retributiva (os justos serão recompensados, os malvados condenados) que a dramática e dura realidade da história pode desmentir, ou ao menos matizar, evitando uma compreensão da justiça divina demasiado ingénua e imediatista. Além disso este Salmo que acusa os inimigos e para eles pede justiça precisa de ser completado, e mesmo corrigido, com a boa nova de Cristo de rezar e perdoar os próprios inimigos. A novidade evangélica é dimensão impensável e incompreensível na lógica do presente Salmo.
O Salmo 7, através do qual iniciamos a nossa lectio, é bem a expressão dos Salmos de súplica tão frequentes no Saltério. Estes Salmos trazem à oração a revolta perante a injustiça, perante a violência infligida, perante o sofrimento do qual se é vítima. Trazem à oração profundas experiências humanas de perigo, de ameaça, de vida em risco de se perder/de morte (pela doença, pela ameaça e perseguição do inimigo…). Em sua violenta experiência de injustiça e de perseguição, o Salmista suplica a Deus socorro e justiça, esperando dele salvação. O Salmo inicia-se com uma confissão de fé e de total confiança: «Senhor, meu Deus, a ti me confio, livra-me de todos os que me perseguem e salva-me» (v. 2). Esta primeira frase é a síntese de todo o Salmo: a expressão de uma total confiança em Deus no meio da vida ameaçada de morte. Os inimigos são considerados «leões», termo bem expressivo para dizer a brutalidade da violência e da agressão de que se sente vítima. Afirma-se, sem equívoco, uma situação desesperada que só Deus pode socorrer.
O Salmo termina com um cântico de louvor que, segundo a crítica textual, poderá ter sido acrescento posterior: «Louvarei o Senhor pela sua justiça e cantarei o nome do Deus Altíssimo» (v. 18). Pode ter sido a expressão de um favor recebido. Integrado no presente Salmo ajuda-nos a compreender que o louvor brota de uma vida salva, de uma vida recuperada, liberta da ameaça. O louvor não é o momento inicial na oração, é antes o momento final, após um processo de libertação, após uma dramática de vida ameaçada e recuperada. O louvor é uma expressão agradecida por uma experiência de salvação vivida. É afirmação da exuberância, do milagre da vida, do seu triunfo no meio das ameaças e dos perigos. Louvor e súplica são duas dimensões da mesma experiência orante, da vida feita oração nos Salmos. A inserção expressa deste versículo de louvor no Salmo 7, que estamos a ler e a meditar, o que move o grito de socorro, a súplica, o lamento, a sede de vingança, «não é senão o próprio espírito de louvor que canta a vida mais forte do que a morte»[5].
Os versículos 4-6 são expressão de uma confissão negativa da inocência do justo, ainda que coloque a hipótese, condicional, de poder ser acusado: «se fiz algum mal… se atraiçoei o meu amigo… se poupei o meu agressor…». Trata-se de um elemento retórico que só pretende sublinhar ainda mais a sua inocência e «forçar» Deus a fazer-lhe justiça. Os versículos 7-9 colocam Deus no exercício da justiça, em seu trono de juiz soberano. Podemos imaginar os rituais da justiça próprios de um tribunal: «Levanta-te, Senhor…»; «Desperta, ó meu Deus, e decreta a sentença»; «vem presidir à assembleia dos povos do alto do teu trono». Não poderemos ler no presente Salmo traços de uma arrogância de quem se julga portador de uma justiça imaculada e que só Deus pode fazer fazer-lhe justiça? Este Salmo precisa de ser corrigido com outras passagens da Escritura em que se afirma que nenhuma pessoa se pode considerar justa perante Deus: «Se tiveres em conta os nossos pecados, Senhor, quem poderá resistir?» (Sl 130,3). Estamos no centro da novidade de Cristo e da pregação de Paulo: É Deus que, gratuitamente, justiça o Homem, sem mérito da sua parte. Se o presente Salmo aponta para uma conceção de justiça retributiva, o NT aponta para uma justiça totalmente gratuita.
Chamo a atenção para a antropologia contida no Salmo. Deus, juiz soberano dos povos, «perscruta o íntimo dos corações» (v. 10). O Deus transcendente é o Deus que conhece o profundo dos corações, o Deus da nossa interioridade, no dizer de Santo Agostinho, «o mais íntimo do nosso íntimo». Mas a tradução que lemos não faz inteiramente justiça ao texto bíblico. Lemos na tradução da Bíblica de Jerusalém: «tu sondas os corações e os rins»; «examinas os corações e os rins» (TOB, Chouraqui). Na antropologia hebraica, o coração (leb) é a sede da vontade, da inteligência, da decisão e do consentimento a Deus: «Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua força…» (Dt 6,5). A antropologia grega, que marcará toda a nossa cultura ocidental, põe o acento na mente, na razão, ligadas à cabeça e ao cérebro. Na antropologia hebraica, o coração é o centro da identidade mais profunda do ser humano, o núcleo da sua verdade constitutiva, aquela que Deus sonda, examina e só ele pode julgar: «O Homem vê segundo a aparência, mas Deus vê o coração» (1 Sm 16,7). É do coração do Homem que brota tanto a bondade como a maldade. Os rins, por seu lado, são a sede das paixões, das emoções, do inconsciente, dessa dimensão visceral e entranhada do sentir e do viver que a Escritura tanto sublinha. «Coração» e «rins» dizem a interioridade do ser humano, o coração situado na parte superior do ventre, os rins na parte inferior[6]. Os sentimentos e a vontade dizem o ser humano em sua totalidade, examinada/perscrutada por Deus. E só Deus pode sondar os corações e atravessá-los em suas decisões e paixões: «Deus formou o coração dos homens e discerne todas as suas obras» (Sl 33,15). O coração do Homem é o ponto em que o Senhor Juiz do universo alcança a existência humana.
Outro elemento muito particular neste Salmo, e podemos dizer o seu traço de maior originalidade, é o retorno do mal contra quem o pratica. Não são apenas os outros que são vítimas da violência; quem pratica o mal também é vítima de si mesmo. A violência causada tem o seu retorno sobre o próprio, desumaniza-o, fá-lo crescer em agressão e em dinamismo de morte. Estamos perante uma profunda reflexão sapiencial sobre as consequências dos próprios atos, não apenas para os outros mas também para si próprio. «Abre um fosso profundo para os outros, mas cai na cova que ele mesmo fez» (v. 16). O mal é uma armadilha na qual quem o pratica se torna presa e vítima. O retorno sobre si próprio do mal praticado é uma dimensão que a experiência confirma e que a literatura sapiencial ajuda a consciencializar: «A sua malícia recairá sobre a sua cabeça» (v. 17). Na poética do Salmo, a maldade pode «gerar a iniquidade e dar à luz a mentira» (v. 15). Este conceber a propagação do mal é a negação da vida. Mas nada é uma fatalidade; há sempre a esperança de uma conversão. A liberdade tem a última palavra.
A experiência de ameaça e de perigo mobiliza o crente a suplicar de Deus vida, salvação, socorro, justiça. A sua súplica é expressão de profunda confiança, a esperança de uma justiça divina (última) quando está já desencantado de toda a justiça humana. O sofrimento, sendo uma agressão ao Homem, é também uma provocação a Deus.
- Na doença: Salmo 41
(1Ao diretor do coro. Salmo de David)
2Feliz daquele que cuida do pobre;
no dia da desgraça, o SENHOR o salvará.
3O SENHOR o guardará e lhe dará vida
e felicidade na terra;
não o abandonará à mercê dos seus inimigos.
Refrão: Senhor, tem compaixão de mim
4O SENHOR o assistirá no leito do sofrimento;
quando estiver de cama, o restabelecerá da doença.
5Eu disse: «SENHOR, tem compaixão de mim;
cura-me, embora tenha pecado contra ti!»
6Os meus inimigos falam mal de mim e dizem:
«Quando morrerá e será esquecido o seu nome?»
Refrão: Senhor, tem compaixão de mim
7Os que me visitam dizem palavras triviais,
o seu coração está cheio de malícia.
Mal saem à rua, dão-na logo a conhecer.
8Todos os que me odeiam murmuram contra mim
e planeiam contra mim toda a espécie de mal:
9«Uma doença maligna o atingiu,
donde está deitado não voltará a erguer-se.»
10Até o meu amigo íntimo, em quem eu confiava
e que comia do meu pão, até ele se levantou contra mim.
Refrão: Senhor, tem compaixão de mim
11Mas, Tu, SENHOR, tem compaixão de mim;
levanta-me, para que me possa vingar deles.
12Nisto reconhecerei que me queres bem:
se o meu inimigo não triunfar de mim.
13Tu me ajudarás, porque vivo com sinceridade,
e me farás viver sempre na tua presença.
14Bendito seja o SENHOR, Deus de Israel,
desde agora e para sempre. Ámen! Ámen!
Refrão: Senhor, tem compaixão de mim
Meditação:
O Salmo 41 brota da experiência de uma profunda desvitalidade, de uma vida ameaçada pela doença, pela solidão, pelo abandono, pela falta de laços de sociabilidade e de apoio. Doença física, exclusão relacional e social, ferida interior (pecado) vão, neste Salmo, em conjunto. Por isso a cura pedida, e que corresponde ao mais profundo desejo de vida, à respiração do próprio ser, é salvação, nova relação com Deus, nova compreensão de si mesmo, do seu lugar no mundo, da sua relação com os outros. A doença não é apenas sofrimento pessoal; tem implicações sociais: pode implicar abandono, solidão, exclusão, hostilidade, desintegração dos laços afetivos e de sociabilidade. A doença é, numa compreensão lata, para além de um diagnóstico exclusivamente técnico, «a destruição do meio vital do orante»[7]. Este Salmo ajuda-nos a uma compreensão relacional da doença e da cura. Do ponto de vista literário, o Salmo apresenta uma dimensão narrativa em primeira pessoa: é o próprio doente que se diz em sua carência, solidão, sofrimento, dirigindo-se a Deus em súplica, pedindo cura e perdão: «Os meus inimigos falam mal de mim» (v. 6). Há também, formalmente, a referência a um «ele», a uma universalidade de experiência humana, para além da dimensão biográfica e pessoal: «Feliz daquele que cuida do pobre» (v. 2). No Salmo acontece também a expressão de um diálogo e de uma relação diretas com um «tu», Deus: «Mas, Tu, Senhor, tem compaixão de mim» (v. 11).
Uma nota, para nós, de profunda estranheza: Chama-nos a atenção que a enfermidade, da qual o presente Salmo faz eco, não gere sentimentos de compaixão, de cuidado, mas de hostilidade e de acusação. Todos os conhecidos do orante parecem estar desejando, no profundo de si mesmos, que a sua vida termine: «Os meus inimigos falam mal de mim e dizem: “Quando morrerá e será esquecido o seu nome?”» (v. 6), em que ninguém mais se lembrará dele. E o próprio amigo íntimo, o mais próximo, não tem melhor comportamento: «Até o amigo íntimo, em quem eu confiava e que comia do meu pão, até ele se levantou contra mim» (v. 10). Inimigos e amigos como que se tornam aliados no desejo de morte e de permanecer prostrado na cama. A doença implica aqui morte social e relacional. Estamos perante um mero recurso literário/retórico do Salmista, ou perante costumes praticados na época? Não sabemos… Sabemos sim que as curas para doenças graves eram raras, e que o enfermo era um peso para a família e para o seu grupo. Por isso era, para ambos, uma situação penosa, uma ameaça. Acresce também o facto de, numa mentalidade religiosa persistente, a doença era compreendida como castigo de Deus, como penalização por alguma falta grave. Por isso os conflitos e as inimizades latentes afloram, com violência verbal, sem filtros de pudor, em situações de grave doença. O próprio doente sente-se cercado, sem forças para reagir e se defender. «A doença produz uma desolada solidão, encerrada num circulo de hostilidade. Em tal situação, ao doente não resta senão dirigir-se a Deus»[8].
Está também presente neste Salmo uma justiça retributiva: a quem pratica o bem para com os outros, Deus virá em seu socorro no presente dos seus perigos. A prática do bem é como que um «crédito» para uma futura ajuda/salvação de Deus na desgraça, na doença: «Feliz daquele que cuida do pobre; no dia da desgraça o Senhor o salvará» (v. 2). A felicidade que aqui é cuidado do pobre, do necessitado, do ser humano exposta em sua vulnerabilidade e carência, será acrescida de uma felicidade dada pelo próprio Deus. «Feliz do homem que cuida do pobre», e feliz porque é Deus que o torna feliz; porque a sua vida está assegurada por Deus. Não deixa de ser paradoxal que, num Salmo em que o orante se expõe em sua doença e solidão, tudo comece com uma declaração de felicidade: «Feliz daquele que cuida do pobre».
A fonte da felicidade, do júbilo da própria vida, está no cuidado pela fragilidade humana, no cuidado do outro em sua carência. Aquele que cuida da vida ameaçada de ser irmão, Deus cuidará também da sua. E aí está a fonte e a raiz da felicidade, uma felicidade que é circulação de vida, partilha, cuidado, relação feita proteção do irmão. Esta declaração de felicidade, e de novo o paradoxo, não significa que se desconheça a infelicidade. Mas sim que mesmo no próprio leito da doença pode-se experimentar o feliz encontro com Deus: «O Senhor o assistirá no leito do sofrimento; quando estiver de cama, o restabelecerá da doença» (v. 4).
Detenhamo-nos no versículo 5, na tradução de André Chouraqui: «cura a minha vida/cura o meu ser (nefesh), pois pequei contra vós». A expressão hebraica nefesh traduz-se por garganta, sede da respiração vital, da carência de ar e de alimentação. Indica o ser humano na sua mais profunda carência, no seu mais vivo desejo de vida. A cura pedida a Deus é um restabelecimento da totalidade da vida, do ser humano em sua inteireza. Por isso podem as traduções modernas traduzir o termo nefesh como sinónimo de pronome pessoal («cura-me»). A cura pedida não é apenas cura da doença, é um pedido de uma nova vitalidade, de um reequilíbrio relacional e interior, de uma vida restabelecida em todas as suas dimensões.
Doença relaciona-se, no Salmo, com o pecado: «Cura-me, embora tenha pecado contra ti» (v. 5). No caso concreto sejamos prudentes. Pelo texto não se pode concluir, sem mais, que a doença seja aqui imediata consequência do pecado. A afirmação parece ser mais ampla: pode referir que o pecado é outro modo de enfermidade, uma enfermidade na relação com Deus, uma desvitalidade e morte interiores. Por isso perdão e cura vão em conjunto, tanto no AT como com Cristo, no NT. A cura não é meramente um restabelecimento da saúde perdida, mas um novo estado relacional. A cura alcança o Homem em sua inteireza: é física, espiritual, relacional e interior. Vem de Deus que é fonte da vida e do perdão. Pedir o perdão é, pois, pedir compaixão: «Tu, Senhor, tem compaixão de mim» (v. 11).
Uma vida sã, íntegra, refeita em seu tecido relacional é o maior sinal da benevolência divina, o sinal de que a vida que vem de Deus é maior do que a maquinação dos inimigos e a hipocrisia dos amigos. O levantar-se da cama, recuperando vida, é o maior sinal de «vingança» sobre os inimigos, sinal de que Deus é aliado da minha vida e meu defensor: «Levanta-me, para que me possa vingar deles. Nisto reconhecerei que me queres bem: se o meu inimigo não triunfar de mim» (v. 11-12). «Viver na presença de Deus» não significa nenhuma referência à vida eterna, desconhecida nos Salmos, mas a expressão de uma confiança que Deus não abandona o crente em sua existência, por mais dramática e humilhante que seja. Por isso o Salmo termina com a expressão hebraica da aceitação e da confiança, a palavra que marca, por excelência, a resposta crente: «Ámen! Ámen!».
- No efémero da vida: Salmo 90
(1Oração de Moisés, o homem de Deus)
Ant: Senhor, tu és o nosso refúgio de geração em geração
Senhor, Tu foste o nosso refúgio
de geração em geração.
2Antes de surgirem as montanhas,
antes de nascerem a terra e o mundo,
desde sempre e para sempre Tu és Deus.
3Tu podes reduzir o homem ao pó,
dizendo apenas: «Voltai ao pó, seres humanos!»
4Mil anos, diante de ti,
são como o dia de ontem, que passou,
ou como uma vigília da noite.
5Tu os arrebatas como um sonho,
ou como a erva que de manhã verdeja,
6como a erva que de manhã brota vicejante,
mas à tarde está murcha e seca.
7Na verdade, somos consumidos pela tua ira,
ficamos angustiados pelo teu furor!
8Colocaste as nossas culpas diante de ti,
os nossos pecados ocultos, à luz da tua face.
9Todos os nossos dias se esvanecem pela tua indignação;
os nossos anos dissipam-se como um suspiro.
10A duração da nossa vida poderá ser de setenta anos
e, para os mais fortes, de oitenta;
mas a maior parte deles é trabalho e miséria,
passam depressa e nós desaparecemos.
11Mesmo temendo-te e respeitando-te,
quem poderá compreender a tua ira e indignação?
12Ensina-nos a contar assim os nossos dias,
para podermos chegar ao coração da sabedoria.
13Volta, SENHOR! Até quando…?
Tem compaixão dos teus servos.
14Sacia-nos pela manhã com os teus favores,
para podermos cantar e exultar todos os dias.
15Alegra-nos pelos dias em que nos afligiste
e pelos anos em que sofremos a desgraça.
16Manifesta aos teus servos a tua obra,
e aos filhos deles, o teu esplendor.
17Venham sobre nós as graças do Senhor, nosso Deus!
Confirma em nosso favor a obra das nossas mãos;
faz prosperar a obra das nossas mãos.
Ant: Senhor, tu és o nosso refúgio de geração em geração
Meditação:
O Salmo 91 coloca frente a frente a eternidade de Deus e a caducidade, o efémero da vida humana, e o desencanto que isso acrescenta. Apesar da nota de dramático realismo desiludido, o Salmista não se deixa vencer pelo desespero, mas abre-se, na estreiteza dos seus limites existenciais, da condição mortal que o habita, à confiança em Deus. Está classificado entre os Salmos de súplica, e por isso aqui hoje o trazemos; mas, a par da súplica que lhe dá o tom de fundo, o Salmo apresenta-se também como uma meditação sapiencial sobre a caducidade da vida. Esta meditação integra a tristeza da finitude. O orante, dirigindo-se a Deus, transcende a própria finitude e melancolia existencial na oração. O inimigo contra o qual se pede a intervenção de Deus é, aqui, a morte, um inimigo difícil de combater, como nos indica a própria Escritura: «o último inimigo a ser destruído será a morte» (1 Cor 15,26). O Salmista não pede a Deus o fim dos males nem a destruição do inimigo, mas essa aprendizagem quotidiana, a sabedoria de «viver com o inimigo»: «Ensina-nos a contar os nossos dias, para chegarmos à sabedoria do coração» (v.12).
Caso único no Saltério: o Salmo é atribuído a Moisés, possivelmente pelas suas referências ao Livro do Génesis e a Dt 32. Deus/o Senhor é invocado como estabilidade, segurança, refúgio, morada estável perante a caducidade da vida e a mudança geracional: «Senhor, tu foste o nosso refúgio de geração em geração» (v. 2). Proclama-se a anterioridade de Deus em relação ao mundo criado. Deus é anterior às montanhas, consideradas o elemento mais sólido da terra que a mantém sobre o abismo e seguram as águas celestes: «Antes de surgirem as montanhas…, desde sempre tu és Deus» (v. 2). Do sólido das montanhas se transita para a fragilidade estrutural da condição humana, esse destino de voltar a ser pó, imagem da morte e do reencontro com a terra, da qual o ser humano é modelado. Esse destino de pó, que a qualquer momento nos pode acontecer, esse descer ao vazio e ao não-ser, é no Salmo acolhido como ação de Deus: «Tu podes reduzir o homem ao pó». Toda a história do Génesis está invocada neste versículo: todo o poder criador de Deus que é, igualmente, uma capacidade de fazer voltar as criaturas ao não-ser; no poder criador há também um poder destruidor: «Voltai ao pó, seres humanos» (v. 3)[9]. Mas ficam algumas dúvidas: como se pode conciliar a invocação de Deus como segurança, com um Deus que pode retirar a vida, a respiração? O incómodo da pergunta não tem resposta no Salmo.
No Salmo, a brevidade da vida humana é mais do que uma condição natural; tem uma explicação teologal. Aqui uma antropologia da fragilidade e da finitude abre-se a uma teologia da permanente presença de Deus: tudo acontece ao Homem no vasto âmbito da sua vontade: «Mil anos, diante de ti, são como o dia de ontem, que passou, ou como uma vigília da noite» (v. 4). O versículo 5 é difícil de compreender: «Tu os arrebatas como um sonho, ou como erva que de manhã verdeja, mas à tarde é cortada e seca». A metáfora poética da caducidade da erva é recorrente na Escritura, pois estamos num clima desértico, em que as ervas têm vida breve, praticamente de um dia, em que o sol queima e depressa reduz tudo a pó. A imagem da caducidade da erva serve para evidenciar a fragilidade do Homem perante a eternidade e a estabilidade de Deus. Como o calor do sol seca as plantas, a cólera de Deus queima como um fogo. Toda a vida humana acontece e desenvolve-se sob o olhar perscrutador de Deus, que nada deixa em oculto: «colocaste as nossas culpas diante de ti, os nossos pecados ocultos, à luz da tua face» (v. 8). O Salmista compreende-se como alguém que não consegue ficar fora do juízo de Deus; nada do que é oculto lhe escapa. O pessimismo do Salmista chega mesmo a quantificar a média dos anos de vida: «de setenta, e para os mais fortes, de oitenta». Estamos num tempo em que a esperança de vida era baixa, e chegar aos 80 era já a bênção de uma bela longevidade. A maior parte dos anos «é trabalho e miséria, passam depressa e nós desaparecemos» (v. 10).
Nos versículos 13-16 o Salmo toma a forma de explícita súplica: «Volta, Senhor! Até quando…?». Parece um queixume perante o silêncio e o retardamento de uma ação salvífica, criadora de Deus; o Salmista parece estar a querer afirmar que a ação de Deus tem sido apenas de destruição e não de criação, de permitir a caducidade, a aproximação da morte e não potenciar a vida. Impressiona-me nos Salmos que, pela oração, perante Deus, o crente possa acusar Deus, revoltar-se contra Deus, julgá-lo até. Trata-se de uma oração apaixonada, visceral, intensa, que expressa a complexidade dos sentimentos, da confiança à revolta, do júbilo à acusação, mas sempre em oração, em busca de uma pacificação e de uma sabedoria do coração, ainda que seja pelos caminhos do desencanto, da raiva, da revolta, da difícil integração da violência das circunstâncias. Os Salmos em nada fazem economia da violência; mas a mesma é atravessada coram Dei, perante Deus. «Volta Senhor, tem compaixão dos teus servos» (v. 13).
Chegamos à parte mais bela do Salmo: Se, por um lado, a vida humana é experimentada como uma vigília na noite (breve), por outro, espera-se um tempo novo marcado pela intervenção de Deus, uma madrugada no seu agir. A manhã é, na Escritura, a hora por excelência do agir salvífico de Deus. Saciado dos favores de Deus, o Salmista, e com ele todo o povo de Israel, cantarão e exultarão: a angústia da finitude e da mortalidade dá lugar à celebração jubilosa da vida. Sabendo, com todo o realismo, que a existência humana caminha para o pó, e está permanentemente ameaçada, na oração do Salmista não há rendição; confessando e narrando a dureza inexorável da vida, sempre ameaçada, a sua oração abre-se e termina numa celebração da esperança: «Alegra-nos pelos anos em que nos afligiste e pelos anos em que sofremos a desgraça» (v. 15). A desgraça sofrida abre-se à esperança da graça: «Venham sobre nós as graças do Senhor». E conclui pedindo: «Confirma em nosso favor a obra das nossas mãos» (v. 17). Sem a ajuda e a confirmação de Deus, o Salmista, em tom sapiencial, sabe que toda a obra humana deixada é vã e efémera. O agir humano é mais do que uma afirmação das capacidades humanas; é consentir e corresponder o agir de Deus com o nosso agir, e fazer do nosso agir a procura do cumprimento da sua vontade. A concluir, verificamos no poema um duplo movimento, da vida para a morte, a passagem da manhã à noite, e da morte para a vida, da noite para a madrugada. E já estamos próximos da linguagem da Páscoa cristã.
[1] André WENIN, Entrare nei Salmi, EDB, Bolonha 2002, 5.
[2] Carlo Maria MARTINI, A sede de Deus, Paulinas, Prior Velho 2014, in https://www.snpcultura.org/rezar_com_os_salmos.html.
[3] André CHOURAQUI, «Écrits. Liminaire pour Louanges», in La Biblie. Traduite et presentée par André Chouraqui, Desclée de Brower, Paris 2003, 1116.
[4] Hervé TREMBLAY, «Le Psaume /. Prière du juste persécuté injustement», in http://www.spiritualite2000.com/2007/10/le-psaume-7-priere-du-juste-persecute-injustement/.
[5] André WÉNIN, Entrare nei Salmi, EDB, Bolonha 2002, 5.
[6] Bernard JANOWSKI, Dialogues conflituels avec Dieu. Une anthropologie des Psaumes, Labor et Fides, Génebra 2003, 102-103.
[7] Bernard JANOWSKI, Dialogues conflituels avec Dieu. Une anthropologie des Psaumes, 201.
[8] Luis Alonso SCHÖKEL-Cecilia CARNITTI, Salmos I, Verbo Divino, Estella (Navarra) 2002, 606.
[9] Hervé TREMBLAY, «Psaume 90 (89) Fragilité de la vie humaine» in
http://www.spiritualite2000.com/2013/01/ps-9089-fragilite-de-la-vie-humaine/ .
2019/02/11 - Curso “Filosofia, Literatura, Espiritualidade" – Simone de Beauvoir - Luísa Ribeiro Ferreira
2019/02/10 - O Senhor vem ao encontro das nossas vidas (homilia)
Queridos Irmãos
Recordamos ainda o fim do evangelho de domingo passado: «Jesus, passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho». Levado para o precipício pelos seus conterrâneos, Jesus escapa-se. Se, inicialmente, optou por anunciar a Palavras nas sinagogas, parece, no evangelho deste domingo, que mudou de estratégia pastoral. Vemo-lo a anunciar a Palavra de Deus em campo aberto, ao ar livre, em open space, nas margens do Lago de Genesaré (da Galileia). Jesus sai dos espaços fechados das sinagogas para ir ao encontro das pessoas no concreto da vida. Vemo-lo hoje pregando nas margens do Lago, entre pescadores que lavavam as redes, desencantados, depois de uma noite frustrada em que nada pescaram. O Senhor vem ao encontro das nossas vidas marcadas por noites de insucesso e de fracasso, por canseiras aparentemente infecundas.
Para falar às multidões, Jesus precisa de amplificar a voz, de tomar distância em relação à multidão que o cerca. E fá-lo pedindo um favor a Pedro. Sobe para o seu barco e pede-lhe que se afaste um pouco da praia. A barca de Pedro é agora o púlpito de Jesus, tão pouco litúrgico, tão pouco sagrado, segundo as rubricas. Jesus aproxima-se de nós solicitando as nossas capacidades, potenciando os nossos dons. Ele precisa de nós. Imagino Pedro até um pouco desajeitado mas pronto na sua resposta, generoso no favor que presta a Jesus. Da barca de Pedro, Jesus ensinava as multidões. Imagino também que enquanto os ensinava em suas palavras com autoridade, cheias de vida e de verdade, Pedro se deixou encantar e seduzir. Assim percebemos melhor a confiança que coloca na ordem de lançar as redes em profundidade: «Faz-te ao largo e lançai as redes para a pesca». Responde, afirmativamente, porque em seu coração já tinha brotado a fonte da confiança.
Algo se passou no coração de Pedro para acreditar em Jesus, nessa palavra que o convocava a voltar ao lugar do fracasso e do insucesso. Confrontam-se duas autoridades: a da experiência de pescador de Pedro que conhecia bem as correntes favoráveis (e acrescente-se que Jesus não era pescador e que aos olhos de Pedro poderia aparecer desautorizado), e a de Jesus que não sendo pescador, a quem Pedro reconhece autoridade: «já que o dizes, lançarei as redes». O mesmo é dizer: «acredito em ti, acredito no que dizes. O modo como te ouvi falar à multidão toucou-me o coração. Há dentro de mim um instinto, uma voz que me diz que posso confiar nas tuas palavras». O mistério da confiança entre as pessoas brota das palavras credíveis que são ditas, não a partir de uma autoridade legitimada, institucional, académica, técnica, profissional, mas existencial. São as palavras de confiança que anunciam a verdade da vida, que fascinam, fazem sonhar, e fazem-nos crescer a vontade de ir mais longe e mais fundo. De voltar ao lugar da infecundidade, do fracasso, e recomeçar de novo. A nossa vida tem futuro quando alguém confia em nós, quando confiamos e nos entregamos.
E o milagre aconteceu: as redes encheram-se de peixe e os barcos afundavam-se com tanto peso. Lucas exagera, intencionalmente, na narrativa para assinalar ao leitor o excesso do dom, a abundância da vida, a fecundidade da multiplicação, esse encher das redes que vem da Palavra de Jesus aceite e correspondida. Na nossa existência parece que estamos mais «programados» para integrar os fracassos, apesar da sua dimensão penosa, do que para acolher o excesso da graça, a abundância das surpresas da vida. Pedro sente-se esmagado com tamanho excesso de gratuidade. Reconhece-se pecador e incapaz de se aproximar de Jesus. Naquele momento Jesus cria-lhe temor: «Senhor, afasta-Te de mim, que sou um homem pecador». Experimenta-se como indigno. Sim, nunca somos dignos nem merecedores da surpresa da graça. Mas é, precisamente, para tornar a nossa vida mais fecunda e mais digna, mais grandiosa e mais dilatada que Jesus nos desafia a atravessar o mar e a mergulhar em profundidade. Também podemos identificar nessa reação de Pedro aquela distância temerosa, de auto-culpabilização, o medo de um Deus que tanto tem marcado uma certa religião, mais do temor do que da misericórdia.
A Jesus não interessa que Pedro seja um pecador, mas que seja um pescador, que saiba estar na realidade, em contacto direto com a vida. O seu passado não interessa mais; não há histórias de vida sem saída, sem futuro, sem possibilidade de redenção. A Pedro e a cada um de nós, Jesus continua a dizer: «Não temas». «Não fiques preso às cadeias das tuas amarras, das dependências do passado; atreve-te no futuro, ousa na confiança». Agora percebemos melhor como as duas expressões «Não temas», «faz-te ao largo» são sinónimas. Mergulhar em profundidade, avançar no alto mar, correndo riscos de tempestade e de agitação, só é possível pela confiança.
«Não temas. Daqui em diante serás pescador de homens». Literalmente, «tomarás vivos os homens». Doravante uma nova pesca: Pescador de humanidade a partir de uma humanidade ferida, de uma existência fracassada, mas potenciada e ressuscitada pela confiança. A partir de uma verdade humildade, a de nós próprios, que não se impõe mas que é capaz de estimular, motivar, indicar horizontes, acrescentar vida. Se, naturalmente, a pesca significa retirar os peixes do seu meio ambiente, a água, com a morte que isso implica, a pesca de pessoas vivas é acrescentar qualidade de vida, retirá-las dos abismos da morte e do medo, do caos do fundo do mar. Significa comunicar vida; numa palavra, salvar.
Esta pesca da vida continua com cada um de nós, em cada um de nós. Saibamos nós também deixar as nossas barcas, as seguranças dos nossos lugares de conforto, e arriscar, na coragem e na confiança, o mar alto. É o nosso tempo.
Pe. António Martins, Domingo V do Tempo Comum
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2019/02/07 - Percurso de Preparação para os Sacramentos da Iniciação Cristã
2019/02/04 - Curso “Filosofia, Literatura, Espiritualidade" – Papa Francisco - Manuela Silva
Leia também o artigo do Pe. António Martins para a publicação “Mensageiro de Santo António”, com o título “Crise ecológica – Crise antropológica: Para uma Educação Ambiental”.
Mais informações sobre o curso aqui.
2019/02/03 - Caminho de misericórdia e de perdão (homilia)
Queridos Irmãos
«Nenhum profeta é bem recebido na sua terra», diz Jesus aos seus conterrâneos, na sinagoga de Nazaré. Dizemos nós, com o nosso provérbio: «Santos da casa não fazem milagres». Parece haver uma lei universal que desautoriza quem se destaca no meio do grupo. Aqueles que se demarcam da lógica identitária da tribo ou do clã, cai sobre eles uma rejeição, por vezes até uma extrema e homicida violência. Entre os familiares, entre os de casa, entre os próximos, tudo é tão conhecido, tão previsível, tão controlado, que não há lugar para a novidade profética.
O evangelho de hoje é a continuação do domingo passado. Para que não nos esqueçamos do contexto, o texto começa, precisamente, onde acabou o do passado domingo, com a afirmação de Jesus, após a leitura da passagem de Isaías: «Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir». Toda a vida de Jesus se cumprirá como libertação dos cativos, vista para os cegos, boa nova aos pobres, graça e misericórdia de Deus para todos. Ele é a Escritura feita carne e cumprida.
Há um pormenor significativo a ter em conta na leitura que Jesus faz de Isaías. A passagem do profeta termina com a frase «proclamar um ano aceitável ao Senhor (um ano de graça, de jubileu, de perdão) e um dia de vingança do nosso Deus». Ora Jesus não lê a última frase; a sua leitura seletiva, excluindo a referência à vingança de Deus, é a confirmação de que toda a sua vida será caminho de misericórdia e de perdão, encontro com os excluídos, amnistia aos fora-da-lei. Jesus recusa uma conceção de um Deus vingativo e punitivo, presente em algumas passagens do Antigo Testamento e em certa mentalidade religiosa ainda resistente. O Deus de Jesus Cristo será inteiramente Pai de misericórdia, um Deus de perdão e jamais um Deus de violência punitiva. Por isso Jesus, no silêncio seletivo da sua leitura, apresenta-se como um profeta de paz e de reconciliação. Um profeta da graça de Deus e não da vingança nem do castigo.
As suas palavras são de graça, e os seus conterrâneos e ouvintes ficam maravilhados. Há um clima de entusiasmo, de adesão, de contentamento. Mas este início de uma bela receção acaba numa violenta rejeição, com tentativa mesmo de homicídio: «expulsaram Jesus da cidade e levaram-n’O até ao cimo da colina sobre a qual a cidade estava edificada, a fim de O precipitarem dali abaixo». Numa leitura ligeira de Lucas parece não haver motivo para tanta violência. Ou por outras palavras, o que aconteceu naqueles corações, por um momento maravilhados, para se tornarem corações violentos e homicidas? O que teria desencadeado tamanha e incontida violência e rejeição nos conterrâneos de Jesus?
Parece também que o próprio Jesus pôs-se a jeito, provocou o conflito, criou intencionalmente uma crise. Deixa-nos alguma perplexidade que Jesus não tenha cavalgado a onda favorável do início e não tenha acolhido aqueles sentimentos iniciais de maravilhamento para com as suas «palavras de graça». Na subtileza narrativa de Lucas, vemos Jesus a desmascarar os sentimentos interiores daquela gente, a dar voz ao que lhes ia no coração de não aceitação e de recusa. Jesus faz aflorar a violência profunda que habitava nos seus corações. Por isso Ele é sinal de contradição, porque revela as profundas contradições, as profundas violências que atravessam o coração humano e qualquer grupo fechado na sua identidade. Jesus põe a nu as nossas contradições.
O primeiro sinal é a desautorização da sua novidade profética com a expressão: «Não é este o filho de José?». Como se os seus conterrâneos estivessem a dizer: «Conhecemo-lo bem, sabemos quem é, a sua origem, a sua paternidade». Há aqui uma arte subtil para desacreditar Jesus. Basta dizer que ele é uma pessoa comum, domesticada, controlada na sua identidade, que todos conhecem; basta dizer que ele, por ser filho do carpinteiro, não tem genealogia nem linhagem de prestígio que o legitime como diferente dos outros. O primeiro assassinato, que é simbólico, é o de esvaziar a sua autoridade, de tornar banal a sua diferença, de o tornar indiferenciado, igual a todos os outros. Assim esvaziam a sua originalidade, a força de novidade que nele habita. Porque nos incomoda, porque nos agride, porque nos desinstala. «Nenhum profeta é bem recebido na sua terra / santos de casa não fazem milagres».
Jesus avança no desmascaramento dos pensamentos dos seus conterrâneos. Ele denuncia todo o grupo com uma identidade fechada, que exclui as diferenças, quem é diferente. A assembleia da sinagoga de Nazaré parece ser um grupo muito fechado, violentamente resistente à abertura para quem é estrangeiro, para quem é diferente. Essa é a profunda diferença com a cosmopolita Cafarnaum, terra de cruzamento de raças, de povos, de identidades, terra de fronteiras abertas, de encontros de identidades diferentes, terra hospitaleira e cosmopolita. Assim se compreende a referências ao livro dos Reis em que Elias vai ter, fora das fronteiras de Israel (na região de Sidónia), com a viúva pagã de Sarepta; ou Eliseu acolhe o general inimigo de Israel, o sírio Naaman, e o cura.
Esta denuncia profeta de uma identidade nacionalista/tribal fechada provocou escândalo. Enfureceu os seus conterrâneos. Jesus é o cumprimento de um Deus acolhedor dos estrangeiros, aquele que nos reconcilia com os inimigos, que nos convida a incluir quem é diferente, quem não pensa e sente como nós. Jesus é o profeta que denuncia a estreiteza dos grupos fechados, as tentações identitários, xenófobas e fanáticas de todos os grupos que defendem com intransigência a sua identidade. Esta profecia é tão necessária nos tempos atuais, dentro da própria Igreja, nas sociedades de hoje marcadas pelo reforço das fronteiras e pela violência crescente aos estrangeiros, e mesmo com perseguição às minorias com identidades diferenciadas. Jesus revela e denuncia o perigo das violências identitárias que se escondem em qualquer grupo fechado. Por isso foi posto fora da cidade, precipitado no precipício, numa declarada intenção de homicídio.
«Jesus, passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho». Traço irónico de Lucas, em que Jesus segue o seu caminho, na fidelidade à sua missão de ser Filho e Irmão, na coerência consigo mesmo. Mas desde este momento inaugural já está traçado o seu destino de cruz, de rejeição, de condenação e de morte fora da cidade. Esse é destino do profeta, e de toda a vivência cristã que quiser testemunhar a força alternativa do evangelho. Debilidade, talvez, no nosso cristianismo contemporâneo, pouco ousado numa sociedade demasiado normalizada e formatada.
Pe. António Martins, Domingo IV do Tempo Comum
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Janeiro
2019/01/28 - Curso “Filosofia, Literatura, Espiritualidade" – J. M. Coetzee - Manuel João Pires
Mais informações sobre o curso aqui.
2019/01/27 - O Espírito do Senhor está sobre mim (homilia)
Admiramos o rigor de Lucas, o modo metódico e ordenado como nos narra os factos da vida de Jesus. Escreve de forma sistemática, após ter investigado, analisado e interpretado «cuidadosamente», ou seja, com critério. A sua escrita tem um destino comunitário. É para fazer crescer, maturar e aprofundar a nossa amizade com Deus que Lucas escreve: «para ti, ilustre Teófilo, para que tenhas conhecimento seguro do que te foi ensinado». «Teófilo» quer dizer «amigo de Deus»; era um nome próprio muito comum no tempo. Poderia ter sido uma pessoa concreta. Mas Lucas está a escrever também para cada um de nós e a tratar-nos como «amigos de Deus». A frequência da Escritura é o lugar onde experimentamos e praticamos, no quotidiano da vida, a nossa amizade com Deus.
Lucas narra hoje uma ida de Jesus à sinagoga de Nazaré onde viveu. Encontramos uma comunidade crente judia, centrada na leitura, na escuta e na interpretação da Palavra. Entramos, como que em direto, na própria dinâmica celebrativa da comunidade: o leitor levanta-se, abre o livro, lê, os olhos dos ouvintes esperam a sua homilia/o seu comentário. Tudo isto nada tem de excecional: é a vida normal de uma comunidade celebrativa judia que dava aos visitantes, aos hóspedes, a honra de ler e comentar uma passagem da Escritura. E isto reenvia para a primeira leitura do Livro de Neemias. Aparece o levita Esdras que lê em público, durante uma manhã inteira, o Livro da Lei. O povo maravilha-se, emociona-se; a Palavra escutada suscita lágrimas. Pela voz de cada leitor, ainda hoje, a Palavra de Deus torna-se audível e visível.
Jesus é um leitor que proclama, na sua comunidade de origem, palavra do profeta Isaías: «Segundo o seu costume, entrou na sinagoga a um sábado e levantou-Se para fazer a leitura». Mas além de leitor é também um interprete. Como bom judeu, Jesus revela-se aqui como um crente familiarizado com a Palavra. Mas a nota de originalidade de Jesus é a apropriação pessoal, a interiorização da Palavra. Todos esperavam dele um comentário. Jesus cumpre a formalidade mas inova, acrescenta a sua experiência pessoal. Aquelas palavras lidas, Ele aplica-as a si. Interpreta-se nelas; melhor, através delas apresenta-se e cumpre-se como Messias: «Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir». Aquela passagem de Isaías é o seu programa, a expressão da sua missão de Messias e de Filho ao serviço do Homem. Jesus é a encarnação, o cumprimento das Escrituras.
«Hoje» é sempre a hora oportuna para escutar a Palavra de Deus: «Se hoje ouvirdes a voz do Senhor…» (Sl 95,7-8). O hoje do momento da escuta é o momento da adesão ou da rejeição, do encontro ou da recusa. No momento da escuta decide-se o sentido e a radicalidade do nosso encontro com Cristo. No instante do momento concreto, Deus chama-me, dirige-me uma palavra pessoalíssima, concreta, direta. No hoje da escuta recomeça, continuamente, a vida cristã, renova-se a fé. Somos uma comunidade reunida à volta da Palavra, e isso a tradição cristã herdou da tradição judaica.
Lemos de novo a passagem, também nós para nos mais apropriarmos dela: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres. Ele me enviou a proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos». Cristo coloca-se ao serviço de Adão, de cada um de nós, em nossos limites, feridas, incapacidades, opressões, carências de liberdade, de força de viver. A missão de Jesus, como Ungido de Deus (Messias) é dar vida, libertar, curar, encorajar, consolar a humanidade ferida que somos nós.
Queremos ser uma comunidade que faz corpo com as limitações e as fragilidades de cada um, que se constrói com a humanidade própria de cada um de nós. S. Paulo, na segunda leitura, oferece-nos a metáfora tão realista da comunidade como corpo (corpo comunitário que integra as diferentes identidades corpóreas em sua profunda vulnerabilidade). Algumas vulnerabilidades nossas estão visivelmente expostas, sem disfarces; outras transportamo-las no silêncio da nossa interioridade, quais feridas permanente a proteger. Todos constituímos um só e único corpo de Cristo, com a diversidade e a singularidade própria das nossas existências pessoais, que não têm de ser normalizadas e padronizadas. A nossa identidade comum é a humanidade de Cristo, a sua carne em união/relação com a carne de cada um de nós Paulo é ousado. Diz que a comunidade de Corinto, cheia de tensões e de contradições, é corpo de Cristo e que os cristãos devem viver unidos uns aos outros: «Vós sois corpo de Cristo». Paulo ajuda-nos a perceber que cada pessoa tem o seu valor, tem o seu carisma, tem o seu lugar numa comunidade. Todos são chamados a colaborar para o bem de todos, cada um na sua missão própria, com a sua história de vida, sensibilidade, capacidades e até com as suas fragilidades. As nossas vulnerabilidades também têm um destino comunitário.
Para quebrar o nosso orgulho e as nossas pretensões, diz-nos Paulo: «os membros do corpo que parecem mais fracos são os mais necessários». A importância não está em quem sabe mais; a importância deve estar em que é mais vulnerável. Na vida empresarial e na vida universitária são os fortes que triunfam. As comunidades cristãs têm a missão profética de ser lugares de alternativa, de diferença, em que os mais frágeis estão no centro, são os mais importantes. É um desafio permanentemente a renovar, pois nunca está adquirido. Que as nossas comunidades cristãs, e a nossa comunidade do Rato, possam ser lugares de integração das fragilidades, com amor e respeito. Na fragilidade de cada história de vida há uma bênção, uma presença da misericórdia de Deus.
Que o Senhor nos ajude a formarmos este corpo que é a Igreja, a comunidade cristã, com as fragilidades de todos nós, que são também riquezas de uns para os outros.
Pe. António Martins, Domingo III do Tempo Comum
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Meus queridos Irmãos,
As festas acabaram, regressamos à nossa normalidade. A vida recupera os ritmos quotidianos de trabalho, de relações, de vida repetida, por vezes custosa, por vezes banal. Entramos no Tempo Comum. O Tempo Comum é o maior tempo da nossa vida, aquele que não tem festas, nem Natal, nem Páscoa, nem outras. É um tempo árduo, de repetição quotidiana de tarefas, de solicitações, de responsabilidades, às quais não nos podemos furtar, nem sair, nem fugir, porque outras pessoas dependem de nós, estão ao nosso cuidado. Tudo isto, aparentemente insignificante, é o tempo comum que não tem a vibração das grandes festas; é o quotidiano da vida.
A nossa espiritualidade cristã faz-se do quotidiano das coisas banais, na fidelidade às pequenas coisas, aos amigos, à família, às pessoas que amamos e que estão em nossa casa; que, por vezes, precisam de nós com cuidados mais necessários e mais exigentes. Que o Senhor nos ajude, a mim e a todos vós, a viver este tempo comum despojado, sem grandes acontecimentos, como o tempo ordinário em que provamos, na resistência de cada dia, a nossa fidelidade ao Evangelho e a nossa fidelidade àqueles e àquelas que amamos e servimos.
Hoje a liturgia apresenta-nos, no início do Tempo Comum, o Batismo do Senhor. É a apresentação pública de Jesus. Depois de ser criança, já com trinta e tais anos, entra na fila dos pecadores e deixa-se batizar no rio Jordão. Entre os doze e os trinta anos, nós não sabemos nada da vida de Jesus. Não sabemos nem podemos inventar. A última narrativa da infância, do evangelho de Lucas, é a ida de Jesus a Jerusalém por volta dos doze anos, quando se perde dos pais e é encontrado no templo. Depois há um total silêncio. Quando, de novo, Jesus aparece em público é já homem maduro.
Do crescimento de Jesus, com quem se relacionou, com quem aprendeu, que escolhas frequentou (se assim podemos dizer), com que mestres aprendeu a viver o judaísmo, nada sabemos. Há um enigma na vida de Jesus. Esse enigma também assinala o enigma da vida de cada um de nós. Acolhemos este silêncio como um enigma que nos é dado para guardar e também para olharmos os outros sem essa pretensão de saber tudo da sua vida. Porque em cada pessoa, a começar pelo próprio Jesus, guarda um mistério, um silêncio e uma história que só a Deus pertence, única e irrepetível, que não tem de ser publicitada nem divulgada.
Podemos dizer que durante esse tempo privado e íntimo, que desconhecemos, Jesus maturou o seu crescimento. De tal modo que quando aparece em público já tem a sua vida completamente afinidade com o Pai: é o belo texto do evangelho de Lucas que hoje lemos. Podemos admitir a seguinte hipótese: o batismo de Jesus que no texto é narrado não é fruto de um mero instante; é preparando por um caminho interior, talvez longo, de tomada de consciência de ser Filho.
Na leitura da Escritura Jesus foi interiorizando e rezando: «Tu és meu pai». Nas relações e nos encontros foi aprendendo a ser irmão, solidário com os homens e as mulheres do seu tempo. Esta consciência de ser Filho e de ser irmão não brotou nele num instante. Podemos dizer que, desde o seio materno e das palhinhas de Belém, Jesus foi preparado, por esse tempo de silêncio e de enigma, para a consciência de pertencer ao Pai e de pertencer a nós, de ser inteiramente Filho para o Pai, e de ser inteiramente irmão ao nosso lado. São estas duas dimensões que quero salientar.
«Quando todo o povo recebeu o batismo, Jesus também foi batizado». Curioso: Jesus não precisava de ser batizado. O batismo era uma proposta de João como sinal de conversão, de mudança de vida, de querer uma renovação. Jesus é já essa renovação, esse caminho novo. Em princípio, não tinha necessidade de se juntar à fila dos banhistas (se eu assim posso dizer), à fila dos pecadores. Jesus é já essa vida nova fundada no amor do Pai. Mas aparece na fila dos batizandos. É uma bela expressão do evangelho de Lucas para dizer que Jesus está inteiramente do nosso lado. As nossas dores são as suas dores. As nossas dificuldades Ele partilha-as connosco; a nossa procura Ele a acolhe; a nossa vontade de mudança Ele a confirma. Jesus é aquele que caminha connosco na aventura da vida, a nosso lado. Ele é povo, está com o povo, no meio dos seus. Não é um sacerdote que se separa do povo. Jesus é um leigo que vive outro sacerdócio, ser Filho entregue ao Pai solidário connosco. Esta profunda aliança de Jesus connosco agrada a Deus.
O evangelho de Lucas narra-nos hoje um acontecimento místico, se assim podemos dizer. As palavras que aqui estão não se atrevem a precisar o que se passou. O que naquele momento se passou foi um acontecimento trinitário, uma expressão do amor profundo entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Jesus está em oração. Em Lucas, os grandes acontecimentos de Jesus são vividos em atitude orante, de entrega ao Pai. «Enquanto orava, o céu abriu-se». Podemos imaginar o céu a abrir-se num dia de intenso nevoeiro quando surge um raio de luz. Todos nós já fizemos esta experiência atmosférica. Experimentei isso nos Açores.
A expressão «o céu rasgou-se» é uma forma simbólica de dizer o encontro entre Deus e o Homem. Nada mais separa a luz divina da terra dos homens. No rasgar-se do céu podemos ler simbolicamente: o coração do Pai abre-se, rasga-se, através do Filho, para acolher esta humanidade carente e necessitada que somos nós, que é cada um de nós. A intensidade do amor do Pai derramado sobre o Filho é o Espírito Santo, em forma corporal «como uma pomba». Não se diz que é pomba, mas como uma pomba. Porque toda a aproximação ao mistério de Deus é por símbolos e por comparações: diz não dizendo, aproxima-se mantendo a distância. A pomba é sinal da paz cósmica, após o dilúvio; é símbolo do amor no Cântico dos Cânticos; é sinal de fecundidade ao evocar a vida que é chocada. Tudo isto são símbolos para dizer a ação de Deus em Jesus.
Narra Lucas: «E do céu fez-se ouvir uma vos: “Tu és o meu Filho muito amado: em ti tenho toda a minha complacência». As palavras mais belas ditas por Deus em toda a Escritura são dirigidas a Jesus: «Tu és o meu filho muito amado». Por outras palavras: «Tenho grande prazer em ti, tenho grande alegria por existires». Isto que Deus diz do Filho e para o Filho, é palavra dirigida a cada um de nós. Hoje, para mim, para cada um de nós, é o próprio Pai de Jesus que diz: «António (podemos colocar a aqui o nosso nome) tu és meu filho muito amado».
A cada um de nós, Deus faz hoje uma declaração de amor com futuro, com promessa. O ato de vivermos e existirmos é prazer e alegria para Deus. Oxalá possa ser também para os outros. Cada um de nós pode dizer-se na sua identidade mais profunda, que é a de ser filho e filha de Deus, com a sua singularidade, as suas feridas, a sua história pessoal, os seus impasses e dificuldades: «Eu sou filho(a) muito amado(a) de Deus. Deus tem prazer e alegria por eu existir, por ser quem sou».
Pe. António Martins, Batismo do Senhor
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