Outubro
2020/10/11 - Sintamo-nos todos convidados para as bodas do Filho (homilia)
Queridos Irmãos
Lemos a nossa vida à luz da Palavra de Deus.
S. Paulo, no texto lido na segunda leitura, partilha com os seus irmãos da comunidade de Filipos (na Macedónia), a sua aprendizagem existencial nas contradições da vida: «Sei viver na pobreza e sei viver na abundância». O exemplo da sua sabedoria prática pretende motivar nos leitores estilos de vida adaptados às circunstâncias reais.
Também nós, na atualidade, vivemos tempos de empobrecimento social. Em tantas famílias, hoje, há uma brutal diminuição de rendimentos, com o desemprego e a pobreza a aumentar. As atuais circunstâncias exigem de nós um estilo de vida mais sóbrio e uma maior generosidade na partilha. É um desafio tremendo, vivermos com menos e partilharmos mais. Possamos dizer com a mesma convicção de Paulo: «Tudo posso naquele que me conforta».
Paradoxalmente, a primeira leitura e o evangelho anunciam a abundância de um banquete. Também precisamos do excesso da festa, da alegria partilhada à volta da mesma mesa. Comungando dos mesmos sabores, celebram-se encontros, refazem-se alianças, decidem-se negócios, reforçam-se laços de pertença. Todos precisamos de uma boa mesa e da companhia de amigos para sermos felizes. Precisamos todos de festa, e de sermos festa uns para os outros.
É profundamente espantoso e significativo que Isaías nos anuncie um tempo futuro de fraternidade e de alegria entre os povos, com a sugestiva imagem de um banquete «de manjares suculentos» e de «vinhos deliciosos» oferecido por Deus. O profeta vê uma mesa posta para todos os povos na Cidade Santa de Jerusalém. O véu de separação entre as nações será tirado para dar lugar à celebração do encontro e da fraternidade. O futuro querido por Deus, que Isaías profeticamente anuncia, não pode deixar de ser, também para nós, um critério de ação. O perigo do individualismo e dos nacionalismos contemporâneos só pode ser superado com a coragem de um reforço da fraternidade e da amizade social. Com um atento cuidado de uns pelos outros. É a urgência dos tempos atuais. Esse é o apelo do Papa Francisco na sua recente encíclica Fratelli tutti.
A parábola do evangelho de hoje pode ser lida como o retrato da negação que podemos fazer ao convite do rei para as bodas do filho. Qual bom pedagogo que sabe contar histórias de vida, Jesus, através das parábolas, quer colocar as consciências de quem o ouve em julgamento, em crise. Tal como as parábolas anteriores da vinha, também a parábola do rei que convida para as bodas do filho evoca a paixão do amor de Deus oferecido e recusa: «O reino dos céus pode comparar-se a um rei que preparou um banquete nupcial para o seu filho». Chama os convidados, «mas eles não quiseram vir». É a recusa deliberada ao convite, ao dom da alegria e da festa partilhadas.
Mas o rei não desiste de convidar. Apesar da recusa humana, Deus não desiste de oferecer o seu amor. O amor de Deus por nós é um permanente convite em aberto, nunca suspenso, nunca negado. O seu banquete está sempre preparado. Mas a resposta é agora a indiferença: «sem fazerem caso, foram um para o seu campo e outro para o seu negócio». O chamamento não é acolhido com urgência; a resposta pode ser adiada para um momento mais oportuno.
Esta pode ser a nossa mais comum situação: podemos correr o risco de sermos respostas adiadas ao excesso do dom (o banquete das bodas do filho). Não nos apercebemos da urgência do apelo e continuamos na nossa indiferença, dispersos nas ocupações quotidianas. É o que sentimos tão frequentemente: a nossa vida dispersa, adiada, sem chama, sem surpresa… Quantas oportunidades de viver a fraternidade, de experimentar a alegria da graça, de amarmos e de nos deixarmos amar não perdemos nós quando pomos o lucro e a eficácia em primeiro lugar, «o campo» e «o negócio»? Pela nossa indiferença não entramos na festa da vida que Deus nos oferece na surpresa da sua graça.
Mas o rei não desiste de convidar. As bodas do filho são acontecimento de festa partilhada. Apesar da recusa, apesar da indiferença, volta a convidar. Mas agora a resposta é uma mortal violência: «apoderam-se dos servos, trataram-nos mal e mataram-nos». Esta resposta de destruição das mediações do amor e da graça com que Deus nos visita, nos ama e vem a nós, sempre através de rostos concretos, configura uma possibilidade trágica da condição humana. Podemos destruir aqueles que nos dão vida, que nos amam, que nos engrandecem; são mediações do amor incondicional do nosso Deus. E a expressão maior dessa trágica violência assassina da vida e do amor é a morte de Cristo na cruz.
Apesar de tantas recusas, o rei não desiste. Não se cansa de convidar. Num novo e derradeiro convite, muda de estratégia e alarga os destinatários: «Ide às encruzilhadas dos caminhos e convidai para as bodas todos os que encontrardes. A lista dos convidados rasga-se. Deixa de haver prévios escolhidos. Agora os convidados são todos aqueles que se encontram nas encruzilhadas. O dom dispersa-se pelos caminhos do mundo, pelas esquinas da vida, pelos cruzamentos existenciais. Não conhece limites, não tem fronteiras. As recusas ao convite para as bodas do filho permitem ao rei universalizar o convite.
As bodas do filho são agora festa aberta a toda a gente. Não há excluídos: «Então os servos, saindo pelos caminhos, reuniram todos os que encontraram, maus e bons». O dom/o convite não depende da qualidade moral de quem o recebe; é gratuito, prévio, incondicional. Está acima da nossa bondade ou maldade. A graça não supõe uma moral prévia; inspira-a. Só um amor incondicional pode mudar as nossas vidas para melhor, tornando-as mais belas e fecundas, mais justas e fraternas, mais agradecidas.
Reconheçamo-nos todos convidados para o banquete das bodas do Filho (de Cristo), para o qual a parábola aponta. Em nossa pobreza moral, em nossa bondade, nas mais diferentes condições existenciais, feridos no coração ou humilhados por alguma razão, com as nossas capacidades e os nossos limites, sintamo-nos todos convidados para as bodas do Filho.
Porque nos sabemos acolhidos e incondicionalmente amados como filhos e filhas no Filho, a nossa vida, apesar do cansaço, da inquietação do tempo presente, tem futuro; está marcada a cada instante por uma promessa de esperança que nos leva a avançar, a não desistir, a não nos rendermos: «A bondade e a graça hão-de acompanhar-me todos os dias da minha vida».
Não terei medo.
Pe. António Martins, XXVIII Domingo do Tempo Comum
Setembro
2020/09/27 - "...arrependeu-se e foi." (homilia)
Queridos Irmãos
Aqui estamos, presentes, para formar o corpo de Cristo (a Igreja) comungando do corpo eucarístico, esse pão que nos dá vida. Somos e queremos ser corpo eclesial, no encontro, na comunhão fraterna, abraçando-nos uns aos outros, ainda que seja só com os olhos… Não esquecemos os irmãos e as irmãs ausentes, doentes, fragilizados: comungam no corpo de Cristo em seu próprio corpo debilitado; oferecem-se existencialmente, por entre alegrias e dores, surpresas agradáveis e desagradáveis.
Faço minhas as palavras de Paulo retiradas da Carta aos Filipenses (segunda leitura): «completai a minha alegria, tendo entre vós os mesmos sentimentos e a mesma caridade, numa só alma e num só coração». Sim, cada um de vós, em sua singularidade concreta, e todos em comunidades, aqui presentes ou ausentes, sois a minha alegria. A vossa presença alegra-me, a vossa fé reforça a minha. Somos uma bela comunidade, agora um pouco mais dispersa, mas que havemos de nos congregar de novo, de voltarmos a ser compactos.
Mesmo nos limites e condicionalismos do tempo presente, precisamente nestas circunstâncias de aperto e de risco, de insegurança e de prudência, somos chamados a ousar, a criar alternativas. «… tende entre vós os mesmos sentimentos e a mesma caridade». Somos todos tão diferentes. A pluralidade é expressão da criatividade do Espírito e da liberdade de consciência. Mas estamos todos disponíveis para o milagre do evangelho, «a mesma caridade», o mesmo amor fraterno. Acreditamos que é possível um «sentir comum» na nossa pluralidade. Possa a Comunidade do Rato continuar a cumprir-se como espaço de amor fraterno, onde atravessamos fronteiras ideológicas, de género, de origem, de raça, para sermos em Cristo uma nova humanidade, aqui connosco já começada.
Na riqueza semântica da parábola do evangelho de hoje podemos ver sempre a tensão entre dois modos opostos de responder ao pai, de nos cumprimos filhos de Deus: num formalismo obediente de quem não discute, mantém as aparências da ordem e da paz, não contradizendo a autoridade, mas, por dentro, negando, sem ter a coragem de expressar o seu sentir; ou numa rebelião espontânea, contestatária da autoridade paterna, livre e resoluta na expressão da própria vontade: «Não quero». Mas a bruta recusa inicial não é definitiva; é de quem está a caminho, de quem se avalia por dentro, de quem se questiona e reconsidera as opiniões e decisões iniciais. Depois «arrependeu-se e foi». A moral evangélica não é a da obediência cega, a do formalismo hipócrita; comporta a liberdade de escolher, de errar, de crescem em si mesmo(a). Aquele filho que recusou, por fim descobriu-se corresponsável de uma vinha que também era sua.
Também podemos interpretar a parábola como espelho das contradições de cada um de nós, em nossa existência filial. Quantas vezes nos comportamos como aquele filho resolutamente obediente, e dizemos logo «Sim, Senhor» mas depois adiamos o nosso compromisso concreto? Somos decididos em responder logo sem contestação ao pai (à autoridade), mas depois, silenciosamente, fazemos uma resistência e oposição passiva. Salvamos as aparências, pois ninguém nos acusa de críticos, do contra. Outras vezes somos esse filho contestatário, no exercício de uma liberdade sincera, mas muito epidérmica, que é capaz de dizer: «Não quero»; o que ganha em espontaneidade perde em ponderação.
Para voltar atrás e reconhecer mudar de opinião é preciso muita humildade; e reconheçamos que não é processo normal nem na política nem na Igreja. Ninguém quer «perder a face», «dar o dito por não dito». Mas a parábola nos diz que esse pode ser o caminho necessário para chegar à decisão certa, num processo de discernimento e crescimento interior. Não somos perfeitos, e as nossas contradições ajudam-se a crescer. O arrependimento exige um grande trabalho de verdade interior, de reconhecimento dos próprios erros, de descoberta do que nos faz viver melhor e sermos mais felizes. Ali ir trabalhar para a vinha, que também é sua; entrar, com esforço, no trabalho partilhado para, depois, beber da alegria do vinho novo.
Podemos imaginar a revolta e a indignação das autoridades judaicas quando ouviram de Jesus: «Os publicanos e as mulheres de má vida irão adiante de vós para o reino de Deus». Foi este pôr em causa a autoridades religiosas uma das razões da morte de Jesus. A sua palavra escandaliza, incomoda, põe em causa. «Os publicanos e as mulheres de má vida» eram, na altura, as categorias sociais mais recusadas. Ninguém de bem poderia relacionar-se com tais pessoas. Jesus é amigo dos publicanos, come em sua casa, deixa-se beijar em público por uma mulher de má vida. Tudo isto escandaliza. E ainda nos escandaliza.
Na sociedade de hoje, dentro das nossas próprias famílias, nas nossas comunidades cristãs, na nossa própria mentalidade, há pessoas excluídas. Precisamos de fazer esse juízo sobre nós mesmos. Quem excluímos, quem recusamos, quem nem sequer nos atrevemos a pensar em sua existência? Quanta violência e rejeição não é descarregada (num olhar) sobre pessoas negras, de origem cigana, transgénero, refugiados, imigrantes…Vêm logo os preconceitos, as etiquetas. Mas que sabemos nós dos seus dramas de vida? Das suas dores, lutas, solidões, humilhações? Aquele ou aquela a quem pomos uma etiqueta pode estar à nossa frente em sua aproximação ao projeto de Deus. Pode estar mais perto da santidade. A entrada no reino de Deus não passa pelas nossas alfândegas ideológicas. A luta contra o preconceito e a exclusão é urgente nos tempos que correm. É uma causa evangélica, como o evangelho de hoje nos afirma. Não nos podemos demitir.
Hoje, Dia Mundial do Migrantes e Refugiado, rezamos pelos refugiados e migrantes, por tantos homens e mulheres, crianças, jovens e adultos que se deslocam pelo mundo, sem abrigo, sem poiso, sem repouso. Rezemos pelos refugiados em dramáticas condições de vida nos campos de acolhimento. Rezemos pelos decisores políticos para que tenham a coragem de equilibrar ferozes políticas de retorno com políticas mais alargadas de acolhimento e integração. Rezemos para que todos os países da União Europeia assumam uma solidariedade numa política solidária na integração dos refugidas. Recordamos as palavras do Papa Francisco: «No seu rosto [dos refugiados], somos chamados a acolher o rosto de Cristo que nos interpela».
O Senhor oriente os nossos caminhos na bondade e na justiça. Seja também nossa a oração do Salmo: «Mostrai-me, Senhor, os vossos caminhos, ensinai-me as vossas veredas».
Pe. António Martins, XXVI Domingo do Tempo Comum
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2020/09/20 - O dom gratuito e a conversão dos corações (homilia)
Queridos Irmãos
Avançamos neste ano pastoral e escolar que agora começa. Avançamos com cautela, prontos a rever em cada dia a largueza dos nossos passos. Avançamos com a necessária coragem para vencer a paralisia do medo, mas também com toda a prudência para avaliarmos e respondermos, com responsabilidade, às exigências da realidade sanitária. Este tempo pertence ao quotidiano da nossa condição humana; a ele não nos podemos esquivar.
Está na nossa consciência e atitudes de crentes fazer deste tempo um «kairos», um tempo oportuno e intenso de experiência de fé (interior, nesse esforço de ligar e dar sentido a tudo o que vivemos, e de testemunho solidário, de cuidado e de partilha). É neste tempo presente que «procuramos o Senhor», que tentamos discernir a sua presença e a sua vontade através da realidade que vivemos. Não há tempo a perder, e todo o tempo é decisivo: «Procurai o Senhor, enquanto se pode encontrar, invocai-O, enquanto está perto».
A nossa vida é decidida através de dilemas, por vezes dilacerantes. Surgem diante de nós caminhos e opções em que, forçosamente, temos de escolher. Nestes dilemas aparecem em conflito urgências e coisas boas, não harmonizáveis: escolher uma significa excluir outra. Mas é nestes cruzamentos existenciais que a nossa vida se decide, em sua suprema liberdade, em sua consistência ética e em sua densidade espiritual. Somos a intensidade das nossas escolhas.
No texto da carta aos Filipenses hoje lido, Paulo aparece-nos dividido entre dois caminhos que tem diante de si: o desejo de partir para Senhor e com Ele configurar definitivamente a vida, e o cuidado e acompanhamento dos irmãos em seu crescimento espiritual: «desejaria partir e estar com Cristo, que seria muito melhor; mas é mais necessário para vós que eu permaneça neste corpo mortal». O critério decisivo é o serviço aos irmãos. O «muito melhor» pessoal pode não ser o «mais necessário» no imediato. Os nossos desejos pessoais devem aceitar ser corrigidos pelo bem comum, pelo bem maior que é o bem de todos. Em tudo seja Deus glorificado no nosso corpo.
O texto de evangelho, um exclusivo de Mateus, é parábola para nos interpretarmos, para nos julgarmos e resolvermos os conflitos que, por vezes, surgem na vida das comunidades. À lógica interesseira da promoção, do reconhecimento, da retribuição, da recompensa, contrapõe Jesus, com desassombro, a lógica da gratuidade; à justiça devida ao mérito, que sempre reclamamos e a que temos direito, Jesus oferece uma perspetiva, a do dom imerecido, aquele que amplia a vida e acrescenta felicidade.
Concentremo-nos na parábola de hoje. Não deixamos de admirar aquela intensa solicitude do dono da vinha que, voltando à praça pública várias vezes ao dia, contrata toda a gente que encontra inativa para trabalhar na sua vinha: «Porque ficais aqui todo o dia sem trabalhar?»; «Ninguém nos contratou»; «Ide vós também para a minha vinha». Podemos facilmente imaginar que este trabalho intenso a exigir tanta mão de obra pode corresponder à vindima, que, entre nós, está a decorrer por esta altura. Adiramos ao sentido de responsabilidade social daquele proprietário: emprega na vida todos os que encontra, ainda que seja por poucas horas. Os da última não trabalhariam mais de duas horas; nem teriam tempo para aquecer os músculos… A integração social de trabalhadores sem ocupação, a dignificação da pessoa pelo trabalho são mais importantes do que a produtividade da vinha. As pessoas valem mais do que as propriedades e as quintas. É a lógica do Reino.
Do ponto de vista do direito contratual e de uma justiça retributiva (a cada um o que tem direito), a parábola de hoje escandaliza. Os trabalhadores da primeira hora sentem-se defraudados por terem recebido, no final do dia, o mesmo denário que os da última hora. Para eles, e também para nós, é insuportável que «os últimos» tenham as mesmas oportunidades do que «os primeiros». Facilmente compreendemos o seu grito de justa reivindicação: «Deste-lhes a mesma paga do que a nós, que suportámos o peso do dia e o calor». A mesma paga a quem mais longa e duramente trabalhou?! Injustiça! Este é o grito de quem se sente ameaçado nos seus privilégios adquiridos por ser o mais antigo na empresa, na casa, na comunidade. Não suporta que os mais recentes tenham as mesmas oportunidades. «Os da última hora» são sempre uma ameaçada para «os da primeira hora».
Mas onde a «boa nova» da parábola nos quer conduzir é para a generosidade do dono da vinha que, tirando do que é seu e sem comprometer a justiça do contrato laboral, paga a todos igual valor. Aos da última hora, aos que menos produziram, acrescenta generosidade e alegria imerecidas: «Não foi um denário que ajustaste comigo? Leva o que é teu e segue o teu caminho. Eu quero dar a este último tanto como a ti. Não me será permitido fazer o que quero do que é meu?». A parábola convida-nos a deslocar o olhar do rigor esperado do direito para o inesperado da gratuidade; do devido da justiça ao imerecido do dom. Uma conversão do olhar, do ver e do julgar, que brota da conversão do coração.
Vale a pena aprofundar a passagem: «Ou serão maus os teus olhos porque eu sou bom?». Frase enigmática: em que sentido são maus os olhos dos da «primeira hora» em consequência da bondade (e da generosidade) do dono da vinha. A sua bondade está em acrescentar o que não é devido, em dar do que é seu, conforme quer, para além do direito contratual. A sua bondade está na capacidade de dar gratuitamente. Mas, então, o que significa a maldade do olhar, «os olhos maus»? Há traduções menos literais que interpretam assim: «Ou estás com ciúme porque eu sou bom?». A maldade do olhar, o ciúme, a inveja que cega o nosso olhar, que o falsifica vendo o mal onde acontece o bem, a alegria do gratuito.
Que enigma é esse que perante a bondade de alguém, concretizado no inesperado do dom, reagimos com um olhar envenenado de maldade, envenenando relações, afetos, presente e futuro? Que sentimento mesquinho é esse, o da inveja e o do ciúme, que nos torna incapazes de ver, de acolher e de reconhecer a epifania da graça da bondade em nós e nos outros? Uma incapacidade de ver com lucidez o acontecer do dom. Sentimo-nos ameaçados e pervertemos a graça do dom em contestação de direitos, em reivindicações de privilégios adquiridos. Vemos nos outros ameaça, concorrentes ao nosso espaço, à nossa posição. Podemos ser esses azedos e ressentidos da «primeira hora», cegos à alegria do gratuito, ao acontecer do Reino, distorcendo a vida pelo nosso olhar de inveja e ciúme.
Tanta beleza e bondade perdemos no acontecer gratuito da vida. O nosso grito de justiça por vezes não passa de ressentimento. Tanto desperdício… tanta vida adiada… tantas graças não recebidas… porque o nosso olhar estava distorcido pela maldade. «O Senhor é bom para com todos, e a sua misericórdia se estende a todas as criaturas».
Pe. António Martins, XXV Domingo do Tempo Comum
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2020/09/13 - O perdão nasce de um coração pacificado (homilia)
Queridas Irmãs
Recomeçamos. E tantas saudades de todos vós, da alegria de nos reencontramos, de estarmos juntos. A nossa querida comunidade do Rato tem sido edificada numa comunhão de afetos e de experiências: todos nos conhecemos, e por isso a vida flui, com intensidade, com cuidado e atenção uns pelos outros. Não podemos deixar que este património comum se aliene, que a comunidade se disperse, que a solidez dos nossos laços e afetos se desfaça. O Rato é uma herança, é uma pertença, é um afeto, é uma promessa de futuro.
Os tempos imprevisíveis de insegurança sanitária que estamos a viver não permitem uma normalidade, tão desejável, de vida (familiar, social, eclesial). A prova destes últimos seis meses já nos ensinou alguma coisa para continuarmos a resistir e a cuidar uns dos outros. Mas também nos alertou para alguns riscos a prevenir. Na vida eclesial, o maior perigo é o desfazer-se do tecido comunitário, a quebra dos nossos laços de pertença comum. Com as palavras de Paulo, «nenhum de nós vive para si mesmo».
As nossas celebrações eucarísticas continuam condicionadas pelas regras de distanciação e de higienização. Todas as prudências são poucas para evitar contágios. Irmãos e irmãs nossos, considerados de risco, não podem estar connosco presencialmente. Outros optam por outro espaço mais alargado e seguro; outros continuam a seguir, acomodados em suas casas, as celebrações à distância. A nossa comunidade (como todas) vive a meio-gás. E, possivelmente, assim viveremos ao longo deste ano pastoral.
Alegro-me com os irmãos e irmãs que, numa fidelidade de pertença a esta comunidade, não desistem de marcar a sua presença, com os seus dons e serviços, com a sua disponibilidade, no contexto de tantos apertos familiares e profissionais. No meio dos períodos de crise e de dificuldade, pode chegar a tentação da deserção e do acomodamento. A todos nós, é necessário uma dose acrescida de coragem e de esperança para permanecer, para participar, para «dar o corpo ao manifesto», para fazer comunidade. Não desistimos de edificar a nossa comunidade do Rato.
Era fácil, entusiasmante, socialmente gratificante participar no Rato quando a casa se enchia e era notícia nos jornais. Agora estamos mais pobres e só podemos ser mais humildes. Neste tempo de empobrecimento, a comunidade edifica-se à maneira do fermento na massa, de forma quase invisível, nos gestos discretos de cada um de nós, nos compromissos que não são notícia. Hoje participar na comunidade do Rato é uma opção humilde, sem visibilidade. Vivemos tempos de resistência, e bem-aventurados são aqueles e aquelas que conseguem ser fiéis nas pequenas coisas. Assim já estamos a preparar o futuro. Havemos de voltar a ser farol porque, no tempo presente, sabemos ser fermento discreto.
O evangelho de hoje (como também o de domingo passado) ensina-nos que a comunidade cristã se reconstrói continuamente através do perdão. Uma comunidade, uma família, um grupo humano coeso, vive da intensidade e da gratuidade das relações e dos afetos. Mas bem sabemos que as relações são frágeis, correm riscos de se quebrar. Há sempre feridas, incompreensões, ofensas e agressões, que podem ir até à violência. Por vezes as ofensas são tão grandes que deixam prolongadas feridas para sempre na vida das pessoas, das famílias, das comunidades. A pessoa ofendida e agredida sente-se humilhada e grita por justiça. A justiça «do pagamento da dívida», para falar com a linguagem do evangelho.
Pergunta Pedro a Jesus: «Senhor, se meu irmão me ofender, quantas vezes lhe deverei perdoar?». O judaísmo do tempo, com generosidade, já admitia quatro vezes, e já eram demais. Pedro, acolhendo a novidade evangélica do perdão como excesso, pergunta aumentando o número: «Até sete vezes?». O número sete é já símbolo de totalidade. Jesus vai mais longe, múltiplica o número: «Não apenas te digo sete vezes, mas setenta vezes sete». Essa multiplicação é a cifra simbólica de que o perdão é infinito, não tem limite.
Uma nota a salientar no evangelho de hoje: o perdão acontece, estranhamente, por iniciativa da pessoa ofendida. Não tem de ter reciprocidade. À pessoa que ofendeu não é exigido arrependimento. Isto pode parecer-nos estranho e até chocar-nos. É de loucos dar o primeiro passo; consideramos que é dar parte de fraco. E acabamos por guardar um prolongado e silencioso rancor, destilando o veneno do ressentimento. Para perdoarmos esperamos que comecem por nos pedir perdão. Permanecemos na altivez do nosso orgulho de pessoas ofendidas. Entretanto, somos mendigos de perdão diante de Deus. É aqui que o evangelho nos vira do avesso: a iniciativa do perdão parte do ofendido; é gratuita e desproporcional; não exige arrependimento imediato. Por isso tem um traço de impossibilidade e de loucura. É excesso que escandaliza. Mas será mesmo possível perdoar assim?…
O perdão é o que há de mais difícil nas nossas relações. Não é imediato, não é espontâneo. Imediata é a exigência de uma justiça, que pode ter contornos de violência, como nos narra Jesus na parábola do evangelho. Aquele servo, a quem o seu senhor perdoou uma enorme dívida (dez mil talentos), não conseguiu perdoar a ninharia da dívida do seu companheiro (cem denários: um denário correspondia a um dia de trabalho); pelo contrário, «Segurando-o, começou a apertar-lhe o pescoço, dizendo: “Paga o que me deves”». A reação deste servo é o espelho das nossas reações imediatas, da exigência de justiça, por vezes extremamente violenta, com que reagimos a quem está em falta para connosco, a quem nos nos fere ou agride.
O perdão é gesto pessoal, totalmente gratuito, que brota do profundo de um coração pacificado. Pelo perdão, a pessoa ofendida liberta-se interiormente da dependência em relação ao agressor. Psicologicamente, enquanto alimentamos a vingança estamos a dar força ao agressor dentro de nós e continuamos a ser vítimas. O dom do perdão acontece como acolhimento da graça de uma pacificação interior, de cura em nós de todos os sentimentos de violência, de acusação, de ressentimento: «Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus» (Mt 6,9). Uma pessoa pacificada, por um excesso de graça que só pode vir de Deus, pode renunciar à justiça que lhe é devida, ao pagamento da dívida.
Não é caminho fácil, não é caminho normal, não é caminho espontâneo. É talvez o ponto de chegada de um longo e tomentoso caminho pessoal. Mas, essa é a certeza e a promessa do evangelho de hoje: o perdão é um caminho possível que por nós pode ser percorrido. A superar a cega exigência do «pagamento das dívidas».
Pe. António Martins, XXIV Domingo do Tempo Comum
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Julho
2020/07/12 - Ser boa terra, cuidar do próprio terreno - isso ninguém fará por nós... nem Deus (homilia)
Queridos Irmãos
Vivemos e atravessamos inquietos este tempo interminável, sem vislumbrarmos um futuro próximo de tranquilidade. E isto, se aumenta em nós a tensão e a angústia perante a incerteza do futuro, exige de nós resistência interior e coletiva. Precisamos de continuar a ser resilientes, mantendo redes de solidariedade, de entre ajuda, de cuidado. Não podemos baixar a necessária disciplina sanitária, para bem da nossa saúde e da dos outros.
Mas também precisamos de relação, de celebrar encontros com pessoas que estimamos, que fazem parte de nós. Precisamos de nos expandir, em festa e em celebração, para fora de nós, com os outros, em espaços comuns. É nesta tensão que vivemos e que, com sabedoria e fecundidade, precisamos de aprender a habitar, por largo e demorado tempo, encontrando aí o alimento quotidiano da nossa esperança. A expressão «novo normal» não nos serve, antes nos ilude: a anormalidade, a insegurança, o imprevisto passam a fazer parte do nosso quotidiano: essa é a certeza «do novo» que vivemos.
Inquietação interior, como fratura a habitar, e esperança no futuro, que se não vislumbra nem sequer se pode prever: bem podem ser estas as marcas da nossa existência cristã na atualidade. Com palavras emprestadas a Paulo, da sua Carta aos Romanos, podemos testemunhar em nós mesmos que um gemido interior nos atravessa, um grito de dor nos habita, que nem sequer conseguimos decifrar e nomear; não apenas no mais profundo de cada um de nós, mas em toda a humanidade contemporânea e em toda a criação. «Sabemos que toda a criatura geme ainda agora e sofre as dores da maternidade». Esse gemido interior é gestação do futuro, uma maternidade de um tempo novo que já começa.
Consolam-nos e encorajam-nos, hoje, as palavras de Paulo: «os sofrimentos do tempo presente não têm comparação com a glória que há manifestar-se em nós». Mas não podemos ignorar nem silenciar a dor do presente; precisamos de acolhe-la, de saber integrá-la, de aprender com ela e nela a construir novos horizontes para a nossa condição de crentes e de seres humanos. Sabemos, na esperança da fé, que este tempo angustiante passará; mas não o podemos ignorar nem deixar de o atravessar, com dignidade, aprendizagem interior e responsabilidade criativa.
A as leituras bíblicas deste domingo vão buscar ao campo e ao semeador imagens para nos convocar à consciência de sermos campo semeado e fecundado pela Palavra de Deus, a fazer acontecer em nós um ressurgir primaveril: «Vicejam as pastagens do deserto, e os outeiros vestem-se de festa. Os prados cobrem-se de rebanhos, e os vales enchem-se de trigo. Tudo canta e grita de alegria» (Salmo). A criação é também livro da revelação pelo qual Deus que se oferece à nossa decifração, leitura e celebração. Este tempo de verão, a convocar-nos à expansão, ao contacto direto com a natureza, possa ser uma celebração da nossa ligação ao criado: tudo está interligado. O nosso corpo é irmão da rocha, das estrelas, do sol, da lua, da árvore, do mar, do ar, da ave… A nossa vida pode acontecer como liturgia contemplativa e existencial nos próprios lugares em que estamos ou visitamos.
Vamos ao evangelho de hoje: «Jesus saiu de casa e foi sentar-se à beira-mar». Também podemos encontrar em Jesus esse movimento de exteriorização, da saída do confinamento (a casa), de expansão, de contacto direto com a criação (e foi sentar-se à beira mar). Maravilha-nos e surpreende-nos a sua típica linguagem em parábolas. Jesus está atento à vida concreta e vê aí sinais da presença de Deus. Descobre nas coisas e nas situações existenciais significados para além do imediato. Vê o não evidente. Também nós somos desafiados a encontrar no concreto da nossa existência sinais do Reino, esse modo de Deus vir a nós e de se tornar presente. Esta é a lógica da fé que se faz interpretação e discernimento do concreto.
Jesus vê a humanidade como um grande campo onde Deus lança, sem discriminação nem seleção, a semente da sua Palavra. Todos os tipos de terreno são, à partida, beneficiários do dom da Palavra: «Saiu o semeador a semear». E a semente vai caindo em vários lugares/terrenos. A todos Deus se oferece por igual. A sua graça não exclui ninguém.
Mas, de imediato, a narrativa de Mateus muda de perspetiva. À gratuidade incondicional do dom, junta-se a responsabilidade ativa do ouvinte que acolhe a Palavra, a enraíza em si mesmo, e torna-a fecunda em sua frutificação pessoal. O dom para ser fecundo requer acolhimento e enraizamento. Na diversidade dos tipos campos (o caminho exposto às aves, os sítios pedregosos, com espinhos, a boa terra) podemos interpretar a nossa própria situação existencial de crentes: como acolhemos e vivemos do dom da Palavra? Qual o grau das nossas resistências, infidelidades, desistências, adiamentos, superficialidades que tornam a nossa vida cristã infecunda? Com que tipo de terreno me identifico no meu presente?
Saliento dois aspetos: o primeiro: o acolhimento e o enraizamento da Palavra em nós estão sempre ameaçados; é uma tarefa permanentemente a recomeçar; é luta contínua, sem tréguas. O pequeno passo dado pode regredir. A frutificação de um momento pode dar lugar à esterilidade e à aridez. Estamos expostos ao assalto permanente do que em nós foi semeado: «vem o maligno e arrebata o que foi semeado no seu coração». Por isso a nossa vida acontecerá sempre em vigilância aos ladrões, numa atenção permanente à dissonância dos nossos desejos, dos nossos pensamentos, à «sedução das riquezas.
O segundo aspeto é o perigo da inconstância, de não fazermos da nossa existência crente uma história, um caminho continuado. Por vezes falta-nos a capacidade de perseverar, de resistir no meio da prova. A dom da Palavra vem a nós mas não é interiorizado, não se enraíza em nós, não se torna carne em nós. Todos vivemos belos e inaugurais momentos de revelação, de descoberta interior, onde reconhecemos a visita de Deus. Mas não passaram de instantes. Podemos ler esta parábola como espelho da nossa própria vida. Os diferentes tipos de terreno podem ser expressão de diferentes situações existenciais, marcadas por inconstância, por alguma desorientação, por assaltos…
Mas nenhum terreno é uma fatalidade irreversível. Qualquer terreno, se bem tratado e cuidado, pode tornar-se «boa terra». Pode haver mudanças/revoluções/conversões em nossa vida, e tornarmo-nos produtivos. A nossa vida está em aberto, e essa é a sua evangélica grandeza. «E aquele que recebeu a palavra em boa terra é o que ouve a palavra e a compreende. Esse dá fruto e produz ora cem, ora sessenta, ora trinta por um».
Uma nota de consolo: não há uma medida única que a todos seja exigida de igual modo. O importante não está numa tabela com objetivos predefinidos, mas nas possibilidades de cada um em cada omento. E ninguém consegue produzir sempre o mesmo; há altos e baixos, avanços e recuos, abundância e escassez.
Mas haja sempre empenho em ser boa terra, em cuidar do próprio terreno. E isso ninguém fará por nós… nem Deus.
Pe. António Martins, XV Domingo do Tempo Comum
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2020/07/12 - A Procelária: Fazer da insegurança força. Uma proposta de férias poéticas com Sophia.
É vista quando há vento e grande vaga
Ela faz o ninho no rolar da fúria
E voa firme e certa como a bala
As suas asas empresta à tempestade
Quando os leões do mar rugem nas grutas
Sobre os abismos passa e vai em frente
Ela não busca a rocha o cabo o cais
Mas faz da insegurança sua força
E do risco de morrer seu alimento
Por isso me parece imagem justa
Para quem vive e canta no mau tempo.
(Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética III, Caminho, Lisboa 1991, 19)
A poesia de Sophia pode ser um bom guia para as nossas férias de verão, sobretudo quando elas acontecem junto do mar, em banhos de luz e de sol; quando as ondas nos acariciam os pés e de corpo inteiro mergulhamos na água.
Sophia, com toda a sua genética nórdica, ficou transfigurada com a luz do Sul. A sua poesia é celebração nomeação da aparição real em seu corpo expectante de silêncio ouvinte: «O meu viver escuta»; «Eu me busquei no vento e me encontrei no mar». «Igrina», «Senhora da Rocha», «Cacela» são lugares da costa algarvia por por ela nomeados e celebrados. Como só ela soube nomear o som interior do búzio, a suavidade da anémona flutuando ao ritmo das ondas, a luz a pique do sol, a réstia de sombra rente ao muro, o perfume do orégão…
Para quem passa uns dias no Algarve, (re)ler a sua poesia é descobrir esse poema imanente que é a própria criação, as coisas no seu acontecer e revelação diante de nós: «Nossa atenção ao mundo/ É o culto que me pedem». Nos «dias de verão vastos com um reino /Cintilantes de areia e maré lisa» descobrimos e celebramos a nossa pertença e inserção na criação de corpo inteiro: «irmão do lírio e da concha é nosso corpo».
O poema «Procelária», lido a partir da nossa presente inquietação, revela-se-nos com novos e surpreendentes significados. Ressoa como poema pessoalíssimo nosso que brota das entranhas da nossa atual insegurança e incerteza. E para alguns pode ser também a descoberta, pela primeira vez, de uma ave desconhecida (a procelária) que, em bandos, anuncia tempestade e nela sabe viver:
«Ela não busca a rocha o cabo o cais
Mas faz da insegurança sua força
E do risco de morrer seu alimento».
Por isso a procelária é a «imagem justa/ Para quem vive e canta no mau tempo». A procelária nos ensine a fazer da insegurança força e do risco de morrer alimento de vida.
Junho
2020/06/28 - Recordando as pessoas falecidas durante a pandemia
Começo por recordar as palavras da escritora Lídia Jorge, quando lhe perguntaram a primeira coisa que gostaria de fazer após confinamento: «Quero correr para o cemitério onde ficou o corpo de minha mãe e cobrir-lhe o chão de flores. Não houve possibilidade de lhe dizer adeus, nem sequer de ver a terra cobrir-lhe o lugar do seu descanso. Só quando essas palavras ficarem ditas, vou poder passear diante do mar, com amigos e amigas, que hei de abraçar e beijar».
Nesses tempos em que rigorosas medidas sanitárias foram aplicadas, não foi possível celebrar em comunidade, com tempo e interioridade, as exéquias de tantos irmãos e irmãs falecidos: os ritos foram mínios e rápidos, os familiares presentes poucos. Nessas circunstâncias o luto foi mais duro, mais violento e mais demorado: tantas palavras ficaram por dizer, tantos gestos de consolação ficaram sem cumprimento.
Agora que as celebrações comunitárias recomeçaram, não podemos esquecer os irmãos e irmãs falecidos e as famílias enlutadas. Por eles e com elas queremos, hoje, expressamente rezar. Na memória da páscoa de Cristo, fazemos memória da páscoa de irmãos e irmãs falecidos na fé e em humanidade em tempo de pandemia: idosos, por vezes na mais profunda solidão, artistas, médicos, enfermeiros, sacerdotes, religiosos e religiosas que com Cristo se configuraram na morte por amor e cuidado de seus irmãos mais frágeis, comungando com eles o mesmo destino. «Se morremos com Cristo, acreditamos que também com Ele viveremos», conforta-nos hoje o Apóstolo Paulo, a renovar a nossa esperança.
Não podemos esquecer e deixar de rezar por aqueles e aquelas que morreram no mais profundo anonimado, desamparo e solidão, e foram enterrados em fossas comuns.
Invocamos o seu nome, e através do nome toda a sua história de vida só por Deus inteiramente conhecida. Os seus nomes estarão agora inscritos, assim o acreditamos, no Livro da Vida:
- Alberto Garcia Afonso.
- Adelaide Herradon Vasques Fachim, falecida a 2 de Junho, com 86 anos.
- Aníbal de Oliveira Lopes, falecido a 26 de Maio, com 84 anos, com Covid 19, pai de uma Irmã da Congregação das Irmãs Dominicanas de Santa Catarina de Sena que está colocada em Timor, acabou por falecer em grande solidão no Hospital de Santa Maria.
- Carlos, «dos últimos momentos nada ou quase nada pudemos acompanha. Esse sofrimento, de um lado e de outro, do doente e dos familiares, pomos aos pés da Cruz, e rezamos por todos os que faleceram». São as palavras de um familiar.
- Custódia Bolrinha, falecida a 5 de Maio, em Boliqueime, vítima de doença prolongada. («apesar ada vida sofrida, gostavas muito de viver1», testemunha o neto, no momento da despedida.
- Horácio Telo da Fonseca, falecido a 10 de Abril, com 104 anos.
- Ermelinda Carvalho Esteves, falecida a, com quase 93 anos.
- Jacinto dos Santos Rainho, falecido a 28 de Abril.
- José Luís Chaves de Almeida Fernandes, falecido a 24 de Abril, com 69 anos, com fibrose pulmonar grave, pedido enviado pela mulher Filomena Fernandes;
- Maria Fernanda Mateus, falecida a 10 de Abril, com 70 anos, com problemas de insuficiência respiratória e e cardíaca.
- Maria da Luz Galrão, falecida em pleno estado de emergência sem qualquer missa de despedida.
- Maria de Jesus Marques.
- Maria de Sousa, falecida a 14 de Abril, com 81 anos, Professora, Cientista e Imunologista, falecida no Hospital de S. José, vítima de Covid 19. Das últimas palavras que nos deixou: «Porque posso morrer e vós tereis de viver/Na vossa vida a esperança da minha duração»
- Natália Ramalhão, falecida a 22 de março.
2020/06/07 - O universo, expressão do inesgotável e incontido amor de Deus (homilia)
Queridos Irmãos
A liturgia convoca-nos hoje a uma atitude adorante perante o mistério envolvente do nosso Deus, Trindade Santa, comunhão amorosa de Pessoas. A Trindade é a nossa origem, o nosso habitat permanente, a nossa pátria de chegada. Somos, na história, imagens vivas da Trindade, marcados no nosso próprio ser com um «adn» trinitário. Não apenas nós humanos, mas cada criatura, todos os seres vivos, a vasta matéria conhecida e desconhecida do universo inteiro. Todos e tudo são expressão do amor trinitário, desse Deus amante e gerador de vida, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. «Nele vivemos, nos movemos e existimos».
No fundamento da experiência cristã há um dom de amor louco, excessivo e incondicional. Disso nos fala o evangelho de João hoje proclamado: «Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho para que todo o homem [e mulher] que nele acredite não pereça, mas tenha a vida eterna». Podemos dizer que esta passagem é o coração do evangelho de João e de todo o Novo Testamento: «Deus amou tanto…». «Tanto» uma pequena palavra que diz tanto; diz o que é impossível dizer, compreender. Deus, o Pai, amou tanto o mundo, e continua a amar; expressão do seu amor incontido foi (é) o dom do próprio Filho, a Palavra feita carne, um de nós, um como nós.
Uma nota literária: «Deus amou de tal modo o mundo que entregou o seu Filho». Os tempos verbais estão no passado: «amou», «entregou». O passado indica um acontecimento realizado; não é apenas uma promessa de futuro, ainda por acontecer. O Pai já expressou o excesso incontido do seu «tanto amor» enviando e entregando o Filho. O Filho já veio a nós em nossa carne e por nós se entregou, amando-nos até ao fim. Na cruz, Cristo, morrendo, proclama: «Tudo está consumado», o mesmo é dizer, realizado. Mas o dom do Filho não é apenas acontecimento do passado; é promessa de futuro, porque nos promete a uma vida plena: «Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância».
«Porque Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele». Deus não condena, mas salva. É fiel à vida que cria, é fiel a cada um e a cada uma de nós. O seu amor a todos inclui, seja qual for o percurso de vida e a circunstância pessoal. Somos nós que nos condenamos quando recusamos amar. Não acreditar no Filho é não acreditar na força do Amor (de amar e de ser amado). Somos nós que nos condenamos a nós próprios. Essa é a tragédia do humano.
A paternidade do nosso Deus é universal e cósmica, abraça cada homem e cada mulher, integra cada criatura. Por isso o confessamos, no Credo, «Pai… criador de todas as coisas». Nas palavras da Encíclica Laudato si`, «O Pai é a fonte última de tudo, o fundamento amoroso e comunicativo de tudo o que existe. O Filho, que o reflete e por quem tudo foi criado, uniu-se a esta terra, quando foi formado no seio de Maria. O Espírito Santo, vínculo infinito de amor, está intimamente presente no coração do universo, animando e suscitando novos caminhos» (LS 238). A fé cristã proclama e confessa que o amor é a fundamento da realidade, da física, da biologia, da matéria, da vida, da humanidade. «O mundo criado… é uma trama de relações». «Tudo está interligado», porque tudo é expressão do amor trinitário do nosso Deus.
A nossa experiência de relação e de aliança com Deus está sempre ameaçada. Foi assim com o Povo de Israel, continua a ser assim com a Igreja, com cada um de nós. Vamos para a primeira leitura: o Povo de Deus troca a adoração ao Deus libertador por um bezerro de ouro. Moisés, revoltado e indignado, quebra as placas de pedra onde Deus tinha gravado a Lei como garantia da aliança. Volta a subir à montanha, com novas placas de pedra para uma nova edição dos mandamentos: «Moisés levantou-se muito cedo e subiu ao Monte Sinai». Sobe com esforço. E Deus vem ao seu encontro descendo. «O Senhor desceu da nuvem e ficou junto de Moisés».
Deus é aquele que sempre desce, abaixa-se, diminui-se, coloca-se ao nível de cada um de nós. Talvez fique junto de cada um de nós em sua nuvem misteriosa, talvez até nem demos pela sua presença, talvez nada sintamos…, ou sintamos o vazio, um longo esforço de procura, de subida, que nos deixa exaustos perante um Deus silencioso. O Senhor passou diante de Moisés, passa diante de nós, e deixa-nos palavras de consolo e de profunda ternura: «O Senhor é um Deus clemente e compassivo… cheio de misericórdia e fidelidade». Deus de amor fiel, Deus de ternura e de compaixão, Deus com entranhas de misericórdia. O nosso Deus.
O Salmo da Liturgia da Palavra de hoje é um belo poema (salmo) do livro do profeta Daniel. Todas as criaturas (estrelas, gelos, neves, fontes, rios, animais, humanos…), neste poema, entram numa grande e solene liturgia cósmica de louvor e de ação de graças: «Dai graças ao Senhor porque Ele é bom, porque é eterna a sua misericórdia». Mas o contexto deste cântico das criaturas é bem dramático. Três jovens (Ananias, Mizael e Azarias) judeus são condenados à uma fornalha por se recusarem a adorar a estátua mandada erguer pelo rei Nabucodonosor. No meio das chamas os três jovens celebram, cantando, a grandeza e a glória de Deus: «Bendito sejais no trono da vossa realeza, digno de louvor e de gloria para sempre». O seu canto, a sua poesia são resistência de fé e política; marca de uma diferença e de uma liberdade que não se rende à força opressora do tirano de serviço.
Ficámos esta semana chocados e horrorizados com a brutalidade da violência policial nos Estados Unidos que vitimou o cidadão negro George Floyd. Na pátria das liberdades, dos direitos humanos e da democracia há brutal violência incontida, quer no abuso das autoridades, quer na revolta dos cidadãos. Ódios racistas antigos, feridas profundas ainda não curadas, emergem com violência numa sociedade profundamente fraturada, agravada pela pobreza e pelo desemprego. Mas não nos esqueçamos, o racismo é um cancro que nos pode minar a todos por dentro, silenciosamente. É um vírus que pode contaminar as próprias famílias, as comunidades cristãs, as nossas sociedades democráticas. A luta contra o racismo começa dentro de nós, avaliando a qualidade de hospitalidade que damos a quem é diferente de nós.
Não podemos silenciar a nossa profunda indignação, enquanto crentes, ao vermos políticos a instrumentalizar, despudoradamente, símbolos religiosos. É uma tentação que vemos, perigosamente, a crescer em políticos populistas. Não é sinal de fé sincera, mas de puro oportunismo. Porque a fé sincera é discreta, inspira com discrição, não se exibe. É, antes, expressão de despudor blasfemo, a suscitar ódio ao estrangeiro, a quem é diferente em sua cor, pertença religiosa, orientação sexual. Aos políticos de sincera inspiração cristã, possa a fé na Trindade motivar uma ética de integração das diferenças na unidade nacional, de respeito pelo outro a partir de valores comuns partilhados. E uma prudente contenção no uso da força do Estado, numa justa proporcionalidade.
Uma palavra final sobre a segunda leitura, tirada da segunda Carta de Paulo aos Coríntios. Paulo escreve esta carta de coração rasgado a uma comunidade dividia, cheia de rivalidades e ciúmes. Havia disputa entre pregadores que rivalizavam na conquista de seguidores (nada de novo). Paulo foi trocado por outros pregadores mais eloquentes e sedutores; sente-se traído pela comunidade que fundou e amou. Com um tom severo, faz a apologia da sua própria fragilidade: «alegramo-nos todas as vezes que somos fracos». No fim da Carta, a despedir-se, já de coração pacificado (e como uma carta frontal e autêntica ajuda a pacificar!) deixa-nos um programa de vida: «Sede alegres, trabalhai pela vossa perfeição, animai-vos uns aos outros, tende os mesmos sentimentos, vivei em paz».
Neste reinício da nossa vida comunitária, também nós precisamos de nos motivarmos e encorajarmos uns aos outros, de nos sentirmos próximos. Precisamos de conjugar, em cada dia, coragem e prudência. Com uma grande paciência uns com os outros e connosco próprios para vencermos o desânimo deste tempo prolongado de resistência e de distanciamento físico. E tudo em nome do nosso Deus Trindade Santa que quer fazer de nós, em nossas relações e sociabilidades, ícones vivos da sua comunhão de Pessoas.
A saudação final de Paulo, na Carta, é a saudação inicial de cada eucaristia; a saudação que também quero deixar a cada um de vós, e a esta querida comunidade da Capela do Rato, ainda em dispersão: «A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus [Pai] e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco».
Pe. António Martins, Solenidade da Santíssima Trindade
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Maio
2020/05/31 - O Espírito tudo renova (homilia)
Queridos Irmãos
Recomeçamos.
Gostaria de ver os vossos rostos sem máscaras. Vejo sorrisos nos olhos e imagino nos lábios. Celebrar com a cara tapada é, para todos nós, um desconforto, uma estranheza que nos incomoda. Toda a nossa tradição cristã é a valorização do rosto como expressão da singularidade e identidade de cada pessoa. Ainda que incomodados, aceitamos o uso de máscara como proteção e cuidado que damos uns aos outros.
Voltamos a ser comunidade celebrante, voltamos a ser corpo comunitário. A eucaristia é ação de uma inteira comunidade, comunhão concreta de pessoa organizadas. Com o presidente (o padre), o diácono, os leitores, os cantores, agora os técnicos e todos vós. É toda uma comunidade concreta que celebra a eucaristia. Tínhamos todos saudades de sermos assembleia celebrante, comunidade ao vivo, concreta, presente. Hoje, com este espaço comum mais frequentando, ainda que com distâncias, voltamos a ser, numa «só voz», uma assembleia celebrante.
Narra a primeira leitura: «Os Apóstolos estavam todos reunidos no mesmo lugar». Subitamente as janelas escancaram-se com uma forte rajada de vento que inundou toda a casa de novo ar. Também hoje a Capela do Rato é, nestas celebrações pós confinamento, um lugar de janelas abertas, onde acontecem correntes de ar. Esperemos que não nos constipem… Possa isso ser para todos nós uma profecia ao vivo de um novo Pentecostes.
«Todos reunidos no mesmo lugar»: Uma expressão bela e forte dos Atos dos Apóstolos. Diz, ao mesmo tempo, a dimensão inclusiva (todos) e local (no mesmo lugar) da comunidade de Jerusalém. Onde quer que se encontre, a Igreja realiza-se sempre como comunidade local de pessoas concretas, reunidas «mesmo lugar». Durante o tempo de confinamento, orgulho-me de nunca termos interrompido a identidade e a ligação ao local que é a nossa Capela.
Este nosso lugar não é apenas o espaço simbólico, carregado de história; é, sobretudo, um lugar onde vivemos intensas experiências de fé, de beleza, de cultura, de teatro, de música, de literatura, de pensamento… Um pequeno resto manteve viva neste comum lugar a presença da Comunidade do Rato e até a alargou através das redes. Nada estava garantido à partida; poderia ter havido baixas pelo caminho… Graças a Deus não houve. Multiplicamos amigos, irmãos e irmãs que connosco sintonizam e nos seguem em suas casas.
Recomeçamos. O mesmo é dizer, pelo Espírito toda a Igreja, cada um de nós, está sempre a recomeçar, a renovar-se, a ampliar respiração, a receber novo ar. Viver é estar em constante renovação; aceitar o imprevisto, o risco, o inseguro. E isso não é, propriamente, um caminho fácil, pois todos nós nos acomodamos, gostamos de seguranças e de estabilidade. Este tempo de crise sanitária obrigou-nos a tomar novas atitudes e a adquirir comportamentos que até há uns meses não imaginávamos possíveis. Houve como que uma revolução nos nossos hábitos.
Também está a acontecer uma revolução na vida eclesial, que ainda não sabemos bem identificar. Como vão ser as nossas comunidades no futuro?… Este recomeço em dia de Pentecostes é um sinal profético: seja promessa de uma Igreja viva que se recolheu em casa, valorizando a sua dimensão doméstica, e que agora volta aos espaços comuns com prudência, para se alargar, se renovar e se reinventar, confiando-se ao dom do Espírito que faz novas todas as coisas.
Sublinho a passagem da segunda leitura, tirada da primeira epístola de Paulo aos Coríntios: «há diversidade de dons espirituais, mas o Espírito é o mesmo». Cada pessoa em sua história única de vida é um carisma para bem da sociedade, da família e da comunidade cristã. Na Igreja Católica há uma tremenda tentação: fazer regras para tudo, reduzir tudo a um denominador comum. É a nossa herança romana para o bem e para o mal. Mas quem garante a unidade da Igreja é o Espírito Santo, que dá a cada um qualidades, dons, inspirações para edificar a comunidade: «E a todos nos foi dado a beber um único Espírito».
Juntar num projeto comum todas as nossas singularidades, carismas, dons, serviços, qualidades pessoais é um caminho com inevitáveis tensões. Pode haver singularidades caprichosas, autoritárias, ávidas de protagonismo… A afirmação do próprio grupo pode excluir participação de outras pessoas. Onde não há diversidade e inclusão, a Igreja fica adiada. Precisamos, continuamente, de recomeçar como comunidade, diferentes, cooperativos, em unidade na diversidade. «Em cada um se manifestam os dons do Espírito para o bem comum (…)».
Uma referência, por fim, ao evangelho de hoje. Podemos dizer que o texto lido nos narra o desconfinamento dos discípulos. É uma feliz coincidência em dia de recomeço das celebrações comunitárias. «Na tarde daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas as portas da casa onde os discípulos se encontravam, com medo dos judeus, veio Jesus, apresentou-Se no meio deles e disse-lhes “A paz esteja convosco”». Na narrativa de João, estamos no final do domingo de Páscoa. Jesus ressuscitado, pleno de vida, atravessa o confinamento dos discípulos e coloca-se no meio deles, pacificando-os e enviando-os para fora. Faz um gesto que nós aqui, em contexto de regras sanitárias, não poderíamos fazer: «soprou sobre eles e disse-lhes: “Recebei o Espírito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos”».
Na simbologia bíblica, soprar significa dar vida, alento, ânimo, a partir do ar que de dentro se expira. É o gesto próprio de Deus, que cria, que dá respiração e alento, que faz viver. O universo, a humanidade, o tecido da vida é uma grande respiração. Esse vento/hálito que dá oxigénio ao universo, a cada ser vivo, a cada ser humano é o Espírito Santo. Soprando sobre os discípulos, Jesus inaugura uma nova criação, dá origem a uma nova humanidade. O seu hálito, o Espírito Santo, não contamina, não põe a vida em risco; pelo contrário, revitaliza, regenera, fortalece, potencia. O seu sopro faz-nos viver: pacifica-nos, perdoa, envia-nos para fora de nós mesmos. Desconfina-nos do medo, abre as portas dos nossos fechamentos, arranca-nos das falsas seguranças.
Que este feliz dia de recomeço, em dia de Pentecostes, seja também para cada um de nós, para a nossa Comunidade do Rato e para a Igreja deste tempo, o princípio de um futuro fecundo e renovado.
Pe. António Martins, Pentecostes
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2020/05/24 - Ele estará sempre connosco até ao fim (homilia)
Queridos Irmãos
A vida que Deus nos dá em Cristo ressuscitado é um excesso de amor. Ao tentar dizer esse excesso, as nossas palavras são sempre poucas e pobres; e, todavia, são necessárias. Precisamos de palavras e de símbolos para falar de Deus e da sua presença em nós, para tomarmos consciência da identidade da nossa fé, para darmos sentido ao nosso agir e à nossa esperança.
Hoje falamos de ascensão. Narram os Atos dos Apóstolos: «elevou-Se à vista deles, e uma nuvem escondeu-O a seus olhos». O Senhor ressuscitado desaparece à vista dos discípulos, escondido por uma nuvem. Que significa, pois, este desaparecimento, este escondimento, esta elevação para a invisibilidade? A linguagem é simbólica.
Nos relatos do Novo Testamento, a presença de Jesus em nossa humanidade e em nosso mundo está marcada por dois movimentos, um de esvaziamento e de descida, e outro de elevação e de subida. Como nos diz a Carta aos Filipenses, Cristo despoja-se de sua condição divina para assumir a condição de servo, «tornando semelhante a nós»; em consequência deste seu despojamento, o Pai exalta-o e lhe «dá um nome que está acima de todo o nome». Em seu despojamento, Cristo vem ao nosso encontro, tornando-se um de nós, para nos servir, amar, curar e reunir numa nova humanidade.
Ressuscitado da morte, Cristo é movimento ascensional, arrebatamento, vida de Deus em nós que nos eleva para Deus e em Deus nos completa. A ressurreição é movimento que nos arrebata, intensidade de vida que nos envolve, força de Deus que integra e supera as nossas vulnerabilidades e os nossos limites. Aquele que desce e nos serve, é também Aquele que nos eleva consigo para o Pai, que nos coloca em movimento ascensional de futuro, que nos projeta para uma plenitude de vida, a Santíssima Trindade. Onde estará o Filho, em sua relação íntima com o Pai, na intensidade fecunda do Espírito, também aí, com Ele, nós estaremos e seremos.
No belo e denso texto da Carta aos Efésios hoje lido na segunda leitura, S. Paulo indica-nos que o «Pai da glória» exerceu no Filho uma poderosa e eficaz força de vida, ressuscitando-o dos mortos e colocando-o à sua direita. Ressuscitado, Cristo é princípio de vida nova para toda a criação, é Senhor do universo, está acima de todas as coisas, pois Ele «preenche tudo em todos». Escreve o Papa Francisco em Laudato si`: «as criaturas deste mundo já não nos aparecem como uma realidade meramente natural, porque o Ressuscitado as envolve misteriosamente e guia para um destino de plenitude» (LS 100). Podemos dizer que a ascensão é o dinamismo da vida de Cristo ressuscitado a elevar e a dinamizar a humanidade e o universo para a plenitude.
Concentremo-nos agora no relato do evangelho de Mateus. Jesus ressuscitado convoca os discípulos para um encontro com Ele na Galileia, aí onde tudo começou. E agora onde tudo recomeça para uma missão universal, para esse êxodo da Igreja pelo mundo que continua connosco. Mas este reencontro com o Ressuscitado é desconcertante: «Quando o viram, adoram-no; mas alguns ainda duvidaram». Passagem paradoxal, mesmo contraditória: como é possível prostrarem-se em adoração perante o Senhor e continuarem a duvidar? Talvez essa paradoxalidade seja uma condição permanente da nossa experiência da fé, que avança entre adoração e dúvidas, confiança e hesitações.
Mas é a estes discípulos que ainda duvidam, hesitam e cheios de perplexidades a quem o Senhor confia a missão: «Ide e ensinai todas as nações». Ou noutra tradução possível: «Ide e fazei discípulos [discipulai] de todas as nações». Esta é a missão de uma Igreja em contínuo estado de saída: saída das suas seguranças geográficas, litúrgicas, teológicas, canónicas, culturais, económicas; saída para ir ao encontro do diferente, do estrangeiro, do pobre e do excluído, da diversidade de culturas, de línguas, de pessoas, para «ensinar a cumprir o que o Senhor nos mandou». O mesmo é dizer, testemunhar o evangelho das bem-aventuranças.
É a nós com as nossas imperfeições, hesitações, incertezas, medos, mas também com a semente da fé e da esperança, com a nossa capacidade de sermos fermento do seu reino, que o Senhor confia, de novo, esta missão de o tornarmos presente em nosso mundo. Nunca estaremos à altura da missão que Ele nos confia; vivemos da sua confiança, vamos fundados na sua promessa de futuro. Para continuamente aprendermos a ser discípulos, a renovarmos a nossa esperança, a nos sentirmos desafiados pelos imprevistos da história, como atualmente está acontecendo. Na escola evangélica do Mestre somos sempre discípulos, estamos sempre a aprender. E nunca estaremos preparados.
Fazer discípulos das nações e batizá-los: não se trata apenas do gesto ritual do batismo. Mas, através do gesto ritual do batismo, assinalar, celebrar e testemunhar a nossa pertença e o nosso destino divinos. Batizar quer dizer imergir, mergulhar. Imergir e mergulhar «no nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo», no mistério de vida e de amor que brota da comunhão íntima da Trindade. Batizados, o mesmo é dizer imersos na abundância do amor divino que nos funda e nos promete, nos origina e nos destina, nos faz ser e viver. Somos de Deus, a Ele pertencemos; Deus nos atrai e nos seduz no grito profundo das nossas carências e do nosso desejo. A Trindade, abundância de vida transbordante, é o nosso habitat, o oceano que nos faz viver, a fonte que mata a nossa sede, a pátria da nossa inteireza para onde nos orientamos em nossas ascensões. «Só Deus [nos] basta», como escreveu Santa Teresa de Ávila.
Vivemos o presente fundados na promessa do Senhor: «Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos». A sua palavra promete-nos futuro e é o fundamento da nossa esperança. Nas nossas lutas diárias, nas nossas resistências aos desafios inesperados da história, no nosso cuidado pela criação, no nosso testemunho de discípulos tentando viver as bem-aventuranças e ser sal da terra e luz do mundo, o Senhor está connosco. Não estamos desamparados. A sua promessa consola-nos, conforta-nos e encoraja-nos. Podemos viver com atrevimento e ousadia: Ele está connosco em todos os dias da nossa vida, os luminosos e os mais sombrios, os de paz interior e os de tormenta, os de clareza e os de incerteza.
Que o Senhor «ilumine os olhos do nosso coração para compreendermos a esperança a que somos chamados».
Pe. António Martins, Ascensão do Senhor
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2020/05/17 - Com o Espírito renovemos a face da terra (homilia)
Queridos Irmãos
Avançamos no tempo pascal e aproximamo-nos do Pentecostes, que será celebrado daqui a duas semanas. É o grande acontecimento pascal do dom do Espírito Santo, sopro interior vida nova. Mas podemos dizer que a Páscoa é já Pentecostes, porque a ressurreição de Cristo e a nossa acontecem pela força do Espírito Santo. Como escreve o Apóstolo Pedro, na segunda leitura: «[Cristo] morreu segundo a carne, mas voltou à vida pelo Espírito». E volta à vida, pelo Espírito, para nos vivificar, para nos acrescentar vida.
O universo inteiro, toda a humanidade, a Igreja no seu todo, cada comunidade cristã concreta, cada pessoa em sua singularidade, está habitada, por dentro, por uma torrente interior de vida e respiração que tudo renova, o Espírito Santo. Dom que precisamos continuamente desejar, pedir sem cessar, intensamente querer para o sabermos acolher e agradecer. Não cesse em nós este grito: «Enviai, Senhor, o vosso Espírito e renovareis a face da terra» e, podemos acrescentar, o interior dos corações e das consciências.
No evangelho de João hoje lido, Jesus, antes da sua paixão, morte e glorificação, prepara e consola os discípulos para o tempo da sua ausência: «Não vos deixarei órfãos: voltarei para junto de vós». Volta ressuscitado para soprar sobre eles o Espírito Santo, e os encorajar a sair do confinamento do medo. O Senhor volta, continuamente, para junto de nós; por outras palavras, permanece presente no seu Espírito a levedar e a inspirar as nossas consciências. A nossa esperança está fundada na sua promessa de amor e de vida: «Eu vivo e vós vivereis»; «Quem me ama será amado por meu Pai e eu amá-lo-ei e manifestar-me-ei a ele». O amor de Jesus por nós não é apenas memória do passado; é promessa de futuro, rasga em nós inexplorados e sempre novos horizontes de esperança.
Não nos deixa órfãos, desamparados, entregues à nossa solidão; volta, continuamente, para nós e permanece presente no dom do Espírito Santo. Na linguagem de João, o «outro Paráclito». Um pormenor do evangelho de João: recebemos o dom do Espírito através da intercessão do Filho; Jesus é aquele que, incessantemente, suplica ao Pai o dom Espírito que garante a memória das suas palavras e gestos e nos abreve ao conhecimento das coisas futuras. Porque a Palavra de Jesus é contínua fonte de revelação interior, um crescente conhecimento de amor. «Eu pedirei ao Pai, que vos dará outro Paráclito, para estar sempre convosco». «Outro Paráclito», outro advogado, outro consolador, outro interprete, outra pessoa que vem em socorro do nosso grito e da nossa carência, o Espírito da Verdade.
O nosso primeiro advogado (paráclito) é o próprio Cristo que conhece na própria carne os caminhos da nossa frágil humanidade. «Temos um Defensor (parakletos) junto do Pai, Jesus Cristo, o Justo» (1 Jo 2,1). O Paráclito habita em nós, está no meio de nós, é o meio onde existimos, o oceano de vida que nos envolve e que nos faz viver. Não estamos sós, não caminhamos desamparados. O Espírito Santo, o Paráclito, vem em socorro da nossa pobreza, para nos consolar e animar, encorajar e fortalecer. Ele é quem interpreta na singularidade da nossa existência o evangelho do Senhor. Pelo Espírito, a existência crente de cada um de nós é uma nova, inédita e irrepetível interpretação.
Pede-nos o Papa Francisco que celebremos esta semana, com gestos concretos os cinco anos da publicação de Laudato si`, esse documento profético que a Igreja oferece ao mundo e aos próprios crentes. Possa ser esta semana uma ocasião para nos interrogarmos, mais uma vez, sobre o nosso cuidado pela criação, renovarmos a consciência que tudo está interligado. E de crescermos numa espiritualidade verdadeiramente ecológica: «A espiritualidade cristã propõe uma forma alternativa de entender a qualidade de vida, encorajando um estilo de vida profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria sem estar obcecado pelo consumo» (LS 222).
Este tempo de confinamento serviu, certamente, para renovar a nossa forma de habitarmos em nossas casas, pois aí permanecemos tanto tempo, para nos relacionarmos uns com os outros com maior cuidado e atenção, para tomarmos consciência de que podemos habitar o mundo com ritmos de vida mais lentos e menos consumistas. Foi possível nestes dias, será possível também no futuro. O que, entretanto, aprendemos possa constituir uma bússola para nos orientarmos no futuro. É possível habitar o mundo de outro modo; e já o ensaiamos. Escreveu recentemente o ecoteólogo brasileiro Leonardo Boff: «Se não fazemos uma “conversão ecológica radical”, nas palavras do Papa Francisco, a Terra viva poderá reagir e contra-atacar com vírus ainda mais violentos». A presente crise pandémica pode ser acolhida como «uma chamada urgente a mudar a nossa forma de viver na nossa Casa Comum».
Desafia o Apóstolos Pedro aos cristãos de todos os tempos, e a nós, em particular, no tempo desafiante que atravessamos: «prontos sempre a responder, a quem quer que seja, sobre a razão da vossa esperança». Possamos e saibamos dar razão da nossa esperança nos contextos em que vivemos, nas profissões que realizamos, nas casas que habitamos, nas empresas que servimos, no tecido das nossas relações. Porque a razão da nossa esperança é Cristo ressuscitado. Uma esperança que brota dos abismos da morte como promessa de vida em abundância.
É uma esperança que promete futuro. Promete e garante, porque esse futuro já começou.
Pe. António Martins, VI Domingo da Páscoa
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2020/05/10 - Ele é o caminho (homilia)
Queridos Irmãos
De novo, e mais uma vez, estamos sintonizados à distância, a partir deste lugar de referência comum, a Capela do Rato. Comungamos a mesma Palavra, sem ainda comungarmos do corpo de Cristo na comunhão da comunidade. Aguardamos, num misto de intenso desejo e profunda prudência, esse tempo em que, gradualmente, nos vamos podendo reencontrar no mesmo espaço comum. Sentimos a dor deste prolongado jejum eucarístico e comunitário, numa passagem pelo deserto que parece não chegar ao fim.
A nossa presente experiência social e eclesial é iluminada pela segunda leitura, retirada da Primeira Carta de Pedro. Trata-se de um texto solene e paradigmático da comum condição sacerdotal de todos os cristãos. Nunca esqueçamos a revolução cultual e litúrgica introduzida pela experiência cristã: o culto desloca-se dos espaços sagrados para o concreto da vida, do templo para o corpo. É aí, na vida familiar, empresarial, laboral, cultural, relacional, afetiva que o cristão celebra o seu culto diferenciado, a oferta da própria vida, fazendo da existência concreta sacerdócio, entrega (sacrifício), dom e celebração: «E vós mesmos, como pedras vivas, entrai na construção deste templo espiritual, para constituirdes um sacerdócio santo, destinado a oferecer sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus por Jesus Cristo».
É compreensível, aqui e além, o mal-estar pelo retardamento da reabertura dos lugares de culto, não considerados prioritários. Podemos até perguntar se as igrejas são lugares mais perigosos do que os restaurantes. Contrariando a precipitação de alguns, a Conferência Episcopal Portuguesa pede prudência. Nas orientações para o recomeço das celebrações, publicadas sexta feira passada, com realismo afirmam os nossos bispos: «será preciso esperar algum tempo até ao integral restabelecimento da vida eclesial e religiosa». É certo que as celebrações da eucarística «constituem o cume e a fonte» da vida cristã, mas as mesmas não «são o todo da nossa fé, esperança e caridade». Perante a possibilidade de reabertura dos lugares de culto, deparamo-nos com um profundo dilema que precisamos de resolver com maturado discernimento pessoal e comunitário: Como reabrir os lugares de culto e conter o risco de maior contaminação? Esse é o desafio que, com toda a responsabilidade, prudência e sentido do bem comum temos diante de nós: «Ao mesmo tempo que se retoma a participação comunitária na liturgia, há que garantir a proteção contra a infeção».
Tendo em conta o espaço concreto (apertado e fechado) que é a nossa Capela do Rato, pergunto, hesitante, como recomeçar, quando recomeçar, com que medidas de prevenção sanitária? E até deixo a pergunta a um discernimento comunitário: não seria mais prudente recomeçarmos aqui o culto em setembro, no início do novo ano pastoral? Eu próprio, entre emoções e racionalidade, avanço e recuo. Mas também digo: como em tudo na vida, ponderando prós e contra, é preciso correr riscos. Porque viver é o grande risco.
Qualquer comunidade humana, como também qualquer comunidade cristã (porque humana), nunca será um lugar tranquilo; haverá sempre tensões e conflitos de interesses a suscitar contínuas reorganizações. Foi assim na primitiva comunidade cristã de Jerusalém, será assim em toda a comunidade cristã, onde quer que aconteça. O grupo social mais empobrecido, as viúvas, não é integrado nem valorizado na repartição quotidiana do pão, do «serviço das mesas»: «os helenistas começaram a murmurar contra os hebreus, porque no serviço diário não se fazia caso das suas viúvas».
Todos o sabemos: esta crise agravou as desigualdades sociais e gerou novos pobres. Com o encerramento das atividades económicas o desemprego aumentou brutalmente. Pessoas com empregos sazonais que pareciam seguros encontram-se sem condições para assegurar o sustento necessário. Famílias sem desafogo económico procuram agora ajuda para alimentos, medicamentos, pagar a conta da água e da luz… Muitas empregadas domésticas deixaram de poder contar com o seu ordenado mensal. Aumenta a pobreza e a exclusão. Reportamos a situação de duas famílias acompanhadas pelos voluntários da Santo Egídio e da Capela do Rato:
A Fátima, de 70 anos, diabética, hipertensa e com problemas cardíacos, vive com uma exígua pensão de doença. Na sua pequena casa em Marvila residem 7 pessoas, incluindo filhos atingidos pelo desemprego e netos, desde um bebé de 1 ano até um jovem de 16 anos, agora sem escola nem computador. Um dos netos, de 9 anos, veio da Guiné para ser operado a um quisto na orelha que lhe provoca muitas dores e passou a Páscoa no Hospital. Para tentar sustentar este agregado familiar, praticamente sem outras fontes de rendimento, a Fátima deixou de conseguir comprar os medicamentos dos quais depende a sua vida. A Comunidade de Sant’Egídio tem garantido os medicamentos, alimentos e fraldas para o bebé.
A Francisca vive sozinha com os filhos, uma menina de 12 anos, um menino de 5 anos asmático (com crises que obrigam a ter que ir recorrentemente ao Hospital e tomar medicamentos específicos) e uma menina de 9 meses com graves problemas de crescimento, a precisar também de acompanhamento médico. Desde que o marido deixou a casa de família e não contribui para as despesas, a Francisca tem grandes dificuldades em pagar a renda (275€) e fazer face a todas as despesas da farmácia, da casa e das crianças, agora sem sequer a ajuda das refeições antes asseguradas pela Escola. Para além do cabaz semanal, Sant’Egídio tem conseguido levar sopa e refeições caseiras.
Há ainda outras situações que são reportadas no site da Capela.
Com a linguagem bíblica da Palavra de Deus deste domingo, estas são as «viúvas e os viúvos» da sociedade atual, vítimas colaterais do vírus, a que somos solicitados, com urgência, a «fazer caso». O mesmo é dizer, a acolher, a acompanhar, a cuidar, a ajudar com partilha material e presença humana.
Recomeçamos e avançamos, ainda hesitantes e medrosos, o quotidiano das nossas vidas, confortados pelas palavras de Cristo no evangelho de hoje: «Não se perturbe o vosso coração. Se acreditais em Deus, acreditai também em Mim. Em casa de meu Pai há muitas moradas». A circunstância em que Jesus diz aos discípulos estas palavras é a de um adeus, uma despedida: Jesus vai partir para a sua páscoa (morte e ressurreição) e vai estar com os discípulos de um modo novo, que não é mais de contacto físico. Eles são preparados pelo Senhor para uma dolorosa experiência de luto e de perda; e nós também o somos no presente. Talvez não vamos conseguir viver isentos de receios, de perturbações, de medos. Mas as palavras do Senhor são também desafio a não nos deixarmos sufocar e paralisar por eles.
Estamos todos, como pessoas singulares, como famílias, como empresas, como comunidades cristãs, a fazer o luto de uma normalidade que tínhamos como adquirida e não voltará mais. Inventaremos, sim, uma nova normalidade, correndo riscos, vencendo medos, adquirindo novos comportamentos. Temos diante de nós um caminho novo e desconhecido. Talvez possamos dizer com Tomé que não conhecemos o caminho, que temos receio do desconhecido. Mas o novo do futuro não é um ponto de chegada, é o passo possível numa nova direção dado em cada dia. Só conhecemos o caminho caminhando, pondo o corpo em movimento, arriscando esta viagem com ousadia, fazendo o luto de tantas seguranças, aprendendo a viver em novos contextos. Caminhamos com Cristo, e pelo caminho que Ele próprio é. «Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por Mim». Só caminhando a vida acontece.
Possa cada um e cada uma de nós continuar a reconhecer e a agradecer que, apesar da brutal violência do tempo presente, «a terra está cheia da bondade do Senhor». Está cheia porque acreditamos que cada pessoa, cada criatura é expressão da bondade do Senhor. E que nesta vasta e desafiante terra, nossa «casa comum», a bondade cresce com os nossos quotidianos gestos de compaixão e de partilha.
Honra, portanto, a vós que acreditais e esperais.
Pe. António Martins, V Domingo da Páscoa
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2020/05/03 - A esperança cristã atreve-se a resistir e espera sempre (homilia)
Queridos Irmãos
Em cada domingo procuro partilhar convosco uma palavra com sentido a partir dos textos bíblicos. Esta partilha é o resultado de leituras, de momentos de meditação e de silêncio, procurando relacionar os acontecimentos que estamos a viver com a Palavra que lemos. Mas há momentos e circunstâncias em que isso não se consegue.
Também o padre, como qualquer outro crente, luta, na noite, com a palavra de Deus, qual Jacob com o Anjo, ferido e exausto, sem ver raiar a madrugada do sentido. Também o padre, como qualquer outro crente, quer dizer uma palavra iluminadora e, por vezes, não sabe. Luta, angustiado, com o texto, na angústia do tempo presente. Quer escrever, e não vem a inspiração. Quer relacionar sentidos e eles não se revelam. Sente uma fadiga na mão, no pensamento, um bloqueio no coração…
Ter de fazer uma homilia em cada domingo não é tarefa fácil. Por vezes é uma carga mesmo penosa. Nalgumas circunstâncias é o silêncio e o vazio o que há a partilhar, uma luta com o texto que se nos escapa e nos parece inacessível… Também a mim, os tempos de confinamento criam bloqueios. Não há inspiração que resista. Um cansaço da alma que cresce dentro de nós.
Também a celebração da Páscoa é uma esperança, um ato de fé na ressurreição interior do sentido, da descoberta reveladora do texto bíblico. A fé na ressurreição passa também por um atravessar a noite, o silêncio e o vazio, esperando a madrugada do sentido. Quando tudo parecia ter acabado na morte e num túmulo bem fechado, tudo recomeça no inesperado de uma manhã de primavera: «Não está aqui ressuscitou». O Vivente vai à vossa frente a rasgar os nossos caminhos de futuro.
Por isso a esperança cristã ousa esperar «contra toda a esperança». Conhece os lugares da violência, do desespero, do luto, do vazio, da perda e da morte, mas não se rende à sua vitória final. Atreve-se a resistir, mesmo quando nada sabe, nada sente, nada vê diante de si. Sem rendição, sem desânimo, espera. Espera mesmo quando nos sentimos mais abatidos, quando as forças nos falham e o caminho torna-se mais duro e exigente.
Fazemos nossa a oração do Salmo: «não temerei nenhum mal, porque vós estais comigo». O Bom Pastor conduz-nos às fontes refrescantes da Páscoa, às pastagens da vida em abundância. Ainda que tenhamos de andar por vales tenebrosos. Descobrimos, espantosamente, que a própria Palavra de Deus põe na nossa boca as palavras certas para nos dizermos, para resistirmos ao não sentido. Descobrimos que a Palavra de Deus, feita oração, tem uma poderosa força ressuscitadora na noite: é luz para os nossos frágeis e hesitantes passos. É Palavra de ressurreição.
Celebramos hoje o dia do Bom Pastor. De forma simbólica e indireta, Jesus faz uma violenta denúncia e acusação das autoridades do tempo, aquelas que oprimiam e tiravam vida às pessoas. Contrapõe dois modos antagónicos de exercer a autoridade, o do ladrão (o salteador, o bandido) e o do pastor. O pastor entra pela porta; o bandido sobre a cerca pelos lados. O pastor chama cada uma das ovelhas pelo próprio nome e guia-as para fora, para a liberdade. À voz do ladrão as ovelhas fogem. Ao comportamento destruidor e homicida do ladrão, contrapõe-se a dádiva da vida em abundância de Jesus-Bom Pastor: «Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância».
Hoje é o dia dedicado aos bons pastores e às boas pastoras (amplio aqui, intencionalmente, a semântica). Porque a arte de bem conduzir pessoas para a abundância da vida declina-se tanto no masculino como no feminino. Somos responsáveis pela vida uns dos outros: exercemos lideranças nas famílias, nas empresas, em organizações nacionais ou internacionais, nas escolas, nas universidades, nos governos das nações ou das autarquias, nas comunidades cristãs. Temos pessoas concretas ao nosso cuidado. À luz do evangelho de hoje, perguntemo-nos: Como cuidamos delas, como vamos ao seu encontro, como temos em conta nas nossas decisões as suas situações concretas, as suas potencialidades e os seus limites?
As nossas decisões podem roubar vida e introduzir morte na vida de outras pessoas, como podem acrescentar e multiplicar vida. Isso depende das nossas escolhas responsáveis. O bom pastor/o bom líder/a boa líder é aquele(a) que consegue promover as pessoas, em suas qualidades e limites, em suas promessas e fragilidades. O bom pastor/o bom líder/a boa líder potencia a vida dos outros, não a diminui; torna-a fecunda, não a humilha.
Ser pastor (ser líder, diremos com uma linguagem atual) é um apelo, é uma vocação que se acolhe, se responde e continuamente se pratica. Ninguém nasce líder, ninguém nasce padre, ninguém nasce consagrado(a), ninguém nasce em relação de casal, ninguém nasce bom profissional ou bom chefe. Toda a vocação é o resultado de uma resposta através de um longo caminho de discernimento, de maturação, de aprendizagem e de treino. A resposta é renovada em cada dia, praticada sempre de novo, com erros, fracassos, hesitações e recomeços.
Rezamos hoje, agradecidos, por todos aqueles e aquelas que, um dia, sentiram o apelo interior de Deus a uma entrega generosa aos irmãos e disseram sim, e continuam a dizer o seu sim. Peçamos ao Espírito Santo que suscite novas vocações de liderança e de serviço, na Igreja e na sociedade, ao estilo do Bom Pastor, tanto de homens como de mulheres. Rezamos por aqueles que, através do sacramento da ordem, são chamados a ser na vida das comunidades sinal encarnado de Cristo «pastor e guarda das nossas almas».
Hoje é o dia da Mãe. A nossa Mãe é/foi a nossa primeira pastora, parafraseando o evangelho. Gerou-nos em si para nos dar à luz, aos outros, ao mundo, a nós mesmos. Ela é/foi a porta pela qual passamos para a aventura arriscada de vivermos por nós próprios. Abriu-nos as portas da liberdade e da autonomia, abrindo o seu próprio corpo. A sua voz nos chamou, pela primeira vez, pelo nosso próprio nome. Essa mesma voz que tantas vezes recusamos ouvir. Aprendemos a segui-la, passo a passo. Aprendemos também a fugir dela. Aprendeu a ser Mãe connosco e para nós, entre tentativas, erros e recomeços. Fomos a custo descobrindo que o seu amor é o único que nos é incondicional.
Não temos origem em nós mesmos, somos dados, somos dom. Queremos agradecer o dom desse amor que nos deu origem, que nos gera enquanto filhos e filhas. Obrigado querida Mãe, onde quer que estejas.
Pe. António Martins, IV Domingo da Páscoa
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Abril
2020/04/26 - Ao nosso lado o Senhor caminha pacientemente (homilia)
Queridos Irmãos
Nas palavras que trocamos, nos nossos gestos quotidianos, nos pensamentos mais profundos, continuamos todos marcados e condicionados pela pandemia. Já sentimos este tempo de confinamento demasiado longo e insuportável. Somos habitados por um profundo desejo, libertário mesmo, de sair do isolamento das nossas casas e atravessar amplos espaços, ver rostos e abraçar aqueles que amamos. Somos habitados por um imenso desejo de nos soltarmos. E, todavia, um terrível receio nos inibe e oprime. O vírus anda à solta; vai e vem, sem pedir licença, de uns para outros, circula livremente, e nós não.
Entretanto vamos aprendendo a viver condicionados e alterados pela sua invisível presença, sempre ameaçadora, a marcar a normal anormalidade do nosso quotidiano. A primavera avança e nós não vemos os campos floridos, as aguarelas ao vivo das paisagens, o chilrear dos pássaros soltos pelos campos. Daqui a pouco é verão e nem o mar nos vai acalmar. Nem um mergulho de corpo inteiro poderemos fazer em liberdade. Estamos na noite de uma longa tortura. Torturados por dentro, em nossa liberdade de movimento e de relação. Precisamos de rasgar horizontes, alargar espaços e movimentos, sair da estreiteza do confinamento. Precisamos de saltar os muros interiores do medo e do receio que nos separam.
Estamos cansados de virtualização, de teletrabalho, de telemedicina, de video aulas, de telemóveis, de eucaristias on line… A eficácia do virtual não substitui o sentir da carne e o contacto do corpo. Os écrans são sedutores, mas desencarnam. Precisamos de tocar, de agarrar, de sentir com a pele o sabor do mundo e dos outros. O corpo é insubstituível. Somos carne, afeto, relação, contacto, pele que sente, abraça, vive, toca. Isso a experiência cristã sabe muito bem: Na comunhão eucarística comungamos o corpo da comunidade e dos irmãos. Mas disso estamos privados. Só muito lentamente a nossa vida comunitária irá recomeçar, sem saber quando nos poderemos voltar a abraçar sem receio de contacto.
A narrativa dos discípulos de Emaús ilumina hoje as nossas vidas. Dois discípulos de Jesus, após a sua morte, abandonam a comunidade de Jerusalém e regressam à sua casa de origem, a periférica Emaús. Regressam ao passado tristes, desiludidos e derrotados, marcados pelo trauma da morte do Senhor a quem entregaram as vidas e a esperança. Eles vão connosco e nós com eles, neste tempo de ilusões perdidas, de desencanto acrescido, de projetos e sonhos adiados. Todavia, esse aparente regresso ao passado é viagem para o futuro; pelo caminho a suas vidas renascem e a sua esperança é refeita. Porque não caminham sozinhos no vazio e no desencanto: com eles, feito forasteiro e desconhecido, caminha Cristo. O Senhor ressuscitado, o Vivente, percorre com eles, e connosco, os caminhos do desencanto e da derrota, para, por dentro, fazer renascer o futuro: «Jesus aproximou-Se deles e pôs-Se com eles a caminho. Mas os seus olhos estavam impedidos de O reconhecerem». A derrota e o fracasso tinham cegado os seus olhos e endurecido o seu coração. Como frequentemente também nos cegam e nos embrutecem.
Não caminham calados, sufocados pelo medo e pelo silêncio. Pelo contrário verbalizam e partilham a sua tristeza, reelaboram, em comum, o luto pela perda do Senhor a quem entregaram a vida e a esperança. Fazem, a dois, lado a lado, um caminho terapêutico: dizem um ao outro a dor que lhes vai no coração, a ferida interior que os dilacera. Escreve Lucas que «falavam e discutiam». Talvez possamos imaginar alguma tensão, leituras diferentes para o que aconteceu, tantas perguntas em aberto sem resposta. Bem-aventurada discussão que os liberta da solidão e os une no caminho de casa. Nessas palavras e nessa discussão reelaboram o sentido para o que viveram em comum. Bem sabemos que a pior solidão é quando não há comunicação, quando não se tem ninguém com quem falar, onde, quando ninguém pode testemunhar a profundidade da dor que nos habita.
Jesus, entrando no seu caminho daqueles discípulos, torna-se parceiro da conversa, interrogando e causando espanto. Estimula-os ainda mais a contarem o que sentem e viveram: «Que palavras são essas que trocais entre vós pelo caminho?». Esta pergunta de Jesus, como se aquele forasteiro viesse de um outro planeta, alienado e ignorante do que se passara, ainda aumenta neles a tristeza. Mas estamos perante uma fina pedagogia da elaboração do sentido, a partir das raízes da dilaceração interior. Jesus vai ressuscitar o sentido dos discípulos, reunir as páginas soltas da sua vida, revelar-lhes o sentido da Escritura: «… começando por Moisés e passando pelos Profetas, explicou-lhes em todas as Escrituras o que lhe dizia respeito». A inteligência das Escrituras, a inteligência da vida e a revelação do sentido são o mesmo caminho que Jesus fez com eles e continua a fazer, pacientemente, connosco.
Só depois, quando estão reunidos à volta da mesa e Jesus abençoa e reparte o pão, é que os olhos se lhes abrem e o reconhecem. Este amanhecer interior, esta revelação do sentido, acontece quando o dia acaba, a noite chega. Já começa outro dia. A ressurreição dos discípulos, e a nossa, é sempre ao quarto dia, leva tempo, é lenta. Mas esse abrir dos olhos e essa inteligência do coração, ao menos em sua forma consciente, são preparados por um incendiado interior, por um fogo que dentro se atiça pelas palavras de Jesus que com eles caminha: «Não ardia cá dentro o coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava o sentido das Escrituras?» Este momento de reconhecimento é preparado por um longo e paciente caminho, feito de presença e de ausência, de palavras e silêncios. Por quantos caminhos inesperados não se traça a nossa ressurreição no tempo presente? Com que palavras, perguntas, experiências sofridas, gestos inesperados, presenças desconhecidas, silêncios densos, leituras ocasionais Jesus não incendeia hoje a inteligência do nosso coração?
No preciso momento em que se lhes abrem os olhos, Jesus «tornou-se invisível». Não desaparece, continua presente de outro modo, que não passa pela visibilidade exterior. Jesus continua presente na «fração do pão», a eucaristia, na palavra da Escritura que incendeia por dentro os nossos corações, na nossa comunhão fraterna, na nossa partilha fraterna de bens. Nesse momento em que se torna invisível, os discípulos decidem regressar imediatamente a Jerusalém, para junto dos outros irmãos. Podem agora regressar de noite, porque neles já é madrugada. Quando tudo parece ter chegado ao fim, tudo recomeça de novo. Esta é a atualidade da ressurreição.
Reaprender, recomeçar, voltar a partir. Recomeçar a economia, reabrir empresas, serviços, escolas, universidades, salas de cultura e de espetáculo, igrejas, restaurantes e bares, voltar ao nosso quotidiano alterados, renascidos, com um novo folgo e um fogo interior. Podemos viver tudo de outro modo. Com uma incandescência interior, um incêndio no coração. Podemos fazer os nossos percursos de fuga, de recusa, de medo, de sobrevivência, de regresso aos nossos pontos de partida, de travessia dos nossos vazios e dos nossos desencantos, até das nossas frustrações e traumas, de um outro modo. Possa este tempo de confinamento dar-nos a força genesíaca de uma nova inteligência coletiva, de um novo sentir comum, de uma nova inteligência política, económica, social e até eclesial. Podemos ir mais longe, e sermos protagonistas de algo inaugural, a que ainda não sabemos dar nome.
Recordamos e dizemos de novo o poema de Sophia, porque as suas palavras, sendo memória de um passado que celebramos, são também profecia de um futuro ainda por acontecer:
«Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo».
Na evocação do poema hoje, duas madrugadas libertadoras se conjugam, a do sepulcro vazio com o aroma da ressurreição e a da liberdade recuperada com a cor primaveril dos cravos. Uma e outra, em sua distância e aproximação, são momentos inaugurais de um tempo novo, horas genesíacas do futuro.
«E livres habitaremos a substância do tempo».
Pe. António Martins, III Domingo da Páscoa
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2020/04/19 - A vulnerabilidade humana na glória da Ressurreição (homilia)
Queridos Irmãos,
Estamos todos desejosos de sair um pouco do nosso confinamento, de respirar com mais folgo, de voltar a uma certa normalidade (uma normalidade na anormalidade). Bem sabemos que vivemos no imprevisível e na insegurança, cuidando de nós próprios e uns dos outros. E por aí se vai desenhar a nossa vida futura. Continuamos ainda confinados em nossas casas, preservados de contactos corpóreos, distanciados na sociabilidade. Todos os dias fazemos gestos de heroísmo.
É aí nos espaços familiares fechados que o Senhor vem estar connosco, para se colocar no meio de nós, para ser o centro das nossas vidas. «Na tarde daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas as portas da casa onde os discípulos se encontravam, com medo dos judeus, veio Jesus, apresentou-se no meio deles». Parece que João escreveu diretamente para nós o trecho do evangelho de hoje; e, de certo modo, isso é verdade, porque a Palavra de Deus é sempre dirigida ao concreto das nossas vidas.
O Senhor ressuscitado, fonte eterna de vida nova, vem atravessar as paredes do nosso isolamento e estar no meio da nossa família. Vem quebrar as portas do nosso egoísmo, quando estamos fechados em nós mesmos, indiferentes a quem está à nossa volta. Vem derrubar as paredes do nosso individualismo, quando pensamos apenas nos nossos interesses. Este é «o primeiro dia da semana», o tempo novo da nossa ressurreição pessoal, familiar, comunitária, de toda a humanidade no tempo presente. Estamos perante uma nova etapa da história humana, incerta, desconhecida, imprevisível, com menos recursos económicos.
Naquele primeiro dia da semana, os discípulos estavam trancados em casa, «com medo dos judeus». Tinham medo, temos medo. Tinham medo de ser perseguidos, até mortos, como aconteceu a Jesus. Por isso escondem-se em casa e, assim, protegidos e juntos, com a segurança possível, resistem ao medo. Quando a vida está em perigo, ativa-se o medo como mecanismo auto-protetor. Mas o medo arruína a confiança uns nos outros. Olhamos com desconfiança cada pessoa que encontramos, com medo de sermos infetados e de infetar. Este é um inesperado sentimento que, no presente, nos afeta e infeta. Este vírus ainda pode-se revelar bem mais perigoso do que o outro, porque afeta o fundamento da nossa convivência humana. O medo é o alimento de todas as ditaduras.
É a esta pequena comunidade medrosa, às nossas famílias, a cada um de nós, à sociedade inteira que Jesus vem. Vem para nos encorajar a sair e a vencer os nossos medos, a pacificarmos as nossas relações feridas, a ventilar-nos com o sopro do seu Espírito: «Recebei o Espírito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos». Cristo ressuscitado é sopro de vida, ventilação renovada, respiração que alarga, pulmões regenerados. Que atualidade simbólica tem esta passagem do evangelho de hoje!
Este é «o primeiro dia da semana» de uma nova respiração. Todos somos, nesse sopro/neste Espírito, enviados a uma missão, que foi a de Cristo e é agora a nossa: perdoar, reconciliar, refazer relações, superar inimizades, recomeçar onde houve roturas, curar onde houve feridas. O perdão é o efeito continuado da ressurreição em nós, a nossa permanente ressurreição. Em suas consequências concretas, o perdão pode ir até ao perdão das dívidas financeiras (cf. Mt 6,12). Vai nesse sentido o apelo profético do Papa Francisco, no domingo de Páscoa, à solidariedade internacional, «reduzindo, se não mesmo anulando, a dívida que pesa sobre os orçamentos dos países mais pobres». A criatividade do perdão tem inesgotáveis aplicações.
O evangelho de João apresenta-nos o paradoxo da páscoa de Cristo, e da nossa: morte e vida, dor e júbilo, violência e paz, corpo trespassado e corpo glorificado pelo Espírito, uma única realidade que permanece. Cristo ressuscitado guarda a memória viva da paixão e da cruz. Vem ao meio dos discípulos expondo as suas mãos rasgadas e o seu lado trespassado. Ele é um Deus ferido que integra em si a nossa vulnerabilidade humana. Toda a dor da história humana, de cada pessoa, entra na glória da ressurreição. O Deus em que havemos de acreditar após o covid 19, não será um Deus invencível, mágico, mas um Deus trespassado e vulnerável, um Deus que assume em si mesmo, através da humanidade do Filho, as feridas de toda a humanidade.
Nas feridas expostas do Ressuscitado, estão recolhidos e consagrados todos os corpos violentados, naufragados, recusados e destruídos, pela violência da guerra ou da fome, pela exclusão social ou pela miséria. Que boa nova o evangelho nos anuncia: As feridas visíveis e invisíveis de cada um de nós, as expostas no corpo ou gravadas nos recantos interiores da alma, acolhidas, à luz de Cristo ressuscitado, têm a sua fecundidade, não são para rejeitar. Somos chamados a acolher, na fé, a nossa vulnerabilidade humana, aquela dimensão de nós mesmos que nos fere, nos humilha e nos incomoda.
Apaixona-nos essa curiosa figura do evangelho chamada Tomé: homem atrevido, que não fica sujeito ao confinamento, que não está recolhido, com medo, em casa. Corajoso mas duvidoso na fé: não acredita no testemunho dos outros discípulos. Pede provas, quer ver e tocar com as próprias mãos: «Se não vir nas suas mãos o sinal dos cravos, se não meter o dedo no lugar dos cravos e a mão no seu lado, não acreditarei». Tomé fascina-nos: nele revemos a nossa vontade de sair de casa, mas também as nossas dúvidas de fé.
Todos nós também pedimos, de certo modo, provas; queremos tocar o intangível com as próprias mãos; gostaríamos que a confiança e o amor pudessem ser verificados. Tomé representa o nosso caminho longo, hesitante, até duvidoso, para chegarmos a uma adesão plena e sincera de fé na ressurreição, na vida que se ergue da morte. Revemo-nos nas dúvidas de Tomé; possamos também nos rever na sua confissão de fé, tão profunda, tão pessoal, tão sincera: «Meu Senhor e meu Deus».
Uma palavra final: a utopia cristã da fraternidade, vida ressuscitada no tecido quotidiano das relações. Os Atos dos Apóstolos narram o estilo da «comunhão fraterna» das origens cristãs: «Todos os que haviam abraçado a fé viviam unidos e tinham tudo em comum. Vendiam propriedades e bens e distribuíam o dinheiro por todos, conforme as necessidades de cada um». O evangelho de João assinala a importância da comunidade na resistência ao perigo, na caminhada de fé: é no meio deles que Jesus se apresenta. Isolados ficamos desprotegidos; em comunidade a vida renova-se e multiplica-se.
As inseguranças, os desafios e as urgências do presente, e do futuro que já começa, apelam-nos a reinventar uma qualidade de vida que passa pelo reforço da comunhão fraterna, dos laços de amizade e de solidariedade, por uma economia que dá vida, pelo cuidado da nossa comum humanidade, sempre em risco, sempre ameaçada. Essa qualidade de vida, em linguagem cristã, chama-se evangelho.
Renascidos, por Cristo, para «uma esperança viva», avancemos sem medo.
Pe. António Martins, II Domingo da Páscoa
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2020/04/12 - Aleluia! (homilia)
Queridos Irmãos,
Cantemos, hoje, com intensidade e júbilo, o grito da vitória: Aleluia!
Aleluia!, porque Cristo venceu a morte e ei-lo Vivente, a abrir-nos as portas da morte.
Aleluia!, porque a esperança vence o medo e nos coloca corajosos em novos e inesperados caminhos de vida e de futuro.
Aleluia!, porque no meio do inferno do sofrimento e da morte, do distanciamento social, da solidão, vemos tão eloquentes e comovedores sinais e testemunhos de vida, de compaixão, de entrega generosa.
O Aleluia que cantamos este ano brota mais intenso e mais autêntico. Ainda que limitados à estreiteza de nossas casas, vivemos e atravessamos uma Páscoa no concreto, com o coração nas mãos, de carne viva, em risco. Gritamos Aleluia não rendidos ao pavor do medo e da morte, ainda que tenhamos, com Cristo, atravessados esse inferno.
Tenho meditado no sentido crente que as atuais circunstâncias nos desafiam. A dimensão visceral, entranhada, concreta da condição cristã torna-se-me mais evidente, numa evidência irrecusável. Vê-se mais claro esta coincidência entre a paixão de Cristo e a paixão da humanidade numa única paixão, numa única Páscoa. A fé pascal não é ideologia, nem teoria, é vida em drama, exposta ao risco, mas não rendida à fatalidade. É vida que recomeça, que se sabe, continuamente, regenerada, pelo Espírito que ressuscitou Jesus de entre os mortos e faz novas todas as coisas.
O despojamento e a pobreza litúrgicas destes dias devolvem, com mais evidência, a beleza escondida da vida quotidiana, a solenidade dos gestos ousados de tantas pessoas de vida entregue, esgotadas «até ao fim», na sua entrega profissional. Nunca a Páscoa nos pareceu tão verdadeira, em sua expressão tão pobre e tão nua. Somos testemunhas dessa coincidência entre o que celebramos na liturgia e a vida concreta. Na paixão, morte e ressurreição de Cristo interpreta-se a paixão de toda a humanidade nos dias de hoje, mas também a sua ressurreição, a esperança de um futuro regenerador, o voltar a uma normalidade que já não será a mesma. A ferida do presente será portadora de uma fecundidade no futuro. Atrevemo-nos a esperar uma humanidade nova, renascida do presente inferno.
Por isso as palavras de uma antiga homilia do século IV são hoje tão atuais; são palavras para nós: «Levanta-te de entre os mortos; Eu sou a vida dos mortos; levanta-te minha imagem e semelhança; levanta-te, saímos daqui; Tu em Mim e Eu em ti; somos um só». Do inferno dos hospitais, dos cemitérios, dos lares de idosos, das famílias em luto, de tantas pessoas em solidão, pinta-se, hoje, pela ação do Espírito que faz novas todas as coisas o ícone da ressurreição: «Não temas! Eu sou o Primeiro e o Último, o Vivente, estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves da morte e dos infernos» (Ap 1,17-18).
É sinal de ressurreição aquela cadeia de hotéis que já antecipou o pagamento do subsídio de Natal, evitando riscos maiores para os seus colaboradores; é sinal de ressurreição as centenas de voluntários que estão no terreno, cuidando, tratando e servindo. Tantos, tantos sinais pascais. Sinal do tempo presente de ressurreição aquele editorial de um jornal laico ao escrever: «Sendo o leitor crente ou não o sendo, esta pode ser uma época de esperança e de superação das dificuldades e provações» (Expresso, 10.04.2020, 34).
O evangelho narra-nos os primeiros raios da madrugada da Páscoa. João coloca em cena uma madrugadora, Maria Madalena, uma daquelas mulheres que esteve junto de Cristo na cruz, inteira. Ela é agora a primeira a rasgar a aurora enquanto era ainda escuro: «No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi de manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro». A narrativa parece contraditória: afinal era de manhãzinha ou ainda escuro? Talvez, numa verdade existencial, as duas dimensões sejam simultâneas.
Maria Madalena guarda a fidelidade de um amor inteiro, é a amada fiel. Em seu coração é já madrugada, porque nunca houve noite. Ela é guiada, como a Amada do Cântico dos Cânticos, pela intensidade do amor que a leva a procurar de noite o amado: «… pela noite, procurei o amado do meu coração» (Ct 31,1). Mas é ainda de noite, pois sente a dor da perda e vai ao sepulcro para fazer luto. Esta simbologia do contraste entre o «já» da madrugada e o «ainda» da noite diz bem a situação em que nos encontramos. No «ainda» do isolamento social precisamos de colocar «já» o desejo e a vontade do reencontro e do recomeço, de nos abraçarmos uns aos outros.
Um pormenor que surpreende no texto: o discípulo jovem, «aquele que Jesus amava», quando chega a sepulcro, não entra logo, espera que Pedro chegue e dá-lhe a honra de entrar primeiro. Que sentido retirar disto? «O discípulo amado» é a figura do discípulo fiel, que está ali até ao fim junto de Jesus na cruz; é a figura a que cada um de nós é chamado. Pedro é o discípulo que traiu e abandonou Jesus. Fugiu da cruz com medo. A coragem e o medo, a fidelidade e a traição, juntas à porta do sepulcro. Já estamos perante um milagre da ressurreição: a reconciliação entre os dois discípulos.
Poderia ter havido, da parte do «discípulo que Jesus amava», uma acusação, um feroz julgamento de Pedro, um repúdio… mas não. Com esse discípulo todos nós aprendemos a conter a tentação da acusação, do julgamento imediato do outro, a não apresentar uma superioridade moral. No atual clima de confinamento, as nossas casas podem ser lugar de explosão de conflitos e de acusações recíprocas. A atitude do discípulo que Jesus amava para com Pedro indica um caminho de ressurreição permanente no quotidiano das nossas relações: o perdão.
Não somos ingénuos nem ligeiros: à fé na ressurreição não se chega facilmente. Todas as evidências imediatas de morte, de medo, de destruição nos falam da finitude das coisas e da vida humana. Para os discípulos acreditar que o Senhor estava vivo, no meio deles, a ressuscitar as suas consciências, as suas relações, a sua interioridade ferida levou tempo, muito tempo. Ainda hoje temos resistência em acreditar na ressurreição. Levamos tempo a entender, como os discípulos: «ainda não tinham entendido a Escritura, segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos». Com que paciência espera o Senhor a nossa decisão de fé, como esperou pelos discípulos!
O discípulo amado viu os sinais da morte (o sudário enrolado a um canto) e acreditou: «viu e acreditou». Viu para além do visível. Este é o olhar a que a fé no Ressuscitado nos desafia. Um olhar portador de esperança e de futuro.
Pe. António Martins, Domingo de Páscoa
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2020/04/09 - Um amor até ao fim feito serviço e dom (homilia)
Queridos Irmãos
Chegamos à Páscoa.
Fazemos, no possível das nossas restrições e do nosso isolamento social, memória da Páscoa do Senhor, do cumprimento da sua vida feita dom de amor até ao fim, numa entrega despojada, incondicional. A memória da eucaristia, que é uma das dimensões centrais da liturgia de quinta-feira Santa, é a memória viva (pascal) do Senhor que, por inteiro, em todo o seu ser, se dá por nós, servindo e cuidando de nós. Ele dá-se de corpo inteiro como alimento que nos alimenta e reúne: «Isto é o meu corpo, entregue por vós»; Ele dá-se vital, visceralmente, em suas entranhas esgotadas e rasgadas: «Este cálice é a nova aliança no meu sangue».
Porque a Páscoa é corpo e sangue, vida concreta feita dom, violência forçada e dádiva livre de um amor inteiro «até ao fim». Esta é a memória que nos faz viver, hoje, nas presentes circunstâncias; nesta memória viva, a nossa fé enraíza-se e aprofunda-se; esta memória é portadora de uma promessa de futuro, rasga diante de todos nós caminhos de esperança: «Todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciareis a morte do Senhor, até que Ele venha». Na memória da Páscoa do Senhor, damos sentido ao nosso presente e abrimo-nos ao futuro, que já começa.
Mas todas estas palavras, ouvidas e acolhidas no contexto do nosso confinamento, têm um sabor amargo de contradição e de insuportável. Estamos impedidos viver a Páscoa em comunidade, de comungarmos o corpo e o sangue do Senhor. A nossa Páscoa, este ano, do ponto de vista sacramental, está marcada por uma violenta provação e privação. Nunca imaginaríamos que um decreto da Cúria Romana dispensasse os cristãos da comunhão sacramental; e isso aconteceu. Quer aqueles que, habitualmente, podem comungar, quer aqueles que, por razões várias, não comungam, todos, no presente, estão na mesma circunstância de privação. Todos são iguais nos limites e na carência. Estranha comunhão eucarística nesta ausência de comunhão sacramental. E isto também é inédito.
Fica a pergunta em aberto: se, na vida civil, há o acesso quotidiano ao pão e os supermercados estão abertos, não poderiam estar abertas também algumas igrejas mais espaçosas, no estrito cumprimento das regras sanitárias, e o Santíssimo exposto, para tempos de oração pessoal? É uma violência simbólica que todas as igrejas tenham as portas encerradas, quando farmácias, supermercados, alguns serviços públicos permanecem abertos. Se há distribuição de pão, não poderíamos inventar uma distribuição do pão eucarístico, com uma presença humana de consolação, para os doentes, os idosos, as pessoas que estão só? Não tenho resposta, mas isto inquieta-me.
Precisamos, mais do que nunca, de gestos redentores do nosso isolamento, de gestos que devolvam o corpóreo da nossa dimensão comunitária, gestos de pertença comum. Porque a vida espiritual ajuda a manter a saúde mental, a equilibrar e a integrar afetos e emoções. Uma estratégia de saúde pública que apenas tem como urgência a dimensão corpórea e clínica é redutora; cria violências psíquicas, agrava a saúde mental, os estados de imunidade, porque aumenta a solidão, o isolamento, a depressão. E todo o corpo social fica em risco também. É tempo de cuidarmos da saúde psíquica e espiritual de todos. É urgente equilibrar a racionalidade técnico-científica com uma dimensão afetiva, social e espiritual.
Este dia do ministério ordenado, da nossa identidade de padres (e pastores) ao serviço do Povo de Deus, está marcado por profundas dilacerações e dilemas, que partilho convosco. Separados das suas comunidades, os padres vivem também tempos de desamparo e de isolamento. A alegria de um padre é ter a comunidade reunida; e a impossibilidade dessa reunião, nas atuais circunstâncias, é dor interior para todos nós. Também nós padres vivemos este isolamento como uma forma de comunhão com todo o Povo de Deus e toda a sociedade. Este tempo pode ser aproveitado para fazermos uma travessia no silêncio, despojados das nossas habituais lideranças.
Penso em vós todos os dias. Penso e rezo por vós.
Centremo-nos, agora, na narrativa do «lava-pés», um exclusivo do evangelho de João. Sublinho dois traços da narrativa de João: o tom solene inicial: «sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, Ele, que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim», e a precisão narrativa, num tempo lento, gesto a gesto, movimento a movimento, do lava-pés: «sabendo que saíra de Deus e para Deus voltava, levantou-se da mesa, tirou o manto e tomou uma toalha, que pôs à cintura. Depois, deitou água numa bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha que pusera à cintura».
Esta é a hora da passagem do Filho para o Pai, a hora da cruz. Como momento dessa hora está o gesto do lava-pés: gesto ousado, escandaloso totalmente inesperado para os discípulos. O Mestre despoja-se para ficar com a veste (tanga) do servo; o Senhor põe-se de joelhos diante dos seus discípulos, servindo-os. Gesto solene de um amor levado até ao fim, feito serviço e dom, que Pedro não pode compreender ali: «O que estou a fazer não o podes compreender agora, mas compreendê-lo-ás mais tarde». Também nós somos lentos em compreender as implicações desse gesto ousado e escandaloso. Talvez esse «mais tarde» seja para nós o tempo presente. Em nossos dias, o gesto do lava-pés passa da solenidade litúrgica para o concreto da vida.
Partilho convosco os gestos de lava-pés que alguns membros voluntários da nossa comunidade, em cooperação de esforços e de vontades com a Comunidade de Santo Egídio, têm feito: longas horas passadas em filas de supermercado, o transporte de tantos sacos pesados, as deslocações ao encontro dos mais desfavorecidos, até para destinos mais periféricos como Rio de Mouro e Laranjeiro. Tem sido uma dádiva quotidiana de si mesmos, para transformar os nossos donativos em alimentos, medicamentos e bens necessários que vão proporcionar a mais de meia centena de pessoas carenciadas uma Páscoa mais alegre.
Há mulheres que, doentes e sozinhas, tentam sustentar na mesma casa jovens com deficiência, que ficaram sem os Centros de dia, e crianças pequenas sem escola. Há pessoas isoladas que não têm frigorífico e dependiam da Reefood, encontrando-se agora sem recursos para assegurar a alimentação de cada dia.
Há agregados familiares marcados pelo desemprego, que integram idosos doentes e jovens estudantes dependentes das magras pensões de doença dos avós. Há famílias de seis pessoas que tentam subsistir com o ordenado mínimo de um só filho, em casas pequenas, com crianças sem computador para seguir as aulas e uma jovem grávida, desempregada e doente.
Há mães sozinhas que procuram manter com pouco mais de trezentos euros filhos com doença crónica e dependentes de medicamentos. Há os idosos do Lar das Irmãzinhas dos Pobres em Campolide que estão agora a precisar de ajuda em bens alimentares, para poder continuar a cuidar destes anciãos.
Alguns da nossa comunidade estão no terreno, ligando eucaristia e vida, celebrando, na urgência do concreto, gestos de lava-pés, numa via sacra ao vivo. Sintamo-nos em profunda comunhão com eles.
Eucaristia e lava-pés, corpo de Cristo que é dado por nós e para nos (re)unir, e mãos que cuidam e servem, são dimensões complementares da liturgia de Quinta Feira Santa: «Isto é o meu corpo, entregue por vós»; «também vós deveis lavar os pés uns aos outros».
Assim o possamos compreender melhor, assim o possamos traduzir na vida.
Pe. António Martins, Quinta-feira Santa – Ceia do Senhor
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2020/04/05 - Páscoa: a força do amor silencioso de Deus (homilia)
Queridos Irmãos
Acolhamos como Palavra dirigida particularmente a nós, neste tempo de confinamento, o que Jesus manda dizer ao dono de uma casa em Jerusalém: «É em tua casa que Eu quero celebrar a Páscoa com os meus discípulos». É em nossas casas desarrumadas, feitas estaleiros, escritórios, salas de aula, ginásios, que o Senhor quer celebrar a Páscoa este ano. Não no templo, com uma liturgia solene, mas de forma doméstica, familiar, com gestos simples, criativos, mas nossos.
O Senhor quer passar connosco, quer passar por nós, pelas nossas casas, para que façamos nossa a sua Páscoa. Preparemo-nos, com simplicidade e exigência, para que em cada uma das nossas famílias se façam gestos de Páscoa. Gestos que possam dizer, com verdade, a nossa apreensão e o desejo de sair do isolamento, a angústia da incerteza do presente e a esperança de um tempo novo, o isolamento necessário mas também a partilha solidária e a compaixão com os mais vulneráveis e excluídos.
Gestos verdadeiramente pascais, este ano mais do que nunca.
Na narrativa da paixão de Mateus, hoje lida, entra em cena um casal desconcertante, Pilatos e a sua mulher. Pilatos era o governador da Judeia, oficial militar de carreira, garante da ordem pública. Tendo consciência da inocência de Jesus, com receio de revoltas populares entrega o «terrorista» Barrabás e condena Jesus à morte de cruz. Encerra o assunto com o gesto cénico de lavar as mãos, a indicar que não ter mais nada a ver com o caso. O tempo angustiante e incerto que vivemos é a hora das decisões políticas, bancárias, empresarias, familiares, académicas. Nenhum líder pode lavar as mãos da responsabilidade das decisões, urgentes, necessárias, para bem do futuro da humanidade. Este tempo julgará quem vai ficar para a história como Pilatos, lavando as mãos da sua responsabilidade.
Na sombra de Pilatos, anónima, está a sua esposa. Não aparece em cena, mas manda informar o marido, no preciso momento da tomada da decisão, da sua profunda aflição. Aquela mulher sem nome nem rosto intui a inocência de Jesus, «o justo», e previne o marido da própria ruína moral: «Não te prendas com a causa desse justo, pois hoje sofri muito em sonhos por causa d’Ele». Pilatos não ouve a intuição da esposa, mas esta entra no processo da tomada da decisão; não podia ficar de fora, era um imperativo de consciência. Na mulher de Pilatos estão presentes todas as mulheres anónimas que, no silêncio das suas casas, decidem o quotidiano da vida, com urgência, pragmatismo, preparando alimentos, cuidando de filhos e agora são também educadoras; repartem-se entre atividades profissionais e vida doméstica acrescida, cuidam da família na retaguarda, prestam voluntariado. Na paixão da mulher de Pilatos está a paixão das mulheres do tempo presente, essas que não podem lavar as mãos, ou quando as lavam é para voltar a agir porque as suas mãos estão sempre a tocar e a cuidar, mesmo correndo risco de contaminação.
Compreendemos a paixão da humanidade de hoje na paixão de Cristo. Pode Deus livrar-nos da pandemia? Pode Deus salvar-nos do mal? Perguntas terríveis e inevitáveis neste tempo que todos atravessamos. Não procuremos respostas simplistas e ingénuas. A violenta e mortal experiência do mal, que a humanidade de hoje atravessa, é uma provocação a Deus e à fé de todos os crentes. Põe em causa a ideia bem arrumada de um Deus omnipotente, pronto-socorro.
A narrativa da paixão de Cristo ajuda-nos a dar sentido à nossa paixão e à paixão de toda a humanidade. Jesus, vulnerável, impotente e indefeso, é exposto ao escárnio, à blasfémia, à irrisão: «Tu que destruías o templo e o reedificavas em três dias, salva-Te a Ti mesmo»; «Se é o rei de Israel, desça agora da cruz e acreditaremos n’Ele. Confiou em Deus: Ele que O livre agora, se O ama». E Deus não intervém, permanece num terrível silêncio e inação. O Pai não livra o Filho da cruz; o Salvador não se salva. A cruz apresenta, à primeira vista, o fracasso de Deus. O seu amor, ali, parece revelar-se impotente. Na violência mortal dos acontecimentos parece não haver salvação. A cruz é a negação de uma conceção mágica de Deus.
Cristo morre, vítima da violência organizada, gritando por Deus, sentindo-se abandonado pelo Pai. Grita, do profundo da sua agonia (e aqui é a morte que triunfa sobre a vida), questionando o Pai, mas nele inteiramente confiando: paradoxo da fé: «Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonastes?». Grito forte, de abandono, de terrível solidão. Grito do profundo da vida que está em perigo de morte. No abismo da sua dor e da sua morte, com o Salmo, Jesus questiona o Pai: «Porquê, meu Deus?». Na ausência de respostas, de justificações racionais, fica a pergunta como grito. No grito de Jesus na cruz estão recolhidos os gritos de todos os homens e mulheres que, na dor e na morte, sentem a ausência e o silêncio de Deus. Nos momentos de desolação, é a memória do amor que nos salva e nos dá esperança e confiança no futuro: «Pertenço-te desde o seio materno; desde o seio de minha mãe, Tu és o meu Deus». O Salmo que Jesus reza na cruz, com traços de acusação a Deus, termina em louvor: «… eu te louvarei no meio da assembleia».
Mateus conclui o evangelho da paixão narrando o insólito: no próprio momento da morte de Jesus, os túmulos abrem-se e os mortos ressuscitam. Atrapalhando os tempos da narrativa, Mateus apresenta já a fecundidade da morte de Jesus. Na violência da morte, em seu aparente triunfo, há uma invisível força que faz viver, que abre as portas da morte. «Abriram-se os túmulos, e muitos dos corpos de santos que tinham morrido ressuscitaram». Aquela vulnerabilidade indefesa do Filho de Deus, que não se salva da cruz, é a vulnerabilidade da força do amor fiel. É a força do amor compassivo e silencioso de Deus que abraça, na paixão do Filho, a paixão de toda a humanidade, a paixão de cada um de nós. Há vida na morte, e essa vida está nos gestos quotidianos de amor e de serviço com que cuidamos uns dos outros.
O oficial militar romano vê nos acontecimentos da paixão de Jesus o sinal da vida que brota, que renasce da morte. Vê o invisível, o que está para além da evidência: «Este era verdadeiramente Filho de Deus».
Esta hora de silêncio, de dor, de luta, de resistência para todos nós, possa ser também a hora da esperança e de uma fé renovada.
Pe. António Martins, Domingo de Ramos
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Março
2020/03/29 - A frágil humanidade perante Cristo (homilia)
Queridos Irmãos
Seguimos todos, apreensivos e preocupados, o evoluir entre nós e no mundo inteiro da pandemia. Os números de vítimas mortais e de infetados sobem. Mas esses números, a inspirar belos gráficos interativos, não são apenas estatísticas; são história de vidas dramáticas, muitas acabaram no mais profundo desamparo e solidão, sem uma palavra ou um gesto de consolo. Em cada número há um drama pessoal que não é notícia, há um rosto com nome, uma história única.
Vivemos todos no imprevisto, improvisando a cada momento. Reinventamos a vida e a nós mesmos, caminhando no inseguro, sem regras definidas nem certezas de nada. O futuro próximo é incerto e desconhecido. Precisamos todos de estar unidos, em família e na sociedade, para atravessar a urgência dos tempos presentes. Somos todos devolvidos ao realismo da nossa fragilidade humana, sem máscaras nem ilusões. Cada dia é uma vitória sobre o medo, da vida sobre a morte, da solidariedade sobre o egoísmo. Em cada dia reinventamos a esperança, crescemos em compaixão. Com Sophia podemos dizer: «Em cada gesto ponho solenidade e risco».
Em tempo de quarentena, a nossa Quaresma avança para a Páscoa. Celebraremos este ano uma páscoa insólita em nossas vidas, sem celebrações solenes comunitárias, sem sinais exteriores, totalmente despojada e silenciosa. Vimos ontem as impressionantes imagens do Santo Padre, só, na Praça de S. Pedro vazia, ao entardecer. Liturgia bela mas austera, sem massas nem festa, despojada, intensa. Assim será a nossa páscoa. Será para todos nós uma páscoa única e inesquecível. Na ausência de celebrações comunitárias, de gestos solenes, será uma páscoa existencial. Talvez mais autêntica e mais intensa. Na paixão do mundo, das famílias, de cada um de nós celebramos, na própria carne, a paixão de Cristo. A nossa Páscoa desloca-se do rito para o concreto da vida, do templo para os hospitais, para os lares, para as nossas casas. Desloca-se ou sempre aí esteve, e distraídos não erámos capazes de a identificar?… A solenidade do templo, agora silenciada, dá lugar à solenidade dos gestos arriscados e salvadores do humano. Somos desafiados a viver a laicidade entranhada e quotidiana da condição cristã. Aí onde estamos, em casa, nos hospitais, nos serviços públicos, no voluntariado que realizamos por imperativo de responsabilidade e de consciência. A Igreja reinventa-se no testemunho doméstico, corajoso e humilde, sem triunfalismos, dos seus leigos e leigas, dos seus pastores, dos seus religiosos e das suas religiosas.
Lidas e acolhidas à luz do tempo presente as leituras bíblicas da Quaresma adquirem novos sentidos. O salmo 129 dá-nos as palavras certas para uma oração justa e digna, autêntica e sincera, a partir da dura realidade que todos estamos a viver. Com o Salmo de hoje podemos rezar, gritando, os nossos medos, a nossa angústia e a nossa esperança: «Do profundo abismo chamo por vós, Senhor. Senhor, escutai a minha voz». «Do profundo/de profundis abismo» é a situação em que nos encontramos, uns mais que outros. O profundo abismo dos solitários, dos doentes, dos moribundos, dos sem-abrigo, dos cuidadores, exaustos e tantas vezes impotentes. A oração do Salmo dá-nos voz; as suas palavras dão sentido à nossa dor. Atrever-se a gritar a Deus, do profundo do seu abismo, é uma não rendição ao vazio do desespero. Porque esse grito, do profundo abismo, é também um grito de esperança: «A minha alma espera pelo Senhor mais do que as sentinelas pela aurora». A que ousadia e atrevimento nos leva a fé e a oração!
Compreendemos melhor, em nossos dias, as palavras que as irmãs de Lázaro mandaram dizer a Jesus: «Senhor, o teu amigo está doente». Tantos são os doentes que aumentam no curso dos dias pela propagação da pandemia, e correm aos hospitais ou permanecem em suas casas. Vejamos os dramas em tantos lares de idosos, ou nas prisões, lugares propícios a uma maior propagação. Com as palavras do evangelho, todos nós gritamos: «Senhor os teus amigos estão doentes». Desconcerta-nos a resposta do Senhor; temos dificuldade em compreendê-la, pois o seu sentido mais profundo escapa-nos no imediato: «Essa doença não é mortal, mas é para a glória de Deus, para que por ela seja glorificado o Filho do homem». Mas a contaminação do vírus pode ser mortal, sobretudo naqueles que têm as defesas imunitárias mais vulneráveis. Neste jogo de palavras e sentidos, tipicamente joanino, Jesus quer levar-nos mais longe: a doença mais mortal é a falta de esperança, o desânimo, a falta de confiança. A doença mortal é não ser capaz de tornar fecunda a própria vida em situações de morte.
No luto e no pranto das irmãs de Lázaro, Marta e Maria, vemos o luto e o pranto, sem consolo, de todas as famílias enlutadas. Aquelas duas irmãs podem chorar a morte de seu irmão, sem a companhia de Jesus, mas com a companhia de amigos, do povo onde moravam. Nas vítimas do vírus não há velórios. Os funerais são feitos à pressa no cemitério por razões sanitárias, com a presença de familiares reduzida ao mínimo e longe, sem a consolação da comunidade e os afetos dos amigos. Sem afetos, sem gestos, sem rituais de adeus, a perda torna-se insuportável e o luto duro e lento caminho. Na querida Itália, tanto pastores e como fiéis foram enterrados sem funerais e sem celebração da eucaristia. Estranha comunhão de destino. Custa e choca uma morte despersonalizada, assim, sem afetos, em total isolamento. É uma morte desumana, indigna e injusta. Muitas famílias, pelo mundo inteiro, atravessam o luto num profundo desamparo e solidão. A diocese de Bergamo, do norte de Itália, já perdeu 12(?) sacerdotes. É fácil, nestas circunstâncias, entrarmos numa lógica de culpabilização e de acusação, como Marta o faz em relação a Jesus: «Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido». Possam estas palavras dizer a dor de tantas famílias enlutadas, com agressividade, diante de Jesus.
Perante a morte de Lázaro, Jesus «comoveu-se profundamente e perturbou-se». Aproximando-se da sua sepultura «chorou». O Senhor chora hoje a perda de cada um dos seus amigos e dos seus irmãos. O Senhor chora hoje a morte de todos os Lázaros contemporâneos, chora com toda a humanidade, com todas as famílias que estão em luto, como o fez com Marta e Maria.
Contemplamos, a partir do relato do evangelho de João, Cristo em lágrimas que connosco e por nós chora, nesta hora contemporânea de dor e de urgência. Nas lágrimas de Jesus são recolhidas e santificadas as lágrimas da humanidade inteira. O Senhor está connosco, silenciosamente. Ele é o Deus que vive connosco e para nós, que morre connosco em nossa morte e morre para nós, para podermos ressuscitar com Ele e vivermos uma vida plena. No meio da dor do luto e da morte, que alguns atravessam no silêncio e na solidão, conforta-nos as palavras que o Senhor hoje, de modo direto, nos diz: «Eu sou a ressurreição e a vida. Quem acredita em Mim, ainda que tenha morrido, viverá; e todo aquele que vive e acredita em Mim nunca morrerá».
Os tempos presentes são, verdadeiramente, apocalíticos. «Apocalíticos» num rigoroso sentido bíblico, que significa reveladores. São tempos reveladores da grandeza e da miséria de cada um de nós, das nossas famílias, das comunidades cristãs, das nações, e de toda a humanidade. Tempos reveladores da capacidade solidária e fraterna ou do egoísmo individualista. Os tempos presentes tiram todas as máscaras com que nos ocultamos e devolvem o verdadeiro rosto do humano, de cada um de nós. Estes nossos tempos convocam-nos à decisão, à ação, ao testemunho, a uma (re)invenção pessoal, familiar, comunitária. Deus fala-nos através dos sinais destes nossos tempos.
A cada um de nós, a cada família, a toda a Igreja o Senhor brada com voz forte: «Lázaro vem para fora».
Pe. António Martins, Domingo V da Quaresma
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2020/03/22 - Uma única humanidade em Cristo (homilia)
Queridos irmãos.
Um silêncio invade as nossas ruas e a nossa própria consciência. As nossas cidades cosmopolitas ficam desertas. A vida económica reduzida ao mínimo; as atividades culturais, eclesiais e escolares suspensas. Nós todos, recolhidos em nossas casas, tentamos agora reorganizar a vida, dar continuidade às atividades pelo teletrabalho, pelas vídeo-aulas, a que se junta a vida da casa, o cuidado dos filhos, dos pais, dos avós, dos doentes.
O espaço familiar concentrado, apertado, pode ser explosivo. Todo o cuidado é pouco connosco mesmos, com os mais próximos, para que o veneno das tensões e das acusações não mine as relações afetivas e familiares. Não temos apenas de nos preservar do contágio, temos também de cuidar da nossa saúde relacional, emocional, mental e espiritual. Tantas frentes, tantos desafios ao mesmo tempo. Podemos vacilar, mas vamo-nos ajudar uns aos outros a manter uma rede intensa e cuidada de afetos, de estímulos, de encorajamento, de confiança.
Todos precisamos de cultivar o diálogo, a partilha de tarefas, tempos de humor e de divertimento. Precisamos de estar informados, mas precisamos também de nos proteger do bombardeamento informativo e da saturação das redes sociais. Saibamos aproveitar este tempo de isolamento para cultivar um profundo silêncio interior, tanto quanto a vida de uma casa cheia agora nos permite. A elaboração do sentido de tudo o que estamos a viver faz-se no diálogo e na partilha de uns com os outros (há histórias e experiências a contar, medos a verbalizar), mas faz-se também nos processos pessoais de profundo recolhimento, de silêncio interior. É nesse recolhimento interior que a nossa consciência se alarga e se ilumina. O mundo novo que desejamos, após o coronavírus, não virá depois, começa já hoje.
Tudo o que vivemos, cada gesto, cada situação, cada emoção, cada reação diz uma verdade de nós mesmos, no presente, a ser acolhida e interpretada na fé, na nossa relação com Deus, que está presente em tudo o que experimentamos. Deus une o que nos parece dividido, une-nos todos, em Cristo, numa única humanidade. O isolamento e o jejum das relações, dos encontros e da comunidade, sendo caminho duro de deserto, não seja desperdiçado. Podemos crescer no conhecimento de nós mesmos, na relação com os que estão próximos, na atenção aos que estão longe, numa oração pessoal mais intensa, onde presentes a Deus e celebrando a sua presença, procuramos reunir e unificar estes tantos pedaços de vida rasgada, estas fraturas na sociabilidade. Assumir e atravessar na fé essa passagem pelo desconhecido, pelo imprevisível, com ousadia, criatividade, resistência e inteira confiança, é tarefa pessoalíssima, que não podemos delegar. Cada um de nós vai fazer a sua travessia interior pelos acontecimentos, dar-lhes um sentido. Este é o nosso Mar Vermelho que vamos atravessar em conjunto, e cada um por si.
Na ausência do pão eucarístico, alimenta-nos o pão da Palavra. Seguimos o evangelho de João que marca agora o ritmo da Igreja a caminho da Páscoa. Aquele homem cego de nascença carregava um destino de culpa e de exclusão; era visto como alguém punido por Deus. Na fórmula longa do evangelho, que não lemos aqui, Jesus diz que essa cegueira não é punição nem castigo de Deus pelos pecados dele ou dos seus pais. As palavras de Jesus em relação ao cego podem ser ditas diretamente para nós, no drama da atualidade. Há que evitar cair na tentação de interpretar o flagelo e o sofrimento como punição de Deus, como se Deus fosse um sádico castigador.
Jesus aponta outro horizonte, o da misericórdia de um Deus que entra na paixão da nossa humanidade. Todas as circunstâncias, todos os acontecimentos são sinais da sua presença que sempre nos acompanha. Podemos ver nos dramas da vida e da história «manifestações» da graça de Deus: a bondade e a solidariedade entre as pessoas, esta unidade no perigo, esta comunhão profunda na dor, esta capacidade de lutarmos por uma causa comum, a confiança e a esperança que nos fazem resistir, a capacidade de nos transcendermos no meio da prova. Porque o bem da humanidade é a glória de Deus. Essa é a ousadia criativa da fé: identificarmos na complexidade do que estamos a viver sinais da presença de Deus e de esperança. Cada um de nós possa dizer como o cego, do profundo da sua situação, por mais difícil que seja: «Eu creio, Senhor».
No tempo presente peçamos e desejemos o dom de abrir-se-nos os olhos. A urgência do presente transporta o grave apelo a um acordar da cegueira e da embriaguez alucinada em que todos estávamos a viver, da superficialidade das relações, da vertigem do consumo, do exacerbado individualismo reinante, da lógica dominante do lucro imediato, da arrogância de uma vontade de dominar tudo e todos. O drama do tempo presente devolve-nos ao realismo da nossa finitude. Somos convocados a crescermos juntos em humanidade, a valorizar a simplicidade, a aceitar a nossa vulnerabilidade. Possa a dor e a angústia que vivemos limpar os olhos do coração. Possa cada um de nós proclamar do profundo da sua inquietação e incerteza: «Agora vejo».
Consola-nos e encoraja-nos o Salmo 23 que recitámos. Lido na presente situação, este Salmo é mesmo Palavra de Deus que nos é diretamente dirigida. Repetíamos no refrão: «O Senhor é meu pastor: nada me falta», quer andemos pelos «prados verdejantes», quer «atravessemos ravinas tenebrosas». E é nesta travessia que todos estamos. Conforta-nos essa certeza atrevida da fé, traduzida em oração de confiança, em esperança corajosa. Possamos dizer, do profundo dos nossos receios e das nossas inquietações: «não temerei nenhum mal, porque Vós estais comigo». Não porque estejamos livres de perigo, mas porque «A bondade e a graça [do Senhor] hão-de acompanhar-me todos os dias da minha vida».
Vivemos tempos difíceis a exigir de todos nós cadeias de solidariedade, de partilha, de compaixão e de consolo. «Há que dar todo o apoio aos grupos mais vulneráveis, como os idosos, evitando de todos os modos que eles tenham que se expor a riscos (fazendo compras por eles, por exemplo)»; «o combate à pandemia exige uma consciência mais apurada do bem comum. Só unidos poderemos superar o desafio» (Nota da Comissão Nacional de Justiça e Paz, 16.03.2020). Muitas famílias com fracos recursos ficam sem apoios; noutras aumenta a instabilidade económica com o encerramento de postos de trabalho. Muitos idosos isolados têm dificuldades acrescidas no acesso à saúde, a medicamentos, a bens essenciais. Os sem-abrigo não têm casa para se isolar. Muitas redes de ajuda e de partilha, com o encerramento dos restaurantes e das lojas, cessam de existir. Muitos voluntários regressam também a casa. Ao risco de morte real acrescenta-se o risco de morte social. Os mais vulneráveis são também vítimas colaterais do vírus. Possa o estado de emergência tornar-se (e tornar-nos) num estado de urgência solidária e fraterna.
Se este nosso tempo presente é de risco, é também de promessa. Procuremos encontrar e ativar a esperança no medo, a cooperação no isolamento, a vida na morte, o encorajamento no desânimo e na exaustão. Esta é uma hora densa da nossa história contemporânea. É a hora da nossa reinvenção pessoal e comunitária, como nações e como humanidade global. Esta é uma oportunidade para um acordar de consciências.
Como nos apela Paulo: «Desperta, tu que dormes».
Pe. António Martins, Domingo IV da Quaresma
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2020/03/15 - Quarentena na Quaresma (homilia)
Queridos Irmãos
Vivemos tempos estranhos, a desafiar resistências, criatividade, solidariedade, responsabilidade cívica, renovado sentido eclesial. Em tempos de recolhimento e de restrição de contactos sociais, de modo a conter a propagação da pandemia do coronavírus, vivemos hoje uma eucaristia insólita: sem assembleia, sem a vossa presença corpórea. Estamos aqui, em nome de todos vós e em profunda comunhão com todos nós, os estritamente necessários para tornar possível esta celebração com o mínimo de dignidade.
A nossa comunidade da Capela do Rato habitou-se a cumprir-se como um lugar de encontro festivo, de partilha de afetos, de celebração familiar, apertadinha, transparente, autêntica, próxima. A dimensão terapêutica da bênção tem sido consolo e conforto para tantas pessoas feridas na vida, dando passos de recomeço e de futuro. Habituamo-nos ao respirar de cada um de nós, lado a lado, corpo a corpo; por vezes o espaço é estreito para nos acolher, e amontoamo-nos: há sempre lugar para mais um. O espaço e o coração dilatam-se.
Hoje nada disto acontece. A nossa comunidade está, literalmente, em diáspora, recolhida em suas casas, evitando contactos. Estamos em quarentena em pleno tempo da Quaresma: estranha coincidência a desafiar o sentido da nossa experiência de crentes, a interpelar-nos. Vivemos, forçados, um jejum, talvez mesmo prologando, da vida comunitária, do encontro de irmãos e irmãs como corpo eclesial à volta do corpo eucarístico de Cristo. Não podemos deixar de reconhecer que tudo isto é para nós de uma violência simbólica e real: ficamos ausentes de construir e viver a dimensão visível e sacramental da Igreja, decisiva para a nossa identidade e para a nossa viva concreta, pessoal e comunitária.
Jejuamos do corpo de Cristo eucarístico. Jejuamos do corpo da comunidade, jejuamos do corpo dos irmãos, renunciando a contactos, afetos e sociabilidade. Renunciamos a estar juntos. Tantos jejuns, e talvez tão prolongados; tantas e dolorosas renúncias. Necessárias e urgentes em nome do bem maior que a todos une e que, agora, depende da cooperação responsável de todos: a saúde pública através de comportamentos sanitários de pessoas responsáveis. Porque comunidade eclesial e comunidade civil partilham o mesmo destino de esperanças e alegrias, de angústias e tristezas. E este é um momento em que esse destino comum se experimenta de modo tão concreto, tão urgente e tão corresponsável. Comparados com estas forçadas circunstâncias de jejum, todos os outros jejuns que tínhamos imposto a nós mesmos ou nas nossas famílias parecem insignificantes. Vivemos, na vida social e na vida eclesial, tempos de excecionalidade, a exigir grandeza, rigor e profundidade.
Não nos vamos desmobilizar, não nos vamos render à angústia e ao medo. Na excecionalidade do momento presente somos convidados a ativar outros recursos, talvez mais profundos, mais radicais, da nossa experiência crente, que nem sempre estamos habituados a valorizar: estamos unidos por laços tão intensos e tão profundos que ultrapassam as fronteiras do tempo e do espaço. A Igreja é, em sua radicalidade, em seu mistério, uma comunhão mística de crentes. Unidos pelo Espírito Santo, todos somos uma só humanidade em Cristo. Há comunhão invisível que nos funda, que é o amor fecundo/vivificante do nosso Deus.
Este tempo de jejum comunitário e eucarístico seja para nós o «tempo favorável» para nos sentirmos em comunhão profunda uns com os outros, com todos os irmãos e irmãs ausentes, com todos os que sofrem e se sentem mais ameaçados em sua vulnerabilidade. Criamos uma rede orante, cumpramo-nos, em nossas casas, no silêncio dos nossos quartos, em nossas famílias, como comunidade orante na diáspora. Este jejum forçado pode ajudar-nos a viver solidários com todos os irmãos e irmãs que, em diversas circunstâncias, vivem a sua fé em clandestinidade, resistem solitários e isolados, silenciosamente recolhidos em suas casas.
O que para nós hoje é exceção forçada é o quotidiano de tantos irmãos e irmãs nossos. A privação da nossa comunhão em comunidade seja, para todos e cada um de nós, um modo de ativarmos, no silêncio dos nossos quartos, na tranquilidade de nossas casas, quando não há algazarra e conflitos entre crianças e adultos, uma comunhão na oração. Saibamo-nos cumprir, em nossas casas, como comunidade orante. E sairemos mais reforçados deste tempo de prova. O deserto do nosso jejum hoje tornar-se-á, no futuro, um jardim bem irrigado e fecundo.
Mais uma vez, em tempos de diáspora a Palavra de Deus é o alimento que temos mais à mão: agora, privados do pão da eucaristia, só temos, para a maioria de nós, o pão da Palavra. Na solidão dos nossos quartos, em família procuremos cultivar a leitura e a meditação dos textos das leituras bíblicas de domingo ou diárias. Há tantos meios informáticos que nos facilitam o acesso. Basta um telefonema a um neto, a um filho. Começamos neste III Domingo da Quaresma um intenso itinerário para a Páscoa através do evangelho de S. João, marcado pela simbólica da sede e da água, da cegueira e da luz, da morte e da ressurreição. Tomamos do evangelho de hoje dois pormenores: Cristo e a mulher samaritana encontram-se, à beira do poço, pelos caminhos da privação e da carência. Um e outro não se bastam a si mesmos; mas um e outro têm dons para partilhar. Cristo, cansado da viagem, sem balde e com sede, é um pedinte de água; a Samaritana, de bilha e coração vazio, é uma sedenta de amor.
A carência e a necessidade são a base primeira da solidariedade; na fome, na sede e nos afetos, precisamos, vitalmente, uns dos outros. Neste tempo de saúde ameaçada, de urgente necessidade de privação de contactos e de sociabilidade, vamo-nos, certamente, sentir mais carentes e necessitados uns dos outros. As nossas bilhas vão estar mais vazias. Estamos isolados mas não indiferentes, privados da sociabilidade mas não da compaixão e da solidariedade. Porque, para uns poderem estar em casa, outros precisam de reabastecer mercados, garantir a segurança pública e os primeiros socorros. Está na primeira linha o pessoal sanitário (médicos, enfermeiros, bombeiros), que também não está imune ao vírus.
Neste tempo de distância física em relação aos espaços comunitários, vamo-nos cumprir todos como um grande «templo invisível», unidos para além das fronteiras do tempo e do espaço. Os lugares e os corpos são determinantes para o concreto da experiência cristã. Mas há também, a partir do evangelho hoje lido, uma relatividade dos espaços sagrados (os lugares sagrados não são para absolutizar). Em nome de uma adoração a Deus, «em espírito e verdade», na limpidez do coração, na sinceridade do encontro, na nossa verdade mais profunda. E cada pessoa, em seu próprio corpo, cada família (Igreja doméstica) pode-se cumprir como esse lugar sagrado adorante em espírito e verdade. «Vai chegar a hora – e já chegou – em que os verdadeiros adoradores hão-de adorar o Pai em espírito e verdade, pois são esses os adoradores que o Pai deseja». A nossa hora chegou, é esta: não a escolhemos, não a quisemos, mas queremo-la viver em atitude orante, «em espírito e verdade».
Quando nos voltarmos a reencontrar, livres de perigo, reconstituídos como sociedade e como comunidade crente, celebraremos com júbilo e intensa festa a nossa ressurreição: o Senhor que está vivo no meio de nós, a sua presença ressuscitada e eucarística de pão repartido, a alegria afetiva do nosso reencontro, para nos voltarmos a abraçar, a nos acolher corpo a corpo, sem medos nem receios. Então a nossa vida comunitária terá ainda mais valor, saber-nos-á melhor, porque dela fomos forçados a nos privar e o nosso desejo aumentou. Então diremos, como a Samaritana: «Senhor, – suplicou a mulher – dá-me dessa água, para que eu não sinta mais sede».
Que, entretanto, nos possam consolar as palavras de Paulo: «A esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado».
Pe. António Martins, Domingo III da Quaresma
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2020/03/09 - Curso “O prazer de ler e pensar” – Sophia de Mello Breyner Andresen
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2020/03/08 - Evitar o contágio do medo (homilia)
Queridos Irmãos
Íamo-nos habituando e interiorizando que o viral era virtual. Estávamos habituados que tudo podia ser acético, higiénico, e o virtual da rede ajudava-nos a falar de contaminação de conhecimento, de notícias e vídeos virais na net. Assim crescíamos em nossas ilusões, como se viral não tivesse virulência, e o vírus fosse coisa inofensiva, uma potencialidade das redes. A epidemia do coronavírus, que se propaga sem fronteiras, obriga-nos a repensar que o viral se tornou mesmo real. O vírus, que segundo as estatísticas é de baixa mortalidade mas de elevado grau de contágio, atravessa fronteiras, não se deixa capturar pela rígida vigilância dos aeroportos, não diferencia espaços laicos de religiosos. Propaga-se, transmite-se, contagia silenciosamente.
De repente acordamos atónitos e angustiados, porque o viral, com a sua virulência, é uma realidade possível perto de nós e até dentro de nós. Uma realidade a exigir cuidados, prudência nos contactos e nas sociabilidades, medidas sanitárias adequadas. De repente, o medo do outro altera o nosso quotidiano, impõe quarentenas, contenção de gestos e de expressões de afeto, distância nas relações sociais, a evitar contacto o mais possível. O corpo do outro, da pessoa mais próxima, do vizinho, do colega, de quem connosco segue no mesmo transporte, frequenta a mesma escola, o mesmo espaço público pode ser corpo transmissor, que contagia e infeta.
Não nos deixemos contaminar e infetar pelo medo do outro, pela angústia da infeção. Se a contaminação é dimensão séria, preservar uma serenidade interior, uma sanidade de consciência e de reflexividade, sem entrar nas ondas emotivas irracionais, está ao alcance de todos nós. Alertava, no princípio da semana, Andrea Ricardi, o fundador da comunidade de Santo Egídio: «Não à propagação da epidemia do medo». A prudência é necessária, mas não nos deixemos dominar pelo medo.
Este tempo de Quaresma, com o seu apelo à interioridade, pode ser a oportunidade, no contexto social e sanitário que estamos a atravessar, para cuidar de não nos deixarmos contaminar pelo medo. Podemos evitar o contágio, mas não sacrifiquemos a nossa identidade comunitária de cristão, o encontro em assembleia, a capacidade de rezar juntos e de agir juntos. Os irmãos mais fragilizados, as pessoas idosas mais vulneráveis não fiquem ainda mais isoladas. Não deixemos que o vírus do individualismo e do isolamento triunfe sobre a nossa capacidade de relação e de encontro. Para o melhor e para o pior, somos todos interdependentes, estamos ligados uns aos outros. Somos corpo exposto permanentemente à ameaça. Porque viver é conviver, porque somos carne.
Sublinho a passagem do evangelho. Jesus precisa de tranquilizar os seus discípulos, após o anúncio da sua paixão em Jerusalém e da reação violenta de recusa por parte de Pedro. Os discípulos estão em crise; Jesus fala-lhes de um destino de perigo e de morte, mas também de triunfo de vida (ressurreição) que eles não entendem. Era-lhes, mentalmente, impossível aceitar e seguir um Messias exposto ao sofrimento e à morte. Jesus faz com o núcleo duro dos discípulos (Pedro, Tiago e João) uma pedagogia da consolação. Uma cura para a crise no seguimento. Introdu-los na sua intimidade com o Pai, na sua eterna relação de Filho muito amado. Isso provoca nos discípulos uma perplexa ambiguidade: ao mesmo tempo dá-lhes gozo e temor, entram na luz e na sombra da nuvem.
O que ali experimentam no monte desconcerta-os, é uma experiência excessiva. Depois da transfiguração luminosa («o seu rosto ficou resplandecente como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz») são invadidos e envolvidos por uma nuvem. A luz dá lugar a uma palavra dita na obscuridade: «Este é o meu Filho muito amado, no qual pus toda a minha complacência. Escutai-O». «Ao ouvirem estas palavras, os discípulos caíram de rosto por terra e assustaram-se muito. Então Jesus aproximou-Se e, tocando-os, disse: “Levantai-vos e não temais”».
No meio dos nossos medos e angústias contemporâneos, é a nós que Jesus hoje nos diz: «Levantai-vos e não temais». Não vos deixeis vencer pelo medo, pela angústia do contágio. Pela incerteza do presente, pelos prejuízos económicos, pela falta de funcionamento das escolas e das universidades. Atentos, prudentes, ativos, mas não vencidos pelo medo; por aquele vírus interior que nos pode desmobilizar dos laços sociais, da capacidade de compaixão, de solidariedade. Possa ser a exigência deste nosso tempo um tempo oportuno, não para fugirmos dos desafios, nem nos isolarmos, mas para crescermos em confiança e em solidariedade, em compaixão e em cuidado pelas pessoas mais vulneráveis. E até há um toque de Jesus, uma expressão corpórea, um sinal concreto de que aquelas palavras são encarnadas, dirigidas a pessoas concretas.
Aquela experiência mística que os discípulos vivem, introduzidos na eterna relação de amor entre o Filho e o Pai em sua comunhão divina, é narrada em termos de beleza, de gozo, de vida transfigurada, luminosa e resplandecente: eles viram o invisível, vislumbraram um rasgo divino luminoso em Jesus de rosto e vestes transfiguradas. Receberam ali a graça do inesperado, do imprevisível. No meio do medo e da crise pode haver beleza e encontrar-se luz; no meio da doença e do sofrimento pode haver transfiguração; no meio de relações rasgadas pode-se encontrar sinais de transparência, de consolação e de pacificação. A transfiguração de Jesus diante dos discípulos diz-nos uma possibilidade da ação e da presença de Deus em nossas vidas: há rasgos de beleza, traços luminosos, ainda que fugazes, ainda que breves. São esses traços, por vezes tão subtis, que nos revelam que a beleza nunca fica fora da nossa vida. Ela vem, acontece, não pode deixar de se manifestar.
A realidade não está encerrada na obscuridade, não está bloqueada pela crise, pelo medo. Ficamos encantados e comovidos com o testemunho sentido de Pedro: «Senhor, como é bom estarmos aqui!». Estejamos abertos à graça do presente, à beleza que se manifesta nas pequenas coisas quotidianas, na surpresa dos encontros e das pessoas. A beleza é uma possibilidade sempre presente em nossas vidas: a visita de outra dimensão, do não quantificável, do que não é eficaz nem programado, a visita do gratuito, do excessivo, do intenso. A beleza diz-nos a abertura da vida ao divino, ou a revelação do divino a nós no traço de um rasgo de luz, de um rosto luminoso e sorridente.
Uma última referência ao belo texto da primeira leitura, a convocação que Deus fez a Abraão para deixar enraizamentos geográficos, laços familiares, carreira comercial e tribal de sucesso e partir em nome de um futuro prometido, ser dom para outros (bênção para os povos) e pai de uma nova tribo. Abraão saiu por convite livremente aceite; o seu foi um caminho de liberdade, em nome de uma promessa futura. Podemos ver na história de Abraão a parábola, ao contrário, de tantos homens, mulheres e crianças que, pela violência, pela guerra, pela fome, pela miséria, deixam os seus países de origem, atravessam, em risco de vida, terras e mares, são vítimas de redes de tráfico, ficam retidos nas fronteiras em campos de acolhimento que se tornam campos de concentração. Na longa espera e infindáveis burocracias de documentos vão perdendo a esperança na sua terra prometida. A abertura das fronteiras da Turquia aos refugiados coloca as fronteiras europeias sobre pressão. Estamos numa crise humanitária a exigir rápidas soluções: porque há vidas humanas a salvar e a preservar. Mas se a Europa só se quer preservar da avalanche de refugiados preservando a sua qualidade de vida, não é apenas uma crise humanitária que está a acontecer; é a crise da nossa própria humanidade, da nossa capacidade de compaixão e de solidariedade. A crise que pode ser o fim do humanismo fundador da União Europeia.
Tantos medos, tantos riscos e tantos perigos em nossos tempos. Mas também tantas oportunidades de beleza, de esperança, de solidariedade. De testemunho da nossa humanidade. Porque não podemos deixar de acreditar e de testemunhar: «a terra está cheia da bondade do Senhor».
Pe. António Martins, Domingo II da Quaresma
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2020/03/02 - Curso “O prazer de ler e pensar” – Agustina Bessa-Luís
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2020/03/01 - Com Cristo nos nossos desertos (homilia)
Queridos Irmãos
Somos guiados pela Palavra de Deus: ela é o nosso critério de vida, a nossa orientação. Nestes domingos da Quaresma, os textos bíblicos que ouvimos, do Antigo e do Novo Testamento, são uma preciosidade. Foram mesmo escolhidos a dedo para serem nosso alimento, nosso critério de discernimento. Peregrinamos, neste tempo de Quaresma, ao ritmo da Palavra de Deus, que cada um de nós acolhe no contexto concreto de nossas vidas.
A vida cristã é uma experiência corpórea. Tanto em termos pessoais como comunitários. Somos sempre corpo. Cada pessoa é corpo singular, cada comunidade forma um corpo de corpos concretos. Cada um de nós, de corpo presente, dá corpo à Igreja. Interagimos uns com os outros. Cada um de nós tem uma história única, tem um passado, um presente e um futuro. A Igreja, humanamente falando, a Igreja é uma realidade concreta porque é a nossa realidade, na grandeza e na miséria de cada um de nós. Somos corpo edificado e transfigurado pelo Espírito, que nos une em nossas diferenças. Somos corpo que se relaciona através dos sentidos: cheiramos, ouvimos, comemos, tocamos, vemos. Toda a nossa vida, as nossas relações, o nosso acontecer no mundo passam pela sensibilidade.
A leitura de hoje do livro dos Génesis oferece-nos, com grande beleza e realismo, uma antropologia existencial dos sentidos. Viver é respirar. A vida é esse grande acontecimento de respiração, do nascer ao morrer. Entramos no mundo por uma inspiração (esse choro inicial pelo qual o nosso sistema respiratório começa a funcionar) e deixamos o mundo expirando. A nossa vida é um processo contínua de inspirações e expirações. Somos a nossa respiração. Precisamos de um bom ar, de um bom ambiente; precisamos também de dilatar os pulmões, de respirar fundo, de tranquilizar a nossa própria respiração, por vezes tão agitada, tão tensa, tão oprimida.
Possa a Quaresma ser um tempo oportuno para dilatar e distender a nossa respiração, para respiramos com mais folgo e maior profundidade. O ar que respiramos é graça de Deus que nos faz viver: «O Senhor Deus formou o homem do pó da terra, insuflou em suas narinas um sopro de vida, e o homem tornou-se um ser vivo». A respiração liga-nos a todos os seres vivos que respiram, na comunhão vital do ar. Saibamos agradecer o dom da nossa respiração, e criar condições de um ar/ambiente menos poluído: «Todo o ser que respira louve o Senhor» (Sl 150,6).
Ainda na primeira leitura do livro do Génesis encontramos essa passagem fascinante e problemática sobre a origem misteriosa do mal, que nos fascina e dilacera, que nos atrai e destrói. No meio do jardim está a árvore da vida. Sobre a mesma Deus tinha dito: «podeis comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comerdes, morrereis». Deus dá-nos uma abundância de árvores de fruto, mas ao mesmo tempo impõe-nos limites. Limitando o nosso desejo, Deus preserva-nos de uma mortal voracidade. Comer tudo significa matar e acabar por morrer. A disciplina do desejo e dos limites preserva a vida. A salvação da nossa existência está na permanente disciplina do desejo, nessa incessante aprendizagem a viver com os limites, e a salvaguardar a vida das outras criaturas.
Mas há uma dificuldade em aceitar os limites. O fruto daquela árvore suscita um desejo irresistível; aparece como belo e bom: «A mulher viu então que o fruto da árvore era bom para comer e agradável à vista, e precioso para esclarecer a inteligência». Quem é que não queria este fruto? Quem é que não queria uma coisa bela, atraente, fascinante, que entra pelos olhos dentro, está acessível à apropriação da mão, apetece tocar e comer. Esta é a dimensão enigmática do mal, que vem a nós e é experimentado por nós como dimensão atraente e fascinante, irresistível. Uma proposta de vida sedutora, de prestígio, uma bela carreira internacional sacrificando família, a possibilidade de uma empresa com lucros garantidos sem custos sociais, a novidade de uma relação apaixonada e arrebatadora atrai-nos e fascina-nos. É o fruto sedutor. A sedução do mal, com a aparência fascinante de bem e de belo, fratura-nos e dilacera-nos por dentro.
E já estamos no campo das tentações de Jesus no deserto, outro modo de apresentar o fruto sedutor da árvore, agora em propostas de vida bem sucedidas. O campo de combate de Jesus é uma dimensão permanente da nossa existência de crentes; a de um combate sem tréguas ao longo da vida. Diz o tentador a Jesus: «Se és Filho de Deus, diz a estas pedras que se transformem em pães». Parece um jogo de crianças, que bem recordamos nas disputas da nossa infância e adolescência quando alguém nos desafiava, provocando: «Não és homem não és nada….»; «mostra que és capaz». Todos nós queremos mostrar que somos homens ou mulheres com força e capacidade. Porque dar parte de fraco é humilhante. O ego narcisista afirma-se sobre o eu profundo (a verdade da consciência).
A tentação de Jesus, e nossa, está em mostrar que é capaz, que é Filho de Deus, com força e poder para desafiar e superar os limites, atravessar a fome com a abundância de pão. Podemos dizer que a vitória de Jesus foi resistir a não sair dos limites da normalidade da humanidade, a não querer para ele, e por ele mesmo, excecionalidades, vida facilitada e diferenciada. Também Jesus aprendeu a disciplinar o seu desejo de comer, de possuir; também aprendeu a dominar o seu narcisismo: «‘Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus’». Vivemos de outros alimentos; vivemos do pão da relação, dos amigos, da natureza, do silêncio, das leituras. Tudo isso é nosso pão quotidiano. Tudo isso é Palavra que sai da boca de Deus e nos alimenta.
Jesus é também nosso Mestre nesta disciplina do ver e do comer. O tempo da Quaresma aí está para ser vivido como uma oportunidade a (re)educarmos o nosso desejo. Apetece-nos tantas coisas, mas precisamos de experimentar a renúncia, de atravessar os nossos desertos de privação, de fome, de solidão, de impotência, de ausência, fazendo a radical experiência dos limites e da vulnerabilidade. Esses lugares desérticos são terríveis, tremendos lugares de tentação, que nos põem à prova, onde todas as seguranças e esperanças são questionadas, quando não demolidas.
O Espírito Santo conduz Jesus ao deserto para ser tentado. Confesso que não percebo bem esta passagem do evangelho… O Espírito conduz-nos e está presente no lugar da prova, da fratura, do confronto, do perigo entre a vida e a morte. O deserto da tentação não fica fora de Deus; e para aí vamos e aí estamos marcados pela presença do Espírito. Não combatemos sozinhos, meramente entregues às nossas forças. O Espírito Santo é nosso aliado, e talvez combata até por nós, quando caímos mesmo em tentação.
Termino referindo a segunda leitura, da Epístola de Paulo aos Romanos. A experiência do mal pode ser devastadora, dilacerante, mortal até, mas não é uma fatalidade. O mal não tem a última palavra. Se Adão é o símbolo universal da humanidade ferida pelo pecado e pela morte, há um outro Adão, Jesus Cristo, que nos garante o reino da vida: «Se a morte reinou pelo pecado de um só homem, com muito mais razão, aqueles que recebem com abundância a graça e o dom da justiça reinarão na vida por meio de um só, Jesus Cristo». Onde abundou o pecado, superabundou a graça.
É nesta esperança que nos confessamos como pecadores, mas sobretudo como filhos e filhas que tudo esperam de Deus em Cristo.
Pe. António Martins, Domingo I da Quaresma
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Fevereiro
2020/02/29 - Dia de Paragem de Quaresma
Publicam-se os textos que serviram de apoio para do dia de paragem de Quaresma, vivido pela Comunidade da Capela do Rato, no dia 29 de Fevereiro, no Convento Franciscano da Luz.
Na parte da manhã, a proposta de meditação «Educar o desejo: comer e tocar (a boca e a mão)» foi uma reflexão existencial sobre o jejum.
Na parte da tarde, a proposta de meditação «Sonhar o futuro do mundo e da Igreja, com o Papa Francisco (por uma conversão ecológica e sinodal)» inspirou-se na exortação apostólica do Papa Francisco «Querida Amazónia».
O dia terminou com a celebração da via sacra, no jardim do convento, por entre flores, árvores e pássaros. Seguimos o texto da Via Sacra no Coliseu de Roma, do ano passado, escrita pela Ir. Eugenia Bonett, italiana, que tem consagrado a sua vida à luta contra a escravatura feminina e ao acolhimento de mulheres refugiadas e imigradas em Roma (pode consultar aqui as meditações da Via Sacra)
Meditação da Manhã – Educar o desejo: comer e tocar (a boca e a mão)
- Atravessar a própria fome (tentação da posse e da apropriação/ingestão)
«O homem, enquanto homem, não se nutre apenas de comida, mas de palavras, de gestos trocados, de relações, de amores, de tudo o que dá sentido à vida nutrida e sustentada pela comida (…). Com o jejum aprendemos a conhecer e a moderar os nossos apetites através da moderação do apetite fundamental e vita: a fome, e aprendemos a disciplinar as nossas relações com os outros, com a realidade externa e com Deus, relações sempre tentadas pela voracidade. O jejum é ascese da necessidade e educação do desejo» (Enzo BIANCHI, Le parole della spiritualità, Rizzoli, Milão 1999, 157-158)
Não aceitar os limites mata: Porque comer devora, e tocar destrói:
«Vendo a mulher que o fruto da árvore devia ser bom para comer, pois era de atraente aspeto e precioso para esclarecer a inteligência, agarrou do fruto, comeu, deu dele também a seu marido, que estava junto dela, e ele também comeu. Então, abriram-se os olhos aos dois e, reconhecendo que estavam nus, coseram folhas de figueira umas às outras e colocaram-nas, como se fossem cinturas, à volta dos rins» (Gn 3,6-7).
Jejuar, uma forma de educar o desejo (a carência e a fome). Aceitar a carência para acolher a alteridade e a diferença:
«Então, o Espírito conduziu Jesus ao deserto, a fim de ser tentado pelo diabo. Jejuou durante quarenta dias e quarenta noites e, por fim, teve fome. O tentador aproximou-se e disse-lhe: «Se Tu és o Filho de Deus, ordena que estas pedras se convertam em pães.» Respondeu-lhe Jesus: «Está escrito: Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.» (Mt 4,1-4).
Opção por um estilo de vida frugal:
«Deparamo-nos no dia a dia com o apelo ao consumo desenfreado, tropeçamos na dependência de comprar coisas e objetos para fazer face aos vazios da nossa alma. Experimentamos a fome de acumular coisas. De um modo determinista ciclicamente sentiremos de novo a mesma fome… como num eterno retorno, um ciclo destrutivo sem fim.
Mas essa “fome” pode ser vencida pela confiança na Palavra de Deus, Ele proverá o alimento na hora certa, da forma certa, sem inverter a realidade das coisas com os valores inerentes a ela: “não vos preocupeis… olhai os lírios do campo… as aves do céu… a cada dia basta seu mal; o amanhã cuidará de si mesmo” (Mt 26,26). Em contraponto à fome de ter, em jeito de transformação escolhamos uma frugalidade de vida: vivamos com menos e sejamos muito; tenhamos consciência de que os recursos do planeta são limitados, portanto há que usar responsavelmente aquilo que nos foi dado; façamos face às alterações climáticas através do compromisso com uma vida mais simples, reduzida ao essencial, em que deixar de “ter” se pode transformar numa forma de “ser” mais e melhor. Escolhamos o “decrescimento” como forma de fazer face ao crescimento desenfreado» (Reflexão da Comissão Nacional de Justiça e Paz, Quaresma de 2020).
- O tocar da mão: entre a ternura e o abuso:
O tato é o mais elementar e visceral, e ao mesmo tempo, o mais sublime e delicado de todos os sentidos. Pelo tato as coisas, o mundo e os outros entram em relação connosco: tocam o nosso corpo, e pelo nosso corpo são tocadas. Pelo tato acontece o contacto, a relação entre os corpos. No encontro de pele expressa-se o encontro íntimo.
Mas o tato também pode ser apropriação, manipulação, violência, posse, instrumentalização. Cada gesto, cada toque tem a sua ambiguidade; é suscetível de interpretações e reações opostas. Daí a sua fragilidade e delicadeza. Pelo tato acontece a ternura, mas também o abuso, a violência, a invasão íntima. Por onde passa a fronteira? Quem a pode definir? Caminho pessoal e permanente, sem tréguas, de discernimento, de combate.
O toque como abuso:
« E aconteceu que uma tarde David levantou-se da cama, pôs-se a passear no terraço do seu palácio e avistou dali uma mulher que tomava banho e que era muito formosa. David procurou saber quem era aquela mulher e disseram-lhe que era Betsabé, filha de Eliam, mulher de Urias, o hitita. Então, David enviou emissários para que lha trouxessem. Ela veio e David dormiu com ela, depois de purificar-se do seu período menstrual. Depois, voltou para sua casa. E, vendo que concebera, mandou dizer a David: «Estou grávida.» (2 Sam 11,2-5)
O toque como afeto e ternura:
«Um fariseu convidou-o para comer consigo. Entrou em casa do fariseu, e pôs-se à mesa. Ora certa mulher, conhecida naquela cidade como pecadora, ao saber que Ele estava à mesa em casa do fariseu, trouxe um frasco de alabastro com perfume. Colocando-se por detrás dele e chorando, começou a banhar-lhe os pés com lágrimas; enxugava-os com os cabelos e beijava-os, ungindo-os com perfume.» (Lc 7, 36-38)
Avaliar e discernir o próprio tocar e contacto à luz da Palavra de Deus, entre sombras e luz, promessas e perigos. Cada gesto é ambíguo; pode ser expressão de bondade e de cuidado, ou de invasão e agressão.
Ouça aqui a meditação da manhã
Meditação da Tarde – Sonhar o futuro do mundo e da Igreja, com o Papa Francisco (por uma conversão ecológica e sinodal). Passagens selecionadas da exortação «Querida Amazónia» (QA)
- A indignação como resistência à convivência com o mal
«É preciso indignar-se, como se indignou Moisés (cf. Ex 11, 8), como Se indignava Jesus (cf. Mc 3, 5), como Se indigna Deus perante a injustiça (cf. Am 2, 4-8; 5, 7-12; Sal 106/105, 40). Não é salutar habituarmo-nos ao mal; faz-nos mal permitir que nos anestesiem a consciência social, enquanto «um rasto de delapidação, inclusive de morte, por toda a nossa região, (…) coloca em perigo a vida de milhões de pessoas, em especial do habitat dos camponeses e indígenas». Os casos de injustiça e crueldade verificados na Amazónia, ainda durante o século passado, deveriam gerar uma profunda repulsa e ao mesmo tempo tornar-nos mais sensíveis para também reconhecer formas atuais de exploração humana, violência e morte» (QA, 15).
- A sensibilidade de consciência para discernir (e corrigir) os vícios autodestrutivos
«Muitas vezes deixamos que a consciência se torne insensível, porque “a constante distração nos tira a coragem de advertir a realidade dum mundo limitado e finito”. Se nos detivermos na superfície, pode parecer “que as coisas não estejam assim tão graves e que o planeta poderia subsistir ainda por muito tempo nas condições atuais. Este comportamento evasivo serve-nos para mantermos os nossos estilos de vida, de produção e consumo. É a forma como o ser humano se organiza para alimentar todos os vícios autodestrutivos: tenta não os ver, luta para não os reconhecer, adia as decisões importantes, age como se nada tivesse acontecido”» (QA, 53).
- Qual a nossa voz profética?
«O diálogo não se deve limitar a privilegiar a opção preferencial pela defesa dos pobres, marginalizados e excluídos, mas há de também respeitá-los como protagonistas. Trata-se de reconhecer o outro e apreciá-lo “como outro”, com a sua sensibilidade, as suas opções mais íntimas, o seu modo de viver e trabalhar. Caso contrário, o resultado será, como sempre, “um projeto de poucos para poucos”, quando não “um consenso de escritório ou uma paz efémera para uma minoria feliz”. Se tal acontecer, “é necessária uma voz profética” e, como cristãos, somos chamados a fazê-la ouvir» (QA, 27).
- Cultivar o sentido estético e contemplativo
«Despertemos o sentido estético e contemplativo que Deus colocou em nós e que, às vezes, deixamos atrofiar. Lembremo-nos de que, “quando não se aprende a parar a fim de admirar e apreciar o que é belo, não surpreende que tudo se transforme em objeto de uso e abuso sem escrúpulos”. Pelo contrário, se entrarmos em comunhão com a floresta, facilmente a nossa voz se unirá à dela e transformar-se-á em oração: “Deitados à sombra dum velho eucalipto, a nossa oração de luz mergulha no canto da folhagem eterna”. Tal conversão interior é que nos permitirá chorar pela Amazónia e gritar com ela diante do Senhor» (QA, 56).
- O carisma das mulheres na Igreja
«Numa Igreja sinodal, as mulheres, que de facto realizam um papel central nas comunidades amazónicas, deveriam poder ter acesso a funções e inclusive serviços eclesiais que não requeiram a Ordem sacra e permitam expressar melhor o seu lugar próprio. Convém recordar que tais serviços implicam uma estabilidade, um reconhecimento público e um envio por parte do bispo. Daqui resulta também que as mulheres tenham uma incidência real e efetiva na organização, nas decisões mais importantes e na guia das comunidades, mas sem deixar de o fazer no estilo próprio do seu perfil feminino» (DA, 103)
- Cultivar o diálogo, superar a dialética do confronto
«O conflito supera-se num nível superior, onde cada uma das partes, sem deixar de ser fiel a si mesma, se integra com a outra numa nova realidade. Tudo se resolve “num plano superior que conserva em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste”. Caso contrário, o conflito fecha-nos, “perdemos a perspetiva, os horizontes reduzem-se e a própria realidade fica fragmentada”» (DQ, 104).
«Isto não significa de maneira alguma relativizar os problemas, fugir deles ou deixar as coisas como estão. As verdadeiras soluções nunca se alcançam amortecendo a audácia, subtraindo-se às exigências concretas ou buscando culpas externas. Pelo contrário, a via de saída encontra-se por «transbordamento», transcendendo a dialética que limita a visão para poder assim reconhecer um dom maior que Deus está a oferecer. Deste novo dom recebido com coragem e generosidade, deste dom inesperado que desperta uma nova e maior criatividade, brotarão, como que duma fonte generosa, as respostas que a dialética não nos deixava ver» (QA, 105).
- A força que nos une
«Num verdadeiro espírito de diálogo, nutre-se a capacidade de entender o sentido daquilo que o outro diz e faz, embora não se possa assumi-lo como uma convicção própria. Deste modo torna-se possível ser sincero, sem dissimular o que acreditamos, nem deixar de dialogar, procurar pontos de contacto e sobretudo trabalhar e lutar juntos pelo bem da Amazónia. A força do que une a todos os cristãos tem um valor imenso. Prestamos tanta atenção ao que nos divide que, às vezes, já não apreciamos nem valorizamos o que nos une. E isto que nos une é o que nos permite estar no mundo sem sermos devorados pela imanência terrena, o vazio espiritual, o cómodo egocentrismo, o individualismo consumista e autodestrutivo» (QA, 108)
Ouça aqui a meditação da tarde
2020/02/17 - Curso “O prazer de ler e pensar” – Mário de Carvalho
Mais informações sobre o curso aqui.
2020/02/10 - Curso “O prazer de ler e pensar” – Thomas Mann
2020/02/03 - Curso “O prazer de ler e pensar” – Dulce Maria Cardoso
2020/02/02 - A riqueza dos anos (homilia)
Queridas Irmãs
Queridos Irmãos
A festa de hoje da apresentação do Senhor une o Natal à Páscoa. O texto do evangelho de Lucas pertence ao ciclo da infância de Jesus. Cristo ressuscitado é luz que vence as trevas da morte. É isso que celebramos na Vigília pascal, de velas acesas A profecia dramática de Simeão dirigida a Maria, «uma espada trespassará a tua alma», foi interpretada, na piedade medieval, como pré-anúncio das dores de Maria, junto à cruz, pela perda do Filho. Neste acontecimento da infância de Jesus, que bem poderemos chamar natalício, já está prefigurado o drama da cruz («sinal de contradição») e a luz radiosa da madrugada da páscoa. Vigilantes na noite da dor, da dúvida, do desânimo, da inquietação, levamos a luz frágil da fé acesa, a força interior do Espírito que, continuamente, pedimos quais pobres necessitados. Para que os nossos dias possam ser vividos com esperança resistente, e expectante serenidade.
Se quisermos dar um cenário cinematográfico ao evangelho de hoje, podemos imaginar um jovem casal com um bebé nos braços a subir a imponente escadaria do templo de Jerusalém, ricamente adornado em todo o seu esplendor. Recordamos que Lucas privilegia as periferias, as marginalidades, as pessoas de condição pobre. Jesus nasce numa periférica cidade, Belém, por acaso, numa circunstância de passagem. Nasce num estábulo de animais e tem como primeiras visitas uns marginais pastores. Mas no texto do evangelho de hoje, Lucas apresenta o Menino a ser levado ao templo de Jerusalém por José e Maria. Estamos no coração da vida religiosa judaica. Este jovem casal leva um par rolas, ou pombinhos, para oferecer em sacrifício, cumprindo, assim, os ritos de purificação exigidos à mãe após o parto. Não tinham dinheiro para comprar um cabrito ou um cordeiro para o sacrifício. Maria e José são um casal jovem e pobre que apresenta o Menino para consagrá-lo a Deus.
Exigia a lei judaica que cada filho varão fosse consagrado (oferecido) a Deus. Para resgatar o filho, os pais pagavam um tributo de dois dias de trabalho; era um preço simbólico, a assinalar que o filho não lhes pertencia. Lucas intencionalmente não refere o gesto do resgate. Essa ausência indica um profundo sentido teológico: não são os pais que resgatam o Menino, é o Menino que a todos vai resgatar e salvar. Vai resgatar-nos em sua Páscoa, dando a vida (e este é o preço) para nos adquirir para o Pai, libertos de alienações e de perigos. Ele é a salvação ao alcance de todos os povos, de cada pessoa, em qualquer lugar; é o dom da vida que vivifica sem restrições, dom universal, sem fronteiras.
Com certeza que estavam lá os sacerdotes com as suas vestes solenes e o equipamento litúrgico para os rituais da circuncisão e da purificação. Mas Lucas não está interessado em narrar isso que é pressuposto. Lucas narra, sim, um acontecimento inesperado, um encontro improvável: por acaso estão ali no templo dois anciãos, Simeão e Ana, que se maravilham com o Menino e profetizam palavras de esperança e de futuro. São os dois leigos, nada têm a ver com o culto. As sua vidas estão ancoradas na força profética da Palavra, através de uma espera paciente e resistente. Era normal pessoas idosas viverem na proximidade do templo, fisicamente o mais perto possível do lugar da presença de Deus: esse era o desejo mais profundo da piedade judaica, «uma só coisa peço ao Senhor, ardentemente a desejo: poder sentar-me na casa do Senhor todos os dias da minha vida» (Salmo 27,4). Simeão vai ao templo, não para cumprir uma obrigação ou um ritual, mas pela ação livre e interior do Espírito, pelo seu sentir profundo, livre e consciente.
Eis-nos perante o quadro lindíssimo que inspirou tão intensamente a história da pintura: O velho Simeão (e aqui «velho» é uma palavra honrosa) acolhe em suas mãos o Menino. Que belo gesto de ternura: a carne rugada e calosa de um idoso acolhe, ternamente, a carne lisa e suave de uma criança. Que intensa ternura naquele acolhimento. Simeão é ali o colo de Jesus. Duas gerações ali se encontram e se abraçam: o idoso, que serenamente se despede da vida, e a criança que é promessa de futuro.
Simeão é a expressão de um idoso feliz, de uma vida vivida na esperança, de um chegar ao fim inteiro e sem ressentimento, sem lamento nem acusação dos outros. Não diz que no seu tempo é que era bom, e agora tudo é desgraça. Simeão encantam-se e rejubila diante do Menino que é o futuro, a esperança cumprida. Pode partir em paz: «Agora, Senhor, segundo a vossa palavra, deixareis ir em paz o vosso servo, porque os meus olhos viram a vossa salvação». Simeão recorda-os que as crianças precisam do dom das pessoas idosas, que lhes acrescentam sentido, alegria e esperança. Que belo quando um idoso se encanta com uma criança e nela acredita no futuro.
Sem sabermos entra em cena Ana que também se maravilha com o Menino e profetiza. Ana tem algo de enigmático e misterioso com ela: não sabemos como aparece no templo; apenas que ali estava, em sua viuvez, servindo a Deus, desde a juventude, «noite e dia, com jejuns e orações». Pobre, frágil, indefesa, mas resistente. Na idade que avança e a debilita, continua a viver agradecida, cumprindo-se no dom de si mesma e no serviço. A vida vida continua a ser fecunda, mesma não tendo filhos. Ana é uma mulher do norte de Israel, da tribo de Asser, uma tribo do norte, da zona fértil, que se perdeu na história, dissolvida nos outros povos vizinhos. A tribo de Asser foi considera uma tribo contaminada, que se perdeu na história sem deixar saudade e grande memória. Mas Ana, mulher viúva da tribo contaminada perdida e de Asser, representa o Israel fiel, os pobres de Iaveh que poem unicamente em Deus a sua esperança e confiança. Também ela «começou a louvar a Deus e a falar acerca do Menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém». Ana assinala também o imprevisível de Deus, que o evangelho não conhece fronteiras e pode fazer do contexto concreto de cada vida profecia, bênção, caminho de futuro.
Na passada semana decorreu em Roma o I Congresso Internacional de Pastoral dos anciãos. Em seu discurso aos participantes, disse o Papa Francisco: «A riqueza dos anos é a riqueza das pessoas, de cada pessoa que tem nas suas costas tantos anos de vida, de esperança e de história»; «a vida é um dom, e quando é longa, é um privilégio, para si e para os outros»; «a indiferença e a recusa que a nossa sociedade manifesta em relação aos idosos, apelam não só a Igreja, mas a todos a uma séria reflexão para aprender a acolher e a apreciar o valor da velhice».
Os anciãos não são só passado, são também o presente e o futuro da Igreja. Através dos idosos, o Senhor continua a escrever «novas páginas, páginas de santidade, de serviço, de oração». São o presente e o futuro de uma Igreja, que juntamente com os jovens, «profetiza e sonha», num mútuo reconhecimento, partilhando dons e experiências reciprocas. O Papa recorda mesmo o episódio do evangelho de Jesus. As palavras e os gestos de Simeão e Ana indicam, para todos nós, para a Igreja de cada tempo e de cada lugar, a «revolução da ternura»: «A profecia dos anciãos realiza-se quando a luz do evangelho entra plenamente nas suas vidas: quando, como Simeão e Ana, tomam nos braços Jesus e anunciam a revolução da ternura, a boa notícia d’Aquele que veio ao mundo trazer a luz do Pai».
Saibam as comunidades cristãs de hoje acolher e integrar a profecia e o dom dos idosos. Eles são um carisma e um serviço para os mais jovens. Resgatar da solidão as pessoas idosas é a grande urgência da vida cristã nas grandes cidades. Uma urgência que passa por cada um de nós.
Pe. António Martins, Apresentação do Senhor
Janeiro
2020/01/27 - Curso “O prazer de ler e pensar” – Viriato Soromenho Marques
2020/01/20 - Curso “O prazer de ler e pensar” – Alberto Caeiro
2020/01/13 - Curso “O prazer de ler e pensar” – Fernando Savater
2020/01/05 - Concerto de Reis
2020/01/05 - Mistério e revelação (homilia)
Queridos Irmãos
Encanta-nos e enternece-nos a narrativa dos Magos, vindos das terras orientais, do Sol nascente (anatólia). Aparecem, em Jerusalém, sem sabermos de onde vieram e que caminhos percorreram para chegar. São personagens enigmáticas, cuja origem se desconhece; eles representam a diversidade e a universalidade da humanidade que se reencontra diante do Menino acabado de nascer. Porque este Menino é dom de Deus para todos os homens e mulheres; não é propriedade de um povo, de uma igreja, de uma raça. Nele as fronteiras entre povos e crenças são superadas e reconciliadas.
Também nós nos podemos interpretar, com o texto de Mateus, quais Magos que procuram Jesus, por caminhos insólitos, através de sinais improváveis, com histórias únicas e ousadas, as nossas, tão pessoais, tão únicas. Cada ser humano, cada um de nós, pode-se compreender como um mago que procura identificar sinais da presença de Deus nas coisas que faz, nas suas tarefas quotidianas, no profundo da sua inquietação, no grito silencioso e intenso do seu desejo. Cada um de nós pode-se acolher como um viajante de Deus, um peregrino do absoluto, desejoso de amplos céus estrelados, de imensas paisagens, de estradas longínquas, de caminhos novos. Como um mago.
No texto do evangelho de hoje, cada um de nós pode-se descobrir como alguém que está em procura, cuja luminosidade e certeza na orientação por vezes desaparece e tem de caminhar na esperança, corajosamente, sem evidências tangíveis.
Como os magos que viram a estrela no oriente e só a voltaram a ver já perto de Belém. Viajaram com a memória inicial de um brilho invulgar que os fez pôr a caminho. Podemos imaginar que a ausência da estrela, na maior parte do seu percurso, lhe tenha sido difícil e acrescentado incertezas. Mas não os desorientou, não lhes alterou a intensidade do desejo e da procura. Por isso andaram, viajaram, chegaram, apareceram. Sem sabermos como.
Chegaram, mas não acertaram à primeira. Começaram por bater à porta errada, à porta do tirano Herodes. Viveram pensando que o rei anunciado pela estrela só poderia nascer numa cidade capital e num palácio; e nisto eram herdeiros da mentalidade comum. Com a sua inocência quase que se tornam instrumentos da política homicida de Herodes. E logo provocam uma crise, pois o tirano não admite concorrência: «Ao ouvir tal notícia, o rei Herodes ficou perturbado, e, com ele, toda a cidade de Jerusalém». Na narrativa dos magos, da sua chegada a Jerusalém, conjuga-se, em contradição, a inocência da infância e a violência da tirania, a alegria da vida que se inicia e a morte deliberada como instrumento de poder.
A verdade profunda do coração e a mentira como máscara e falsificação emergem no texto do evangelho. Os magos procuram o rei dos judeus acabado de nascer para o adorar. Herodes envia os magos a Belém, após ter mandado consultar as escrituras e os escribas, como seus informadores secretos, dizendo que também quer ir adorar o Menino. Mas sabemos que o seu dizer era falso, não correspondia à verdade do seu sentir. Em Herodes há poder absoluto que não admite concorrência. E o Menino será para abater. A narrativa dos Magos é também o desmascarar de todo o poder assente na tirania, na mentira, na falsidade, na instrumentalização das pessoas, na violência. A chegada dos Magos ao palácio de Herodes é uma parábola política de profunda atualidade: tantos Herodes de turno, hoje, a semear violência e morte, a permitir que crianças continuem a morrer.
A solenidade de hoje tem o nome litúrgico de Epifania, que significa manifestação. Indica a manifestação-revelação do Messias para todos os povos, para além das fronteiras judaicas, simbolizada nas enigmáticas personagens dos magos vindo do Oriente. Era mentalidade comum, na época, que a manifestação de Deus acontecia através de sinais prodigiosos, com gestos grandiosos, excecionais. No Antigo Testamento a revelação de Deus é acompanhada de trovões e relâmpagos, sinais do seu prodígio e da sua força. Mas no evangelho a Epifania (manifestação de Deus ao mundo) acontece do modo mais humano, mais terno, mais vulnerável possível.
A Epifania é a manifestação de um Menino vulnerável e indefeso ao colo da mãe que o sustem e o sustenta, e assim o apresenta. Deus manifesta-se vulnerável no Menino acabado de nascer: «Entraram na casa, viram o Menino com Maria, sua Mãe, e, prostrando-se diante d’Ele, adoraram-n’O». Deus abraça e comunga da nossa frágil humanidade. E uma criança é a sua plena manifestação, a sua Epifania. Que mais belo e subversivo prodígio do que uma mãe que apresenta um filho acabado de nascer. Para nos lembrar que todo a criança acabada de nascer é manifestação/epifania de Deus. Uma criança recém-nascida, carente, débil, indefesa, é a definitiva e plena revelação/manifestação de Deus.
O impensável para Herodes, na arrogância despótica do seu poder, é cumprido pelos magos num gesto de prostração e de adoração. Uma adoração que mobiliza todo o corpo, que compromete a pessoa por inteiro. Prostram-se diante do Menino (rei) apresentado no colo da (rainha) mãe. O cristianismo é a afirmação da beleza e inocência da infância, num tempo em que as crianças não contavam. Perguntemo-nos: com que gesto corpóreo queremos nós expressar, hoje, que seguimos, acreditamos e adoramos esse Menino que é dom de Deus para cada um de nós, aquele que nos dignifica, cura, restaura, santifica? O Menino, que adoramos, reconcilia-nos com o menino que somos e recusamos ser, instaura-nos na santidade da infância. Acolhamo-lo com todo o nosso ser, de corpo inteiro.
Um último pensamento: «E, avisados em sonhos para não voltarem à presença de Herodes, regressaram à sua terra por outro caminho». Já conhecemos como Mateus faz dos sonhos um lugar de revelação de Deus. Eles são interpretados como um modo de Deus nos falar nas nossas profundezas, para além dos estados de consciência e de vigília. Deus também nos fala pelas cavernas noturnas do nosso psiquismo, por essa dimensão que escapa à nossa racionalidade e à nossa consciência. Nenhuma dimensão da nossa humanidade fica fora da revelação de Deus a nós, do seu modo tão humano de estar connosco e de se tornar presente.
«Regressam à sua terra por outro caminho». Se voltassem pelo mesmo caminho, teriam caído nas garras de Herodes e consentido em ser por ele instrumentalizados. Trair-se-iam a si mesmos e ao Menino que os levou a aventurar-se no desconhecido. A exigência de voltar à terra da sua identidade e da sua origem por outro caminho, é a exigência da conversão, essa reorientação do sentido da nossa vida, essa ousadia em introduzir na nossa vida outros caminhos, outros horizontes, fora do habitual, do conhecido. Como exigência de liberdade. Regressar à sua terra pode ser o símbolo do regresso de cada um a si mesmo, à região da sua identidade e verdade mais profundas.
Que outros caminhos nos pede hoje o Senhor para regressarmos à nossa terra, à verdade original de nós mesmos?
Pe. António Martins, Epifania do Senhor
2020/01/01 - Cardeal D. José Tolentino Mendonça presidiu à eucaristia da solenidade de Santa Maria Mãe de Deus e do Dia Mundial da Paz
«Deus é favorável, Deus está disposto a dar um investimento de vida, Deus é um sim à nossa vida», e não uma porta fechada», porque a humanidade «não é uma coisa perdida», declarou na homilia, antes de frisar: «Deus ama a nossa humanidade, Deus extasia-se como a nossa humanidade, com aquilo que somos».
Na história de cada ser humano, que «é de luta, mendicante», uma das tarefas mais difíceis «é a de nos amarmos a nós próprios», o que só é possível «se formos ajudados pelo amor incondicional de Deus».
Ao regressar a uma comunidade a que presidiu até 2018, quando foi nomeado arcebispo pelo papa Francisco, o cardeal Tolentino lançou um convite para «o primeiro dia do ano», Dia Mundial da Paz, em que «o coração como que bate de novo pela primeira vez»: Sintamo-nos amados, que esse amor nos cure e transforme».
«Deus é cúmplice dos nossos recomeços», ao investir em cada pessoa «a confiança necessária» para fazer «do tempo uma história» em que «a vida se relança, ilumina, resgata, consolida», afirmou, para a seguir acentuar que n’Ele se encontra «o porto de abrigo, o Pai misericordioso, o Pai compassivo, sempre disposto a ver o bem».
Ao comentar as leituras bíblicas da celebração que assinala a solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, o bibliotecário e arquivista da Santa Sé interrogou: «Do ponto de vista racional, parece um absurdo: como é que uma humana, Maria, pode ser mãe de Deus?».
«A tradição mais antiga eclesial celebrou Maria com este título, um dos mais primitivos títulos marianos», atingindo um «plano que a razão declara como absurdo», mas «a fé como verdadeiro».
Para D. Tolentino, «o grande remédio» da existência «é o amor», e uma das suas sementes é ter a capacidade de dizer «o bem»: «Vivemos dentro de uma cultura que é o contrário, que lamentavelmente nos leva a viver numa crítica constante, pouco construtiva, em que vemos sobretudo o mal; os nossos olhos parecem profissionais que só veem a parte negativa, deixamo-nos consumir numa espécie de lamúria, lodaçal escuro, noturno, onde só vemos o mal».
Um dos propósitos prioritários do novo ano devia ser «abençoar»: «Há uma bênção quotidiana, secular, humana, que todos podemos dar uns aos outros», desejando «o melhor para cada um», em contraposição a uma cultura «onde o bem é silenciado, como se não tivesse lugar no espaço público».
«Só conseguiremos domar o lobo que existe no coração» se houver a capacidade de transformar «a agressividade e escuridão numa forma de luz, numa coisa que se acende», porquanto a humanidade de cada pessoa «é o lugar para hospedar e expandir Deus no mundo».
E dado que a paz é um dom que se recebe e partilha, é necessário que o ser humano se comprometa com um estilo de vida marcado pela «compaixão, a misericórdia, o bem», assinalou.«Que os propósitos que o Espírito Santo faz vir ao nosso coração» no primeiro dia do ano sejam acolhidos como «um programa de vida», para que a existência de cada pessoa não seja apenas «a passagem do tempo», mas «um tempo oportuno» para a relação com Deus, concluiu.
Rui Jorge Martins
(in https://www.snpcultura.org/Deus_e_um_sim_a_vida_nao_porta_fechada_cardeal_tolentino_mendonca.html)
Para ouvir a homilia, clique aqui: