Dezembro
2017/12/31 - Passagem de ano em oração
2017/12/31 - Um presépio permanente (homilia)
No mistério do Natal, celebrando a Encarnação do Senhor, nós não celebramos apenas este assumir por Deus da nossa humanidade: Jesus que Se faz um de nós, que toma a nossa carne, que é um corpo. Celebramos também o facto de Deus ter querido pertencer à família dos homens e ter integrado uma família, como cada um de nós integra uma família. E ter mergulhado nesse laboratório de amor e de vida, nessa escola de caridade e solidário cuidado que é uma família.
Jesus não podia simplesmente tomar a nossa carne. Ser uma pessoa humana, ser uma mulher, ser um homem é passar também pela experiência de uma família, ser uma família, construir uma família. E por isso, os laços familiares são laços tão estruturantes daquilo que nós somos e certamente foram também na vida de Jesus. Ele certamente teria parecenças com a Sua mãe, teria um modo de ser, um modo de trabalhar, de enfrentar as dificuldades, de olhar para os desafios que tinha a ver com José. E isso, é alguma coisa que nos faz entender o que é uma família.
Nós hoje precisamos dar graças pela nossa família, dar graças. Uma família é um conjunto de gerações, não é apenas uma geração. Uma família dá-nos essa experiência mais profunda do tempo e daquilo que é a existência. Uma família lembra-nos que a nossa vida é dom, que a nossa vida é desejada, que o fundamental da nossa vida é aquilo que recebemos no nascimento de cada um. Talvez tenha sido, não sei, o facto mais importante da nossa vida, o nosso nascimento. Nós não fomos ouvidos nem achados, fomos colocados neste mundo. Alguém conspirou, alguém sonhou, alguém desejou, alguém nos amou. Sem nos conhecer, sem nos ver, alguém nos desejou com esse amor incondicional para nos colocar sobre este mundo. Nós não sabíamos de nada, quando damos por nós já estávamos ao colo de alguém, embalados pelos sorrisos, pela felicidade de alguém. E isso é o mistério da própria vida.
Uma família faz-se de nascimentos, faz-se de maturação, de crescimento. São etapas tão fundamentais acompanhar as várias estações de uma vida – a primeira infância, a adolescência, a vida adulta com os seus desafios. Depois, acompanhar, como os textos nos recordam, a vida avançada, a velhice, estar presente nas doenças, nas grandes alegrias. É de facto um presépio permanente, um presépio todo o ano a família. Porque, ali nós experimentamos de uma forma muito concreta, como protagonistas, o que é a construção solidária, colaborativa da nossa própria humanidade.
Numa família, nós experimentamos três coisas que as leituras da Palavra de Deus de hoje nos ajudam a ver. Começamos por perceber que o mais importante é o ato. Não são as palavras. Por exemplo, os pais. Os pais são pais. Aqueles pais que às vezes querem ser os grandes educadores, os grandes professores, os grandes amigos. Isso tudo está muito certo mas, antes de tudo, os pais são pais. E o que é ser pais? O que é ser mãe? O que é ser pai? É falar pelo ato, pelo ato. Mais do que pelas lições que se dão, pelas abstrações, pelos conceitos, é mostrar a vida a acontecer, é mostrar a importância da vida nas suas coisas mais simples. Pôr uma mesa, levantar uma mesa, limpar, cuidar, fazer, empenhar-se. A grande herança, a grande lição que os pais dão é essa paixão pela vida, esse amor pela vida que os faz viver. Quando o fazem eles não pensam: eu estou a fazer isto para dar um testemunho. Quem pensa isso não dá verdadeiros testemunhos.
Os pais têm de viver, têm de ser. E depois, mais tarde, nós filhos vamos olhar e vamos perceber os testemunhos que eles foram, as lições que eles nos deram. Talvez em coisas que os pais nem se apercebem mas que nos marcaram. Cada um de nós, fechando os olhos, entrando no seu coração, pode perceber tantos testemunhos que recebeu de atos e vida, de alianças de vida. Ver o nosso pai acordar cedo e ir trabalhar, o amor com que trabalhava. O amor com que a mãe acompanhava cada dia da nossa vida. Essa infatigável ternura, esse incansável amor com que nós fomos criados. Isso fazia parte e faz parte do nosso quotidiano, da nossa rotina numa casa, numa família. Mas depois nós percebemos que esse é um testemunho de amor, é como uma luz que não se apaga. Porque uma família, antes de tudo é ato não é uma teoria, não é um conceito, é um acontecer, é um acontecimento.
Depois, uma família é o lugar da fé. E da fé não no sentido imediatamente religioso, por ser um lugar onde se reza, mas no sentido estrutural. Numa família nós crescemos, e cresce cada um à sua maneira, e vive cada um da sua forma, e cada um tem uma história. A família não é o lugar da previsão, não há um mapa, não há um modelo para dizer a minha família vai ser assim: eu quero que os meus filhos cresçam desta maneira e quero que eles sejam isto ou quero que eles sejam aquilo. Não podemos dizer isso. Podemos guardar, podemos acompanhar, podemos servir os sonhos, o desejo, a singularidade que se vai despertando na vida dos outros. Na vida, por exemplo, dos nossos filhos. E daí nós dizermos: tu não vais ser isto, não vais ser aquilo – colaborar para que possa acontecer aquilo que é, na aceitação, no amor, no investimento de fé, de confiança que fazemos naquele desejo. Na formulação daquele desejo nós possamos ajudar, colaborar para que cada um possa viver plenamente a aventura de ser.
Por isso, os pais não são donos dos filhos. No fundo, são seus companheiros, são a sua raiz, são o seu sustento. E o que é um filho um pai não sabe, os pais não sabem. Um filho é a maior surpresa para os próprios pais que o criaram, a maior surpresa. Mas assim está bem, porque um filho pede a fé. Eu vou ter fé em ti, eu vou confiar em ti. E é essa confiança primeira que nós recebemos, é essa confiança que recebemos em família que nos dá aquela autorização necessária para ser. Às vezes veem-se pessoas que claramente não foram autorizadas no amor, porque o amor dá-nos autorização para ser. Um olhar de amor é dizer: eu quero que tu sejas, eu amo-te como tu és, eu quero que tu sejas assim, confia, acredita em ti. Isto é a autorização que o amor nos dá. E quando essa autorização não acontece, ou não se dá de uma forma que impregne o nosso ser, nós ficamos sempre a vacilar, nós andamos sempre um pouco perdidos, um pouco hesitantes.
Por isso, é importante sabermos que não há pais perfeitos, não há famílias perfeitas, não existe isso. Os pais muitas vezes falham e muitas vezes erram. Mas isso é claro, isso acontece todos os dias. Mas, qual é a missão dos pais? A missão dos pais é transmitir esta fé inabalável no filho, é transmitir este amor incondicional ao filho. É saciar o coração do filho de fome de mãe e de fome de pai. Se ele estiver saciado ele vai perdoar todos os meus erros, todos os meus enganos, todas as minhas insuficiências que são tantas. Mas ele vai ter aquela fé necessária para poder existir.
A família é o lugar do ato, a família é o lugar da fé e a família é o lugar da promessa, é o lugar onde se vive a promessa. Porque não é porque nós nos amamos numa família que não vão acontecer coisas difíceis. Não é porque nós nos damos bem e somos família e partilhamos os mesmos valores que não vai haver sofrimento, vai sempre haver. Vai sempre haver sofrimento, lágrimas, vamos sempre embater perante coisas que não conseguimos resolver, e temos de aceitar e temos de amar. Vamos sempre passar por momentos de doença, de sofrimento, de fragilidade, de vulnerabilidade extrema. Coisas que nós não queríamos mas a vida é assim, a vida continua, a vida constrói-se dessa forma.
Mas, o que nós podemos dizer uns aos outros, pais e filhos, é o valor da promessa. Quer dizer, aquilo que nós experimentamos, aquilo de simples, de pequenino, aquele ato que nós celebramos juntos, aquele ato de amor que nos funda como família. Isso é uma promessa que no tempo se há-de sempre desenvolver. Uma promessa que nos há-de expandir. Uma promessa é começar de forma muito humilde, mas depois há-de encontrar a sua concretização.
Por isso, na família nós dizemos uns aos outros que não somos filhos da maldição, mas filhos da promessa. E quando um pai olha para um filho, olha com muita pobreza. Porque, no fundo, o que lhe pode dar é a promessa, a promessa de um amor que o há-de acompanhar sempre, mas essa promessa que parece uma coisa muito frágil. Nós pensarmos o que podemos dar uns aos outros é a partilha da promessa. Parece uma coisa muito frágil e é frágil. Mas é a ponte de corda que tantas vezes nos sustenta ao longo do abismo, é a pequena luz que tantas vezes nos acompanha ao mais fundo da noite. É a palavra que tantas vezes nos recupera, tantas vezes nos redime nos silêncios abissais da nossa história.
Por isso, demos graças a Deus pelas nossas famílias. Na sua perfeição e na sua imperfeição, na sua dor, na sua promessa, que ela seja de facto esse lugar em que, de olhos postos na família de Nazaré, nós somos ato, nós somos fé, nós somos uns para os outros promessa.
Pe. José Tolentino Mendonça, Festa da Sagrada Família
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2017/12/25 - Encarnou entre nós (homilia)
Neste dia de Natal temos o prólogo do Evangelho de S. João, este texto com uma densidade teológica, existencial que nos ajuda a descortinar o mistério da própria Encarnação do Senhor.
O que é isto que os nossos olhos veem? O que é isto que a nossa carne contempla? “No princípio era o Verbo, o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós.” Este é o resumo daquilo que nós podemos olhar. E o que é que nós tocamos? Do que é que nós nos avizinhamos no mistério do Natal? Avizinhamo-nos de um Deus que Se faz carne, que toma a nossa carne, um Deus que visita a história, que a atravessa, que passa a estar entre nós, que passa a ser um de nós – a nossa carne, o nosso corpo, a nossa vida. Porque, o nosso corpo é este corpo individual que todos temos, mas é o corpo social, é a nossa história, é o corpo biográfico. O nosso corpo torna-se teomórfico. A nossa humanidade torna-se o lugar onde Deus habita, onde Deus esplende.
Então, nós temos de olhar para a nossa humanidade de outra forma, com outros olhos. No mistério da Encarnação, nós percebemos que a nossa humanidade passa a valer mais. Não apenas a minha humanidade individual, mas a humanidade passa a valer mais. Porque, Jesus vem mostrar o valor da nossa humanidade, vem dar-nos um novo olhar, uma nova compreensão daquilo que nós somos, daquilo que cada ser humano é. Vem alargar, finalmente nós podemos ver. Nós podemos ver a glória que está inscrita, que está agora tatuada na fragilidade da nossa condição humana.
Por isso, o tempo de Natal, estes dias de Natal são dias para contemplarmos. Contemplarmos a cena do presépio mas contemplarmos os presépios vivos. Uma rua da nossa cidade é um presépio vivo, as nossas casas, a nossa família é um presépio vivo. As pessoas que passam, conhecidos e desconhecidos, é um presépio vivo. Nós somos chamados a olhar para aquela humanidade que muitas vezes nos é indiferente, muitas vezes até nos agride, muitas vezes damos por desvalorizada. Somos chamados a reolhar, a rever a humanidade, agora com olhos novos, porque ela é o lugar onde está Deus.
Neste tempo do Advento e do Natal nós fizemos tantas coisas e chegamos a este dia muitas vezes até com o sentido: valeu a pena, não valeu a pena. Sentimos que investimos demasiada esperança, que caímos outra vez na armadilha do Natal. Voltei a acreditar e, de repente, este dia vai chegar ao fim. Há mais uma tarde e acaba tudo. E parece: pronto, lá caí outra vez. Porque, talvez possamos temer que o investimento de esperança, de afeto, de dádiva, de serviço, de cuidado que oferecemos nós não recebemos a troca, não vemos para que é que isto serve. Para que é que tudo isto existe, qual é o real valor de tudo isto. Será que não somos uns zombies que se contagiam uns aos outros com este espírito e que depois, no fundo, percebemos que nada disto valeu a pena. Eu penso que as palavras do prólogo de S. João nos ajudam a perceber porque é que vale a pena. Porque é que vale a pena? Porque é que vale a pena sermos dom, porque é que vale a pena até o nosso cansaço, a nossa fadiga? Porque é que vale a pena toda esta mobilização, porque é que vale a pena hoje a cidade estar vazia, porque é que vale a pena tudo isto que se cria?Porque é que vale a pena?
Vale a pena porque na nossa carne nós experimentamos uma diferença. O amor deixa-nos talvez mais cansados, talvez sem forças. O amor traz-nos a fadiga, o cuidado dos outros, a solidariedade. O pensamento dos outros mobiliza-nos, enche-nos de ocupações, muda a nossa agenda, transforma-nos. E esta modificação que cada um de nós experimenta, num custo de fadiga, de cansaço, de cuidado, de dádiva, de prestação de serviço, este custo que o Natal tem na nossa carne é a vinda de Deus. É Deus a vir ao nosso próprio corpo, à nossa própria vida. Esta espécie de desvitalização é o cavar a manjedoura dentro de nós, cavar o berço onde Deus vai nascer. Porque nós precisamos de fazer o caminho de Jesus, o caminho que Ele depois vai fazer na sua vida, porque esta história não acaba em Belém, esta história começa em Belém. E o que Ele nos ensina é a fazermos da nossa vida dom, é a darmo-nos por inteiro, é a sairmos de nós, é a não pensarmos em nós-próprios, em vivermos na alegria, na alegria do dar. Há uma infinita alegria que está no dar e não no receber, há uma infinita alegria que está no servir e não no ser servido, há uma infinita alegria em fazer-se o último, em esquecer-se de si. Há uma perfeita e infinita alegria em sermos pequeninos e ajudarmos a construir sorrisos, a sermos cúmplices dos sonhos dos outros, a realizar a alegria que os outros têm adiada. E nós dizemos: olha, hoje é o dia dessa alegria, é hoje que vais sorrir, é hoje que vais ter aquilo que sonhaste. Seja um brinquedo ingénuo, seja o que for, é a vida que está a ser partilhada, estamos a construí-la uns com os outros. Quando somos capazes de fazer isso, claro que há um custo. Mas, esse custo, que está até na nossa carne e no nosso corpo, é a forma de Deus, é a forma de Deus.
Queridos irmãs e irmãos, por isso o Natal é a festa do brilho e da abundância. Mas o Natal é a festa dos famintos, é a festa dos esfomeados, dos sedentos, daqueles que querem mais, querem mais da vida, querem outra coisa da vida, daqueles que não se conformam apenas com a rotina, com o dia-a-dia, que sentem que tem de haver um suplemento, tem de haver um plus, tem de haver alguma coisa que vá além da medida, que não seja apenas o normal, alguma coisa que nos traga o excesso, o excedente do brilho do próprio Deus, da glória do próprio Deus. Por isso, o Natal é este tempo assim desconforme, exagerado, é o tempo do desejo de Deus, é o tempo para dar espaço a essa fome e a essa sede que temos no nosso coração. Famintos de estrelas, nós que andamos colados ao chão. É tempo para sentir isso e para dar voz, dar corpo, dar lugar à expressão de tudo isso que está no nosso coração. E é assim que a nossa carne ganha a forma de Deus.
“O Verbo fez-se carne e encarnou entre nós e viveu entre nós.” É a isto, irmãos e irmãs, que temos de nos agarrar, traduzindo na nossa carne, na nossa vida, nas nossas relações, nas nossas construções a presença de Deus. Dando ao mundo a forma de Deus. Este é o programa do Natal, procuremos vivê-lo à nossa medida, à nossa dimensão com aqueles que encontrarmos, partilhando, vivendo este milagre que é este dia, mas ao mesmo tempo, tendo a capacidade de o multiplicar, de o expandir, de fazer do Natal uma surpresa que chega a quem pensava ou já não pensava que ele pudesse existir.
Pe. José Tolentino Mendonça, Natal do Senhor
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2017/12/25 - Advento / Natal 2017
2017/12/24 - Viver na manjedoura (homilia)
Por várias vezes nas leituras que hoje proclamamos, no profeta Isaías, no Evangelho de S. Lucas, se fala da luz, do aparecimento de uma luz. O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, os pastores que apascentavam na noite, no desamparo dos campos foram de repente cercados pela luz. A própria liturgia multiplica as luzes. Hoje é de facto a noite luminosa, a noite que se faz clarão, a noite que se faz caminho que brilha, a noite brilhante. O brilho desta noite, a luz desta noite para que é que serve? Serve para nos vermos melhor, serve para olharmos para a nossa vida, para a nossa humanidade, para a nossa carne à luz do Menino do Presépio.
Esta luz traz um novo entendimento, uma nova compreensão do que é a vida. E é interessante porque há duas palavras que aparecem no texto de Isaías que nos servem como programa de celebração do Natal. O profeta diz: “Senhor, Tu multiplicaste a sua alegria.” Hoje, irmãos, nós não fazemos apenas contas de somar, sentimos que a vida se multiplica. Sentimos que Deus passa pela nossa vida e deixamos de ser o que eramos apenas, de contar com aquilo que trazíamos. Hoje nós valemos mais, hoje a nossa humanidade vale mais. A humanidade de cada um, a humanidade pura, a humanidade nua. A humanidade vale mais porque ela está investida desta multiplicação de vida que o próprio Deus nos trás. Por isso, é também uma luz nova sobre o valor da nossa humanidade.
Mas, ao mesmo tempo, esta nova compreensão faz-nos deixar para trás a lógica da guerra, a lógica da beligerância. Porque se diz: todo o calçado da guerra, todo o vestido, todas as gramáticas, todo o vocabulário que serviu para falar de violência, de hostilidade, de guerra tudo isso é para ser queimado, tudo isso é para ser deixado para trás. E, nesta noite, nós renascemos. Nós renascemos com olhos novos, mas também precisamos de palavras novas, de gramáticas novas, de modos diferentes, de modos inéditos de dizer a vida, de a cantar, de a perceber profundamente. Porque há um antes e um depois de Jesus Cristo, que não tem apenas a ver com a data, 2017 anos depois do acontecimento de Belém. Há um antes e depois que tem a ver com a compreensão, com o olhar que nós dedicamos à própria vida. Os pastores estavam como nós, no meio da noite, e foram cercados de luz. E o Anjo disse-lhes: “Não temais, anuncio-vos uma grande alegria que o será para todo o Povo.”
Queridos irmãs e irmãos, nós não estamos a celebrar o Natal do Senhor apenas como um facto que interessa aos cristãos. Não é apenas uma coisa nossa, uma coisa para nós. Esta boa notícia é uma notícia universal, é uma notícia para chegar a todos. É-nos confiada uma notícia que deve ir muito para lá destas paredes, que deve ir muito para lá do círculo da nossa família, dos nossos amigos. Nós somos investidos de uma missão que é fazer chegar a todos a boa nova de que hoje nasceu um Salvador. É uma palavra com uma força e uma precisão impressionantes, que quase nos fazem estremecer: “Hoje nasceu-vos um Salvador.” Poder dizer isto, poder primeiro aceitar esta verdade no fundo do meu coração: hoje nasceu para mim um Salvador. E poder contagiar, poder contaminar, poder alargar o horizonte da história com esta verdade que é a verdade transformadora, a verdade que salva. Porque aquele Menino, aquele Filho que nos foi dado transporta para nós a salvação.
É belo pensarmos como é que esta salvação se manifesta. Eu penso que de duas maneiras, que têm a ver com as leituras que hoje nós lemos e com a liturgia. Hoje, quando rezarmos o Credo, nós vamos ajoelhar-nos, ou genufletir um joelho, quando rezarmos: e Se fez carne, “Encarnou no seio da Virgem Maria e Se fez homem”. E se fez um de nós. Então, nós não estamos sós. E a nossa humanidade é o lugar da habitação de Deus – a nossa vida frágil, a nossa vida pequenina, a nossa vida impreparada, a nossa vida incompleta. A nossa vida que porventura até não nos satisfaz, a nossa vida esgotada, a nossa vida cansada, a nossa vida inconclusa, a nossa vida é o lugar de Deus, é a tenda de Deus, é a morada de Deus e de toda a Humanidade. Por isso, nós cristãos somos servos da humanidade, temos de cantar a beleza da humanidade, a inteireza da humanidade. De todo o Homem. E sobretudo das humanidades feridas. Da humanidade dos últimos, da humanidade daqueles que ficam para trás, daqueles que não têm voz nem vez, da humanidade sofrida, da humanidade subtraída, dos excluídos, dos descartados. Nós só temos a humanidade para poder tatear o rosto de Deus, é na humanidade que nós encontramos o divino. Por isso, a humanidade é o bem mais precioso, a humanidade para nós é o lugar de Deus, o rosto de Deus. Esse espaço onde Ele resplende.
Por isso, temos de nos comprometer na afirmação da humanidade, no serviço à humanidade, no cuidado, na atenção, no abraço à humanidade dos outros. Construindo, como diz o Papa Francisco, uma cultura do encontro, uma cultura da valorização do humano e não uma cultura do descarte.
Queridos irmãs e irmãos, na noite de Natal nós juntamo-nos, fazemos o esforço para que as famílias se reúnam, sejam alargadas. Isso é muito belo, porque é a humanidade mais próxima de nós. A humanidade dos nossos irmãos, da nossa família e estamos juntos. Mas, não nos esqueçamos que nós somos servos e somos irmãos de toda a humanidade. E que esta boa nova, não é apenas uma boa nova para os nossos, é uma boa nova para todos. Por isso, somos servos de uma humanidade que transcende os nossos limites, transcende o nosso apelido, transcende a nossa casa, transcende a nossa mesa. E é essa vigilância que a partir desta noite nós somos chamados a ter.
“Isto vos servirá de sinal, encontrareis uma criança deitada numa manjedoura.” É um sinal estranho este que nossa Senhora nos dá quando ela dá à luz o seu filho e o coloca numa manjedoura. É um sinal estranho porque a manjedoura é um sítio impuro, não é um sítio onde se coloque um bebé. A manjedoura é o lugar onde comem os animais, é o gamelão, é um sítio confuso, é um sítio difícil. Mas, Ele é colocado precisamente na manjedoura porque Ele vem para todos, Ele vem abraçar todos. Por isso, nós abeiramo-nos desta noite, nós abeiramo-nos do Presépio e sentimos que todos cabemos no abraço de Jesus. Nenhuma vida é excluída, o Senhor não desperdiça nada, não diz: Tu não pertences. Todos Lhe pertencemos, todos estamos no Seu projeto, todos estamos no Seu coração.
Ele é colocado na manjedoura porque Ele vai ser pão para a fome do mundo. Ele é colocado na manjedoura porque Ele vai ser pão partido para uma vida nova, para a construção de um mundo novo. Ele é colocado na manjedoura porque Ele vai aceitar a condição de ser dom, de ser oferta, de ser alimento para os outros, de alimentar todas as fomes. A fome de sentido, a fome de razão de viver, a fome de verdade, a fome de consolação. Ele é colocado na manjedoura por mim, por cada um de nós que nos abeiramos desta noite famintos. Mesmo se vindo de uma ceia de Natal abundante – estes são dias também de abundância – o nosso coração é faminto. Tantas vezes nós estamos a ganir de fome, a gemer de fome, de uma fome que o pão não consola, de uma fome de significado, de uma fome de presença, de uma fome de infinito, de uma fome que não é a matéria que cura mas é essa força espiritual capaz de responder às inquietações profundas do nosso coração, da nossa alma. Hoje é o dia em que Ele Se faz alimento para nós e nos ensina que a vida só faz sentido quando nós aceitamos viver na manjedoura. Isto é, quando nós aceitamos que a nossa vida é também para ser distribuída, para ser gasta, para ser dada, para ser repartida, para ser oferecida como alimento para muitos, como boa nova para todos.
Por isso, queridos irmãos, esta é a noite que vence o nosso egoísmo, esta é a noite que vence o nosso temor, esta é a noite que vence a nossa ambiguidade, a nossa incerteza, a nossa indefinição. Esta é a noite que nos coloca na manjedoura e diz: Tu és pão, tu és pão. Jesus nasce em Belém, Belém quer dizer: casa do pão. Ele nasceu em Belém para ser alimento da fome do coração humano. Nós nascemos nesta Belém, que é hoje esta noite, nós fomos colocados na manjedoura para sermos pão, para sermos alimento, para fazermos da nossa vida dom à maneira Dele, seguindo os passos Dele.
Pe. José Tolentino Mendonça, Missa do Galo
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2017/12/24 - O Deus que vem (homilia)
O mistério da Anunciação que hoje nós lemos no Evangelho, às portas já do nascimento de Jesus, lembra-nos esta verdade fundamental: nós somos visitados. A nossa vida é uma vida visitada. Deus vem ao encontro das nossas vidas, Deus bate à nossa porta, nós não estamos sós, não estamos abandonados. Deus é visitação, Deus é o Deus que passa, é o Deus que vem. O tempo do Advento serve-nos para isso, para colocarmos o nosso coração diante desta certeza confiada de que Ele vem, de que Ele é o Senhor que nos visita, de que Ele é o Deus disponível para celebrar com cada um de nós o encontro, o reencontro, re-reencontro quantas vezes forem necessária. Ele está disponível para entrar na nossa história, segurar aquilo que somos, fazer caminho connosco.
Ele vem dizer-nos que a Deus nada é impossível. Ele vem investir de utopia, investir de esperança, investir de uma convicção maior do que as nossas forças, para lá das nossas possibilidades. Ele vem dizer que Ele é o garante, Ele é o fiador de uma esperança que desencrava a nossa vida. Porque a nossa vida está bloqueada em tantas impossibilidades. Olhamos para um lado e é impossível, olhamos para o outro e não há nada a fazer, olhamos para outro e já é tarde, olhamos para outro viesses cedo, olhamos para outro e não é já. A nossa vida, se fazemos uma viagem por dentro de nós, ela está encravada aqui, trilhada ali, ali já passou, ali já era. E nós ficamos num desespero de salvação. E tantas vezes sentimos que já ninguém nos salva, que a salvação já não é para nós, que já não é possível acontecer em nós essa transformação, essa transfiguração de vida que o Senhor promete. Achamos que a promessa de Deus já não é para nós, porque já aconteceu isto e já aconteceu aquilo e já tudo se perdeu.
Ora, o Senhor vem investir de esperança a nossa vida. Ele visita-nos para dizer: a Deus nada é impossível. E mais, Ele quer-nos como parceiros desta verdade que desassossega, que desinstala, que redime, em última análise, a própria história e a história do mundo. Ele quer-nos como parceiros, como quis Maria, como quis Isabel, como quis José, como quis os Pastores, como quis cada uma daquelas figuras que nós colocamos no presépio. Ele quer-nos como partners, como cúmplices, como conspiradores que tornem possível o impossível. Tornar possível o impossível. O que é que isto quer dizer na vida de cada um de nós? Como é que isto se traduz, aonde é que isto nos leva, são estas as perguntas do Natal.
Aqui temos de perceber a mensagem que Deus diz ao rei David. David já conquistou os outros reinos, já está em paz, já conseguiu que Israel seja uma nação, que ele seja um rei reconhecido pelos outros. Ele está num palácio e a Arca da Aliança continua numa tenda. Ele diz:” Eu tenho de fazer um Templo. Tenho de fazer um palácio para Deus.” E Deus nessa noite manda dizer-lhe: “Não és tu que vais fazer-Me, sou Eu que te vou fazer.”
Isto é, vençamos a tentação de meter Deus numa caixinha, meter Deus no quadrado daquilo que nós achamos que é possível. Ele vem rasgar o quadrado. E mais: vem fazer rasgarmos o nosso e dizer: a Deus nada é impossível.
Maria ouviu esta mensagem e disse: “Eu sou a serva do Senhor, eu sou a cúmplice do Senhor, faça-se em mim, a começar por mim, aquilo que é a Sua Palavra.” É esta a nossa resposta final do nosso caminho do Advento, que nós damos com o amparo de Maria, nossa mãe. Eu sou o servo, eu sou a serva, faça-se, realize-se, eu acredito, eu quero, eu estou, eu avanço. Que cada um de nós possa realizar isto no seu coração como programa. Que este Advento não seja uma passagem veloz, rapidíssima, para o Natal. Mas que este Advento se torne para nós a possibilidade de dizermos: “Sim” ao impossível de Deus, de celebrarmos uma aliança com esse impossível. E sentirmos que Ele vem ao nosso lado para começar em nós, a começar por nós tudo aquilo que nós por fragilidade, por angústia, por medo, por desespero, por cansaço declaramos já impossível, declaramos já que não vai acontecer.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo IV do Advento
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2017/12/20 - Celebração Penitencial em tempo de Advento
2017/12/17 - Preparar no deserto um caminho (homilia)
É muito interessante, do ponto de vista existencial e espiritual, este interrogatório feito a João Batista, que nos surge neste terceiro domingo de Advento. As autoridades de Jerusalém vão ter com ele ao Jordão a saber quem é ele, o que é que pretende, o que é que se pode pensar acerca dele. E é extraordinária a clareza da resposta de João Batista, que desfaz toda a ambiguidade.
Perguntam-lhe: “Tu és o Messias?”
Ele responde: “Não, não sou o Messias.”
“Tu és Elias?”
“Não, não sou.”
“Então quem és tu?”
“Eu sou a sentinela, eu sou alguém que prepara no deserto um caminho para o Senhor. Eu sou alguém que diz: no meio de vós está Aquele que não conheceis e é em Seu nome que eu preparo o caminho para o nosso Deus. Porque, depois de mim, vai chegar quem é mais forte.”
O papel, a figura, de João Batista ilumina plenamente o que há de ser a nossa função, a nossa missão no Natal. Porque, acontece que muitas vezes nos colocamos na vida uns dos outros, e nesta geometria natalícia colocamo-nos no lugar de Jesus. Como se o messianismo fosse a nossa amizade, a nossa relação, no fundo girasse em torno a nós, porque somos nós que oferecemos, somos nós que damos, somos nós que preparamos. E a grande pergunta do Natal é: Onde é que ele acaba? Acaba apenas no nosso gesto, no nosso dom, nas coisas que nós preparamos, na mesa que nós abrimos? Onde é que acaba o Natal?
A clareza de João Batista é enfocar em Jesus e há de ser uma inspiração para nós. Nós cumprimos a nossa missão em relação ao mistério da encarnação, se encaminharmos os outros para Jesus. Se não criarmos ambiguidade no sentido de a coisa mais importante ser as relações intra-amigos ou intrafamiliares ou intrainstitucionais e não existir mais nada. Não, temos de romper e temos de viver este tempo com uma humildade muito grande, com um apagamento muito grande. Porque, só assim, como nos lembra S. Paulo na Carta aos Tessalonicenses, é que nós não apagamos o Espírito.
Temos de ter esta preocupação, queridos irmãs e irmãos, de não apagar o Espírito. Não apagar esta experiência de esperança, este rasgar de coração necessário para entender o Natal. Não enchamos de tralha esse vazio necessário para que Deus nasça em cada vida, mas tenhamos uma delicadeza muito grande nas relações com os outros, nas mensagens que partilhamos, nos gestos, nas coisas que condividimos. Tenhamos muita sensibilidade para não ocupar o lugar de Deus, o lugar de Jesus, com outras coisas. Nós somos figuras liminares, nós somos figuras de fronteira, o nosso papel é preparar um caminho para o nosso Deus, preparar no deserto um caminho para o nosso Deus.
Eu não sei se já nos sentimos conscientes desta nossa missão em relação ao Natal. Porque, eu não sou o Natal para o outro. É um equívoco, cada um de nós não é um Natal para o outro. Podemo-nos vestir de pais-natal e mães-natal, mas nós não somos o Natal para o outro. Nós preparamos o caminho, e é preciso esta clareza: não, não, não. Dizer um “não” que liberta verdadeiramente para que nós compreendamos qual é o nosso lugar e ajamos a partir daquilo que é o nosso lugar – gente que prepara, gente que anuncia, gente que diz “No meio de vós está Alguém que não conheceis”, que é capaz de dar esta boa nova. Só assim nós somos responsáveis pela vivificação deste Espírito no coração dos outros, na celebração deste tempo.
É tão bela a profecia de Isaías com que hoje nós começamos a liturgia da palavra, e é de facto olhar para a obra de Deus em cada pessoa: “Exulto de alegria no Senhor, a minha alma rejubila no meu Deus que me vestiu com as vestes da Salvação e me envolveu com o manto de justiça.” O Senhor prepara a vida de cada um de nós. Nós preparamos o Natal, agora entramos numa contagem decrescente, numa agitação, numa efervescência. Mas não ofusquemos a verdade principal. A verdade principal é podermos dizer a cada uma, a cada um: olha, o Senhor prepara com que amor, com que deleite, com que encantamento, com que delicado cuidado a tua vida, Deus prepara a tua vida, Deus toca, Deus molda o teu coração, sente isso, sente as mãos de Deus na tua vida, sente-te visitado por Deus, sente-te amado por Deus.
É esta a boa nova que nós temos de anunciar, de anunciar uns aos outros. Este é o Natal decisivo, porque é o Natal que vai poder continuar, que não vai acabar no dia 25, que não se desembrulha completamente de uma vez como um presente, mas vai-se descobrindo aos poucos, desdobrando cada vez mais na nossa vida. E só isto é que provoca a alegria. É misterioso, é enigmático mas a alegria do Natal, a verdadeira alegria do Natal, nasce de muitos “nãos” que nós temos de dizer a nós próprios, à nossa tentação de vaidade, de centrismo, de acharmos que nós podemos satisfazer a necessidade de consolação, a necessidade de sentido, de consolo que os outros têm no seu coração. Nós não podemos satisfazer, nós somos portadores de uma boa nova. E tudo o que encontremos tem de ser nesse sentido, levar aos outros a certeza do amor de Deus, que eles se sintam amados e que a nossa presença, o nosso cuidado seja apenas uma pequenina expressão consciente da sua humildade para dizer a coisa bem maior que é podermos dizer uns aos outros: Deus ama-te com amor infinito, Deus cuida da tua vida, Deus consola-te, Deus está disponível para esse amor ilimitado. Se nós formos capazes de dizer isto uns aos outros acontecerá Natal.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III do Advento
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2017/12/14 - Percurso de Preparação para o Crisma
2017/12/13 - Missa do Parto
2017/12/10 - A brecha de Deus (homilia)
E a mesma coisa em relação ao Natal. De repente saímos de novembro (ou já no início de novembro, porque agora o comércio impõe o Natal muito mais cedo) e de uma hora para outra vemos chegar o Natal com todos os seus compromissos, as tarefas, aquilo que é necessário preparar, o que tem de ser – e acabamos muitas vezes por ficar esmagados por todo esse mundo que nos chega, que se abate, a que é impossível permanecer indiferente…Nós podemos pensar: “vou para uma ilha deserta”, mas não conseguimos, ninguém nos leva para lá – de forma que temos de encarar esta situação com maior resistência, maior sofrimento interior, ou com maior adesão, com maior vivacidade. Há anos em que toda esta bolha nos encontra com uma vontade de pegá-la, de elevá-la, de viver esse tempo, e há outros em que não nos apetece, em que parece que é uma violência acontecer Natal, ir a um centro comercial – parece que é uma violência tudo isto, porque sentimos não uma consolação, mas uma desolação por tudo isto estar a acontecer.
Por isso as palavras de Isaías são palavras importantes para serem repetidas a quem sente este síndrome espiritual do Natal ou deste Natal: “ Consolai o meu povo.” Nós precisamos de consolação. E a grande consolação é por aquela dor que se instala em nós quando sentimos: “Não pode ser só isto.” Isto é muito bonito: os símbolos, a sua música tilintante, os presentes, as surpresas, a ornamentação, as tradições, os ritos…tudo isso é interessante na proporção certa, mas não pode ser só isto.
O Natal tem de ser outra coisa, tem de ser outra palavra, tem de ser outro acontecimento. Se calhar precisa de ser traduzido de outra forma, com outra gramática, com outros gestos, com outra corrida que não seja apenas uma corrida ao consumo, mas seja um estar alerta, uma outra espécie de atenção, uma outra vigilância…
É importante sabermos que o Senhor nos consola da nossa inquietude e da nossa desilusão em relação a este Natal portátil que todos os anos se aproxima de nós. O Senhor consola-nos profundamente e faz dessa insatisfação um caminho de procura de uma maior autenticidade de Natal.
O problema não é estarmos insatisfeitos, ou desolados, ou inconsoláveis. A grande questão é: “Faz alguma coisa com isso”.
Porque é preciso fazermos coisas com os nossos sentimentos, com os nossos afetos – quer fazer coisas com a nossa alegria, quer fazer coisas com o nosso sofrimento.
Se o nosso sofrimento nos pede para construirmos uma alternativa, então construamos caminhos alternativos, encontremos outra linguagem, reinventemos a celebração do Natal. Até na nossa família, reinventemos a celebração do Natal, com os nossos amigos, reinventemos a celebração do Natal. O Natal não tem de ser celebrado sempre da mesma maneira, porque senão torna-se um tique, torna-se uma coisa que já não diz nada, torna-se um teatrinho pobre – e é pena que seja assim. Não pode ser só isso.
A figura do Advento que hoje nos surge no Evangelho é João Batista. E João Batista vem com uma estética muito particular (não pensemos que as pessoas daquela época se vestiam desta maneira estranha, com pelos de camelo, com um cinto de cabedal à volta dos rins) ou que tivessem esta dieta: alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre. Eu ainda ontem via numa crítica gastronómica que os insetos estão a entrar cada vez mais na alta cozinha, mas a de João Batista certamente não era alta cozinha, era o que ele podia apanhar com a mão naqueles fins do mundo à volta do rio Jordão, perto do Mar Morto. Ele claramente construiu um estilo alternativo, um estilo de rutura com o seu tempo, e começou ali uma coisa nova.
Às vezes começarmos uma coisa nova é bom, é importante. Às vezes é a “brecha de Deus”, é a possibilidade de Deus entrar. Por isso, com a nossa insatisfação em relação ao Natal comercial, façamos alguma coisa: e alguma coisa que faça sentido, alguma coisa que nos mergulhe mais profundamente na oração, na espiritualidade, no mistério, no encontro, na conversa com os outros, no serviço, na curiosidade saudável, boa, pelos outros, pelo mundo…isso é viver o Natal.
A modernidade, este tempo que nós vivemos, é um tempo espantoso e ao mesmo tempo muito estranho. E muito estranho porquê? Porque é um mundo que avança em turbilhão, que todos os dias está a atualizar-se (como o nosso computador ou o nosso telemóvel, que estão sempre a pedir atualização) e o sentimento que nós temos do mundo e da vida é que estamos desatualizados, que nós somos os nossos antepassados – e a tecnologia todos os dias nos dá “chapadas” com isto: “tu não entendes, tu és analfabeto, tu és infoexcluído, tens de aprender, agora mudou tudo, agora a tecla que servia para isto vai servir para aquilo, agora há uma nova modalidade, há um novo programa, tu ainda não sabes, tu ainda não viste” – e é esta a nossa vida.
O mundo moderno é um mundo em que os seres humanos são os seus próprios antepassados. Nós podemos ter 20 anos, 40 anos, e sentimo-nos completamente desatualizados, sempre em esforço de atualização, porque vamos ficando para trás, continuamente.
E isto gera em nós um sentimento estranho em relação à vida, porque é como se a nossa vida valesse menos; como se se nós não estivermos “à la page” com o último grito isso já não serve, estamos a perder alguma coisa de fundamental. Porque o presente desautoriza-nos. Nós somos talvez a primeira geração de seres humanos com um elevado conhecimento tecnológico, científico, e que se sente completamente incapaz, que se sente desautorizada, porque este é o túnel: todos os dias estamos a ser vencidos, todos os dias nos dizem “o teu saber não vale”, estamos a ser relativizados – e isto tem consequências profundas em nós.
Como é que nós vivendo isto, padecendo isto, como mulheres e homens com os pés neste presente histórico, olhamos para o Evangelho de Marcos, para este texto que fala da pregação de João Batista, em que ele diz: “Vai chegar depois de mim quem é mais forte do que eu, diante do qual eu não sou digno de me inclinar para desatar a correia das sandálias. Eu batizo-vos com água, Ele batizar-vos-á no Espírito Santo.”
Nós podemos dizer: “É exatamente o que eu sinto, isto de “depois de mim vai chegar um maior” é o que eu estou sempre à espera, eu folheio o jornal e sei que vou encontrar coisas muito maiores do que aquelas que eu possuo, e que eu tenho e que eu posso ter, porque o mundo é assim.
Será que a vinda do Messias é isto? É também para superar, também para desautorizar o meu presente, a minha vida, o meu conhecimento?
Não, Jesus vem, não para me tornar um antepassado de mim mesmo, mas Jesus vem para me dizer que eu sou um filho do seu futuro, que eu sou uma obra desse presente que Ele inaugura comigo, sem dizer que o que eu sou não serve, pelo contrário, Ele toma a nossa carne.
E nós podemos pensar: “Mas porque é que Jesus, Filho de Deus, vindo à terra veio como um homem?” Um homem é pouco, Ele devia vir como um Super Homem, Ele devia vir com toda a tecnologia que neste momento o trans-humanismo já consegue pensar que há de ser o homem do futuro, tão modificado que a palavra “homem” já não conseguirá explicar o novo ser.
Então Deus manda à terra o Seu Filho e Ele vem sem nada? Vem pobre, vem nu, vem com as limitações, as fragilidades, a vulnerabilidade de qualquer simples natureza, de qualquer simples humanidade?
Deus vem abraçar a nossa humanidade, Deus não nos vem deitar fora. Deus não vem dizer: “Estás ultrapassado, isto já não serve, vai para a gaveta”. Não, Ele vem dizer: “A tua humanidade é o lugar de Deus, aquilo que tu és é o lugar onde Deus vai nascer” – e Ele assume completamente aquilo que eu sou. Isto, queridos irmãos e irmãs, dá-nos uma confiança, uma certeza de um amor, uma confiança de que vale a pena, de que nós não somos os antepassados de nós mesmos, que nós já perdemos a corrida. Mas vem dizer-nos que nós estamos em movimento, que nós estamos abraçados, nós estamos como naquelas imagens do profeta Isaías que hoje nós lemos: “Ele será o pastor e tomará os cordeiros em seus braços e conduzirá as ovelhas ao seu descanso”. É isto o Natal.
É este entendimento de que nossa humanidade vale, e por isso é a partir dela que nós temos de encontrar a linguagem, a relação, o modo de ser uns com os outros, é a partir das nossas humanidades.
Queridos irmãos, vivamos o Advento, caminhemos no Advento, espiritualizemos este tempo, sem cairmos em dualismos um pouco idealizados, procuremos viver com o que é a nossa tradição, o que é a nossa forma, mas procuremos fazer mais, dar um sentido, passar uma mensagem, criar outro tipo de oportunidades, porque só isso é capaz de espelhar o significado profundo do Natal.
O resto, tudo, é uma onda que passa.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo II do Advento
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2017/12/08 - A morada de Deus (homilia)
Todos nos lembramos daquele poema célebre do Alberto Caeiro em que ele conta que o Menino Jesus fugiu do céu e veio viver com o poeta. Veio viver com o próprio Caeiro e criaram entre os dois uma cumplicidade muito bonita. É um poema extraordinário sobre a relação com Deus e, no fundo, sobre o desejo de Deus. É sobre isso aquele poema.
Mas, ao mesmo tempo, o poema também reflete as ideias de Fernando Pessoa e as ideias do tempo acerca de Maria e do seu papel na história da Salvação. E uma das coisas que segundo Pessoa/Alberto Caeiro fez com que o Menino Jesus abandonasse o céu foi porque a Sua mãe não era mãe, a sua mãe não tinha sido uma mãe. A sua mãe, diz o poema assim de uma forma um bocado crua, era uma mala que serviu apenas para Deus meter lá Jesus e ela o trazer para a terra. Digamos, era uma mãe simplesmente meio de transporte e não uma verdadeira mãe, que gera biologicamente mas gera para a vida, gera no seu todo, gera continuamente. A gestação e a maternidade não são um momento pontual, não são apenas um assunto biológico. A maternidade é uma questão de vida, é um acompanhamento, é uma arte, é um permanecer ao lado, é um dar a vida até ao fim. E ele diz: o menino Jesus não teve isto, teve apenas alguém que o pôs no mundo.
Ora, nós celebramos hoje a festa da Imaculada Conceição de Nossa Senhora, em pleno tempo de Advento. Exatamente celebrando o contrário disto, aquilo que Fernando Pessoa não viu. É que Maria é uma verdadeira mãe de Jesus, é verdadeira mãe de Jesus. E ela gerou-o continuamente, ela acompanhou os grandes momentos da vida de Jesus. É verdade que os Evangelhos falam pouco de Maria, mas de uma forma discreta ela está presente em todos os momentos. Está presente na Anunciação, antes Dele nascer. Ele era uma história no coração dela antes Dele chegar, como acontece com todas as mães. Os filhos começam por ser um sonho, um desejo, uma imagem, uma semente até ao momento em que eles surgem. Depois temos os momentos da infância em que Maria vai também descobrindo o Seu Filho, muitas vezes com surpresa. Como as mães e os pais também descobrem os seus filhos, os filhos são fruto deles mas são outro, são uma alteridade. E essa descoberta delicada, respeitosa que ampara a alteridade do outro é muito o papel dos pais.
Depois, no momento da vida pública de Jesus, quando acusavam Jesus de ter perdido o juízo, de ter enlouquecido e estar num caminho de colisão com as instituições do tempo, Maria vai ao encontro de Jesus para busca-Lo para Nazaré. E o facto de ela não O levar para Nazaré também quer dizer alguma coisa da cumplicidade profunda entre os dois. E depois temos Maria aos pés da cruz, no Evangelho de S. João, naquele relato íntimo e comovente em que Jesus confia a Sua mãe ao discípulo amado e o discípulo amado, e nele toda a Igreja, à sua mãe.
De maneira que Maria tem, de facto, um papel contínuo na vida de Jesus. E o que Deus faz com Maria faz connosco, e isso é aquilo que para mim é extraordinário nas leituras que hoje escutamos. Porque, quer na primeira leitura do livro do Génesis, aquele relato, o poema do jardim, quer no relato da anunciação de S. Lucas nós temos muita conversa. Quer dizer, Deus não chega e diz: Meus amigos, vai ser assim. Não, Ele faz perguntas, Ele quer saber, Ele pergunta: Como é que é? Ele dá espaço para as nossas perplexidades, para que nós possamos dizer: Mas eu não vejo como é que isso vai ser? Quer dizer, Deus não nos atropela.
Como é que Deus nos salva? Deus salva aceitando o que nós somos, aceitando o que nós podemos dar, aceitando o que nós podemos ser em cada momento da nossa vida. Deus não passa por cima de nós a dizer: Eu vou-te salvar quer tu queiras quer não. Não, Ele dialoga connosco. Nesse sentido, o poema do jardim é incrível, porque Deus vem e pergunta a Adão: “Onde estás?” Os mestres rabínicos diziam que esta é uma das passagens mais complicadas da Bíblia porque, aparentemente, põe em risco a própria omnisciência de Deus. Quer dizer, Deus vai perguntar a um homem: “Onde estás?” Deus sabe tudo. Claro que Deus sabe onde Adão está. Se Deus sabe porque é que pergunta? Então, ou aquela passagem é um erro porque põe em causa a omnisciência de Deus ou é uma passagem que está a mais, um apêndice e deve ser retirado, porque na Escritura só está aquilo que é necessário.
Mas, de facto, o tempo gasto por Deus na conversa com Adão, com Eva é um tempo necessário. O tempo que Deus gasta com a nossa humanidade é um tempo necessário. Porque, amar, envolver, salvar não é senão partir da nossa realidade, partir da nossa fala. Deus escuta-nos, Deus não é uma super estrutura por cima de nós que quer nós vejamos ou não, quer nós estejamos ou não, quer conheçamos ou não, quer queiramos ou não, a Sua salvação, o destino que Ele programou vai acontecer. Não, Ele não nos trata como marionetes, Deus não nos trata como coisas, trata-nos como filhos e como filhos livres na sua liberdade.
Por isso, é muito belo aquele diálogo inicial: “Porque é que te escondes?”, “Onde estás?” E depois com a mulher: “O que é que aconteceu?” Ouvindo muitas vezes aquilo que o homem pode dizer, que nós podemos dizer. Muitas vezes sacudindo, desculpando-nos, sacudindo os verdadeiros motivos. Mas, Deus não diz a Adão: Isso não é assim. Não diz a Eva: Isso não é assim. Deus aceita, Deus acolhe a verdade também da nossa fragilidade, da nossa vulnerabilidade e da nossa liberdade. Deus toma-nos a sério, Deus toma-nos a sério.
E a mesma coisa nós temos no diálogo do Anjo com Maria. O Anjo diz-lhe uma coisa e ela fica perturbada com aquilo: “Mas o que é isto?” E, quando o Anjo lhe diz o que vai acontecer, ela fica perplexa e traduz a sua perplexidade: “Mas como é que isso poderá ser?” E, no final, ela dá o seu assentimento, ela diz que sim: “Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a Tua Palavra.”
Queridos irmãs e irmãos, é importante sentirmos que a fé acontece num diálogo com a nossa vida, com o que somos. O que temos a dizer a Deus é muito importante. Deus gasta tempo connosco. Ele salva-nos amparando a mulher e o homem que somos, acudindo-nos, num amor incondicional. E essa é a Sua forma de nos salvar. Por isso, nós não nos vamos salvar apesar de nós mesmos, nós vamo-nos salvar connosco mesmos. Com o que somos.
E o presépio é muito isso. O que é que é o mistério da encarnação de Jesus? É a exaltação da nossa humanidade, é dizer: a nossa humanidade é a morada de Deus, é um lugar de Deus. Jesus veio dizer que a nossa carne é teomórfica, o nosso corpo tem a forma de Deus. Então, a nossa vida simples, pequenina, a patinar com as dificuldades todas, ela é o lugar de Deus, ela é a manjedoura de Deus. E isso faz-nos olhar para a nossa vida com uma confiança que nós precisamos. Eu acho que às vezes o que nos atropela e o que nos trava é uma desconfiança, uma insegurança, uma falta de amor em relação à nossa própria vida. Deus vem para dar-nos essa confiança incondicional. Porque, e isso liga-nos ao texto que hoje escutamos da Carta aos Efésios, o plano de Deus não é o castigo. Deus não é como aquelas diretoras de orfanato muito severas, que cuidam de filhos que não são delas e não têm paciência, e vivem com a ideia do castigo e da ordem e da lei. Deus não é assim, Deus é pai e mãe, Deus cuida verdadeiramente de nós. Deus escuta-nos, Deus toma a sério a nossa liberdade, a nossa humanidade.
E no princípio não está o pecado original, não está a falta original. Deus olha para nós e não diz: Falta-lhe isto, falta-lhe aquilo. Deus, quando nos olha, não olha para o que nos falta, não olha uma falta de origem, um pecado de origem, uma falha no sistema. Deus olha-nos com deslumbre, com amor. E é isso que nos escutamos na Carta aos Efésios: “Bendito seja Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que do alto do céu nos abençoou com todas as bênçãos em Cristo. Ele escolheu-nos antes da criação do mundo para sermos santos e irrepreensíveis na sua presença.”
O filósofo Paul Ricoeur ajudou-nos muito a ver que nós construímos uma cultura, também uma cultura cristã, muito com base na ideia do pecado original. Há uma coisa que nós temos de pagar. Há uma divida que nós temos de recompensar de alguma forma. Nós nascemos e já estamos em dívida. E ele diz: a esta visão nós temos de colocar a visão que nos aparece precisamente na Carta aos Efésios. Que é assim: mais do que uma divida, mais do que uma falha original nós temos de falar de uma graça original, de uma bênção original. Então, cada um de nós no princípio é essa bênção. Nós temos de viver da memória de um amor incondicional que é o nosso ponto de partida. Nós já somos amados, nós já somos salvos na pessoa de Jesus Cristo. O projeto da nossa vida é atualizar, é viver dessa memória de amor.
Isto é muito importante porque, por vezes, dentro de nós muitas vezes ainda subsiste uma imagem de Deus que não é a imagem de Deus que Jesus veio revelar. É um Deus totalitário, é um Deus que nos vigia, é um Deus que nos pune, é um Deus que desconfia das nossas intenções e daquilo que fazemos. Temos de colocar em vez desse Deus o Deus de Jesus. O Deus que é Abbá, o Deus que desde o princípio nos espera com amor, o Deus que respeita a nossa liberdade, o Deus que nos ama, o Deus que aceita as nossas respostas e que aceita até a nossa vulnerabilidade, aceita o nosso pecado.
A história da salvação, segundo o poema das origens, começa com a transgressão. Deus aceita a nossa transgressão, Deus aceita esta incerteza que entra na nossa vida. Deus aceita isso e faz caminho connosco e não desiste de nós. O presépio é a imagem que Deus não desiste de ninguém, Deus não deixa para trás ninguém e por isso Ele vem nascer. Vem nascer como um dos últimos precisamente para nos ganhar a todos, para ninguém ficar de fora, para todos sentirem o abraço de Deus, para sentirem que Aquele que nasce diz respeito a todos, a todos.
Eu lembro-me de há uns anos atrás quando eu estava em Roma a viver que havia um presépio, destes monumentais que as câmaras fazem (ou pelo menos em alguns lugares fazem presépios), na Praça de Espanha, muito bonito, e na Véspera de Natal desapareceu o menino Jesus. Depois veio-se a descobrir que tinham sido dois sem-abrigo que tiraram o menino Jesus do presépio para o levarem para o seu próprio presépio. Esta compreensão é a melhor proclamação do que é o Natal. Jesus vem para ser junto de todos, para ser o Emanuel, para ser o Deus connosco. Por isso, Ele é universal, Ele vai para lá de todas as estruturas, de todas as fronteiras, de todas as divisões económicas, morais, políticas, étnicas, de todo o tipo. Ele é o humano, Ele é humano, Ele é o Deus connosco.
Como dizia o Fernando Pessoa, naquele belo poema com que comecei: ‘Brincava com Ele de manhã, à porta de casa, às cinco pedrinhas, e eles riam-se os dois. E, à noite, quando o menino Jesus estava cansado, ele levava-O ao colo para a cama.’ O poema acaba assim: “um dia quando eu morrer e despir o meu ser cansado e humano, leva-me, tu, criança ao colo, e dá-me tu os sonhos com que eu vou brincar.”
Pe. José Tolentino Mendonça, Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria
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2017/12/03 - Vigiai! (homilia)
Nós começamos hoje a caminhada de Advento. É importante perguntarmo-nos o que é para nós o Natal. Como é que cada um de nós se relaciona com este acontecimento que é, por um lado, o mistério da Incarnação do Senhor mas, por outro lado, a expectativa da Sua vinda.
Porque, de facto, a nossa vida está colocada entre duas vindas: a primeira vinda do Messias, que aconteceu há 2000 anos atrás, mas nós somos o povo messiânico, nós continuamos à espera e por isso ouvimos na Carta aos Efésios o autor Paulino dizer: “Estai vigilantes, estai expectantes, até que Cristo venha ao vosso encontro.”
E neste capítulo 13 do Evangelho de Marcos que hoje lemos, a mesma coisa: “Estai preparados, não aconteça que a vida vos torne sonolentos, sonâmbulos, distraídos e quando vier o Senhor, não O reconheçais!”
Por isso o imperativo final desta passagem é: Vigiai, estai atentos!
O que é para nós o Natal? O que é que estamos dispostos a fazer neste tempo? O que é que um cristão é chamado a fazer neste tempo? É ir apenas reabrir as caixas para montar a pequena cena que nós colocamos num espaço da nossa sala? Apenas buscar uma árvore, um pinheiro, enchê-lo de fantasia? Sonhar com os presentes, ajudar as crianças nesse sonho e depois tudo acabar no final do dia 25?
Qual é o nosso papel, o que é que nós esperamos verdadeiramente?
Nós somos herdeiros de uma grande transformação cultural que foi no sentido de uma individualização, do reforço do papel do sujeito, e da sua subjetividade; isso foi um movimento muito importante, que de certa forma construiu o mundo moderno e que de certa forma também é reação ao mundo anterior, onde a dimensão do coletivo, da tribo, da nação, praticamente não deixava espaço para as trajetórias individuais, para a liberdade de cada um.
Hoje, pelo contrário, porventura caímos no perigo oposto, que é: cada um de nós se sente um fragmento, se sente a viver uma história que tem a ver com ele, que é ele que tem de resolver, que é ele que tem de organizar, e sentindo-nos assim a gerir um assunto apenas privado que é a nossa vida.
E também em relação ao mistério da fé, nós privatizamo-lo de tal forma que quando pensamos no Natal e no Advento pensamos:
“Eu tenho de ser melhor, eu tenho de fazer alguma coisa por mim, eu tenho talvez de ser mais caridoso, mais atento, mais paciente, mais generoso, tenho de ser mais espiritual, menos materialista…” Mas na lista de prioridades, de tarefas ou compromissos que nós colocamos para fazer no Advento em vista do Natal é tudo: “Eu, eu eu, eu, eu…”
E não está mal, seria pior se nós fizéssemos uma lista para o outro fazer – mas, de qualquer maneira, isso é um sintoma da forma como nós interpretamos o Natal e interpretamos o mistério da fé. De uma forma muito rude, nós vivemos como se Cristo já não voltasse mais, como se Ele já não voltasse, como se verdadeiramente a nossa espera fosse inútil, como se o que o cristianismo nos pedisse fosse um: “Volta-te para o passado, e tira do passado a força, tira do passado a inspiração.”
E é um pouco isso que nós fazemos, vamos ao passado buscar, vamos à cena do Presépio retomar a história, a narrativa, que nos pode tornar melhores, que pode hoje dar algum sentido à nossa vida…
Mas verdadeiramente não nos assumimos como povo messiânico, a viver uma tensão que não é apenas a afirmação do passado, não é apenas para dizer “o passado era verdadeiro”, mas é um compromisso com o futuro, é uma tensão que atravessa e transforma o próprio presente, porque Cristo está para vir, Ele está para chegar. Nós somos o povo que acredita nisso, e que se sente mobilizado por essa expectativa.
É interessante, por exemplo, revisitarmos os textos cristãos das origens sobre o Natal, o modo como S. Mateus conta o nascimento de Jesus. Ele conta aquela história em paralelo, numa relação de conflito, de hostilidade: de um lado, temos Maria, José e Jesus e, do outro lado, temos Herodes. E Herodes sente-se ameaçado pelo nascimento de Jesus: num ato tresloucado, manda matar as crianças todas que nasceram naquele ano, tenta seduzir os Magos para eles lhe trazerem informação privilegiada para ele anular, eliminar Jesus. Vêm estes pagãos do Oriente, estes Magos, vêm de longe trazendo presentes e adorar este Deus que nasce. Este gesto é um gesto político, porque Israel vive a afirmar a sua identidade, o Messias seria o Messias de Israel – e contudo vêm os pagãos, os gentios das outras nações, que atravessam e vêm perguntar exatamente ao Rei qual é o outro Rei que nasceu.
Então o tempo de Natal é também um tempo de conflito, é um tempo de combate, é um tempo de luta – porque de repente aparece um Rei que põe em causa os nossos reinados, põe em causa a forma como nós organizamos a vida. O Messias vem desativar a própria lei, desativar o mundo como nós o conhecíamos.
Os Evangelhos são escritos também como textos contra aquele modelo tipicamente judaico, nacionalista, de esgotar a religião – e então o cristianismo vem abrir, daquele nacionalismo estrito, vem abrir ao universalismo, é uma bomba… É uma bomba com estilhaços por todo o lado, e são textos também escritos contra Roma, contra o imperador romano – porque se vai dizer que o verdadeiro Messias, o verdadeiro Filho de Deus não é um imperador, como o Senado de Roma acreditava, mas o verdadeiro Filho de Deus é aquela criança que nasce naquele curral em Belém.
Este é um gesto que transforma completamente o mundo, e quando chega o Messias, a Lei que vigorava antes do Messias deixa de vigorar, porque o Messias traz uma nova Lei, traz uma nova Ordem, traz um novo modo de viver, traz um novo olhar à vida.
O que nós esperamos, queridos irmãos, não é apenas a recordação infantil, comovida, boa, genuína e ingénua, do que aconteceu há 2000 anos atrás. Nós, mulheres e homens estamos aqui neste ano de 2017, a assumir-nos como um povo messiânico, como um povo que diz: “A nossa vida não se resolve só por nós, a nossa vida resolve-se em diálogo, em relação com este Jesus que vem – e este Jesus que vem obriga-me a viver de certa maneira, obriga-me a trazer no coração um conjunto de convicções fundamentais, obriga-me a ser d’Ele, a viver na espera, a pertencer-lhe cada vez mais, porque Ele vem, e o meu tempo é de expectativa…
Por isso, talvez em vez de fazermos presépios no cantinho da nossa sala, devíamos abrir a janela, devíamos abrir a porta, abrir as mãos, abrir o coração, e dizer: “Vem, vem”, e dizer: “Eu estou à espera, eu quero que Tu venhas, eu estou aqui disponível para a Tua vinda, e eu quero ser uma testemunha desse futuro, um testemunha desse novo lugar, uma sentinela dessa fronteira que significa de facto a Tua vinda, Tu seres tudo em todos…”
É claro, sendo assim, o Natal é muito exigente, é um tempo exigente para nós, porque não é apenas buscar aquele conforto que se derrama suavemente nas nossas almas, é buscar o desconforto daqueles que se colocam de pé e fazem das suas poucas forças um lugar para se erguer e dizer: “Senhor, eu estou aqui, eu estou à espera, eu vivo à Tua espera!”
Será que nós vivemos à espera do Messias? Será que em nós se reconhece essa sede, essa incompletude, esse desejo, essa inquietação, esse desassossego, essa fome profunda? Será que somos devorados pela espera de Deus, pelo desejo de Deus – ou já nos aburguesamos em termos da nossa fé e já temos o suficiente, já vimos o suficiente, no fundo já não precisamos de uma segunda vinda?
Queridos Irmãos, vigiai, vigiai! É como vigias, como visionários, como gente que olha, como gente que transporta novas visões que o Advento nos coloca, é uma responsabilidade…
Que saibamos de facto sentir o chamamento a sermos um povo messiânico e a não metermos o messianismo na gaveta, praticando uma religião do autoconforto, da autoajuda, que tem tudo para nos manter no “quentinho” do nosso caminho, mas não cria aquela disrupção do homem para consigo mesmo, que diz: “Eu não sou a medida de todas as coisas, eu estou à espera daquele que me mede, da verdade que chega, da verdade de Deus”…
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo I do Advento
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Novembro
2017/11/30 - Etty Hillesum, um coração pulsante (homilia)
Queridos irmãs e irmãos,
O Senhor passa pela nossa vida, Deus passa pela nossa vida.
A Sua Palavra é sempre a mesma, o repto de Deus é um repto eterno. É este “Segue-me!”,
faz da tua vida uma obra plena, faz da tua vida um momento de eternidade, faz da tua vida uma obra de arte, uma obra-prima, enche a tua vida dessa luz… Isso só acontece quando nós seguimos, quando nós nos desprendemos e vivemos no seguimento.
Este chamamento, como S. Paulo lembra, é um chamamento universal e é um chamamento que está sempre a acontecer.
Hoje, nós fomos chamados diversas vezes, e seremos ainda chamados. Em cada dia que o Senhor nos der, Ele há-de passar rente ao nosso barco, rente à nossa praia para dizer a mesma palavra que disse a Tiago, filho de Zebedeu e a seu irmão João, a mesma palavra que disse a Pedro e a seu irmão André, cuja festa hoje nós celebramos: “Vem e segue-me, eu farei de vós… uma coisa nova”
Hoje, nós juntamo-nos aqui para celebrar o aniversário da morte de Etty Hillesum. Ela, sendo judia, sendo uma mulher secularizada, distante da religião, sendo habitada por tantos contrastes, tantos ventos contrários, ela ouviu a voz do Senhor: “Vem e segue-me!” E isso fez na vida dela toda a diferença.
Nós conhecemos todos a vida de Etty, tivemos o privilégio de andar por aqueles lugares, (pelo menos uma parte, mas os que não foram também foram…), de maneira que para nós é uma história conhecida, que trazemos no nosso coração. Por isso, eu queria hoje perguntar: “Qual é o desafio que Etty nos faz? O que a sua vida, a sua morte, representam para nós?” Eu diria que é um triplo desafio.
O primeiro desafio é o da autenticidade. Etty foi uma mulher autêntica. Autêntica no disparate – foi autêntica e viveu o que tinha de viver: as procuras, os enganos, as ilusões, desilusões, a experiência do mal. Ela foi autêntica aí.
E viveu com autenticidade a santidade, que é uma coisa que nós temos, se calhar, dificuldade em viver. O nosso problema não é tanto de ser autênticos no disparate, mas é de ser autênticos na santidade. Ficamos com pudor, com reserva, temos medo de ir, temos medo de ser… no fundo, nós temos medo de ser. Nós que somos cristãos, nós que estamos dentro deste oceano de amor de Deus, nós que ouvimos “Vem e segue-me, vem e segue-me, vem e segue-me”, temos medo de ser… Algo nos impede. Vamos até certo ponto, damos mas nunca damos tudo, acreditamos mas não completamente, seguimos mas não com todo o nosso ser. Há sempre uma reserva, alguma coisa que nós não entregamos. E isso gera na nossa vida às vezes uma duplicidade, às vezes uma distância, às vezes uma incapacidade de ir até ao fim, às vezes uma “mornice” – ficamos num estado morno, não somos frios, mas também não somos quentes…
E Etty, de facto, é de uma autenticidade “Se é para ir, vamos!” Ela foi assim ao longo da sua vida toda, e nós estamos aqui a celebrar a memória da sua vida e da sua morte exactamente por isso: porque ela viveu com autenticidade.
A cada um de nós o Senhor também diz coisas, também pede coisas. Há coisas que cada um de nós vê, há coisas que cada um de nós sente. Sigamos, sigamos, sejamos! Sem os medos, sem as dificuldades, sem…
Outro desafio que a Etty nos faz é perceber que “é agora!”
Eu acho que se nos caísse em cima o que lhe caiu em cima, nós achávamos que era: “No fim, se isto tudo sobreviver, se alguma coisa restar, então vamos começar de novo. Quando isto tudo passar, quando o inferno acabar, então vamos começar a ver a luz.”
Ela teve a ousadia de dizer: “Não, é agora!”, “É no meio do inferno, é no tecto em chamas que eu vou olhar para as flores, que eu vou cuidar de flores. É na latrina do campo de concentração que eu me vou ajoelhar e rezar, é na caserna mais imunda, mais sitiada pela dor que eu vou tratar das flores” ou “que eu vou sentar-me a ler o poema do Rilke” ou “que eu vou rezar” ou “que eu vou servir”, ou “que eu vou oferecer a minha vida pelos outros”… é agora, não é num tempo ideal, não é num “quando” hipotético, que depois nunca é… Não, “é agora!”… é agora o quê? É agora que eu vou tornar a minha vida um centro espiritual.
E a vida de Etty Hillesum, o que é que foi? Foi um grande centro espiritual.
Onde quer que ela estivesse, na barraca, ela era o coração pulsante da barraca, o coração pensante daquelas tendas. Ela fez da sua vida um centro espiritual. No Centro Judaico, em Amesterdão, nas visitas, no campo de concentração, ela construiu de facto um centro espiritual. Onde a espiritualidade não era uma coisa teórica, era uma coisa prática, uma coisa vivida, que ela traduzia de mil formas num quotidiano banalíssimo.
E talvez a parte mais incrível do testemunho de Etty Hillesum é que o seu Diário espiritual é um relatório do quotidiano, de uma mística do quotidiano, daquilo que se pode fazer todos os dias, transformando a vida num grande centro de vitalidade, de revitalização espiritual – através da oração, através da palavra, através do testemunho, através da relação invisível, tornando o tempo um templo. Ela fez do “tempo um templo”…
O último desafio é aquele que se liga a esta data que nós estamos hoje a celebrar, e que é aquilo que ela escreve no postal quando sai naquele comboio onde as pessoas iam aninhadas, como troncos para a fogueira. Ela escreve naquele postal: “Saímos do campo cantando.”
A capacidade de sair cantando, de viver cantando… quando nós perguntamos: “Mas saiu cantando como?”, “Saiu cantando porquê?”, “Como é que é possível?”
Saiu cantando não ignorando, não desconhecendo, o destino final… “sair cantando” é um ícone!
Se eu tivesse de escolher uma imagem da vida de Etty Hillesum era dela a cantar …essa canção que, no silêncio do nosso coração, neste dia, nós podemos ainda ouvir…
Pe. José Tolentino Mendonça, Aniversário da morte de Etty Hillesum, 30 de novembro de 2017
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2017/11/26 - Criados pelo amor dos outros (homilia)
Penso que é consensual elogiar a nossa autonomia, a autonomia pessoal – cada um de nós se sentir com capacidade de levar a sua vida por diante e fazer responsavelmente as suas escolhas, viver segundo o seu jeito, a seu modo, a sua arte, a sua vocação. Cada um poder desenvolver as suas competências dessa forma autónoma é alguma coisa muito boa nas nossas vidas – sentirmos que a responsabilidade da nossa vida é nossa e que nós temos de responder, e que ninguém vai viver por nós as várias etapas da nossa vida. Somos nós, muitas vezes na nossa irredutível solidão, no nosso silêncio, que temos de dar o passo em frente. E construímos a nossa vida para assumir a responsabilidade que a existência significa.
Viver significa agarrar nas próprias mãos a vida e levá-la por diante. O grande perigo é nós acharmos que somos completamente autónomos, que dependemos apenas de nós, que vivemos em função de nós e que a nossa missão e a nossa vocação fundamental se esgotam no cuidado de nós próprios e na afirmação pessoal nas diversas áreas que compõe a nossa humanidade. Porque, se pensarmos bem, a nossa vida em todos os seus momentos fundamentais foi um dom, foi um dom. Foi objeto de uma conspiração amorosa para que nós pudéssemos ser, para que nós pudéssemos viver.
Ainda esta semana tive a alegria de ser mais uma vez tio-avô. E, a preparação do nascimento da criança que nasceu, o envolvimento de toda a gente, o correr, o andar de um sítio para o outro, fez-me recordar aquilo que está na origem da vida de todos nós e que às vezes nós temos uma dificuldade enorme em trazer à nossa memória: talvez na etapa fundamental da nossa vida, que é a nossa entrada na vida, nós não fomos os protagonistas. Erámos o alvo de toda a atenção, de todo o cuidado, tantas mãos se juntaram, tantas vidas se juntaram para que aquele momento pudesse ser um momento feliz, um momento de chegada tranquila. Mas, naquele momento, nós fomos completamente criados pelo amor dos outros, pela ternura dos outros, pelo profissionalismo dos outros que geraram a nossa vida.
Então, há esta memória fundamental em todos nós que é: Como é que tu nasceste? Como é que tu chegaste? Como é que tu começaste? Mas não só não foi apenas há 80 anos, há 50 anos que aconteceu isto, se olharmos bem está sempre a acontecer.
Por isso, na leitura do profeta Ezequiel, o pastor que representa Deus diz: “Eu cuido diretamente das minhas ovelhas, eu vou cuidar delas, pego-as ao colo, trato da ferida da que anda doente, robusteço e encorajo aquela que está forte. Sou Eu.” Há uma rede de cuidados da qual muitas vezes nós não tomamos consciência, porque olhamos para a vida de uma forma automática. Por um lado, como se tivéssemos direito a tudo, como se o nosso dinheiro comprasse todos os serviços e todo o amor que nos rodeia. Muitas vezes achamos que o pão sai do nosso saco em casa, que as coisas que enchem o nosso frigorífico saem diretamente do nosso frigorífico, que as pequenas e grandes coisas do nosso quotidiano não têm por trás uma rede de cuidadores da nossa própria vida. E não apenas em relação à vida presente, ao aqui e ao agora. Na Carta de S. Paulo aos Coríntios, neste magnífico capítulo 15, S. Paulo diz: “Assim como por um homem começou a existência no mundo, a nova vida, a nova criação também começa por Jesus Cristo.” E Ele vem para dar uma nova criação, para ressuscitar-nos e para garantir que Deus seja tudo em todos. Então, na nossa origem e na nossa escatologia, no nosso meio, nós somos objeto desse cuidado permanente. Por isso, penso que há uma gratidão à vida, há uma gratidão aos outros, um reconhecimento de que, de facto, somos objeto de um amor que muitas vezes nós não temos olhos para o ver, para o saudar, para dizer obrigado, obrigado, obrigado. Por todos os dias, por tudo aquilo que recebemos incessantemente, incessantemente. Se é verdade que às vezes nos lamentamos e nos queixamos: falta isto, falta aquilo, poderia ser de outra maneira, isto foi feito desajeitadamente, não era o que eu merecia. Mesmo assim, o bem supera em larga medida o lado desajeitado ou o lado mais cru da própria existência. Por isso, nós precisamos de aprender a gratidão e de dizer mais vezes obrigado, tomando consciência da rede que nos sustenta, que é uma rede que não é apenas económica. Achar que é a dimensão económica, é o nosso porta-moedas, que resolve o cuidado da nossa vida é tão pouco, é tão pouco. Porque essa é apenas uma parte, é apenas uma mediação, é apenas uma condivisão do dom. Porque, o cuidado mais importante é impagável, o cuidado mais verdadeiro, aquele que nos embala, aquele que nos dá colo não tem preço, não tem medida. E precisamos agradecer, precisamos agradecer e tomar consciência de como Deus cuida de nós, como somos cuidados, como a nossa vida é estimável – é inestimável a nossa vida. E nós somos embalados diariamente nesse amor. Não vivamos como se tivéssemos direito a tudo, como se tudo nos fosse devido, mas expressemos mais vezes o nosso reconhecimento tomando consciência de que, por um lado, nós somos os protagonistas da nossa vida, mas há tantos coprotagonistas sem os quais a nossa vida não seria possível que verdadeiramente o nosso coração se tem de encher de reconhecimento.
A consciência de que somos cuidados tem de nos tornar cuidadores da vida uns dos outros, se não a vida é uma oportunidade perdida. Se não nos tornamos cuidadores perdemos a vida, perdemos a vida. É isso que Jesus nos diz neste capítulo do Evangelho de S. Mateus, onde Ele diz, quase de uma forma crua, como se fosse um juízo universal, o juízo final. Porque tem de haver um momento em que nós percebemos: ou acertei ou falhei. Não vamos andar sempre a enganarmo-nos, não vamos andar sempre numa bolha de ilusão. Há um momento, e na vida de todos nós esses momentos acontecem, em que se despertam sorrisos ou se acordam lágrimas em que nós percebemos: eu perdi a minha vida ou valeu a pena ter vivido, valeu a pena ter estado ali, valeu a pena ser quem era, valeu a pena o caminho que eu fiz porque pude ser, pude servir, pude cuidar. E é, de facto, a dimensão do cuidado que é para Jesus o ponto que nos deve servir para perceber se a nossa vida valeu, ou se a nossa vida em algum momento ficou para trás, em algum momento se perdeu. Jesus é muito concreto, Ele diz: “Vinde, benditos de Meu Pai, recebei em herança o Reino. Porque tive fome e destes-Me de comer, tive sede e destes-Me de beber, era peregrino e Me recolhestes, era peregrino e Me vestistes, estive doente e viestes visitar-Me, estava na prisão e fostes ver-Me.”
Podemos dizer: isto é para interpretar simbolicamente. E é também simbolicamente porque muitas pessoas nos dão de comer. Para mim, às vezes um texto, uma palavra, é como um pão. É tão saborosa ou mais saborosa do que o pão que como. E aquilo que nos dá de beber, e aquilo que nos veste é uma rede também simbólica, é. Mas também, é literal, é literal e nós não podemos esquecer isso. Quer dizer, nós cuidamos uns dos outros de forma simbólica, damo-nos uns aos outros e essa dádiva é muito importante. Mas a literalidade destas palavras que Jesus repete às ovelhas e aos cabritos devem entrar-nos verdadeiramente no coração.
Porque, às vezes, andamos perdidos com muitas coisas, muitas coisas importantes, muitas coisas urgentes, muita coisa que nos enche, muita coisa que nos envaidece. E depois? O essencial da vida, a luta pela sobrevivência, os momentos de crise, os momentos decisivos da vida dos outros nós falhamos, nós falhamos. Porque não damos de comer, não damos de beber, não vestimos, não visitamos, não acompanhamos o dilema, os momentos dilemáticos crucificantes da vida dos outros. E, se não estamos lá, é a nossa vida que perdeu a sua função. Nós não nos tornamos conspiradores para que o grande milagre da vida possa acontecer, deixamo-nos como um pão que fica no saco e fica duro de um dia para o outro, até ter de ser deitado fora porque já não tem utilidade. Não deitemos a nossa vida fora. No último domingo do ano, Jesus vem dizer-nos isto: não deitemos a nossa vida fora, tornemo-nos artesãos deste cuidado fundamental, desta assistência à vida, tornemo-nos parteiros da vida todos os dias fazendo a vida acontecer, trazendo a vida cá para fora, alimentando a ovelhinha fraca, encorajando aquela que caminha, reparando, restaurando, recosendo, alimentando, vestindo.
Sabem, às vezes os nossos amigos oferecem-nos imagens que depois nos ficam na cabeça, eu tenho a certeza de que este amigo já se esqueceu daquilo que fez. Mas eu todos os dias tenho pensado nisso. A semana passada, em Roma, num dia depois de jantar, fomos passear ali pela praça de S. Pedro, e estão muitos sem-abrigo a dormir debaixo das colunas. Íamos a conversar, aquelas coisas importantes que os padres e os teólogos conversam, e ele olhou – e depois eu também olhei – para um homem que estava a dormir, estava muito frio, o homem tinha um cobertor mas tinha os pés de fora, os pés assim espetados de fora. E ele deixou-nos e foi e tapou os pés ao homem. E nós ficamos: “Mas o que é que estás a fazer?” E ele chegou ao pé de nós, olhou para o que fez e viu que o outro pé ainda estava por cobrir, e foi outra vez cobrir o pé daquele homem que dormia com os pés destapados.
Aquele gesto eu não me esqueci e penso nele todos os dias. Já não me lembro do que estávamos a conversar, mas lembro-me que ele deixou a conversa para fazer a única coisa que era importante: que era ver quantos pés estavam destapados e tapar os pés daqueles que dormiam na rua. Às vezes pensamos: o que ele teria de fazer era levar o homem para outro sítio. Não, o que temos de fazer é oferecer um copo de água, é dar uma palavra de alento, é limpar uma lágrima, é tapar um pé que está ao frio.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXXIV do Tempo Comum
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2017/11/23 - Percurso de Preparação para o Crisma
2017/11/12 - Espera de Deus (homilia)
Hoje, na leitura do Livro da Sabedoria e no Salmo, temos duas imagens diferenciadas mas que expressam bem o que é o nosso caminho espiritual tantas vezes.
No Livro da Sabedoria temos o elogio da própria sabedoria, e que nos diz: A sabedoria é luminosa e deixa-se ver facilmente àqueles que a amam e deixa-se encontrar por aqueles que a procuram – podemos ir à procura da sabedoria e quando voltamos a casa ela está sentada à nossa espera, na soleira da nossa porta. Então, esta é uma experiência que fazemos: de que a sabedoria, a experiência do sentido, o saber viver, a clareza das ideias, o caminho iluminado diante dos nossos pés é uma experiência fácil – há uma evidência no próprio caminho interior que nós vamos percorrendo.
Mas temos também a imagem do Salmo 62, que diz: “A minha alma tem sede de Vós, eu Vos procuro como terra árida, sequiosa, sem água.” Então, esta experiência também é a experiência que nós fazemos, em que não é assim tão claro – nós procuramos e não encontramos, nós tateamos no silêncio, numa parede e não vemos abertura, não vemos surgir com aquela clareza que o nosso coração deseja, as razões, o significado, a resposta, a estrada que devemos percorrer.
Acho que estamos muitas vezes entre uma coisa e outra. Por um lado, momentos de grande claridade, de extraordinária evidência e, por outro lado, momentos de uma noite escura em que parece que a noite não se descose nunca, nunca surge a aurora e temos uma espécie de travessia num caminho de pedras, num caminho sem respostas.
Entre uma coisa e outra o Evangelho de hoje é um chamamento à espera, nós somos chamados a esperar. Porque, de facto, o nosso caminho nunca vai ser só evidência, nunca vai ser essa claridade, o nosso caminho, aqui na história, nunca atingirá esse nível de transparência que nós idealizamos. Mas temos de acreditar que não há de ser só noite escura, que não há de ser só um caminho de pedras, um caminho para o qual nós não encontramos sentido. Não há de ser uma coisa nem outra, nós vivemos no meio, vivemos uma espécie de intervalo entre um modelo e outro. E, esse intervalo que é a nossa vida, no aqui e no agora, é a espera. Nós temos de olhar para a nossa vida, a nossa existência, o nosso quotidiano, os nossos projetos, o nosso fazer, as práticas da nossa existência, como uma espera.
A espera é uma categoria espiritual muito importante com a qual nos precisamos também de reconciliar. Quem espera sente que está inacabado, que não está tudo concluído. Quer dizer, se eu me entendo numa autonomia total, eu é que vou decidir tudo sobre a minha vida, eu já estou resolvido, o que eu decidir é o definitivo, eu não estou à espera de nada. E às vezes também nós vivemos assim, como se estivéssemos já completamente acabados, como se não precisássemos de um resgate, de um Redentor, que desse sentido à vida. Então, a espera pede de nós esta consciência profunda de um inacabamento. Eu faço-me de tantas maneiras mas não estou concluído, não estou rematado, não estou acabado – sou habitado por uma tensão que é uma expectativa, que é uma espera de uma conclusão e de um cumprimento que não me cabe apenas a mim.
E este é o segundo ponto, o primeiro é de facto a consciência do inacabamento, e o segundo é esta espera do Outro. Porque, nós não esperamos por nós mesmos, esperamos do Outro, esperamos o Outro. Então, a espera coloca-me numa relação. Nós somos demasiado frequentemente ilhas, vivemos numa insularidade, cada um por si, cada um fazendo o seu, colocamos o nosso ego à frente do nosso coração e da nossa alma. Muitas vezes parece que já não esperamos por ninguém, porque não dependemos de ninguém e já temos as portas fechadas e a cabeça arrumada. E a espera é uma categoria espiritual que nos faz esperar por Alguém e perceber que relação é que temos verdadeiramente com Alguém.
Nesta relação, nós vivemos numa atenção. O Evangelho usa a palavra “vigilância”. Em Simone Weil é a Espera de Deus, expectativa de Deus (nome dado ao conjunto dos seus escritos, não é o nome dado por ela, mas é o nome que interpreta o pensamento dela).
Então, tudo aquilo que nós fazemos é uma espera de Deus. Mas como é que se traduz essa espera de Deus? Ela dizia: “Traduz-se em atenção.” Quem espera está atento aos sinais, está atento à vinda. Porque, porventura, Aquele que esperamos já está a chegar, já chegou, já está à porta da nossa casa como a sabedoria. Não está apenas numa espera indefinida, mas está numa realidade concreta que eu sou chamado a reconhecer, no aqui e no agora da minha própria existência.
O Evangelho e a tradição cristã usam um sinónimo de atenção que é: vigilância. Então, temos esta parábola que Jesus contou das dez virgens, cinco prudentes, cinco imprudentes. As prudentes são aquelas que levam não só a lâmpada mas também um recurso, uma almotolia com azeite, para garantir que a lâmpada não terá uma duração breve, mas terá uma duração longa. Nós temos de estar preparados para esperas longas. Quem espera por Deus não pode estar apenas à espera de correr cem metros. Nós temos de correr a maratona, nós temos uma espera longa pela frente, qualquer que seja o tempo da nossa vida, a espera de Deus é uma espera longa.
Por isso, a Palavra de Deus diz: “Meu filho, se entras para o serviço do Senhor prepara-te para as Suas demoras.” Deus demora, Deus tem o seu tempo. Nós precisamos de treinar esta espera. O treinar da espera é o treinar de uma vigilância, o treinar de uma atenção. Ter o nosso coração aceso, ter o nosso coração iluminado, ter os recursos espirituais para manter viva a espera. Porque nós cansamo-nos e, como diz o próprio Jesus na parábola, nós fechamos os olhos, começamos a cochilar, dormimos e, de repente, ouve-se na noite o pregão: “o noivo está a chegar!” E o que é que vamos fazer? Este pregão vai ouvir-se na noite da nossa vida. “O noivo está a chegar!” E como é que esse encontro se vai realizar se eu não estou vigilante, se eu não vivo essa atenção permanente? E a atenção é uma tensão, quer dizer, eu não me basto a mim mesmo, eu não sou a resolução, eu não sou a chave da minha vida, eu estou à espera de Deus. Ele, sim, é Aquele Outro que vem completar, que vem dar sentido, que vem esclarecer. Mas para isso eu tenho de estar nesta atitude de abertura, nesta atitude de quem espera. E por isso, nós somos sentinelas.
O Saint-Exupéry no Cidadela, que agora foi reeditado em português, medita muito sobre a figura da sentinela, que é também uma meditação sobre a identidade cristã. A sentinela está entre a chegada e o profundo deserto. A sentinela está ali sozinha muitas vezes, mas ele sabe que não está só, que ele é o representante de um reino. Às vezes, também na nossa vida, diante de nós está um deserto e atrás de nós está uma noite, e nós às vezes já não sabemos quem somos e o que é que estamos aqui a fazer e para que é que isto serve. Mas para que é que me serve rezar? Mas para que é que me serve ir à missa? Mas para que é que me serve acreditar? Estas perguntas vêm ao nosso coração, deixá-las vir é importante, é sabermos que somos representantes de um reino. Nas horas da nossa fragilidade, nas horas mais vulneráveis da nossa vida, nós temos que dizer a nós próprios: eu aqui sou representante de um reino. A sentinela é aquele que está muitas vezes só, mas é aquele que vê surgir os sinais da aurora.
Então, o vigilante é sempre premiado, porque ele acaba por ver a noite desfazer-se e os primeiros indícios da luz e como essa luz cresce. Por isso, vale a pena vigiar. Um dos motes muito importantes de um grande padre da Igreja, S. Basílio, era: “Vigia sobre ti mesmo, vigia sobre ti mesmo.”
Hoje Jesus convida-nos a viver uma vigilância, convida-nos a viver numa atenção que éuma tensão, a tensão das cordas de uma guitarra esticadas para poder tocar, ou então de uma flecha que a corda tem de ficar bem puxada para a flexa ir longe. Nós também temos de viver nessa vigilância, nessa atenção, não nos bastarmos a nós mesmos, não nos prepararmos para uma espera curta. Não, se entras ao serviço de Deus prepara-te para uma espera longa, porque Deus demora-Se, Deus demora-Se. Mas, esta demora de Deus também é o tempo que Deus nos dá para o acontecer da vida, o acontecer de tantas possibilidades. Esta demora de Deus é também as oportunidades que Deus nos dá para nos surpreendermos com Ele, pelo modo fantástico como Ele entra pela nossa porta dentro, como Ele Se revela na nossa vida, tantas vezes de uma forma inesperada. Mas que o nosso coração esteja atento.
Um dos grandes textos literários do século XX foi o do Samuel Beckett, A espera de Godot, porque diziam que o Godot é um jogo entre o inglês e o francês para dizer “Deus”. Godot é God + Ot , que é um sufixo aumentativo do francês, então era o “Deusão” ou o “Deus grande” ou o “Deusinho”. E seria a peça o diálogo de dois vagabundos que estão ali e que parece que estão à espera de ninguém e, no final, Godot não chega. E o que é que é a peça de teatro? É contar uma espera que é só espera, não é mais nada, é só um tempo. Porque, depois não chega aquele que esperamos.
O Cristianismo, de certa forma, é o anti-Godot, porque nós sabemos que Ele chega. Há um pregão na noite: “Está aí o noivo, esta a chegar o noivo.” E esse pregão é uma coisa que nos sobressalta já no aqui e no agora, porque nós sabemos que Ele vai chegar. Ao contrário desta experiência contemporânea que é: não há nada que nos salve, não há nada que nos resgate, não há nada que nos venha surpreender, não há nada que nos venha levantar disto, não há nada que venha trazer o eterno, não há ninguém. É isso que a peça de Beckett diz.
Nós acreditamos que há Alguém. E no fundo, o que faz a diferença na nossa vida, com toda a humildade, com toda a despretensão, é sabermos que do outro lado está Alguém. Eu acho que isso obriga-nos a viver a todos de uma forma diferente. Uma coisa era se estivéssemos à espera e não chegasse ninguém, outra coisa é estarmos à espera e sabermos que Alguém vai chegar e que esse Alguém vai iluminar por inteiro a nossa vida, vai revelar o sentido de tudo aquilo que somos, vai ser a chave. E vai dar a esta vida, que tantas vezes é terra árida, a fecundidade. Vai encher o nosso coração sedento da Sua luz, da água viva do Seu Espírito.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXXII do Tempo Comum
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2017/11/05 - Querer ser pequeno (homilia)
É sempre assim, é sempre assim. Mas há páginas do Evangelho em que ouvi-las constitui uma responsabilização enorme das nossas vidas, porque não é em vão que escutamos esta Palavra e que a escutamos, hoje.
A grande pergunta silenciosa, que é uma espécie de fio condutor desta palavra, é: Como é que o testemunho que dou é um legado de vida? Como é aquilo que eu sou se torna um acendedor de esperança na vida do outro? Como é que eu me torno um facilitador do encontro com Deus na vida dos meus irmãos, em vez me tornar um obstáculo ou uma armadilha, coisas que também acontecem?
Como é que eu me torno uma ponte que liga em vez de me tornar um muro que divide e separa, que dispersa e afasta?
Como é que eu me torno pastor e partilho dessa condição da Igreja que Jesus Cristo lhe confiou, ser pastor de humanidade em vez de ser lobo uns para os outros, coisa que também acontece? Porque às vezes somos lobo uns para os outros, em vez de sermos pastores que levamos os outros por lugares seguros, por lugares verdadeiros.
Como é que isso acontece nas nossas vidas?
Jesus e o profeta Malaquias falam de situações concretas em que isso não acontece, e fazem o diagnóstico também da nossa vida. Um diagnóstico muito realista, muito concreto.
Porque, muitas vezes, isso efetivamente não acontece, e não acontece porque nós nos sobrepomos. Nós acreditamos mais no poder que no serviço.
Acreditamos mais na imposição de nós mesmos, do nosso eu, àquele milagre silencioso que pode acontecer na vida do outro quando deixamos a liberdade do Espírito acontecer. Quando nós queremos condicionar a realidade dos outros, ou quando apostamos tudo numa vida de fachada e ficamos descansados com isso, em vez de semear. Acreditar na tarefa humílima que é semear coisas. Coisas que nós não controlamos, que não sabemos como vão despertar. Mas quem semeia, semeia numa confiança cega, louca, apaixonada. Mas vai semeando. Às vezes acreditamos mais numa tarefa de controle do que nesta tarefa esperançosa de quem semeia, de quem dá, de quem reparte e não controla o que o outro vai fazer.
A palavra de Malaquias encontra um eco muito forte na palavra de Jesus que critica aquilo que vê e faz este tal diagnóstico: pessoas que querem o primeiro lugar, pessoas que disputam os privilégios, que disputam as honras.
E, no fundo, o que é que acontece num mundo assim? Acontece uma redução da vida, acontece uma diminuição da esperança. É um mundo e é uma vida que não é autêntica, não é marcada por uma autenticidade e, por isso, é oca, por isso é asfixiante, por isso é contraditória dentro de si.
E este diagnóstico que Jesus faz, muito geral, muito universal, muitas vezes é o diagnóstico da nossa própria vida. É por isso que andamos a correr, é por isso nos cansamos, é isso que construímos.
Ora, Jesus diz: não pode ser isso, não pode ser isso que nos anima. Não pode ser essa a nossa forma de estar, de ser, porque isso não é fecundo. E há um momento nas nossas vidas em que nos temos de perguntar se estamos apostados em construir relações fecundas, modos de vida, modos de existência fecunda ou, pelo contrário, se não estamos a esterilizar, a desvitalizar, a esvaziar as possibilidades de esperança, de futuro, de sonho, de Reino de Deus que a nossa vida pode vir a ter.
Paulo dá-nos um exemplo maravilhoso, naquela carta aos Tessalonicenses, que hoje nós lemos, de facto, uma parte muito preciosa, em que São Paulo diz : “Eu, no meio de vós, quis ser pequeno.”
Então, a primeira coisa é querermos ser pequenos, em vez de querermos ser mestres e doutores, e andarmos com grandes borlas e filactérios e saudações. Querer ser pequeno. Num caminho espiritual, o querer ser pequeno é a atitude fundamental, a primeira atitude.
Os monges diziam isto: como os pregos constroem um navio, juntam as madeiras dum navio, assim a humildade constrói um cristão.
E há três coisas que constroem um cristão: primeiro a humildade, segundo a humildade, terceiro a humildade. A humildade tem muito má imprensa, hoje em dia. E nós achamos que a humildade nos tira a afirmação justíssima, e legitima do nosso eu, das nossas ideias. A humildade não, não é nada disso.
A humildade é aceitar o nosso lugar. E é perceber que é fazendo–nos pequenos, que nós ganhamos a capacidade de uma compreensão mais profunda, e não entramos numa lógica de competição e de rankings nas relações uns com os outros, mas aceitamos ser pequenos para servir, para cuidar. E São Paulo diz, eu fiz-me pequeno no meio de vós.
E depois usa duas imagens. “Eu fui como uma mãe”, isto é, eu cuidei de vós, eu exerci esse cuidado fundamental, e essa é também uma dimensão importante a cultivar. Sermos pequenos mas exercermos o cuidado, em vez da reivindicação e da exigência, nós podermos cuidar uns dos outros e cuidar com verdadeiro afeto porque só cuida mesmo quem se envolve com afeto em relação àquele que cuida. E São Paulo diz esta frase tão forte: “Eu não quis apenas dar-vos o Evangelho de Deus, eu quis dar-vos a minha própria vida.” E as duas coisas estão ligadas. Uma coisa é dar teorias aos outros e outra coisa é desejar dar a nossa vida aos outros. Há uma diferença muito grande.
Por isso há aqui uma qualificação do nosso testemunho, que brilha só quando nós queremos dar a vida aos outros. Não querermos dar lições, não querermos dar moral, não querermos dar caminhos, dar dicas certas. Mas querermos dar até a nossa própria vida, empenharmos a nossa vida na relação com os outros. E isso muda tudo. Muda porque nos hipoteca aquilo que dizemos, porque estamos ali inteiros, porque a nossa vida também passa por ali. Nas coisas pequenas, nas coisas simples, no fazer de uma comunidade que é aquilo que Paulo está a dizer.
E depois, ele fala da imagem da mãe, da cuidadora, e fala da imagem do pai.
Que ao mesmo tempo dá o espaço, e vive no desapego. As nossas relações têm que ser marcadas também por um desapego fundamental, não querermos pesar sobre os outros, termos direitos sobre os outros – isso vale na família, vale na amizade, vale na multiplicidade de relações que nós temos – e ao mesmo tempo, uma influência por uma autoridade natural que nasce do estar, que nasce do conduzir, que nasce do guiar. Mas que nasce porque, na nossa simplicidade, representamos para o outro uma referência, representamos para o outro, um exemplo. Mas, digamos, sem vincar isso. Sem fazer com que o outro se sinta obrigado a nos tomar como exemplo. Na liberdade. Foi esse o testemunho de Paulo. Ele construiu assim a Igreja e é para nós um testemunho muito grande. Senão andamos iludidos que é isto ou aquilo que vai marcar, que não vai marcar. E depois nada marca. E a vida é estéril, e é um baralho de cartas que cai, e é um sopro. A vida é um sopro que se vai embora rapidamente se não construirmos uma coisa que seja eterna. Construamos coisas que não morram!
O que é que não morre? O que é que nós sentimos dentro de nós que não morreu?
Foi quando fomos verdadeiramente amados. Sem mais nada. Sem porquê. Quando fomos cuidados. Sem que tivessem ligado o taxímetro, ou nos apresentassem a fatura, que nos dessem as lições, sem querer dá-las, sem impô-las, sem gritá-las. Aconteceu, eu vi, eu percebi a verdade do outro, eu percebi o que ele estava a dizer, e esse é um exercício também de paternidade, também de pastoreio.
Queridos irmãs e irmãos, é uma responsabilidade ouvir a Palavra de Deus. Porque ela, como diz São Paulo, não é uma palavra humana, é verdadeiramente Palavra de Deus. Mas como é que esta palavra se torna Palavra de Deus e não mais uma entre tantas palavras que nós ouvimos? Torna-se Palavra de Deus porque toca o coração. Torna-se Palavra de Deus porque ilumina, porque resgata o nosso cansaço e nos faz acreditar. É palavra de Deus porque nos mobiliza, porque enche o nosso coração de paz quando a escutamos, mesmo que sintamos que a nossa tarefa é enorme e a nossa conversão é urgente e necessária.
Mas sentimos que há uma paz que nos está prometida nesta Palavra que Deus hoje traz ao nosso encontro.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXXI do Tempo Comum
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2017/11/01 - As Bem-aventuranças são a Lei (homilia)
Nesta Epístola de S. João é-nos dita a verdade fundamental: que cada um de nós é verdadeiramente filho de Deus e vive num processo de assimilação ao próprio Deus. Não é um processo de afastamento mas é um processo de revelação de Deus em nós. O amor de Deus, a bondade de Deus, a beleza de Deus, a verdade de Deus, a pureza de Deus está a revelar-se em nós. Como diz o autor desta epístola, ainda não se manifestou o que está destinado a manifestar-se em nós. Ou, essa manifestação vai acontecendo de uma forma gradual. Mas, cada um de nós é chamado a acreditar que é de facto filho de Deus. Não somos apenas chamados filhos, nós somos filhos de Deus.
E ser filho o que é? Ser filho é sentir-se gerado pelo amor de Deus. É sentir que a nossa vida é uma gestação desse amor de Deus. É sentir-se presença, imagem e semelhança, fragmento, lugar, glória de Deus. Por isso, nesta solenidade de Todos os santos temos de sentir valorizada a nossa vida, valorizado aquilo que somos, aquilo que estamos a viver. Porque, muitas vezes a nossa vida parece marcada pela sombra de uma maldição e ela tem de ser iluminada pela luz de uma bênção: a certeza de que somos filhos e de que somos filhos amados de Deus.
Nesta festa de Todos os Santos o que é que nós celebramos? Celebramos esta santidade que, universalmente, é um convite feito a todos, é o amor de Deus derramado universalmente em todos os corações. É este Deus sem limites, sem fronteiras, sem barreiras, sem guetos, sem igrejas que é capaz de Se revelar em todos os seres. Todos os seres são epifanias, nós somos teofânicos, a nossa vida é o lugar da manifestação do divino. E é esse divino que nos habita que é o lugar onde nós podemos colocar a confiança.
A festa de Todos os Santos é um chamamento a sermos divinos, a tornarmo-nos divinos, a acreditarmos com confiança nessa parcela de divino que está em nós e que nós temos de fazer crescer. Como diz a linguagem do autor da epístola: “Nós temos de purificar para podermos viver de Deus.” É muito belo o que o autor diz: “Nós tornar-nos-emos semelhantes a Deus quando vivermos da contemplação de Deus.” Ora, isso não é uma coisa apenas para o post mortem, é uma coisa para o aqui e agora. Nós precisamos de olhar mais para Deus, nós precisamos contemplar Deus, contemplar a Sua misericórdia, a Sua bondade, a Sua vida, a Sua eternidade, atirar para lá o nosso coração. Esse processo de assimilação nasce quando nós nos abrimos com confiança, quando nós fazemos disso a nossa oração, a nossa atitude fundamental. É colocar o nosso olhar em Deus.
Hoje, no Evangelho nós lemos o texto das bem-aventuranças. É a página das páginas do Evangelho. É muito interessante o decor, aquilo que Jesus faz antes de dizer o texto: sobe a um monte e senta-se. Isto tem um significado porque no centro do Antigo Testamento está também uma subida ao monte. Moisés subiu ao monte e, no cimo do monte, Moisés recebeu uma Lei, os Dez Mandamentos, o Decálogo que é o texto fundador da identidade do povo de Israel, do povo da antiga aliança. Jesus também sobe ao monte e senta-se, para que de uma forma solene transmita o ensinamento. Uma coisa é aquilo que se diz a andar, outra coisa é a proclamação solene que se faz sentado. S. Mateus conta-nos as Bem-aventuranças como aquela palavra solene que Jesus quer fixar como letra de uma nova Lei, como fundamento de uma nova aliança que fica inaugurada. Então, para nós as Bem-aventuranças são a Lei, são o Decálogo que Jesus nos oferece.
Olhemos para as Bem-aventuranças. As Bem-aventuranças falam de um viver em tensão, mas numa tensão positiva. Falam de um viver inacabado. Os “pobres em espírito” vivem numa tensão, porque a pobreza em espírito pede de nós uma desmontagem, uma simplificação do nosso coração complicado, da nossa cabeça estranha, das suas associações. Os pobres em espírito pedem um desarmamento do coração que está sempre disposto a tornar-se uma arma de combate. Pobre em espírito o que é? É aquele que se torna simples, que aceita ser pobre, que aceita ser pequeno. E isso é uma escolha, é uma escolha. O que é que são os humildes? São aqueles que se humilham, são aqueles que se fazem pequenos, são aqueles que aceitam o último lugar, que procuram o último lugar. São aqueles que não querem erguer a voz, que não se querem sobrepor aos outros, mas aceitam dar o primeiro lugar aos outros. E escolhem esse lugar humilde, ínfimo, como o seu lugar na vida.
Olhemos para os que choram, para os que estão inconsolados, aqueles que são sensíveis ao sofrimento do mundo. Às vezes nós perdemos a capacidade de chorar. De chorar as dores uns dos outros, de chorar as coisas autênticas, de chorar os problemas do mundo – tornamo-nos insensíveis na nossa capa que nos isola e nos protege, deixamos de chorar. Há quanto tempo não choramos pelo sofrimento dos outros? Não chorar apenas as nossas dores mas chorar os sofrimentos do mundo? “Bem-aventurados os que choram”.
Olhemos para os que têm “fome e sede de justiça”. Isto é, aqueles que querem mais, aqueles que não estão satisfeitos. Aqueles que não dizem: “Bem, para mim tenho, para mim chega, tenho que proteger isto.” Mas aqueles que no seu coração sentem o desejo de uma justiça para todos, sentem o desejo de um mundo melhor, de um mundo mais íntegro. Aqueles que têm uma ambição que não se esgota na sua felicidade, mas querem de facto um mundo iluminado, um mundo onde o amor não seja uma utopia mas seja uma realidade condividida, uma ética partilhada.
“Bem-aventurados os misericordiosos.” Nós vivemos o Ano da Misericórdia programado pelo Papa Francisco e percebemos como é tão difícil ser misericordioso. Porque a misericórdia não é apenas a justiça, a misericórdia é um excesso de amor, é um excesso de gratuidade, é um excesso de generosidade, é viver na lógica do dom, na lógica da doação. A misericórdia é ir além do que nos é pedido. A misericórdia não é apenas cumprir o nosso dever, é dar tudo quanto temos. A misericórdia é essa abertura do coração para que saia o amor, para que saia de facto o amor.
“Bem-aventurados os puros de coração.” Nós que vivemos a fazer contas, calculistas em relação ao poder, em relação à opinião que temos sobre os outros, não queremos ser apanhados em falso em coisa nenhuma. Bem-aventurados os puros de coração, aqueles que são capazes de se tornar puros. Porque, não é apenas o que nós somos quando erámos crianças. Uma criança é isto tudo, mas é isto tudo porque é criança. As Bem-aventuranças é um texto para adultos, isto é, adultos que se tornam espiritualmente como crianças. E isso é um verdadeiro renascimento, é uma verdadeira conversão que é necessária, é uma saída da nossa zona de conforto e um viver verdadeiramente como filho de Deus.
“Bem-aventurados os que promovem a paz”, aqueles que estão sempre preocupados em que se faça a paz. Na pequena escala, na grande escala mas cuidam da paz. Às vezes sabemos que uma palavra incendeia, sabemos que um comentário ou um silêncio acabam por agravar um conflito. Bem-aventurados os que promovem a paz, os que se oferecem diariamente, quotidianamente como artesãos da paz. Bem-aventurados aqueles que são capazes de sofrer por amor da justiça. Os que são capazes de pagar um preço pelas atitudes de amor, pela ética cristã que procuram viver. Bem-aventurados esses.
Ora, quando nós lemos as bem-aventuranças, que Lei nova é que Jesus nos dá? É uma lei que nos diz: não fiques instalado, não fiques cristalizado, não penses que é reforçando o teu egoísmo ou reforçando o teu individualismo que tens o gosto do Reino de Deus, que tens a compreensão, que tens a experiência do Reino de Deus. A experiência do Reino de Deus vem como? Vem se tu te tornares pobre de coração e não soberbo. A experiência do Reino de Deus vem se te tornares gentil, delicado, humilde, pequenino. A experiência do Reino de Deus vem se tu fizeres teus os sofrimentos do teu semelhante. A experiência do Reino de Deus vem se tu tiveres fome e sede de justiça, se isso não te bastar, se tu não pensares apenas no teu conforto mas olhares para a cidade com uns olhos capazes de a transformar, se tu usares de misericórdia, se tu mantiveres a pureza de coração e se estiveres disponível para pagar o custo essencial destas opções evangélicas. A estes Jesus diz: “É vosso o Reino de Deus, sereis consolados, sereis retribuídos, sereis saciados pelo próprio Deus.”
Queridos irmãos, a santidade está em nós. Nós já somos filhos de Deus, mas a santidade tem de ser o programa da nossa vida, tem de ser a tarefa número um. O que é que nós queremos ser como cristãos? Queremos ser santos, queremos ser santos.
A Lumen Gentium, o documento do Concílio do Vaticano II sobre o que é um batizado, diz assim: a santidade é a vocação universal de todos os batizados. A nossa vocação universal é a santidade. Nós fizemos da santidade uma coisa extraordinária para colocar no pedestal, para servir de exemplo, para moralizar. Está certo, mas, ao mesmo tempo, é pouco. Porque a santidade tem de ser a tarefa quotidiana tem de ser aquilo que pedimos uns aos outros, aquilo que sentimos que os outros esperam de nós. A santidade, não é apenas a justiça é a santidade.
“Sede santos como o vosso Pai no céu é santo.” Queridos irmãos, é esta identificação com Deus, com a lógica de Deus, com aquilo que Deus é, com a substância de Deus, que nos é pedido, que nos é pedido nesta festa de Todos os Santos.
Vamos celebrar a santidade de Deus em nós que se dá de uma forma única, maravilhosa. Como cada um de nós tem um modo de chorar ou um modo de rir ou um modo de caminhar ou um modo de falar. Cada um de nós tem também uma forma de ser santo. Então, vamos agradecer hoje a forma única, maravilhosa, como cada um de nós expressa a Santidade de Deus, na sua dicção, no seu jeito, no seu modo – é isso que vamos agradecer ao Senhor. Nesta Eucaristia vamos também lembrar a santidade dos nossos queridos que já estão junto de Deus, que partiram: os nossos familiares, os nossos amigos. Vamos sentir que há de facto a Comunhão dos Santos. A Comunhão dos Santos é esta união que na santidade nós temos como se vivêssemos numa roda, todos de mãos dadas, estes que estão aqui, que somos o presente, aqueles que já estão junto de Deus face a face e que nós sentimos sempre perto de nós nesta experiência tão vital, tão papável de uma comunhão que a morte não consegue destruir.
Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade de Todos os Santos
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Outubro
2017/10/23 - Lançamento do livro ‘Filhos da América’, de Nélida Piñon
2017/10/22 - Fé, caridade e esperança (homilia)
Hoje começamos a ler a primeira Carta de S. Paulo aos Tessalonicenses. É uma carta muito importante, sendo quase ingénua, esboçada apenas, não se pode comparar ao que seriam depois as grandes cartas de Paulo: a Carta aos Romanos, a Primeira Carta aos Coríntios, por exemplo. Mas, esta carta, é uma carta especial, porque é o primeiro texto escrito cristão. O Novo Testamento começou a ser escrito por aqui. Esta carta é escrita nos anos 50. Antes de serem escritos os Evangelhos existiu esta carta, que tem associada a si uma história muito curiosa, porque S. Paulo começou a sua evangelização na cidade de Tessalónica. Tessalónica fica no norte da Grécia, era uma cidade romana onde viviam muitos militares na reforma, era uma espécie de zona franca onde o controlo das estradas, da via Júlia, das estradas que vinham para Roma se fazia e ligava ao Oriente. Era um sítio geoestratégico. E Paulo vai lá, está lá um mês e meio e começa uma experiência de construção de comunidade. Evangeliza, reúne as pessoas, celebram a memória de Jesus. Só que é um mês e meio e Paulo, no final desse tempo, é expulso da cidade de Tessalónica. Há um levantamento dos judeus, há suspeitas das autoridades romanas de que Paulo seria um subversivo. E então, Paulo acaba sendo expulso da cidade.
Quando Paulo sai, ele pensa: “Acabou tudo, foi tão pouco tempo que eu estive com eles, com certeza que eles vendo até o que me aconteceu vão arriar caminho, cada um vai para seu lado.” Paulo começa a descer na direção de Atenas só que, a meio caminho, manda Timóteo para trás pedir informações, saber como é que a Comunidade ficou. E foi a primeira das grandes surpresas de Paulo, ele saber que a comunidade cristã, apesar de ter uma evangelização ainda incompleta, persiste na fé em Jesus e na vida do Evangelho. E, pelo contrário, os sofrimentos não dissuadiram, não dispersaram a comunidade mas fortaleceram-na. No meio dos sofrimentos, daquelas notícias imprevisíveis, a fé consolidou-se. Então, Paulo escreve esta sua primeira carta, que é uma carta escrita para dizer nada. Paulo não tinha ainda grandes tratados para contar. O que é que Paulo diz nesta carta? Fundamentalmente é uma carta para falar do amor entre os cristãos, para falar da beleza de ser cristão, para falar da alegria que é a vida da comunidade. É uma carta onde Paulo sobretudo fala do seu afeto pela comunidade, e do afeto que deve existir na comunidade cristã.
Por isso, são tão incisivas estas palavras que Paulo diz: “Recordamos a atividade da vossa fé, o esforço da vossa caridade e a firmeza da vossa esperança.” A atividade da vossa fé, o esforço da vossa caridade, a firmeza da vossa esperança.
Queridos irmãs e irmãos, dois mil anos depois somos nós que estamos aqui. Se calhar, porventura, também nós sentimos que o nosso caminho de fé está ainda incompleto, se calhar ainda há tanta coisa para apreender, para viver, para perceber melhor, para aderir com outra verdade, outra autenticidade. Se calhar sentimo-nos a caminho, esboçados apenas como cristãos. Mas é importante também sentirmos que este, o caminho que já fizemos, é muito importante. E há momentos em que é importante partir daquilo que já se fez, daquilo que já se é. Porque, às vezes, estamos sempre a olhar para aquilo que nos falta para sermos cristãos de verdade. Mas, já há um caminho, já há uma história, já há uma biografia pela qual nós temos de agradecer, temos de agradecer a Deus. “Recordo a vossa fé, o esforço da vossa caridade, a firmeza da vossa esperança.” Por isso, é assim uma palavra de conforto que Paulo dirige à comunidade, e nós precisamos dessa palavra de conforto. A dizer: muito bem, o caminho é este. Muito bem, o esforço que já fazemos. Mesmo que às vezes pareça pouco. Muito bem a firmeza da nossa esperança, mesmo que ela seja sempre frágil e vulnerável. Mas o pouco que já vivemos aqui é um ponto de partida extraordinário para a nossa fé.
Esta Primeira Carta aos Tessalonicenses lembra-nos a importância de falarmos bem da nossa própria experiência. Porque, na vida espiritual, aquilo que nós cantávamos no cântico penitencial é uma coisa vital. Nós cantávamos: “Senhor Jesus, Tu és luz do mundo, não deixes que as trevas nos queiram falar.” De facto, muitas vezes ao nosso coração quem fala são as trevas a dizer: “Não prestas, não serves, não cumpres, não realizas, não fazes, não vais chegar lá.” E deixamos que a incerteza, o medo, às vezes até uma apreciação deficiente da própria vida, uma falta de confiança persistente acabem por falar mais alto do que a confiança e a misericórdia que Deus nos dá. Muitas vezes nós desalentamos porque ouvimos falar a voz da sombra, a voz do escuro. É importante travar essa voz e dizer que essa voz não tem razão. Porque, aquela voz nos dissuade, nos desmobiliza, nos atira para baixo e para os círculos fechados da não-esperança. Nós temos de fechar essas portas, desautorizar que essas vozes nos falem. Porque, temos sim de autorizar a voz da confiança, a voz do amor, a voz da misericórdia, a voz que diz “Tu és capaz”, a voz que diz “Vamos recomeçar, vamos acreditar”, a voz que diz “Vai valer a pena, tu és capaz, tu consegues, tens a Minha graça, tens o Meu amor contigo.” E ouvir falar esta voz, que é a voz de Deus, a voz do Deus que Jesus nos revela, deste Pai que é misericórdia e amor, deste Deus que não desiste nunca do Homem, deste Deus que não tem expectativas.
Porque, às vezes, o nosso desencontro com Deus tem a ver com as expectativas que nós projetamos em Deus: Deus tem estas expectativas e eu não correspondi às expectativas que Deus tinha a meu respeito. Deus não tem expectativas a teu respeito, não tem. Deus não tem expectativas, Deus tem amor. É uma coisa diferente. Quem ama radicalmente sabe que não pode ficar prisioneiro de expectativas, e que as expectativas muitas vezes são uma fonte de mal entendidos no amor. Quem ama está aberto, quem ama ama numa gratuidade, quem ama até ao fim ama de uma forma incondicional, não fica prisioneiro de expectativas. Deus não tem expectativas.
Por isso, a história da nossa vida que contamos a nós mesmos não pode ser uma história: aí não correspondi às expectativas e agora? Não pode ser essa narrativa. Tem de ser a narrativa de uma confiança que em cada tempo da nossa vida nos é dada. A vida é reversível, é reversível. A vida está em aberto, a nossa vida está em aberto até ao fim. E por isso, é sempre possível começar, é sempre possível partir. Não podemos dizer: eu não fiz, isto agora já não vai dar. Não, é sempre possível começar. Na vida espiritual, na vida de Deus, na vida cristã é sempre possível dar um passo novo, começar uma estação diferente. Porquê? Porque é na Graça que nós estamos, é neste amor desmesurado de Deus, é neste excesso da sua misericórdia que nós fundamos a nossa vida. Por isso, não olhamos apenas para o copo meio cheio, mas olhamos para aquilo que nos é dado, que nos é servido.
Muitas vezes um problema do Cristianismo é se confundir com uma moral. O Cristianismo não é, antes de tudo, uma moral. Claro que há uma ética cristã, claro que há que viver um ethos cristão. Mas, antes de tudo, o Cristianismo não é uma moral. Nós não somos os melhores dos homens, os mais perfeitos. Deus sabe, andamos por aqui. Uns melhores, outros piores, uns mais aperfeiçoados, outros menos, uns mais virtuosos outros menos. Mas o Cristianismo não é uma escola de virtudes, é uma aprendizagem da graça de Deus, da sua misericórdia. Que, com certeza, depois nos há de nos pedir um caminho, uma autenticidade, uma correspondência. Mas não é a virtude o essencial. O essencial é esta descoberta de um Pai que não desiste de nós, de um Pai que não fica refém de expectativas, de um Pai que vive no amor, vive situado no amor incondicional, que está sempre pronto a dar-nos, a servir-nos.
Que estas palavras que Paulo dirige à comunidade sejam palavras para esta comunidade e para cada um de nós. Paulo a recordar a fé, o esforço da caridade, a firmeza da esperança. Sintamos que essas palavras são para nós.
Hoje no Evangelho nós temos esta história de Jesus que é um ponto importante, que é no fundo a forma como o mundo e o tempo penetram nos próprios Evangelhos. Nós vemos que hoje temos uma espécie de fluxo da realidade que entra nesta história de Jesus, quando os rivais de Jesus, aqueles que lhe querem preparar uma cilada, trazem uma moeda e dizem: “Olha, devemos pagar impostos ou não?”
Nós sabemos a situação de Israel, que era uma situação submetida a uma soberania estrangeira que era o Império Romano. Claramente, Israel estava esmagado por um confisco ao Império Romano, era uma questão decisiva que se discutia ali. Mas é interessante o modo como Jesus responde, porque Ele diz: “De quem é a inscrição e de quem é a efígie que está na moeda?” E, com esta pergunta, Jesus reduz o império de César, relativiza a figura de César dizendo que ele vale apenas o que está escrito na aparência daquela moeda. Jesus relativiza, limita, o poder.
É isto que nós, cristãos, também somos chamados a fazer: nós temos de reconhecer os limites do poder, e nomeadamente do poder económico. Temos de saber que não é isso que nos salva. É interessante que Jesus fala sobre o dinheiro, claramente. E as duas perguntas que Jesus faz são duas perguntas que nos devem orientar. A primeira é: que é que nós fazemos com o nosso dinheiro? Se nós acreditamos que o poder económico está limitado ele tem de ter uma finalidade que não é ele próprio. A finalidade do dinheiro não é o dinheiro, a finalidade do dinheiro tem de ser a transformação do mundo, tornando-o mais justo. A finalidade do dinheiro tem de ser o amor, tem de ter uma finalidade que vale em Deus. Se a finalidade do dinheiro é ele mesmo então ele acaba por ser um ídolo e não cumprir a sua função. Temos de relativizar o dinheiro. Mas a principal pergunta de Jesus não é apenas o que é que nós fazemos do nosso dinheiro mas é também o que é que o nosso dinheiro fez de nós, o que é que o nosso poder, o que é que César fez de nós? E isto é uma pergunta que nos deve fazer revisitar a nossa vida, que nos deve fazer um exame de consciência, porque é importante vivermos com liberdade. E quando pensamos na vida, no nosso destino, no sentido daquilo que somos não podemos apenas ficar a dar respostas penúltimas, temos de arriscar dar e confrontar-nos com as questões últimas. Que é a questão: para que é que serve mesmo, para que é que me serviu, no que é que eu me tornei, para onde é que eu caminhei, o que é que valeu a pena e o que é que não valeu. Nós não podemos fugir a estas perguntas.
De facto, há uma idade em que fazemos muitas perguntas. Os adolescentes, os pais que têm miúdos ou os avós que têm netos sabem que há a idade dos porquês. É a primeira fase. Mas depois há uma fase em que não somos nós que nos perguntamos porquê, é a vida que nos pergunta porquê. E depois, até ao fim da vida, nós vivemos interiormente uma espécie de adolescência, e ouvimos muitos porquês, e olhamos para nós próprios a agir e a pensar e há dentro de nós: porque é que estás a lutar por isto? Porque é que estás assim? Porque é que reages desta maneira? Porquê? Porquê? Porquê? E é importante respondermos a esses porquês. Porque, o Cristianismo tem de ser uma escola de vida, uma escola de sabedoria. Ser cristão não é apenas seguir uma religião, é seguir uma maneira de viver, seguir um estilo. Porque Jesus não é apenas um Deus transcendente, Jesus é um Deus encarnado que mostrou na nossa humanidade o caminho.
Por isso, precisamos de estar numa aprendizagem ao estilo de Jesus, à maneira de Jesus, procurando traduzir a nossa vida numa linguagem evangélica.
Queridos irmãs e irmãos, estamos a caminho, estamos a caminho. E estamos a caminho com confiança, sabendo que aquilo que nos tem de falar não é a voz da sombra mas é a luz do amor de Deus.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXIX do Tempo Comum
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2017/10/15 - Igreja em saída (homilia)
Já tínhamos saudades de estar juntos, saudades de estar aqui na nossa comunidade, na nossa capela. Porque, na história da fé de cada um de nós, os lugares são importantes.
Tantas vezes no nosso coração, como no coração de qualquer mulher e de qualquer homem, surge a pergunta: Onde? Onde? Eu acredito ou eu espero ou eu desejo, mas onde é que eu vou encontrar? Onde é que eu vou sentir-me tocado pela experiência da misericórdia? Onde é que eu vou tocar a orla do sentido, do significado mais perene da própria vida? Onde? Onde?
Nós sabemos que esta pergunta é vivida hoje na nossa cultura de uma forma tão dramática, tão dilemática. Porque reina uma incerteza muito grande. E essa incerteza, tantas vezes, é a noite escura da nossa própria alma. Queremos mas não sabemos, desejamos mas não percebemos onde está a verdadeira fonte. Por isso, este é um lugar que tem tanto significado para nós. Na sua humildade, na sua escassez, não tem nada de especial mas é o lugar onde celebramos juntos a fé, é o lugar onde no centro está a Eucaristia, está a presença de Jesus vivo. Por isso, é um lugar significativo para nós.
Hoje, nesta leitura do profeta Isaías, há uma palavra que nos faz estremecer, que é o profeta dizer, e aparece-nos três vezes com deítico, pronome demonstrativo: “Sobre este monte.” E depois, mais à frente, ele diz: “Sobre este monte o Senhor há de preparar um banquete. Sobre este monte há de tirar o véu e destruirá a morte para sempre. E a mão do Senhor pousará sobre este monte.” É uma coisa que faz estremecer porque uma coisa é acreditarmos na intervenção de Deus, na manifestação de Deus, outra coisa é compreender, mas compreender a partir das suas entranhas e da sua vida, a partir daquilo que nós próprios experimentamos, que é aqui, é neste monte que acontece a transformação, que acontece a revelação de Deus.
Queridos irmãs e irmãos, nós estamos aqui porque, de alguma maneira, nós acreditamos que aqui Deus Se manifesta. E Deus Se manifesta do modo que Ele sabe, na Sua liberdade, na criatividade do Seu amor, na surpresa permanente com que Ele encontra a vida de cada um de nós e nos carrega aos Seus ombros. Nós sabemos que por aqui passa essa fantástica manifestação de Deus na nossa vida. Para nós, Deus não é apenas um enigma, não é apenas um grande ponto de interrogação nos confins do universo, mas é Alguém com quem estabelecemos uma relação, no aqui e no agora das nossas vidas. Com toda a despretensão, com toda a sensibilidade, com toda a humildade mas é isso que dá sentido àquilo que somos.
- Paulo, na Carta aos Filipenses, faz um elogio da comunidade cristã. É muito belo porque S. Paulo escreve quando está preso, numa prisão em Éfeso, e escreve para Filipos, para a pequena comunidade de filipenses a elogiá-la, a agradecer, a manifestar o seu reconhecimento por todo o apoio que tem recebido na comunidade de Filipos, e louvando aquela amizade que se entretece entre os cristãos.
Queridos irmãos, nós não viemos aqui apenas para encontrar Deus, para encontrar Deus e ir embora. Estamos aqui também para criar laços uns com os outros, para sermos iniciados nesta escola de fraternidade e de amor que é, no fundo, uma comunidade cristã. E partilharmos e sentirmo-nos reconhecidos e estimados, amados e ganharmos esta competência de amor que é, no fundo, onde quer que estejamos, sermos mulheres e homens que constroem pontes, que constroem laços, que estabelecem a alegria da comunidade, que não acreditam em solidões mas acreditam numa companhia que se constrói, que é possível acontecer em todas as situações.
Por isso, é tão importante ouvir a voz de Paulo que conforta a comunidade de Filipos dizendo: “O meu Deus proverá com abundância a todas as vossas necessidades.” Isto é, a comunidade sabe que Deus Se manifesta e que um pão numa comunidade dá para alimentar muitos corações, porque um coração não se alimenta apenas do pão, alimenta-se no repartir, alimenta-se da dádiva, alimenta-se do dom, alimenta-se da esperança que lê nos olhos uns dos outros.
Nós sentamo-nos à volta de uma mesa, como estamos aqui sentados, não apenas para comermos o pão e o vinho. Nós alimentamo-nos também uns dos outros, nós comungamo-nos uns aos outros, comungamos Jesus que é o Seu corpo místico, comungamos a própria Igreja, comungamos os nossos irmãos. Isto é, alimentamo-nos da vida, das relações, da presença, do estar. Por isso, no início de um ano pastoral é tão importante celebrarmos a beleza de estarmos aqui. E a beleza de sermos uma pequena comunidade cristã no coração da cidade, que acredita que os laços de vida, que os laços de amizade, de afeto, que nos percorrem são a própria expressão do amor de Deus.
Hoje lemos este salmo tão belo, o Salmo 23: “O Senhor é meu pastor nada me falta. Leva-me a descansar em verdes prados, conduz-me às águas refrescantes. Ainda que eu ande por vales tenebrosos, não temerei nenhum mal porque Ele está comigo, a Sua vara e o Seu bastão me protegem.”
Numa prisão dos Estados Unidos um teólogo viu escrito uma paráfrase deste salmo que foi escrito por um dos prisioneiros. E, onde está a palavra “Senhor”, ele escreveu a palavra “heroína”. “A heroína é o meu pastor, nada me falta. Leva-me a descansar em verdes prados, ainda que tenha de andar por vales tenebrosos não temerei nenhum mal porque a heroína está comigo.” Essa paráfrase é impressionante porque diz muito da situação do mundo, da história, de tantos corações – tantas vezes até dos nossos próprios que experimentam o vazio, o vazio. Quem se sente apascentado pelo Senhor tem de se recordar que há tantos e tantas que sentem que ninguém os apascenta, que ninguém cuida das suas vidas, que ninguém olha para aquilo que eles são, que ninguém valoriza a sua existência. E que eles existirem ou não existirem é mais ou menos a mesma coisa. Nós estamos aqui metidos numa cápsula, nós estamos aqui unidos ao sofrimento humano, unidos às grandes questões que atravessam o coração da história, unidos à dramática ausência de sentido de tantas vidas. Nós não estamos aqui apenas para sentir o conforto daqueles que creem, nós estamos aqui também para abraçar o desconforto de uma fé que não chega a todos, que ainda não chegou a todos, que ainda não chegou a todos os corações.
E por isso, onde houver um sofrimento humano, nós sentimos a missão de estar junto, a missão de estar perto. A Igreja não é um clube para as pessoas que têm as mesmas convicções, a Igreja não é um clube fechado. A Igreja é, como diz o Papa Francisco nessa maravilhosa sucessão de imagens novas sobre o que é a Igreja e o que ela deve ser, um hospital de campanha. A Igreja tem de estar no mundo, tem de estar a cuidar das feridas, das feridas do mundo. A Igreja não é para construirmos murros altos que protejam o nosso modo de pensar. A Igreja é mais vital quando ela é a Igreja em saída, quando ela sente o desafio de ir ao encontro, de estabelecer caminhos comuns, de cuidar da humanidade e da humanidade vulnerável dos nossos irmãs e irmãos.
E por isso, a parábola que Jesus contou, porque muitas vezes nós podemos julgar que foi matéria para nós mas nós não estamos a acolher. E o Evangelho é precisamente este convite que Jesus nos coloca na parábola. É dirigido a uns, e eles não foram e calaram o denunciador, é dirigido aos mesmos com insistência e eles mantêm a porta fechada. Até que o Senhor diz: “Não, ide às encruzilhadas. Chamai todos os que estiverem por lá, maus e bons.” E a sala encheu-se de convidados. A Igreja não é um lugar muito escolhido, não é um lugar para aquelas pessoas, para aquela classe social, ou para as pessoas que pensam daquela maneira, ou para aqueles que tem aquele código moral. A Igreja é para maus e bons. A Igreja tem de ter as suas portas abertas, a Igreja tem de ser um espelho das encruzilhadas do mundo. E quando nós estamos numa comunidade onde a tensão da encruzilhada não se vive nós temos de pensar se, de facto, estamos a ser Igreja ou se estamos a domesticar essa experiência, se estamos a domesticar o Evangelho de Jesus. Que é um anúncio que nos desassossega, que nos inquieta, porque nos projeta para lá de nós mesmos e nos põe a caminho ao encontro dos outros, ao encontro dos últimos.
O nosso projeto de presença cristã no meio da cidade não pode ser apenas para aqueles que já são católicos apostólicos romanos, aqueles que já têm a sua vida organizada, aqueles que já vivem, aqueles que já descobriram e que, no fundo, vivem um catolicismo de manutenção. Uma comunidade vive da manutenção, isto é, vivermos bem aquilo que já descobrimos com alegria, mas tem de ser também o lugar da descoberta, um lugar disruptivo, um lugar de portas abertas para aqueles que se sentem fora, para aqueles que sentem que estão a fazer outros caminhos. E nós temos de estabelecer esse encontro, temos de poder ser uma presença de hospitalidade no meio do mundo.
Queridos irmãs e irmãos, termino como comecei: que saudades de estarmos juntos, de estarmos a celebrar a nossa fé, sentindo no início deste ano que temos de fazer um grande caminho. Temos de fazer da nossa fé uma experiência total, que ilumine o nosso coração e a nossa inteligência, que ilumine o nosso corpo e o nosso espírito, que nos conforte mas nos desassossegue, nos dê a paz e nos dê também a intranquilidade de não ficar apenas com a paz guardada em nós mas sermos capazes de contagiar outros, de ir ao encontro, ser a Igreja em saída de que fala o Papa Francisco profeticamente.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXVIII do Tempo Comum
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Setembro
2017/09/01 - «Nos passos de Etty» na Agência Ecclesia
Julho
2017/07/23 - Espinosa e Etty Hillesum, por Maria Luísa Ribeiro Ferreira
Espinosa e Etty Hillesum
Rijnsburg 2017
I
Espinosa a partir de um poema *
As translúcidas mãos desse judeu
na penumbra cinzelam os cristais,
e a tarde que se esvai é medo e frio.
(As tardes sempre às tardes são iguais).
As mãos, bem como o espaço de jacinto
que empalidece nos confins do Gueto,
quase inexistem para o homem quieto
que está sonhando um claro labirinto.
Não o perturba a fama, esse reflexo
de sonhos no sonho de outro espelho,
nem o amor temeroso das donzelas.
Liberto da metáfora e do mito,
Lavra um árduo cristal: o infinito
mapa daquele que é Suas estrelas.
Jorge Luís Borges[1]
Costumo iniciar os meus cursos sobre Espinosa com este poema de Jorge Luís Borges por me parecer criar um clima propício a um posterior estudo sobre o autor. Como sabemos, não é função da poesia ensinar, informar ou fazer demonstrações. No registo poético a imaginação tem primazia, a sugestão domina, a metáfora e o símbolo lideram o discurso. Algumas pinceladas bastam para nos comover e motivar, transportando-nos para universos a que outros meios dificilmente nos fariam aceder, criando climas que despertam o nosso interesse.
Borges traça-nos em poucas linhas um retrato de Baruch/Bento/Benedito de Espinosa e provoca em nós o desejo de melhor o conhecer. Apresenta-o numa aura de mistério, como personagem que deliberadamente se oculta e disfarça, temeroso de tudo o que o possa afastar do seu projeto de vida. Será correta esta visão? Por bela que seja – e sem dúvida que este poema é belíssimo – nem tudo aquilo que é dito se adequa totalmente à vida e ao pensamento de Espinosa. As informações dadas sobre o autor da Ética, veiculam simultaneamente alguns dos preconceitos que habitualmente se lhe associam. Aproveitemos então este poema para, pela mão de Borges, refletir um pouco sobre este filósofo que fez da Holanda a sua pátria.
… esse judeu
Há quem se entranhe no pensamento de um autor sem se preocupar em o inserir num determinado tempo e lugar, como se tais factos fossem de somenos importância. Contesto essas hermenêuticas desenraizadas por contribuírem perigosamente para um dos preconceitos maiores no estudo da filosofia – a despersonalização dos pensadores, abordados como seres exclusivamente racionais, libertos do corpo, despojados de uma cultura, destituídos de família e de amigos, alheios aos afetos. Encarados deste modo, transformam-se realmente naquilo que Paul Nizan censura, escrevendo:
“os filósofos são mais ligeiros que os anjos, não têm aquele peso dos vivos que amamos, nunca experimentam a necessidade de caminhar entre os homens.”
Paul Nizan Les chiens de garde[2]
Não é indiferente em Espinosa, o chão que pisa, relativamente ao qual tem um olhar crítico mas que lhe trouxe o suporte imprescindível para edificar a sua obra. Nascido em Amsterdão em 1632, teve como pais judeus portugueses forçados a deixar a pátria para escapar às perseguições da Inquisição.[3] Como todos os “marranos”, praticaram um criptojudaísmo para poderem manter viva a sua fé. Só quando definitivamente instalados na Holanda se integraram nas crenças e preceitos da Nação, o que nem sempre foi pacífico. O caso Uriel da Costa é exemplar. O seu destino trágico não pode deixar de ter impressionado Espinosa embora seja discutível a influência direta que sobre ele possa ter exercido.[4]
A educação de Espinosa fez-se no interior da comunidade portuguesa de Amsterdão, um grupo com características particulares dentro do judaísmo, adquirindo na época um prestígio imenso pela sua prosperidade.[5] Os judeus portugueses participaram no surto económico das Províncias Unidas, transferindo os seus capitais para este país. A tolerância relativamente às diferentes confissões religiosas fez dele uma terra prometida para os perseguidos, difundindo-se mesmo entre os judeus do Norte de África que o esperado Messias nasceria na Holanda. O filósofo foi sensível a esta atmosfera de liberdade, e presta-lhe homenagem no prefácio que escreve ao Tratado Teológico-Político:
“ E já que nos coube em sorte esta rara felicidade de viver numa República, onde se concede a cada um inteira liberdade de pensar e de honrar a Deus como lhe aprouver e onde não há nada mais estimado nem mais agradável do que a liberdade, pareceu-me que não seria tarefa ingrata ou inútil mostrar que esta liberdade não só é compatível com a piedade e a paz social, como, inclusivamente, não pode ser abolida sem se abolir, ao mesmo tempo, a paz social e a piedade.”
Espinosa, Tratado Teológico-Político[6]
Podemos pensar que estas considerações sobre a paz e a liberdade na Holanda são uma estratégia para conquistar os políticos e os filósofos a quem esta obra se destina. Posto que fale muito dos judeus e do judaísmo, o Tratado insere-se num outro contexto e visa objetivos alheios à mundividência da comunidade hebraica de Amsterdão. Esta, embora agindo no interior de um país constituído por diferentes confissões religiosas, rege-se por leis próprias que zelosamente cumpre. É uma sociedade fechada, exemplar no acatamento da lei geral, com a qual os seus dirigentes procuram estar de acordo; daí ser intransigente no judaísmo que internamente defende e impõe aos seus membros.
O tradicionalismo e rigorismo dominantes percebem-se se atendermos às vicissitudes que sofreram os seus fundadores. Ameaçados nos seus países de origem pela fé que professavam, viveram largo tempo na prática do catolicismo, por vezes desempenhando cargos ligados à Igreja (é o caso de Uriel da Costa). A comunidade só poderia sobreviver se respeitasse um conformismo absoluto, reaprendendo um judaísmo depurado e sem desvios. Há escolas que se constituem para tal fim. Espinosa terá estudado nelas pois a sua educação foi a que habitualmente se ministra a um jovem com a sua origem e estatuto. Cedo no entanto começa a ter dúvidas, a levantar problemas e a pôr em causa crenças e ritos. O seu percurso hebraico teve como desfecho a expulsão da Sinagoga, numa condenação duríssima pela qual é banido e proibido de quaisquer contatos com os seus pares. Eis algumas passagens do texto do herem (excomunhão), curiosamente redigido em português da época pois era essa a língua que estes judeus falavam e na qual escreviam :
“Com sentença dos Anjos, com ditto dos Santós, nos henhermamos, apartamos e maldisoamos e praguejamos a Baruch de Espinoza (…) com todas as maldisõis que estão escrittas na Ley. Maldito seja de dia e malditto seja de noite, maldito seja em seu deytar e malditto seja em seu levantar, maldito ele em seu sayr e malditto ele em seu entrar; não querera Adonai perdoar a elle (…). Advirtindo que ninguem lhe pode fallar bocalmente nem por escrito, nem dar-lhe nenhum favor, nem debaixo de techo estar com elle, nem junto de quatro covados, nem leer papel algum feito ou escrito por ele.”
Texto da Excomunhão de Espinosa[7]
Afastado aos vinte e quatro anos da sua gente, fica sem chão, sem amigos, sem língua. Recusado por judeus e olhado com desconfiança por cristãos, é no entanto na cultura europeia que procura inserir-se, aprendendo latim e familiarizando-se com os filósofos coevos. Mais do que judeu, é alguém que se situa numa confluência de tradições, delas colhendo elementos para a sua obra. Mas não é um homem só.
… nos confins do Gueto
A ideia do isolamento de Espinosa é outro mito que se cria mas que não corresponde à verdade, pois nem antes nem depois da sua excomunhão levou vida de segregado ou de eremita. A família onde nasceu era, segundo o seu biógrafo Colerus, uma família abastada que lhe proporcionou meios quer intelectuais quer económicos para se tornar autónomo:
“ Embora comummente se escreva que foi pobre, e de baixa condição, certo é foram os seus pais pessoas de distinção e abastadas, judeus portugueses, que habitavam uma bela casa, junto do antigo templo português, no sítio chamado Burgwal, onde também tinham negócio. Além disso os seus costumes, maneiras, amigos e parentes, e por fim a herança dos pais, tudo prova que foi de boa criação e educado com esmero acima do vulgar.”
Colerus, Vida de Bento de Espinosa[8]
A expulsão da Sinagoga afasta-o de uma cultura mas a sua curiosidade insaciável fá-lo adquirir os instrumentos que lhe permitem entrar noutra. Assim, aprende latim com o ex-jesuíta, Van den Ende, retratado na prosa de Colerus como um desencaminhador da juventude:
“ (…) foi confiada a sua instrução ao célebre professor e médico Francisco Van den Ende, que nesse tempo ensinava em Amsterdão, com grande reputação, os filhos dos principais negociantes; isto enquanto não veio a saber-se que ele, mais que o latim, cuidava de incutir nos discípulos os primeiros germes e fundamentos do ateísmo.”
Colerus, Vida de Bento de Espinosa[9]
Através de Van den Ende ou “de motu proprio” conhece o pensamento de Descartes, um filósofo com o qual sustenta uma relação ambivalente. A primeira obra de Espinosa e a única que durante a vida foi publicada como de sua autoria, foi precisamente um curso sobre Descartes – Renati Descartes principiorum philosophiae. Por este escrito percebemos que o pensamento cartesiano foi importante para a formação filosófica do autor, funcionando quer como guia quer como parceiro do qual cedo se começa a demarcar. O que imediatamente é visível no comentário apenso à obra – Cogitata Metaphysica.
No decorrer do seu percurso intelectual contactou e correspondeu-se com a “intelligentsia”. Atendendo às suas inúmeras cartas dificilmente poderemos dizer que vivia nos “confins do Gueto”. Hobbes, Leibniz, Oldenburg, Tschirnhaus, Schuller são seus interlocutores. E a aura de grande filósofo que paulatinamente vai ganhando explica o convite que lhe foi endereçado pelo Eleitor Palatino, para ensinar na Universidade de Heidelberg. O texto da carta não deixa dúvidas quanto ao prestígio de Espinosa. Fabritius, através de quem o convite é feito, mostra-o claramente em passagens como esta :
“Não encontrarás em sítio nenhum um Príncipe mais favorável aos génios insignes, no número dos quais ele te coloca,”
Fabritius a Espinosa[10]
Também pelas epístolas a Simon de Vries, sabemos que era habitual os seus discípulos reunirem-se para discutir partes da Ética, sendo esclarecidos nas suas dificuldades maiores pelo próprio Espinosa. Se na realidade vivia retirado, o afastamento apenas diz respeito a uma vida social e às honrarias a ela associadas. Intelectualmente os contactos fervilham.
… não o perturba a fama
É verdade que há um distanciamento relativamente àquilo que o homem comum valoriza como um bem e, consequentemente, ao “modus vivendi” que para a maioria traz a felicidade. Logo no início do Tratado da Reforma do Entendimento, uma das suas primeiras obras, Espinosa propõe-se como tarefa alcançar o supremo bem (“summum bonum”), procurando algo que lhe permita gozar para sempre de uma suprema alegria. Tem consciência de que não é tarefa fácil nem segura. Quem nela se empenhe deverá trocar o certo pelo incerto, renunciando ao que a maioria considera o bem supremo e que o filósofo circunsreve a três valores (ou antivalores): a riqueza, as honras e o prazer [11]. Na resposta que dá ao convite do Eleitor Palatino, diz prezar acima de tudo a sua tranquilidade:
“(…) nunca tendo sido tentado pelo ensino público, não pude resolver-me, embora tenha longamente refletido, a aproveitar esta magnífica ocasião. Penso em primeiro lugar que se me dedicasse ao ensino da juventude teria de renunciar à prossecução dos meus trabalhos filosóficos. Por outro lado, ignoro em que limites a minha liberdade filosófica deveria ser contida para que não parecesse querer perturbar a religião oficialmente estabelecida (…) Já o experimentei na minha vida solitária de simples particular e temê-lo-ia muito mais se me elevasse a esse grau de dignidade. Compreendes, Eminente Senhor, que o que me impele não é de modo algum a esperança de uma maior fortuna, mas sim o amor pela tranquilidade, que penso poder preservar, de qualquer modo, abstendo-me de lições públicas.”
Espinosa a Fabritius[12]
A tranquilidade passa pelo desprendimento das honrarias, bem como das riquezas a elas inerentes. Interessa ao filósofo continuar a pensar livremente, o que não conseguiria caso tivesse que se dedicar “ao ensino da juventude”.
… nem o amor temeroso das donzelas
A atitude de Espinosa para com as mulheres não se demarca daquela que a maior parte dos filósofos da sua época demonstrou. E por sua vez, a perspetiva dos filósofos sobre este tema não difere grandemente do pensamento do homem comum.[13] É curioso que o filósofo que se apresenta como demolidor de preconceitos (“prejudiciae”) considerando que tem por missão denunciá-los e abatê-los, foi pouco sensível ao modo como as mulheres eram encaradas no seu tempo. Se atendermos ao que explicitamente escreveu sobre elas verificamos que é pouco lisonjeiro, chegando a defender que deverão ser afastadas da participação num governo democrático, pela fraqueza que lhes é natural e lhes interdita o estatuto de iguais aos homens em direitos.[14] Relativamente à vida amorosa do filósofo judeu, Colerus dá-nos informações que podem ajudar-nos a perceber a reserva deste quanto às mulheres. No mesmo capítulo em que nos fala do professor van den Ende, Colerus relata o seguinte episódio:
“ O mesmo Ende tinha uma filha única, tão experta no latim que também o ensinava aos amigos do pai, assim como a arte do canto. Acerca dela muitas vezes contava Espinosa haver-lhe inspirado tão forte inclinação que a quisera tomar por mulher, embora fosse um tanto coxa e pouco airosa de corpo; estimulado por sua aguda inteligência e raro saber. Mas um seu condiscípulo, de nome Kerkring, natural de Hamburgo, reparou no caso e tomou-se de ciúmes, acabando por ganhar o favor da jovem (para o que bastante contribuiu o presente que lhe fez de um colar de pérolas, do valor de uns poucos de mil florins) a qual o escolheu por marido, deixando ele para isso a sua fé, que era a da confissão de Augsburg, e passando à romana.”
Colerus, Vida de Bento de Espinosa[15]
A ser verdade este episódio, poderíamos nele encontrar alguma explicação para alguns extratos da Ética nos quais, “en passant”, Espinosa se refere às mulheres, sendo evidente neles a pouca consideração que lhes demonstra. Assim acontece na parte III, dedicada aos afetos. Depois de definir o amor como uma alegria que acompanha a ideia de uma causa exterior (Et.III, prop. XXIII, scol), há uma série de proposições, demonstrações e escólios que procuram explicar os mecanismos do processo amoroso, com uma acuidade, uma perspicácia e simultaneamente um desencanto de quem também os experimentou na pele. A proposição XXXI fala-nos da emulação ou rivalidade e do modo como esta paixão pode espicaçar o nosso amor :
“ Se imaginamos que alguém ama, ou deseja ou tem ódio a algo que nós próprios amamos, desejamos ou ao qual temos ódio, o nosso amor, etc. tornar-se-á mais constante.”
Ética, III, prop. XXXI[16]
Segue-se uma série de considerações sobre a necessidade de obter a aprovação dos outros quanto ao objeto amado; apresenta-se um conceito que a psicanálise mais tarde irá explorar, a de “fluctuatio animi”, a divisão ou ambivalência que experimentamos quando simultaneamente em nós atuam paixões de atração e de repulsa por uma mesma coisa. Mas essa sintonia experimentada por quem valoriza um mesmo objeto, não se mantém quando sobre ele há um desejo de posse. E assim:
“Quando imaginamos que alguém se alegra com uma coisa que só um pode possuir, esforçamo-nos por fazer com que ele não a possua.”
Ética, III, prop. XXXI[17]
O filósofo acentua que a natureza humana nos fez misericordiosos e compassivos. No entanto, é também ela que transforma o nosso amor em ódio e desagrado quando se trata da posse de um objeto cobiçado. Esse objeto de amor, é neste caso concreto a mulher. Espinosa não o diz expressamente mas percebemos que é dela que fala quando nas proposições seguintes se refere à “coisa amada” (“res amata”) ou à “coisa semelhante a nós” (“res nobis simil”). O amor exige reciprocidade. Daí o esforço que despendemos para que a coisa amada nos ame também (prop. XXXIII), congratulando-nos com o seu amor (prop. XXXIV). Mas as paixões são frágeis e instáveis, correndo o perigo de se transformarem de alegres em tristes. Quando o amor não é correspondido, rapidamente se muda em ódio, suscitando para com o rival, quando o há, uma outra paixão – a de inveja (prop. XXXV).
É interessante o papel que a imaginação desempenha neste trabalho sobre as paixões, colocando-se como elemento catalisador das mesmas, conseguindo provocar mais alegria ou mais tristeza consoante as imagens que seleciona e destaca. O drama maior é quando imaginamos a coisa amada na posse de um outro, que também a ama e por ela é correspondido. É um caso que o filósofo concretiza do seguinte modo:
“ (…) Esta última razão [unirmos a imagem da coisa amada com a daquele que odiamos] encontra-se no Amor que temos para com uma mulher; efetivamente, quem imagina a mulher que ama prostituindo-se com outro, ficará triste, não só porque o seu próprio apetite se reduz, mas também porque é obrigado a relacionar a imagem da coisa amada com as partes vergonhosas e com as excreções do outro, e lhe tem aversão…”
Ética, III, prop. XXXV, scol[18]
As vicissitudes da frustração amorosa são fonte de perturbação, até porque o que era amado facilmente se torna objeto de ódio, tanto maior quanto mais forte tivesse sido o amor primitivo (prop. XXXVIII). Essa metamorfose da coisa amada em coisa odiada, é complexa e provoca em quem a experimenta uma diminuição do ser próprio. Por isso a necessidade de evitar tal tipo de paixões, transformando-as noutras que possam mais eficazmente contribuir para a salvação, ou seja, a obtenção da suprema alegria que o filósofo se propunha alcançar no início do Tratado da Reforma do Entendimento. A volúpia (“libido”), tal como o dinheiro e as honrarias, constituem fatores de desestabilização e inquietude.
Se aceitarmos como verdadeiro o episódio relatado por Colerus, do qual os passos citados poderiam ser uma teorização, percebemos as razões que levaram o filósofo a não querer ser perturbado pelo “amor temeroso das donzelas.”
… um claro labirinto
No prefácio do livro III da Ética, o filósofo propõe-se falar de todas as coisas de um modo objetivo e rigoroso, tratando dos afetos, de Deus e da mente como se fossem linhas, superfícies e corpos. Inegavelmente que se impõe o ideal de clarificação. Mas mais do que labiríntica a Ética é circular [19]. Composta por cinco livros, neles se vai progressivamente revelando o pensamento do autor, num dizer que acompanha o ser. A construção do edifício é paralela à expressão ou explicitação do tema fundante que o atravessa – a Substância. Os diferentes livros mostram o desenrolar da Substância e o trajecto que descrevem é simultaneamente linear e circular, claro e labiríntico. A linearidade apresenta-se na sucessão das várias partes, cada uma delas se debruçando sobre uma temática específica e bem delimitada. O livro I, “De Deo”, tem um cariz eminentemente metafísico e, como o nome diz, trata de Deus, que no âmbito do pensamento espinosano é identificado com a Substância e com a Natureza. O livro II, “De natura et origine mentis”, debruça-se sobre a mente [20] e consequentemente sobre os corpo, dado que a mente em Espinosa é a ideia do corpo. É um livro que elege como temáticas relevantes a física e a psicologia. O livro III, “De origine et natura affectuum”, é aquele onde a antropologia espinosana é mais trabalhada. Os afetos continuam a ser objecto de estudo no livro IV, “De servitude humana seu de affectuum viribus”, mas há um peso grande das dimensões ética e política. O cruzamento das temáticas ética e gnosiológica surge com todo o seu esplendor no livro V, “De potentia intellectus seu de libertate humana”. Esta sequência de partes e de temas tem uma meta que é colocada no final da obra de um modo incisivo: a conquista da salvação, esse processo que nos ensina a conhecer as paixões e a tirar delas o melhor partido, gerindo-as de modo a que nos sejam úteis.
Convivendo com a leitura linear é possível detetar uma circularidade. Esta depara-se no entrecruzar dos temas com o tema central da salvação ao qual todos podem conduzir. Mas está sobretudo presente no desejo de revisitar o livro I, quando acabamos a obra. De facto, só depois de conhecido o livro V se poderá dissipar a estranheza que sentimos ao abordar as definições iniciais do livro I. Neste, parte-se de Deus e procura-se através da dedução dos atributos e dos modos, estabelecer pontes entre o infinito e o finito. No livro V parte-se do homem e tenta-se construir os elos que lhe permitirão chegar a Deus. É então que percebemos que pensamos em Deus e, consequentemente, como Deus. As definições iniciais do livro I que para o leitor desprevenido aparecem como uma espécie de peças arbitrariamente construídas para possibilitar o desenrolar de um jogo, passam a ser entendidas como pontos de chegada e não de partida.
É diferente o trajeto do autor e do leitor. O primeiro inicia o livro com a apresentação de conceitos longamente meditados. O segundo recebe-os sem qualquer preparação e só no fim compreende o caminho que os poderá legitimar. As primeiras definições foram alcançadas por alguém cujo pensamento se identifica com o pensamento divino, alguém que conhece as coisas “em Deus”. É por isso que a fórmula de apresentação se repete: “per causam sui intelligo….”; “per substantiam intelligo….”; “per attributum intelligo….”; “per modum intelligo…”; “per Deum intelligo…..” O filósofo sente-se autorizado a colocar estas definições fundadoras porque as atingiu no final de um percurso intelectualmente penoso – a “via perardua” de que nos fala o último escólio da Ética. Mas é grande o hiato entre o filósofo e o leitor, sobretudo para aquele que, como é habitual, pretende começar pelo início da obra, onde, de um modo abrupto e numa linguagem difícil lhe é imposto o horizonte da mesma. Talvez por isso Borges lhe chame labiríntica.
… liberto da metáfora e do mito
Metáforas, mitos, símbolos, signos, imagens, colocam-se como imperfeições do processo cognitivo que Espinosa enaltece – o encadeamento discursivo dos geómetras. O título pouco comum da Ética – Ethica ordine geometrico demonstrata – mostra-nos a intenção de aplicar o método dos matemáticos num texto de grande fôlego. A Ética realiza o sonho cartesiano do “mos geometricus.”[21] O seu método confunde-se com a própria atividade do entendimento, correspondendo ao seu funcionamento.
Apresentado o método no Tratado do Entendimento Humano, ele é posto em prática na Ética onde o ritmo discursivo é dado pelo desenrolar das noções essenciais. As coisas são intuídas em função do Todo, num processo que não prescinde da dedução.
O método geométrico foi a escolha de Espinosa para falar do real. Terá sido uma estratégia? Hegel é um dos que pensa deste modo, considerando o caráter conjuntural do “mos geometricus”, vendo nele a possibilidade de pensar livremente, o que nessa época só poderia realizar-se pela utilização de um discurso matemático. É verdade que Espinosa, no apêndice do livro I da Ética, fala da busca de um método que anule uma perspetiva teleológica, um método que se apresente com a infalibilidade das matemáticas e que se imponha pelo seu rigor. O discurso geométrico, deliberadamente escolhido pelo filósofo, pretende mostrar-nos uma realidade sem fissuras nem hiatos, realidade essa que, como vimos acima, ele não pretende circunscrever à física mas estender ao estudo de Deus e dos homens. Os afetos, as paixões, numa palavra, aquilo a que hoje chamamos o psiquismo humano, obedece às leis gerais da Natureza, como parte dela que é.
O ponto de arranque é a causa ou razão (“causa sive ratio”) e dela se deduzem os efeitos. A carta LX a Tschirnhaus ajuda-nos a perceber melhor a dinâmica narrativa da Ética. Diz-nos esse texto que o ideal é partir de uma definição de onde tudo se possa deduzir. Assim, coloca como modelo exemplificativo as definições genéticas visto que estas nos mostram como os conceitos se formam pelo recurso à sua “ratio”. A Ética concretiza esta pretensão pois começa com um conceito primordial que é a Substância ou Deus e dele deduz tudo quanto existe. Deus é a causa primeira, a “ratio” de todas as coisas.
A passagem do infinito ao finito implica a descoberta de mediações que nos permitam percebê-la. É um método sintético pois coloca em primeiro lugar o Todo, procurando mostrar como ele é constituído, revelando a sua estrutura íntima. A Ética é o desvelamento do Todo/Substância. Mas, como nos diz Deleuze, a sua escrita não é uniforme, como não são de igual importância os diferentes livros que a compõem:
“A Ética das definições, axiomas e postulados, demonstrações e corolários é um livro – rio que desenvolve o seu curso. Mas a Ética dos escólios é um livro de fogo, subterrâneo. A Ética do livro V é um livro aéreo, de luz, que procede por clarões. Uma lógica do signo, uma lógica do conceito, uma lógica da essência: a sombra, a cor, a luz. Cada uma das três Éticas coexiste com as outras e continua-se nas outras, apesar das suas diferenças de natureza. É um só e mesmo mundo. Cada uma estende passadiços para transpor o vazio que as separa.”
Gilles Deleuze, “Espinosa e as Três Éticas”[22]
Mesmo nos escólios, onde a prosa de Espinosa é mais solta, não há recurso a metáforas nem a mitos.
… o infinito mapa daquele que é Suas estrelas
A Ética fala-nos de um Deus que corresponde à totalidade de tudo quanto existe. A expressão “Deus sive Natura” tornou-se a imagem de marca da filosofia espinosana, uma espécie de palavra passe que nos dá acesso ao seu sistema, tal como o “cogito ergo sum” de imediato nos lembra Descartes.
A identificação de Deus com a Natureza constituiu uma das teses mais criticadas pelos contemporâneos do filósofo, que o acusavam de panteísta e consequentemente de ateu. O panteísmo espinosano foi agitado como bandeira herética. Ao terminar deste modo o seu poema, Jorge Luís Borges insere-se no rol daqueles que, na sequência de Bayle, sublinharam quer a divindade de todos os existentes quer a dessacralização do divino pela sua mistura com o terreno. Se Deus “é suas estrelas”, como admitir a transcendência do sagrado? Seremos todos deuses? É esse absurdo – no século XVII considerado como máxima blasfémia – que Bayle denuncia na obra do filósofo judeu. E a interpretação de Bayle fez carreira, mantendo-se até aos nossos dias, como podemos ver pelo poema de Borges.
O artigo de Pierre Bayle sobre Espinosa no seu Dictionnaire Historique et Critique determinou a maior parte das leituras que se fizeram do filósofo nos séculos XVII e XVIII. À semelhança de outras entradas do Dicionário é um texto curto, constantemente entrecortado por longuíssimas notas. A frase inical é o seu “leitmotiv”: “Il a été un Athée de Système.”[23]
Uma outra linha de força do artigo é o destaque dado ao monismo e imanentismo espinosanos. Como acontece nas leituras coevas do autor da Ética, este é interpretado como um panteísta grosseiro, para quem Deus e as coisas se confundem. É nisto que consiste a principal acusação. A diferença estabelecida por Espinosa entre a “Substantia sive Deus sive Natura” e os seus diferentes modos, infinitos e finitos, é algo que Bayle não considera. Para ele o modo é uma modificação e esta consiste em “estar no sujeito da mesma maneira que o movimento está no corpo e o pensamento na alma do homem e a forma de escudela no vaso a que chamamos escudela.”[24] Contudo, o autor da Ética consagra a primeira parte desta obra à análise cuidadosa da Substância, dos atributos e dos modos, realçando a sua especificidade.
É inegável que o monismo e o imanentismo são teses fundamentais em Espinosa. O seu Deus nada tem a ver com o Deus providência dos judeus e dos cristãos, o que nos leva a perguntar: ao aceitar a necessidade da Natureza e de todas as coisas que a constituem não estaremos a negar ao homem a possibilidade de ser livre? Ao admitir a imanência divina não estaremos a divinizar o real? Será que podemos continuar a falar de Deus quando nos referimos a Espinosa?
O filósofo defrontou-se com todas estas questões. Fê-lo de um modo mais solto e acessível ao longo da correspondência. Mas também encontramos respostas desenvolvidas na Ética. Logo no livro I vemos um texto que nos possibilita resolver a acusação de panteísta – o escólio da proposição XXIX. Nele o filósofo apresenta duas noções diferentes: a “Natura Naturans” (Natureza Naturante) e a “Natura Naturata” (Natureza Naturada)[25]. Com elas percebemos que embora as coisas (modos) tenham o seu ser em Deus, elas não são divinas pois Ele não faz parte da sua natureza ou essência. Há uma fronteira nítida entre a Natureza Naturante – Deus enquanto potência que necessariamente se manifesta – e a Natureza Naturada – Deus como manifestação ou concretização nos modos existentes. No primeiro caso temos uma Natureza infinita que, não podendo deixar de produzir efeitos, não está no entanto dependente deles. A Substância e os seus infinitos atributos são Natureza Naturante. Os modos, sejam eles finitos ou infinitos são Natureza Naturada. Todo o modo é um “Deus quatenus”, é a Natureza expressa de um modo circunscrito. A Natureza Naturante é causa de si mesma (“causa sui”) e como tal é livre. A natureza Naturada é resultado da necessidade divina, tendo nesta o seu fundamento dinâmico e criativo. Se no caso do homem podemos falar de liberdade, ela é algo que se conquista, realizando-se no seio do determinismo estrito em que se desenrola. A ordem presente na realidade modal é o reflexo da ordem existente na Substância. Esta revela-se pelo estabelecimento de relações de causa e de efeito que constituem o tecido do real. Deus suporta cada modo com o seu poder (potência). Os modos são parcelas da potência divina, potência essa presente em cada ser, de um modo determinado. Como que a assinalar a diferença ontológica entre Deus e os modos, o filósofo reserva o termo “potentia” para o primeiro, enquanto que os segundos são definidos como “conatus”. O “conatus” é a essência comum de todas as coisas. No que respeita ao homem o termo próprio que designa esse dinamismo é “desejo” (“cupiditas”).
Se a conclusão do poema de Borges não nos permite aceder ao dinamismo que perpassa na Ética, nele é nítida uma tese determinante para a compreensão da mesma – a de que somos parte de um Todo mais vasto, no qual nos inserimos e do qual precisamos para a nossa realização.
Mau grado algumas imprecisões que uma aceitação literal do poema possa conter, continuamos a considerá-lo como uma entrada motivadora no pensamento de Espinosa.
II
Espinosa e Etty Hillesum – alguns tópicos
- O Porquê de uma comparação
Trata-se de dois pensadores com conceitos muito próprios sobre Deus pois cada um deles nos apresenta uma visão original, contrastando com o que nos é habitual pensar sobre este tema. São também dois pensadores que viveram em tempos diferentes pois há entre eles um período de três séculos, com as consequências óbvias nas suas mundividências, nos seus interesses e nas suas preocupações.
Cada um deles percorreu um caminho original para chegar a Deus. Etty descobriu-O no quotidiano, aprendendo a vê-lo em situações e em locais insólitos. Podemos dizer que ela sente Deus e que vive em permanente união e diálogo com Ele.
Para Espinosa Deus não se sente, conhece-se, através do estudo e da compreensão quer do mundo quer de nós mesmos.
Espinosa é um filósofo.
Etty é essencialmente uma cuidadora.
Espinosa desmonta a teologia vigente (cristã e judaica) mostrando as suas falsidades e incongruências.
Etty constrói uma teologia nova, ligada ao quotidiano e enfatizando a dimensão transcendente do qual este se pode revestir.
Espinosa escreveu uma Ética.
Etty praticou uma ética.
- Duas diferentes mundividências
Tomando o termo “paradigma” à maneira Kuhniana, ou seja, entendendo-o como moldura ou padrão que organiza e estrutura as nossas concepções científicas, as crenças, os valores básicos, os interesses, etc., etc., percebemos como as mundividências de Espinosa e de Etty são inevitavelmente divergentes. O filósofo insere-se no paradigma cartesiano das ideias claras e distintas, tomando as verdades matemáticas e o método geométrico como referência. É um paradigma que se consolidará com Newton, provocando um imenso desenvolvimento na ciência e na tecnologia. Não podemos esquecer que é nesta altura que surgem instrumentos de observação e de medição permitindo à investigação científica um salto qualitativo no que respeita à aproximação do real. É também uma época de grandes conquistas éticas e políticas, de contacto com novas civilizações e de afirmação triunfalista de um determinado conceito de humanidade. O optimismo racionalista é a ideologia dominante, com a sua pretensão de que é possível conhecer o mundo tal como ele é. E como tal, de o dominar.
Etty Hillesum integra-se no paradigma einsteiniano no qual assistimos ao abalar da ciência de Newton bem como das grandes certezas quanto a um tempo e a um espaço absolutos. A segurança de um mundo cognoscível é posta em causa com o indeterminismo provocado pelas descobertas na microfísica. Einstein, Bohr, Heisenberg, são grandes nomes que provocaram profundas mutações na comunidade científica, obrigando-a a repensar-se, revendo teorias, conceitos, leis e expectativas. De igual modo foram disruptivas as novas ciências da mente – psicanálise, psiquiatria, etc. que evidenciaram a importância de um continente até então ignorado – o inconsciente.
Etty é testemunha de um tempo no qual ruíram conquistas éticas que pareciam irreversíveis. Ela sentiu na pele a destruição do Estado de Direito, arduamente conquistado ao longo de séculos. Com a ascensão dos fascismos e do nazismo ele foi substituído pela força, calando a diferença de vozes, perseguindo etnias e religiões e impondo um ideal único a que a todos se deveriam subordinar.
- Contrastes e semelhanças entre Espinosa e Etty
Espinosa é um ausente nos escritos de Etty. Ao lê-los verificamos que apenas uma vez o menciona no seu Diário e por uma razão que nada tem a ver com a sua filosofia.
No início do seu Tratado da Reforma do Entendimento o filósofo analisa criticamente aquilo que chama os prazeres enganadores e que para ele são o poder, o sexo e o dinheiro. Etty preza o prazer sexual e não se coíbe de falar dele ao longo dos seus Diários. Espinosa analisa minuciosamente as paixões mas ao fazê-lo usa sempre a terceira pessoa do singular, enquanto Etty se assume como protagonista dos seus romances. O autor da Ética tem como objectivo da sua vida chegar à sintonia com o Todo, designando este como Deus ou Natureza (Deus sive Natura). Propõe-nos um caminho terapêutico relativamente às paixões, cultivando as paixões alegres pois a tristeza é sempre negativa. Etty estabelece uma relação personalizada com as coisas – o céu, a beleza da paisagem, o vazo de flores sobre a secretária, etc.
Espinosa preza o método geométrico, usando uma prosa contida, utilizando definições, explicações, corolários e escólios para apresentar as suas teses.
A prosa de Etty é viva e poética, servindo-se frequentemente de metáforas. Ela não tem a pretensão de construir um sistema e mistura pensamentos profundos com reflexões quotidianas. Depois de se embrenhar em meditações profundas, é capaz de as interromper dizendo: “agora tenho de ir almoçar.” De facto Etty não cultiva a metafísica, considerando que não nos devemos perder nas grandes questões. Quando acede a elas é através dos acidentes da vida quotidiana. O seu objectivo principal é ajudar os outros. A virtude que mais preza e cultiva é a compaixão: Por isso escreve:
“toda a força, todo o amor, toda a confiança em Deus que temos (e que crescem espantosamente em mim nestes últimos tempos), temos de os guardar como reserva para todos aqueles com quem nos cruzamos no caminho e que deles tiveram necessidade (Diário, 7/7/1942). E: “o amor pelo nosso semelhante é como uma oração elementar que nos ajuda a viver.” (Carta 56, 1943).
No livro III da Ética Espinosa fala da compaixão, usando para ela dois termos: commiseratio e misericordia. (Et. III def. XVIII e props. XXI,.XXII e XXVII). Para ele trata-se de paixões tristes que devemos ultrapassar pois não aumentam a nossa potência de vida. Trata-se de uma solidariedade afectiva que não nos traz alegria.
Note-se que para além destes contrastes óbvios podemos detectar semelhanças. A primeira é o facto de ambos terem vivido em tempos sombrios; ambos morreram novos; ambos amaram a vida; ambos tinham uma experiência pouco ortodoxa do judaísmo embora fossem judeus.
Tanto Espinosa como Etty procuraram ultrapassar os seus interesses particulares. O primeiro estuda-se a si próprio e ao real para melhor conhecer Deus, do qual tudo é manifestação (somos modos de Deus). A segunda pratica uma auto-análise que lhe permite conhecer-se melhor e colocar esse conhecimento ao serviço dos outros. Tal como o filósofo, Etty considera que somos uma parte de um Todo, interessando-lhe sobretudo a comunidade humana a que pertencemos e não o mundo físico. Um e outra interessaram-se pelas emoções, concedendo uma importância primordial à alegria – lembremos o encantamento de Etty ao deparar com uma flor no meio da lama de Westerbork. Ambos falaram da sintonia entre corpo e mente – Etty relevando a sua harmonia, Espinosa considerando-os como o verso e o reverso da nossa essência desejante. Ambos nortearam a sua vida pela frugalidade e pelo despojamento – lembremos a mochila de Etty e os parcos bens que Espinosa deixou depois de morrer.
Ambos procuraram primeiro do que tudo compreender, e só depois julgar, e só depois agir. No Prefácio do livro III da Ética, bem como no capítulo I do Tratado Político o filósofo diz-nos que o seu intuito não é censurar os homens mas sim compreendê-los. Daí a análise minuciosa dos afectos humanos, tentando explicá-los.
No seu Diário Etty escreve:
“Se um homem dos SS pudesse matar-me a pontapé, eu ainda levantaria os olhos para olhá-lo no rosto e interrogar-me-ia, com uma expressão de surpresa e de medo, e por puro interesse pela humanidade: Meu Deus, rapaz, o que te terá sucedido de tão terrível na vida para te fazer praticar semelhantes acções?”(Diário, in Frei MichaelDavide, Etty Hillesum. Humanidade enraizada em Deus, p. 55).
- Uma vivência original do judaísmo. Um Deus diferente
Nem Espinosa nem Etty tiveram uma relação harmoniosa com o judaísmo. Depois da sua expulsão da Sinagoga o filósofo fez sempre duras críticas ao rigorismo hebraico, criticando os seus preceitos, denunciando a ignorância dos profetas, desmitificando os milagres e as profecias. O Tratado Teológico Político é ilustrativo deste distanciamento. Nele se denuncia o estatuto especial de Israel como povo eleito, questionando-se a escolha do mesmo. Certas práticas como a circuncisão são ridicularizadas. A lei mosaica é desprovida do seu carácter sobrenatural, sendo reduzida a um conjunto de práticas conducentes a uma estabilidade social. O aparato das leis e dos ritos ajudaria à manutenção do Estado revestindo-se de um carácter exclusivamente social. Note-se que há no entanto uma valorização de certos personagens bíblicos. É o caso de Moisés e de Salomão que são aproveitados para uma melhor explicitação das teses do filósofo quanto ao estatuto eminentemente político da religião. Espinosa aplica ao texto bíblico um método exegético procurando separar o que possa ser admitido como verdade e as fantasias da imaginação. O texto bíblico perde o seu estatuto de palavra revelada, despindo-se de todo o elemento sobrenatural. Do triplo amor que os judeus consagram a Deus, à Torah e a Israel, o filósofo apenas acata o primeiro.
Não podemos dizer que Etty seja crítica relativamente à cultura do povo a que pertence. De facto ela é judia mas sempre viveu como se o não fosse. Se tivéssemos que estabelecer uma relação entre ela e o judaísmo falaríamos da sua ignorância face a este – a sua educação passou ao lado da cultura hebraica, os seus valores são valores laicos. Contudo sente-se solidária com a sua comunidade que não abandona, mesmo em risco da própria vida. Depois de um percurso como cuidadora em Westerbork Etty acompanha os seus no seu destino, rumo a Auschwitz.
Tanto Etty como Espinosa nos apresentam um Deus diferente do usual, questionando a transcendência do mesmo. No final dos seus Cadernos, quando Deus se torna uma presença constante no seu pensamento, Etty escreve: “O céu vive em mim. Tudo vive em mim (Diário, p. 515). Para ela Deus não está na Natureza mas no coração de cada um, por isso devemos procurá-Lo dentro de nós e não fora. Deus é o amigo com quem permanentemente dialogamos. Mas não lhe pedimos coisas pois Ele é um Deus frágil, que precisa da nossa colaboração: “Se Deus não me ajuda tenho que ser eu a ajudá-lo.” E ajudamo-Lo quando ajudamos os outros. A criação está incompleta e os homens terão que colaborar com Deus para a completar.
Etty fala com Deus e considera que colabora com Ele: “Penso que trabalho bem contigo meu Deus, penso que trabalhamos bem um com o outro.” (Diário, p. 223). E na Carta 60 escreve: “Deus Meu, fizeste-me tão rica, deixa-me por favor partilhar essa riqueza. A minha vida tornou-se um diálogo ininterrupto Contigo, Meu Deus, um grande diálogo.”
Etty é uma mística e ela própria se situa na linha de S. Francisco de Assis, de Mestre Eckhart e de Thomas de Kempis, declarando pertencer à sua linhagem. Dela podemos dizer que “vive uma mística de olhos abertos.” À semelhança de Santa Teresa de Ávila que declarava ter encontrado Deus nas caçarolas da cozinha, Etty chega a Deus no tapete da sua casa de banho:
“Esta tarde dei comigo ajoelhada, de repente, no tapete de fibra de coco castanho da casa de banho, com a cabeça oculta no meu roupão.” (Diário, 15-09-41). Há um sentimento da presença de Deus que acompanha todas as suas tarefas quotidianas: “Às vezes, quando menos o espero, alguém se ajoelha num recanto do meu ser. Esse alguém que se ajoelha sou eu”. Dá-se em Etty uma fusão com Deus através do contacto com aqueles que a rodeiam e que sofrem. Por isso, numa carta a Henry Tideman, em Agosto de 1943, ela escreve: “A minha vida é um longo diálogo contigo, meu Deus, um longo diálogo.” Dela podemos dizer que encontrou Deus na banalidade do seu quotidiano e que partir das suas vivências conseguiu traçar o seu caminho para Ele.
Diferente foi o caminho de Espinosa, considerado pelos seus contemporâneos como ateu, nomeadamente pela sua negação de um Deus pessoal, criador e livre. Note-se que o ateísmo espinosano não é uma tese consensual. É uma interpretação que resulta da sua desmitificação de um Deus/Pessoa e de um Deus/Pai, teses que manifestariam uma visão antropomórfica, por ele combatida. É verdade que ele critica as Igrejas instituídas e que foi interpretado como precursor de Marx, Nietzsche e Freud na denúncia às representações culturais humanas, frutos do desejo e do medo. Não me parece no entanto que este desejo de desmitologização justifique o rótulo de ateu que muitas vezes lhe é atribuído. De facto não há nele um desejo da morte de Deus pois ele não abdica da categoria do divino, antes a transferindo para a Natureza. E nos
seus escritos há afirmações que nenhum ateu subscreveria, como por exemplo “Sentimos e experimentamos que somos eternos” (Et. V, prop. XIII, esc.). Espinosa não se coíbe de utilizar o termo Glória para falar dessa consciência de eternidade. O Amor Intelectual a Deus (amor Dei intellectualis) resulta do nosso conhecimento das coisas em Deus, do conhecimento de nós próprios em Deus. O que tem como consequência a Beatitude.
Tanto Etty como Espinosa propõem-nos um Deus diferente mas sem dúvida que ambos defendem que é nEle que nos realizamos e que é por Ele que a vida vale a pena ser vivida. Um e outro buscaram Deus.
E estou segura de que O encontraram.
Maria Luísa Ribeiro Ferreira
Lisboa, 23 de Julho de 2017
* O texto I corresponde ao primeiro capítulo de um livro que escrevi sobre Espinosa, intitulado Uma Meditação de Vida. Em Diálogo com Espinosa, Lisboa, Esfera do Caos, 2013. Nele está contida a informação dada na visita à Casa de Espinosa. Acrescentei em II alguns tópicos relacionando Espinosa e Etty Hillesum. Como se tornará óbvio para os leitores a parte I tem o rigor de um texto académico e a parte II tem a ligeireza de um texto falado sendo a mera transcrição do que foi dito em Rijnsburg.
[1] Jorge Luís Borges, “Spinoza”, Nova Antologia Pessoal, trad. António Alçada Baptista, Lisboa, Difel, 1983, p. 37.
[2] “Les philosophes sont plus légers que les anges, ils n’ont pas cette pesanteur des vivants que nous aimons, ils n’ éprouvent jamais le besoin de marcher parmi les hommes.”
Paul Nizan Les chiens de garde, Paris, F. Maspéro, 1974, p. 30.
[3] Para aprofundar as origens portuguesas de Espinosa veja-se António Borges Coelho, A Inquisição de Évora, Lisboa, Caminho, 1987, vol. I, “Os antepassados de Bento Espinosa”, pp. 438 e segs.
[4] Há muita literatura sobre este tema. Destaco duas obras particularmente interessantes: I.S. Révah, Des Marranes à Spinoza, Paris, Vrin, 1995 e Yirmiyahu Yovel, Spinoza and Other Heretics, Princeton University Press, 1989, trad. port. Espinosa e Outros Herejes, Lisboa, INCM, 1993.
[5] O nº 3 dos Cahiers Spinoza é todo ele dedicado à comunidade judaica de Amsterdão no século XVII. Vj. AAV, Spinoza et les Juifs d’Amsterdam, Marranes et Post-Marranes, Paris, Éditions Réplique, 1980.
[6] Tratado Teológico-Político, trad. port. Diogo Pires Aurélio, Lisboa, INCM, 1988, p. 114.
“Cum itaque nobis haec rara foelicitas contingeret, ut in Republica vivamus, ubi unicuique judicandi libertas integra, & Deum ex suo ingenio colere conceditur, & ubi nihil libertate clarius, nec dulcius habetur, me rem non ingratam, neque inutilem facturum credibi, si ostenderem hanc libertatem non tantum salva pietate, & Reipublicae pace concedi, sed insuper eadem, non nisi cum ipsa pace Reipublicae, ac pietate tolli posse.”
Spinoza Opera, hersg. von Karl Gebhardt, Heidelberg, Carl Winters, 1972, 5 vols (doravante G.), G. III, p. 7.
[7] João Colerus, Vida de Bento de Espinosa, Edição da Câmara Municipal da Vidigueira, 2000, p. 15, nota 1. Podemos encontrar parte do texto da excomunhão em Yirmihahu Yovel, Espinosa e Outros Herejes, trad. do inglês por Maria Ramos e Elisabete Costa, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1993, p. 13.
[8] Ob. cit., p. 1.
Há outras fontes de contemporâneas de Espinosa, das quais podemos colher informação sobre a sua vida, nomeadamente o célebre artigo de Pierre Bayle no Dictionnaire Historique et Critique e a biografia de Lucas. Embora a biografia de Colerus não possa ser considerada totalmente fidedigna, pensamos, como Joaquim de Carvalho que ela reconstitui bem o personagem Espinosa. Daí a termos privilegiado neste comentário ao poema de Borges.
[9] Ob. cit., p. 3.
[10] “Non alibi invenias Principem faventiorem eximiis ingeniis, inter quae te aestimat.”
Ep. XLVII de Fabritius a Espinosa, G. IV, pp. 234-5.
[11] “(…) et apud homines (…) summum bonum aestimantur : divitias scilicet, honorem, atque libidinem. »
TIE, G. II, p. 5.
[12] “Sed quoniam nunquam publice docere animus fuit, induci non possum, ut praeclaram hanc occasionem amplectar, tametsi rem diu mecum agitaverim. Nam cogito primo, me a promovenda Philosophia cessare, si instituendae juventuti vacare velim. Cogito deinde, me nescire, quibus limitibus libertas ista Philosophandi intercludi debeat, ne videar publice stabilitam Religionem perturbare velle (…). Atque haec cum jam expertus sim, dum vitam privatam & solitariam ago, multo magis timenda erunt, postquam ad hunc dignitatis gradum ascendero. Vides itaque, Vir Amplissime me non spe melioris fortunae paerere, sed prae tranquilitatis amore, quam aliqua ratione me obtinere posse credo, modo a publicis lectionibus abstineam.”
Ep. XLVIII de Espinosa a Fabritius, G. IV, p. 236.
[13] Para quem se interessa pelo tema das mulheres na filosofia vj. Maria Luísa Ribeiro Ferreira (org.), O que os filósofos pensaram sobre as mulheres, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 1998, republicado no Brasil, S. Leopoldo, Unisinos, 2010.
[14] Espinosa, Tratado Político, cap. XI, § 4. É um tema que por várias vezes abordei noutros artigos. Vj. “Descartes, Espinosa e os ecofeminismos” e “Haverá uma salvação para as Mulheres?”, Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Uma Suprema Alegria: escritos sobre Espinosa, Coimbra, Quarteto, 2003, pp. 73-90 e 251-267.
[15] Colerus, ob. cit., pp. 3-4.
[16] “Si aliquem, imaginamur amare, vel cupere, vel odio habere aliquid, quod ipsi amamus, cupimus, vel odio habemus, eo ipso rem constantius amabimus, etc.”
Et. III, prop. XXXI, G. II, p. 164.
[17] “Si aliquem re aliqua, qua unus solus potiri potest, gaudere imaginamur conabimur efficere, ne illa re potiatur.”
Et. III, prop. XXXII, G. II, p. 165.
[18] “ (…) Quae ratio plerumque locum habet in Amore erga feminam; qui enim imaginatur mulierem, quam amat, alteri sese prostituere, non solum ex eo, quos ipsius appetitus coercetur, contristabitur, sed etiam, quia rei amatae imaginem pudendis et excrementis alterius jungere cogitur, eadem aversatur; (…) »
Et. III, prop. XXXV, schol., G. II, p. 167.
[19] Este tópico recupera partes do capítulo 4 do meu livro Diálogo e Controvérsia na modernidade pré-crítica, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2005.
[20] Dado que Espinosa pouco utiliza o vocábulo “anima” usando frequentemente o termo “mens”, optamos pelo tradução mente, contrariando o habitual nas edições portuguesas, francesas e castelhanas. Visto que em português é possível escolher entre mente e alma, optamos (tal como os ingleses) pelo primeiro termo, numa fidelidade literal ao texto do filósofo que deliberadamente dele quer afastar quaisquer conotações religiosas.
[21] Descartes usara este tipo de escrita no apêndice às Respostas às Segundas Objecções, Raisons qui prouvent l’ existence de Dieu et la distinction qui est entre l’ esprit et le corps humain disposées d’ une façon géométrique, um texto de poucas páginas que se constitui como uma espécie de léxico.
[22] Gilles Deleuze, “Espinosa e as Três Éticas” em G. DELEUZE, Crítica e Clínica, trad. Pedro Eloy Duarte, Lisboa, Século XXI, 2000, pp. 202-203.
[23] Pierre, Bayle, “Spinoza”, Dictionnaire Historique et Critique, Amesterdão, 1740, 5ª ed., t. IV, pp. 253-271 ( p. 253).
[24] “ (…) ce que c’ est que le caractère propre de la modification. C’ est d’ être dans un sujet de la maniére que le mouvement est dans le corps, & la pensée dans l’ âme de l’ homme, & la forme d’ écuelle dans le vase que nous appellons une écuelle. »
Bayle, artº cit, p. 269.
[25] Et.I, prop. XXIX, schol, G. II, p. 71.
2017/07/21 - Nos passos de Etty Hillesum, com o Pe. José Tolentino Mendonça
17 de Julho de 2017
18 de Julho de 2017
19 de Julho de 2017
20 de Julho de 2017
21 de Julho de 2017
2017/07/16 - Peregrinação 'Nos passos de Etty Hillesum'
2017/07/16 - Escutar a vida em profundidade (homilia)
Naquele dia, Jesus saiu de casa e foi sentar-Se à beira mar. Nós colhemos as imagens principais de Jesus em movimento. Jesus é um itinerante, é um pregador itinerante. Ele diz: “As raposas têm as tocas e as aves do céu os seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde encostar a cabeça.” Mas, a verdade é que Jesus também dormia em determinados lugares, também era acolhido em casa dos Seus amigos.
Há uma questão que se levanta a partir desta passagem do Evangelho de Mateus, que é a questão: Jesus teve uma casa ou não? Ou viveu na casa dos pais e depois viveu onde calhava? Ele tinha uma casa ou não? Nós não sabemos. Não podemos dizer: não, não tinha. E não podemos dizer: sim, tinha. Mas, esta passagem do evangelho de Mateus deixa-nos com a pergunta quando se diz: “Jesus saiu de casa.” Mas da casa de quem? “Jesus saiu de casa e foi sentar-Se à beira mar.”
Possivelmente, durante um tempo, ali em Cafarnaum, quando ele começou a Sua vida pública Ele tinha uma casa ou alugou uma casa ou tinha permanentemente uma casa. Mas, para nós o importante não é apenas a casa mas é este movimento: Jesus saiu de casa e foi sentar-Se à beira mar. Foi sentar-Se à beira mar também pelas mesmas razões que nós vamos neste período sentar-nos à beira mar, porque está muito calor, não se consegue viver fechado dentro das casas muito tempo. E então, Jesus foi procurar a brisa do mar, a frescura do mar.
Este tempo de férias é também um tempo de procura, no sentido de que a nossa alma, o nosso coração, precisa de outros caminhos, precisa de outros espaços, precisa de uma vastidão. Nós não somos feitos para o ar condicionado ou para a vida condicionada. Nós somos feitos, como lembra S. Paulo na Carta aos Romanos, para o incomparável. Isto é, para aquilo que não tem comparação. Nós fomos feitos para o infinito. Quer dizer, nós sentimos que a nossa vida está numa gestação. Nós sentimos que há umas dores de parto e que essas são a nossa vida, e que estamos a gerar e, ao mesmo tempo, a ser gerados, estamos a criar e a ser recriados. Mesmo quando só parece que temos a vida sonâmbula, ofegante, as tarefas, as rotinas, as obrigações, os deveres, as coisas que se impõem. Mesmo quando parece que o nosso horizonte é cada vez mais curto, breve, imediato, que é aquilo, que não pode ser outra coisa, que não podemos ter ilusões. Mesmo quando parece que a vida se estreita, se afunila, o nosso coração é feito para coisas incomparáveis. E ele está-nos sempre a dizer isso, a nossa alma está sempre a dizer isso.
Por isso, nós precisamos de subir aos montes, precisamos de ir olhar o mar, precisamos de contemplar a natureza, precisamos de estar parados, só a receber, precisamos do confronto com o silêncio, precisamos de ver, de tatear, de cheirar, de degustar uma medida que seja maior do que a vida pequenina, do que a vida minúscula, do que a vida que se escreve por estreitas sílabas. Precisamos de mais. “Jesus saiu de Sua casa e foi sentar-Se à beira mar.”
Mesmo se não temos oportunidade de sentar-nos à beira-mar, mesmo se não temos oportunidade de fazer férias, por qualquer que seja a razão, é importante na nossa vida haver uma deslocação. É importante sentarmo-nos a contemplar, é importante sairmos do nosso lugar habitual, nem que seja para visitar o parque, visitar o nosso lugar interior e dar lugar a essa experiência de que somos feitos para coisas incomparáveis.
“Jesus sai da Sua casa e vai sentar-Se à beira mar.” E ali há uma parábola, Jesus conta uma parábola e a multidão senta-se à beira do lago a escutar. Quando nós vamos de férias o que é que vamos fazer? Às vezes parece que enchemos tudo, enchemos o carro e vamos evadir, vamos fugir, vamos esquecer, vamos distrair, vamos submergir no mundo num espaço que não nos lembre a vida, não queremos pensar. E é o contrário, as férias são um tempo favorável para a escuta profunda, é uma oportunidade para eu escutar, para eu sentir que há uma parábola que me está a ser contada. E o que é que estás a ouvir? É interessante a parábola que Jesus conta porque é, no fundo, a parábola da vida. Do que é que eu estou a ser, do que é que eu estou a viver, como é que eu estou a abraçar a vida ou a deixar simplesmente passar ao lado? Como é que eu estou a ser? Fecundo ou estéril? Como é que eu estou a produzir, a multiplicar a vida? Ou, pelo contrário, como é que eu estou a enterrar, como é que eu a estou a diluir? Jesus conta esta parábola que é a parábola da nossa vida e que é a parábola de um tempo de balanço.
Porque Deus passa sempre na nossa vida, o semeador passa a semear. Todos os dias nós recebemos sementes, oportunidades. Cada dia é uma oportunidade, cada encontro é uma viagem, hoje pode ser o dia da salvação. Hoje jogam-se as coisas mais importantes da minha vida. O semeador passa a semear, e ele vai passando a sua semente e a semente cai em lugares diferentes, lugares diferentes da nossa própria vida, porque nós somos tudo isto ao mesmo tempo. Nós somos este caminho, a semente perde-se no caminho. Há tantas coisas que nós ouvimos e entram a cem e saem a mil, e nós parece que ouvimos mas não ouvimos porque já estávamos de costas, já não percebemos bem. A vida está cheia de coisas que nós devíamos ter escutado e não escutamos. Muitas vezes, a dor, o peso é isso: o que eu devia ter escutado a dada altura e não escutei, foi-me dito e eu não ouvi. Não estava aí, estava noutra, estava a caminhar e a semente perde-se.
E há outra semente que é deitada em sítios pedregosos. E parece que acontece um milagre porque ela floresce logo, mas depois não tem raiz em si mesma. Nós também sentimos que muitas vezes é assim. Há entusiasmos, há coisas pompeantes, há alegrias, há coisas que parece que agora é que vai ser, que agora é que é. Mas depois nós não cuidamos da nossa raiz, não damos tempo, não amadurecemos, não fazemos um caminho bom. E então, como não há uma fidelidade, não há um permanecer, aquele entusiasmo muito vigoroso, muito prometedor, acaba por morrer.
Outras sementes são colocadas entre espinhos e quando crescem ficam sufocadas. E Jesus diz: “É a nossa vida, andamos preocupados com as tarefas, andamos seduzidos pela riqueza, por isto e por aquilo e não damos espaço, sufocamos dentro de nós a vida.” Vejam que responsabilidade nós temos em relação à nossa própria vida porque não damos ar, não permitimos, não permitimos muitas vezes que a palavra de Deus cresça dentro do nosso coração. Não damos espaço, é tudo cheio de espinhos que sufoca esta vitalidade do Espírito em nós.
E, por fim, há a semente que cai em terra boa. E o nosso coração também é uma terra boa. É importante sentirmos isso e confiarmos nisso, confiarmos nisso. Este pobre coração, esta pobre vida que é a nossa, esta vida vulnerável, frágil é também ao mesmo tempo uma terra boa, é um lugar onde é possível, é possível. E precisamos de acreditar nisso, que a semente pode cair e dar fruto. Pode dar três ou trinta, pode dar um ou cem. Não importa. Ela vai dar fruto, vai dar fruto.
Jesus saiu da Sua casa e foi à beira mar, escutar a vida em profundidade. E é no fundo isto que nós precisamos fazer, este exercício. Não nos deixemos empurrar por esta sociedade do consumo que nos atordoa com isto e aquilo, e sobretudo não quer que a gente pare nunca, que a gente mergulhe nunca na sua vida interior. Não, há uma parábola que nos está a ser contada e que nós precisamos de escutar, e essa parábola é a nossa própria vida e é aquilo que nós estamos a fazer da nossa própria vida, é a atitude que temos para com a nossa própria vida.
Que ela seja a terra boa na qual o Semeador passa e tem a confiança de que aquela semente não é em vão. Isso que a imagem do profeta Isaías que hoje nós ouvíamos nos diz e uma forma tão maravilhosa: “Assim como a chuva e a neve descem do céu e não voltam para lá sem terem regado a terra, assim a Palavra que sai da minha boca não volta sem ter produzido o seu efeito.” Deixemos que o efeito de Deus, o efeito da Sua Palavra, nos transforme, faça acontecer dinamismos de vida, de afetos, de esperança dentro de nós. E que este tempo que vamos viver seja um tempo de graça, um tempo para escutar a vida em profundidade.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XV do Tempo Comum
2017/07/09 - D. Manuel Clemente na Celebração do Sacramento do Crisma e do Batismo
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2017/07/02 - Ampliar a vida (homilia)
Lembro-me de uma provocação feita pelo Manoel de Oliveira numa entrevista na televisão. A dada altura ele diz que imaginava uma sociedade sem dinheiro, onde nos relacionávamos uns com os outros, não a partir do que ganhávamos e deste instrumento monetário que supostamente assegura a nossa vida e assegura a sustentabilidade das nossas sociedades, mas da descoberta de outras formas de organizar o mundo e organizar a vida entre nós.
Na tradição bíblica certamente nós encontramos outras formas. Quando refletimos a fundo sobre o significado da nossa vida e sobre aquilo que é decisivo para a fecundidade da nossa existência, sem dúvida que o dinheiro não pode aparecer em primeiro lugar, e se aparece é um equívoco. Hoje nós temos, quer na primeira leitura do Livro dos Reis, quer no Evangelho, a descrição de uma vida baseada no dom. O que é que é uma vida baseada na dádiva? Há esta mulher que percebe que há este profeta que vai passando todos os anos. E ela diz: “A minha casa tem de se modificar.” E faz subir a casa e constrói um quarto para a hospitalidade, para o acolhimento. Então o que é que esta mulher sente? Ela sente que a sua vida se modifica a partir daí e, quando isto acontece, ela também vence um limite que ela própria trazia. O profeta anuncia a esta mulher estéril que ela vai dar à luz um filho.
É uma linguagem que nós podemos ler de muitas formas. De uma forma aberta na nossa vida, porque quando somos capazes de hospitalidade quando a vida se modifica em nome do dom, em nome do acolhimento, sem dúvida que há uma esterilidade que se vence e há uma fecundidade que se experimenta, que se prova. E a esterilidade não é apenas biológica, de não poder gerar filhos. A esterilidade marca-nos a todos. Muitas vezes o ruído de fundo da nossa vida é uma esterilidade, enchemo-nos de coisas e sentimos o vazio, o peso insustentável do vazio. Sentimos que temos coisas mas elas não falam, sentimos que não somos capazes de multiplicar a vida. Não somos transmissores de vida, mas vivemos bloqueados, vivemos como que manietados na nossa capacidade do dom. Ora, a primeira leitura é um desafio verdadeiro a ampliarmos a nossa vida. Quem se coloca numa lógica do dom não pense que a sua vida não vai sofrer modificações, não temos de estar disponíveis para modificar, fazer ampliar ou fazer diminuir ou fazer crescer. É uma lógica diferente. Mas nessa lógica do dom a nossa vida também chega a lugares novos, chega a lugares necessários, acolhe reivindicações profundas do nosso coração – que porventura neste momento nós não estamos a satisfazer, porque pensamos unicamente que o pilar da vida é o dinheiro ou é a produtividade ou é a gestão do meu património ou é aquilo que eu tenho, sem esta capacidade de arriscar e perceber a vida em profundidade, de ler a vida em profundidade.
No fundo, é isso que Jesus faz nesta página do Evangelho de Mateus como faz sempre connosco e com o evangelho da nossa própria vida. Jesus ajuda-nos a ler em profundidade e a perceber isto: a perceber que se eu não estou disposto a perder, a perder-me, em última análise a perder a vida, eu nunca vou descobrir o sabor profundo da vida. É como aquele poema do Tagore sobre os dois pássaros que estão enamorados, só que um está dentro da gaiola e o outro anda em liberdade. O que anda em liberdade vem voar à volta da gaiola e vem dizer: “Meu amor, vamos, vem comigo, vem conhecer os campos, vem comigo conhecer o ar livre.” E o outro diz: “Não posso, estou aqui preso, vem tu aqui para dentro.” E ele diz: “Não, tem coragem, tem força, nós podemos voar.” Ele diz: “Não, eu não consigo, eu estou aqui dentro, vem tu para o pé de mim e assim vamos estar juntos.” E andavam nisto, e da última vez que o pássaro livre fala ao pássaro enamorado mas que está preso na gaiola, diz: “Vem, anda, vamos voar.” Ele diz: “Não posso, as minhas asas morreram.”
À custa de nós estarmos aprisionados àquilo que nos prende as nossas asas morrem. E depois perdemos a capacidade de viver uma vida na sua amplidão, com a respiração, com a fantasia, com o idealismo, com a verdade, com a autenticidade, com a essencialidade que uma vida pode ser. De repente, damos por nós em gaiolas douradas e, de facto, as nossas asas morreram. E morreram porquê? Porque nós tivemos medo a dada altura, ou tivemos medo em muitas alturas de pegar na cruz e seguir e sentir que a vida se perde, sentir que a vida é um salto, que a vida não é sustentada por um cálculo de somar. A vida tem de ser uma trajetória de confiança. Ou apanhamos isto, sustentados no exemplo da vida de Jesus, ou então andamos atrás Dele mas não percebemos o que Ele nos diz – e quando Ele faz esta proposta: “Quem quiser seguir-Me pegue na sua cruz e siga-Me.”, Ele fica sozinho a levar a sua porque cada um de nós parte o mais depressa possível.
Jesus faz o elogio da hospitalidade. Esta última palavra do trecho que nós lemos, tudo aquilo que fazemos de bom, de amor, tudo tem um eco e nós temos de acreditar. Eu acho que às vezes nós acreditamos pouco nos gestos de amor, na confiança que vamos tecendo na dádiva. Acreditamos pouco nisso, acreditamos mais nas coisas materiais, acreditamos mais nos números que vemos, acreditamos mais numa visão quantitativa e restrita da realidade do que acreditamos na força potenciadora do amor. Esta imagem de Jesus é um desafio tremendo para nós. Nem um copo de água fresca que tenham dado a alguém ficará sem recompensa. Isto é, nem os gestos mínimos, aquilo que ninguém viu, aquilo que é verdadeiramente insignificante. Isso terá um efeito, isso mudará alguma coisa, isso servirá para alguma coisa e esta palavra de Jesus é uma palavra que nos reforça na confiança, na capacidade de dom.
Volto à imagem inicial daquela entrevista, daquele ancião sábio chamado Manoel de Oliveira: e se pensássemos uma sociedade sem dinheiro? E se pensássemos uma sociedade baseada no dom? O Cristianismo é uma sociedade baseada no dom.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XIII do Tempo Comum
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2017/07/01 - "Teoria da fronteira", poesia de José Tolentino Mendonça
Junho
2017/06/25 - Jesus toma a nossa vida a sério (homilia)
A nossa situação no mundo, na vida, é marcada pela violência e uma violência que não está apenas fora de nós. Nós reconhecemos esse sinal do tumulto, da turbulência, da asfixia do amor dentro de nós próprios. S. Paulo há de dizer na Carta aos Romanos, de que hoje nós lemos um parágrafo, que o seu próprio corpo está em luta, está em guerra.
Nós sentimos essa luta dentro de nós e muitas vezes sentimo-nos cúmplices, sentimos que há uma cedência da nossa parte em relação à ordem do mal. Olhando para fora de nós, olhando para as notícias que nos cercam, olhando para a situação do mundo “vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”. Não podemos ignorar o sofrimento do justo, não podemos ignorar a solidão da vítima, não podemos ignorar a perseguição que é feita a tantos. Uma perseguição que é ativa, no sentido se pensarmos nos cristãos, se pensarmos em todas as vítimas da história. Por exemplo, hoje em tantas paragens do mundo são perseguidos pela sua fé, pela sua raça, pelas suas opções de vida, pela sua condição. Mas há outras formas de violência instaladas, são formas sistémicas de violência. Pensemos na pobreza como uma violência, pensemos no desemprego como uma violência, pensemos na falta de habitação como uma forma terrível de violência, pensemos naqueles que vivem sem abrigo como uma forma tremenda de violência. É o próprio sistema que tem dificuldades e assumidamente não quer integrar, não se quer mudar.
Esta violência está-nos no sangue, nós somos herdeiros, vivemos num mundo feito assim. Por muito que nos habituemos, por muito que nos conformemos com este mundo, a verdade é que no coração de um cristão não pode deixar de constituir um escândalo o sofrimento, a dor, a pobreza, a humilhação, a perseguição de qualquer ser humano. Mas é neste mundo que nós estamos e precisamos de ganhar uma consciência profunda do mal que atravessa a própria história. Nós não vivemos no melhor dos mundos, vivemos num mundo tocado profundamente pelo pecado, tocado profundamente por estruturas de pecado e isso nós não podemos ignorar. Precisamos crescer no conhecimento, na denúncia profética, na oposição e na procura de modelos alternativos de vida que nos coloquem a fazer outras coisas, a tentar. Por muito pequenino, por muito seminal que seja a nossa atitude nós temos de tentar outros caminhos. Porque não podemos simplesmente compactuar, não podemos dizer: foi este o mundo que nós herdámos, não podemos fazer nada. Não, nós podemos fazer alguma coisa. E, nesse sentido, são as leituras que hoje nós ouvimos.
- Paulo, na Carta aos Romanos, vai falar de duas realidades, vai falar do pecado original e vai falar da graça original. Muitas vezes nós falamos do pecado original na tradição católica e esquecemo-nos de falar da graça original. Sim, há um pecado original, no sentido de que a nossa humanidade, como a humanidade de todas as mulheres e de todos os homens, é marcada pela imperfeição. Nós vivemos num mundo onde nem damos conta da quantidade de injustiças, de como vivemos situações de puro privilégio em relação a milhões e milhões de seres humanos. E o que é que nós fazemos por isso? E como é que acordamos para essa realidade? Vivemos num mundo onde o pecado se transmite de uma forma completamente acelerada que nós nem nos damos conta. E aquilo que muitas vezes nos parece um bem, uma coisa adquirida, alguma coisa a que temos direito se vamos ver, no fundo, é uma situação que provoca, lá na outra ponta da relação, uma situação de humilhação, de escravidão, de exclusão de tantos seres humanos.
Por isso nós, mesmo vivendo como inocentes, a verdade é que este contágio com o mal sistémico, com as estruturas de pecado da nossa realidade não poupam ninguém. Por isso, no batismo, mesmo no batismo das crianças, o rito do exorcismo – e hoje vamos ter a grande alegria de fazê-lo com a nossa catecúmena, a Ana – é o rito da vitória. A linguagem da oração diz “desta mancha original”, que acaba por ser uma espécie de insuficiência ou de débito nosso em relação a este caráter persecutório que a vida e que o sistema do mundo têm em relação a milhões de seres humanos, e em relação mesmo às outras criaturas. Porque muitas vezes nós vivemos sobre a terra como se estivéssemos sós, como se fossemos o dono e tudo estivesse em função da nossa existência e do nosso prazer, e não pensamos na dor, no sofrimento das outras criaturas que partilham o espaço do planeta connosco. Há de facto uma consciência de pecado que nós precisamos de adquirir.
É interessante que um grande cineasta contemporâneo, ArseneyTarkovski, quando lhe perguntaram “Para si, qual é o drama maior do nosso tempo?”, ele diz: “ O drama maior do nosso tempo é a ausência de consciência do pecado.” E, de facto, muitas vezes nós vivemos demasiado superficialmente, esquecendo a raiz profunda de mal, a raiz de pecado que muitas vezes funda os nossos hábitos, as nossas relações, o nosso consumo, os nossos desejos. Isso tudo acaba por estar, sem darmos conta, fundado numa raiz profunda de pecado.
Mas se existe o pecado, e ele existe, nós não podemos esquecer que a nossa existência não está fundada no pecado original. O filósofo Paul Ricoeur lembrava-nos muito isso: antes de falarmos de pecado original nós temos de falar de uma graça original. Porque, como diz S. Paulo na Carta aos Romanos, “Se, pelo pecado de um só, do primeiro Adão- Adão foi a prova de que a nossa humanidade, na sua liberdade, tanto pode fazer o bem como tantas vezes faz o mal – o pecado entrou no mundo, com muito mais razão pela graça de um só que é Cristo entrou a graça no mundo.”
Por isso, aquele imperativo de Jesus no Evangelho é um imperativo que nos deve mobilizar. “Não temeis, não temeis.” Não devemos temer a aventura de liberdade que é a nossa vida, não devemos temer o muito que há para fazer, não devemos temer a grande transformação, a grande reviravolta, a grande viragem em que nos temos de empenhar. Não temeis. E de onde é que nos vem essa força? De onde é que nos vem esse caráter destemido no afrontar o mundo? Vem-nos da certeza de que em Cristo começa uma nova história, uma nova criação, que Cristo é capaz de inverter a raiz sistémica do mal e é capaz de colocar o triunfo do bem como possibilidade a efetuar-se em cada um de nós.
“Não temais pequenino rebanho.” Aquilo que o Senhor nos diz: “Os cabelos da vossa cabeça estão todos contados, valeis mais do que muitos passarinhos.” A nossa vida está nas mãos de Deus. Está nas mãos de Deus que cada um de nós se sinta como filho e filha amada de Deus, sinta que o nosso nome está tatuado nas paredes do Seu coração, está gravado como selo no coração de Deus. Nós estamos dentro Dele, dentro do Seu amor, afundados aí na certeza desse amor. Isso dá-nos força, dá-nos garra, dá-nos genica, dá-nos capacidade de sonhar, dá-nos vontade de insatisfação, dá-nos inquietude, dá-nos uma leitura crítica da própria realidade, a começar por aquela que nos está mais próxima, aquela que está dentro de nós. Somos capazes de sondar alternativas e isso vem de facto de sermos uma nova criatura e de estarmos radicados no coração de Deus.
Mas, o final deste passo do Evangelho de S. Mateus, é um final que nos enche de uma certa perplexidade, porque Jesus estabelece uma espécie de paralelismo e diz: “A todo aquele que se tiver declarado por Mim diante dos homens também eu me declararei por ele diante do Meu Pai que está nos céus, mas àquele que Me negar diante dos homens também Eu o negarei diante do Meu Pai que está nos céus.” O que é isto? Porque é que Jesus estabelece este paralelo? Porque quando comparamos as nossas forças, as nossas capacidades, com a força de Deus é uma desproporção. Que o Senhor nos defenda junto de Deus nós entendemos e precisamos disso, precisamos que Ele nos apresente e nos defenda diante do Pai do Céu. Mas Jesus diz mais: “Aquele que Me negar diante dos Homens, também eu o negarei diante de Meu Pai que está nos céus.” Isto não é uma ameaça, não devemos interpretar como uma ameaça, mas como uma chamada, como um chamamento a levarmos a nossa vida a sério.
Jesus toma a nossa vida a sério. Se eu só posso fazer 0,1 então que eu faça aquele 0,1. Que eu faça o que posso fazer, o que tenho a fazer. Deus toma a nossa vida terrivelmente a sério. A nossa vida tem um caráter terrivelmente sério. Por pequenina, frágil, escassa, tonta que ela seja a nossa vida tem uma seriedade absoluta, trágica. Porque ou ganhamos ou perdemos. Não precisamos ser o que não somos. Não, é sendo exatamente o que somos, com os nossos limites, os nossos defeitos, as nossas capacidades. Mas sendo o que somos, temos de sentir que a nossa vida é o palco da salvação e da perdição. Na nossa vida joga-se o máximo e a perda total no sentido pascaliano da aposta, eu tenho de sentir que aposto e posso ganhar e posso perder.
Por isso, o Cristianismo olha para a nossa vida com um sentido trágico no sentido de dizer: não vamos pôr paninhos quentes. “Ah, no fim tudo se salva.” No fim tudo se salva mas tu perdeste a tua vida. Se a tua vida não serviu para nada, se tu não tiveste a capacidade de te desenterrar e de te dar, alguma coisa se perdeu. Porque a vida não é uma ilusão que atravessa o mundo, a nossa vida é uma realidade concreta, uma página única na história da salvação e essa página tem de vingar. Nós todos vamos morrer de alguma coisa, todos, mulheres e homens morrermos de alguma coisa. Mas essa não é a novidade, morrermos de alguma coisa não é novidade nenhuma. Já contamos com isso, mais tarde, mais cedo. Isso é o banal da história, aquilo que nos é pedido é que morramos por alguma coisa, isto é, tenhamos a capacidade de dar a vida por alguma coisa, de dar a vida por Alguém. Sabendo que é de facto a nossa vida que colocamos como dádiva, como dom, como oferta e nisso jogamos tudo aquilo que temos, as nossas entranhas, a nossa ferida profunda, a nossa dor, o nosso sangue, o nosso sonho, o nosso eros, o nosso amor, a nossa amizade. Jogamos tudo em cima e acreditamos que de facto a nossa vida está a ser dada. Não estamos simplesmente a morrer, estamos a oferecer a nossa vida por alguma coisa.
Por isso, esta chamada muito grande de Jesus de levar a nossa vida a sério. Às vezes acho que nós, cristãos, tomamos uns calmantes, ou tomamos uns oblivious, vamos diminuindo a dor da existência, pensando que no fim Deus vai salvar-me. Sim, no fim seremos salvos. Mas não é essa a questão, a questão é: Para que é que a tua vida serviu? Onde é que foste? Onde é que tu a levaste? Morreste por quê? O que é que te fez viver? Porque razão deste a tua vida? Por quem deste a tua vida? E, no fundo, é esta a lição de Jesus quando nós olhamos para a cruz. É esta a lição de Jesus.
Eu esta semana estive em peregrinação na Terra Santa. Foram uns dias, inesperadamente até para mim, inesquecíveis. Sabem, às vezes os padres andamos e estamos e fazemos mas às vezes também as expetativas são baixas. É mais uma vez, eu já tinha ido nove vezes, era a nona vez. E, de facto, cair de joelhos perante a cruz na Igreja do Santo Sepulcro, tocar com a mão no lugar da pedra onde se diz que a cruz esteve, rezar junto do túmulo de Adão e Eva. Tocar, deixar-se tocar por aquelas pedras, por aquela memória, caminhar por aquelas ruas, fazer a peregrinação nos mercados, andar com uma cruz aos ombros. Ao mesmo tempo, parece patético, mas para quem tem fé é um cair, é um esvaziar-se. E só as lágrimas são capazes de rezar por nós aquilo que nós não sabemos, as orações mais fundas do nosso ser. Eu acho que precisamos de olhar para a cruz e que a cruz fale a cada um de nós. E a primeira coisa que a cruz nos diz: nós não estamos perante alguém para quem a vida não tinha valor. Não, para Jesus a Sua vida e cada vida tem o máximo valor, por isso é que Ele fez aquilo. Aquele esvaziamento não é de quem diz: a vida não vale nada, tanto faz isto como aquilo. Não, é dizer a vida é um momento único e por isso eu tenho de fazê-lo a obra-prima, tenho de fazê-lo o dom maior, tenho de fazê-lo aquele momento culminante onde o extremo da graça se pode afirmar.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XII do Tempo Comum
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2017/06/22 - Percurso de Preparação para o Crisma
2017/06/19 - Westerbrok, por Carmo Sennfelt
1 – Lidos por muitos mas ainda desconhecido dum público mais vasto, o seu Diário assim como as cartas que escreveu do campo de trânsito de Westerbrok, a antecâmara holandesa de Auschwitz, são o testemunho dum longo, árduo mas perseverante caminho interior, à procura da presença de Deus, em si, e no mundo que a rodeia. No período mais negro dos anos 40, do século XX, em plena Shoah, Etty vai conseguir crescer espiritualmente até culminar a sua vocação de dom que a quer “um bálsamo para muitas feridas” (que é a derradeira frase do seu Diário). Ao dedicar- se, inteiramente, aos seus companheiros de infortúnio Etty consegue, simultaneamente, viver e saborear cada instante da vida que lhe é dado viver, ” porque a vida é bela e cheia de significado”, até ao fim. No postal que consegue atirar do comboio, que a conduz á morte, e que, miraculosamente, chegou ao seu destino, escreve: “deixámos o campo a cantar”. Já a 26 de Agosto de 1941, na sua casa de Amsterdam, escreve esta frase extraordinária: “Dentro de mim existe uma nascente muito profunda. E nessa nascente está Deus. Por vezes consigo alcançá-la, porém, quando fica coberta de pedras e de areia, Deus fica soterrado. Então tenho de O desenterrar de novo”. Tal comoTeresa d’Avila, que encontrava a presença de Deus entre as panelas e os tachos, assim Etty O reconhece nas mínimas coisas: na pequena nuvem entrevista através das grades duma janela, num jasmim florido, na terra húmida de Westerbrok onde fincava os pés, ou no tapete áspero onde se ajoelhava, para melhor se recolher, ela, “a rapariga que não se sabia ajoelhar” como se designou nalgumas páginas do seu diário. Era assim que Etty encontrava Deus no mais profundo de si própria, para O encontrar em todo o lado, e em todas as vicissitudes da vida corrente, para seu grande conforto e alegria. Era de complexão e saúde frágeis, condição que enfrentava como podia, abusando da aspirina ( conta, talvez exagerando, que tomava meio quilo de aspirina por mês e sabe-se como o ácido salícilico não é meigo para o estômago) o que lhe terá provocado uma úlcera gástrica que a manteve de cama durante semanas. Durante esse período, que foi o último que passou em Amsterdam, não deixou nunca de escrever, de meditar, de crescer espiritualmente e de, impacientemente, querer regressar a Westerbrok, de onde só tinha saído para se tratar. Westerbrok era o lugar onde se tinha sentido ser “o coração pensante da barraca” só que agora queria mais ainda, queria ser o “coração pensante de todo o campo de concentração”.
2 – O facto de me ter deparado com o Diário de Etty Hillesum, no final dos anos oitenta, deve-se a circunstâncias pessoais que me levaram cedo a ler (quase) tudo o que, nessa altura, havido sido escrito sobre a Shoah, o substantivo hebraico que significa catástrofe mas que se escreve assim, com maiúscula, por ser a catástrofe por antonomásia do povo judeu. O título que me chegou às mãos, na tradução francesa, era “Une vie bouleversée” o que indicia, a meu ver, a perplexidade do tradutor (e do editor) perante a complexidade e o inusitado conteúdo do texto. Noutras edições o titulo era “Uma vida interrompida” que deixava igualmente escapar o essencial. Também eu, não possuindo as “ferramentas” necessárias para verdadeiramente me aproximar e apropriar do texto, o que retive, então, da sua leitura foi apenas, ou pouco mais, do que uma pungente e trágica história da Catástrofe, mais uma de entre tantas, tantas, outras.
3 – O grande biblista e teólogo italiano Sérgio Quinzio escreve: “se Etty insiste em repetir que tudo é belo é porque nela age aquela profunda, hebraica, força de vontade de viver plenamente. Uma patine ideal, poética, reveste a sua sólida, irredutível, força hebraica.” Com efeito ao longo de todo o seu Diário, sobretudo durante os derradeiros meses, no meio da miséria e sofrimento, em Westerbrok, Etty vai insistentemente repetir que a vida é bela malgrado a violência e as privações quotidianas. Isto apesar de ter uma clara e realística percepção da iminência do fim já a partir do princípio de Julho de 42, muito antes da maioria dos seus correligionários. No dia 3 escreve uma das mais pungentes, belas e longas páginas do seu Diário. Cito aqui apenas um parágrafo : “É verdade que trazemos tudo, mesmo tudo, dentro de nós: Deus, o céu e o inferno, a terra e a vida, a morte e os séculos, tantos séculos. Um cenário, uma representação mutável das circunstâncias exteriores. Como possuímos tudo em nós, estas circunstâncias não podem ser assim tão determinantes dado que, circunstâncias, boas e más, existirão sempre e como tal devem ser aceites. O que não nos deve impedir de nos dedicarmos a melhorar as circunstâncias más. Sabendo, porém, por que motivos se luta e recomeçando, connosco mesmos, dia após dia. Numa belíssima afirmação, a 26 de Junho de 42, já tinha escrito: “Acho a vida bela e sinto-me livre. O céu espraia-se dentro e fora de mim. Creio em Deus e nos homens e ouso dizê-lo sem falso pudor. A vida é difícil mas não é grave”. E poucos dias antes, a 19 de Junho, escrevera, convicta: ” o misticismo deve fundar- se numa honestidade cristalina o que implica reduzir primeiro as coisas á sua realidade nua e crua”. Passados alguns dias, a 7 de Julho, numa longa e detalhada descrição de tudo o que tinha acontecido nesse dia, destaco o que escreve ao fim da tarde: “Estou pronta para tudo, em qualquer lugar para onde Deus me mandar, estou pronta, em qualquer situação e na morte, a testemunhar que a vida é bela e cheia de significado. E que a culpa não é de Deus mas nossa se as coisas estão como estão.” E será esta profunda, espantosa convicção, de que são os homens, de que é ela, que tem de ajudar Deus a manter-se vivo no mais profundo de si mesma que a irá, seguramente, acompanhar até ao seu último instante. Porque sabia, porque tinha a certeza que “é no mais profundo de mim mesma, ali onde me reencontro e que por comodidade chamo Deus “, que Essa presença jamais a abandonaria.
4 – No princípio dos anos 70, em Milão, tive o ensejo e o privilégio de conhecer a Dra. Luciana Nissim, pediatra e psicanalista que, juntamente com um grupo de amigos de Turim, foi deportada para Auschwitz a 22 de faveiro de 1944. O transporte partiu do campo de trânsito de Fossoli, próximo da cidade de Modena, ou seja, do Westerbrok italiano, com 600 pessoas a bordo das quais apenas 10 sobreviveram. Luciana Nissim e o seu amigo Primo Levi faziam parte desse restritíssimo grupo. A sobrevivência de ambos deveu-se ao facto de Nissim ser médica e Levi engenheiro químico, profissões essas que os pouparam, logo à descida do comboio, das câmaras de gás ou dos trabalhos forçados, mas também graças a todo um conjunto de circunstâncias menos desfavoráveis que os foram acompanhado, dia após dia, até á libertação. Não conheci Primo Levi pessoalmente mas sei que, tal como a sua amiga Luciana fazia com os seus vestidos, sempre usou camisas de manga curta, verão e inverno, para não esconderem o número e o triângulo, tatuado no antebraço esquerdo, numa partilha continuada da experiência comum. E ambos escreveram, um muito mais do que o outro, sobre a indizível experiência de Auschwitz que os marcou de forma ainda mais indelével do que essa tatuagem que era, simultaneamente, a primeira etapa da descida aos infernos e o seu símbolo, através do qual continuavam a ostentar, cada qual a seu modo, a tal irredutível força íntima hebraica de que fala Sérgio Quinzio. Caso tivesse sobrevivido, a Etty teria certamente feito o mesmo, escrito e testemunhado, com a rigorosa autenticidade do seu grande ânimo. Chegada à década de oitenta, sempre em Itália, tive ocasião de conhecer um estreito familiar de Primo Levi que me contou como esse, muito deprimido, tivesse deixado de conseguir escrever. O seu suicídio foi um enorme choque, a sua morte uma perda irreparável mas, de certo modo, não foi uma surpresa. Tal como escreveu um outro sobrevivente de Auschwitz / Birkenau e prémio Nobel da Paz, Elie Wiesel, “Primo Levi já tinha morrido em Auschwitz”. Perguntas sem resposta: e a Etty também se teria suicidado se tivesse deixado de conseguir escrever? Ou a sua fibra interior ter-se-ia mantido, alimentada como era pela sua “nascente profunda”, mesmo depois da indelével experiência de Auschwitz? Ou teria Etty acabado por se converter ao cristianismo, chamada como se sentia, cada vez mais intensamente, pela dádiva de si mesma, pelo dom cristico?
5 – Mais recentemente, em 2009, outro grande privilégio. O de participar numa peregrinação a Auschwitz / Birkenau (o verdadeiro campo de extermínio de onde velhos, doentes, crianças seguiam, directamente, do comboio para as câmaras de gás e os considerados válidos, selecionados para as mais de 10 horas diárias de trabalhos forçados). Peregrinação ecumica, essa, organizada pela Comunidade de Santo Egidio e pela Arquidiocese de Cracóvia, no espírito de Assis. Assim rezámos juntos e em várias línguas, judeus, roma, sinti, protestantes e católicos, com grande participação e emoção, numa cerimónia inesquecível, unidos na memória e na determinação do “nunca mais”. Por muito que se tenha lido e ouvido falar de Auschwitz / Birkenau esse lugar, sinónimo de infâmia e da maior desumanidade, o choque com aquela realidade física é tremendo. Do percurso de mais de mil metros, ao longo dos carris, por onde transitavam os comboios dos deportados, que do arco de entrada do campo levava á rampa que conduzia ás câmaras de gás, desse trajecto não se sai impune, não se regressa o mesmo. Não querendo deixar rastos, perante a avançada das forças soviéticas, os SS evacuaram o campo e fizeram implodir todas as construções. Nada resta, portanto, das câmaras de gás e dos 4 fornos crematórios ( o existente é uma reconstrução) e o monumento erigido em seu lugar relativamente recente. Mas a desolada extensão do campo, 2,5 km por 2, constitui, de per se, um enorme monumento ao martírio de todos aqueles que, de uma forma ou outra, ali foram assinados. Tal como Etty e a sua família: cinco pessoas entre os cinco milhões de vítimas da Shoah, que só em Auschwitz / Birkenau foram aproximadamente um milhão e cem mil pessoas. E ainda a propósito de monumentos: dois livros , “A noite”, de Elie Wiesel, e “Se isto é um homem” , de Primo Levi, que são dois verdadeiros monumentos ad memoriam. Ambos relatam as experiências, vividas em condições extremas, físicas e psicológicas, de cada um deles e dos seus companheiros, verdadeiras epopeias da capacidade de resistência humanas. Mas há outros livros que fazem parte desse mesmo grupo de grandes monumentos à memória das vítimas, anónimas ou não, recentes ou pertencentes ao passado. Refiro-me, só para dar três exemplos, aos livros de Imre Kertész, sobrevivente de Auschwitz e prémio Nobel da literatura, de Jorge Seprun, sobrevivente de Buchenwald, ou ao extraordinário romance de André Schwarz-Bart, “O último dos justos”, prémio Goncourt de 1959, cujo pai e os dois irmãos morreram em campos de concentração. Mas há muitos outros livros, de outros tantos sobreviventes, que também deram uma valiosa ajuda ao acesso a uma lenta e alargada elaboração dum “antes” , dum “durante” e de um complexo, doloroso processo de aquisição dum ” depois”.
6 – A todas estas circunstâncias, que me foram dadas viver, somam-se outras experiências, longínquas memórias da infância, mas que me são, porventura, mais próximas pelo sangue. Refiro- me á tragédia vivida pela família alargada do meu pai que viu desaparecer, sempre em Auschwitz / Birkenau, cinco dos seus membros. Tal como os Hillesum, todos deportados a partir de Westerbrok. Por isso não me é muito difícil imaginar que a minha jovem, recém-casada, prima Trudie ( Gertrud) e o marido, se possam ter cruzado com ou, eventualmente, mesmo conhecido a Etty, dado que estiveram no campo durante o mesmo período de tempo. Dos meus familiares sei que os mais velhos, o pai da Trudie e os sogros do irmão do meu pai, morreram nas câmaras de gás, mal chegaram a Birkenau . Quanto ao jovem casal, ao que se sabe, morreu das privações e de doenças tal como, muito provavelmente, aconteceu com a Etty e o irmão Mischa, também no final de 1944. Foi da mesma plataforma da ignomínia que era Westerbrok, que já a 7 de Agosto de 1942, partiram as irmãs Edith e Rosa Stein, arrancadas ao seu Carmelo de Echt, para irem morrer, nas câmaras de Birkenau, assim que lá chegaram, 2 dias depois. Tal como Etty, a Carmelita descalça também se sentia preparada para esta eventualidade e disse-o ás suas Irmãs , com palavras quase idênticas às de Etty, nas vésperas da deportação: “Aconteça o que acontecer estou preparada. Jesus está connosco”. E assim o dia 9 de Agosto, o dia da sua morte, passou a ser o dia de Santa Teresa Benetina da Cruz, co-padroeira da Europa. Quem também passou por Westerbrok foi Anne Frank, família e os restantes ocupantes do esconderijo da Achterhuis. Como punição, por se terem escondidos, estiveram presos, na barraca 47, que servia de prisão do campo de Westerbrok, barraca essa que foi reconstruída e que seguramente iremos visitar. A família Frank acabou por ser deportada com o penúltimo comboio que, a 2 de setembro de 1944, seguiu para Auschwitz. Daí Anne e a irmã Margot foram deslocadas para o campo de concentração de Bergen- Belsen, situado perto de Hannover, onde viriam a morrer de tifo, em data incerta, em fevereiro ou março de 1945 , ou seja, poucos meses antes da libertação do campo, pelas forças inglesas, em abril do mesmo ano. O pai Otto, único sobrevivente da família, tornou-se no paladino do Diário da filha, encontrado pela fiel amiga Mies Gieps, e que conseguiu publicar logo em 1947. A primeira tradução, em inglês, é de 1952. O Diário de Etty, esse teve, como sabemos, de esperar mais de 30 anos para ser publicado. Quanto ao futuro santo Maximiliano Kolbe, que era polaco, foi preso em Varsóvia devido ás suas posições anti- nazistas e dai directamente deportado para Auschwitz onde, depois da sua heróica decisão, foi barbaramente assassinado a 7 de agosto de 1941. Curiosamente, foi nesse mesmo dia, mas do ano ano sucessivo, que as irmãs Stein viriam a ser deportadas.
7 – Com o advento do regime nazi na Alemanha, em 1933, e as consequentes, crescentes e ferozes medidas anti-semíticas, de que a Kristallnacht foi um prólogo eloquente,muitos judeus alemães optaram por se refugiarem, ilegalmente, nos Países Baixos. Para esses refugiados, o governo dos Países Baixos, construiu um campo de acolhimento em Westerbrok. Porém, com a invasão da Holanda em maio de 1940, as coisas mudam, radicalmente, e Westerbrok passa a ser, primeiro, um campo de internamento e, a partir de 1942, um campo de transito para os destinos da morte. Para Auschwitz, como sabemos, mas também para Bergen-Belsen, Sobibor e Therensienstadt. Todas as terças-feiras, semana após semana. A vida quotidiana do campo era regida por este ritmo terrivelmente angustiante. E a pergunta, com que todos se confrontavam era: será esta a minha vez? A insegurança era constante, o medo permanente. Semana após semana, comboio após comboio, foram deportadas cerca de 107.000 entre homens, mulheres e crianças, muitas crianças. Aquando da libertação de Westerbrok, pelas tropas canadianas, a 12 de abril de 45, já só lá permaneciam 876 pessoas. O campo acabou por ser desmantelado no imediato pós-guerra e só posteriormente foi recuperado, na forma como hoje o iremos encontrar, como testemunho e homenagem á memória das vítimas.
8 – Interpelados e implicados no trajecto de Etty, através do sofrido e luminoso testemunho que, tão generosamente, nos quis deixar, estamos todos. Graças á sua “sólida, irredutível força hebraica“ Etty acabou por se transformar, para nós cristãos, num guia, num farol. Uma luz que precede e ilumina o longo, tortuoso, personalíssimo, caminho de cada um de nós, dentro de cada um de nós. Para, tal como ela, aprendermos a “desenterrar” Deus e aceder “à nascente profunda” que existe em nós. O “bálsamo para muitas feridas” que Etty queria ser, que ela sentia poder ser, era essa nascente profunda, revelada e derramada sobre os outros. O dom de si mesma. Quanto a nós, amparados, e estimulados, nesta viagem “por mares nunca dantes navegados” , pela mão, atenta e dedicada, do nosso Capelão regressaremos renovados e “temperados” ( o que não é sinónimo de “endurecidos”, como justamente observou Etty.) Temperados, renovados e agradecidos pelo privilégio que tivemos de ter conhecido o caminho espiritual de Etty Hillesum e de termos podido seguir alguns dos seus passos. Tudo o mais fica em aberto: dependerá do que cada um de nós fizer, ou melhor, daquilo que conseguirá fazer, dento de si, desta experiência. Tal como Etty diz, repetidamente, teremos de ser nós a ajudar Deus.
Nota – as citações de Etty foram por mim traduzidas, a partir da edição italiana do Diário, publicado pela Adelphi em 1996.
Carmo Sennfelt
2017/06/04 - A linguagem do Espírito Santo (homilia)
Há uma sabedoria muito grande nas imagens que a Bíblia utiliza. Uma das imagens iniciais tem a ver com a criação do Homem, do primeiro Adão, do primeiro terrestre. Conta-se que Deus, à maneira de um escultor, construiu um ser de barro e olhou para ele. Era um ser que tinha uma perfeição material mas que lhe faltava vida. Então, Deus insuflou as narinas daquele ser para que ele pudesse se tornar, não apenas matéria, mas vida, um ser vivente sobre este mundo, com tudo o que isso significa.
Sem cair em dicotomias fáceis, nós próprios sentimos na nossa experiência de viventes isso. Sentimos que há uma materialidade na vida, no corpo que somos, no que necessitamos para a vida. Há uma materialidade, nós somos matéria. Mas, ao mesmo tempo, não somos apenas isso, somos um não-sei-quê, um sopro vital. Somos um hálito, somos um mistério, somos um enigma que para lá da matéria é espiritual, é puramente espiritual, é puramente vida. E é esse sopro associado à matéria que faz o milagre espantoso, essa coisa espantosa que é o mistério da vida, que é o ser humano que não deixa nunca de espantar. Como se diz naquele início da Antígona de Sófocles: “Há muitas coisas espantosas no mundo mas nada há mais espantoso do que o ser humano.”
E, de facto, este espanto por descobrirmos em nós, não apenas uma matéria que tem a ver com este mundo, que é terrena, que é terrestre, que é material mas redescobrirmos em nós um sopro espiritual. E a mesma coisa em relação à Igreja. A Igreja o que é? Nós podemos descrevê-la de fora, sociologicamente, e dizer: a Igreja é uma sociedade. Nós aqui somos parte de uma pequena sociedade, de pessoas que se reconhecem, que têm vínculos entre si, que mantêm entre si umas ritualidades, em que há uma hierarquia que acaba por dar uma unidade, uma orientação e uma doutrina a esta própria sociedade. Vista de fora, muitas vezes a Igreja é analisada sobretudo assim, a nível institucional e como uma estrutura de poder na sociedade com uma influência capaz de organizar a moral, as convicções de um determinado grupo humano.
Mas dizer isso da Igreja é dizer que ela é só matéria, que ela é só a terra, que ela é só o barro. Porque a Igreja tem uma dimensão institucional, claramente, porque é feita de mulheres e de homens, mas a Igreja tem prioritariamente uma natureza carismática. Quer dizer, a Igreja não é só esta associação e a visibilidade sociológica que somos capazes de descrever, mas a Igreja é este mistério de relação, de revelação, de caminho, de peregrinação que cada um de nós está a fazer assistido pelo Espírito Santo. E o que é a Igreja ninguém sabe, ninguém sabe. Porque é preciso ouvir o que o Espírito Santo diz, a partir de cada um. A Igreja tem de ser um grande ouvido, uma grande antena daquilo que o Espírito Santo, mesmo a partir do seu próprio seio, está neste momento a dizer. Porquê? Porque em cada um de nós o Espírito Santo suscita, com uma fantasia, com uma imaginação divina, com uma criatividade de amor suscita um impulso, um desejo, um desassossego, uma intranquilidade, uma vontade de fazer coisas, uma vontade de criticar, de transformar, uma vontade de arriscar, de ir mais longe. Isso é o Espírito a impelir-nos, a falar dentro de nós. E em cada um de nós o Espírito fala, o Espírito fala.
Por isso, as imagens eclesiológicas que Paulo utiliza vão todas nessa linha. Ele diz: “A Igreja é um corpo e o corpo tem muitos membros, e todos os membros são necessários. E a mão não pode dizer ao pé: «Não preciso de ti.»” Não, precisamos de todos. E precisamos de todos porquê? Porque somos uma realidade pneumática, somos uma realidade carismática, somos uma realidade que é uma associação de dons. Nós estamos aqui, é uma associação de dons, de carismas em que recebemos uns dos outros, fortalecemo-nos uns aos outros neste caminho que é um caminho que é movido pelo Espírito Santo. Nós precisamos ouvir o Espírito Santo, precisamos de dizer ao Espírito: Vem, vem. Precisamos contar com a Sua ajuda. S. Paulo diz, por exemplo: “Nós não sabemos rezar, é o Espírito Santo que vem em socorro da nossa fragilidade, e Ele grita dentro de nós, com suspiros inefáveis, Ele grita: «Abbáa, ó Pai!» ” Então, quando eu rezo, não sou eu que rezo sozinho, é o Espírito Santo que em mim se une à minha fragilidade para com gemidos inefáveis, chamar Deus “Pai”. E nas outras dimensões da nossa vida nós somos uma consequência do Espírito Santo. Um cristão é uma criação do Espírito Santo.
Por isso, nós não podemos ser como aqueles cristãos de Samaria. Quando Pedro chegou lá perguntou-lhes. “Que batismo recebestes? O batismo só de água ou o do Espírito Santo?” E eles responderam: “Mas nós nem sabemos que havia um Espírito Santo, que há um Espírito Santo.” E a verdade é que muitas vezes nós nem sabemos que há um Espírito Santo. Há um Espírito Santo, e o Espírito Santo é a vida espiritual, é a vida de Cristo, é o Espírito de Cristo em cada um de nós que nos faz ser, que nos faz ser cristãos. Ser cristãos não é uma coisa de assinarmos o nome ou partilharmos apenas um conjunto de convicções externamente, ser cristão é sentir o coração a arder, é sentir dentro de si o templo do Espírito Santo, o lugar do Espírito Santo. É sentir que esse Espírito uno e múltiplo, esse Espírito que converge e nos projeta, esse Espírito que está dentro da Igreja mas que é maior do que a Igreja, esse Espírito que é derramado sobre cada um, não apenas sobre alguns, é derramado sobre cada um. E por isso, cada um de nós é uma expressão do Espírito Santo. Só há Igreja porque há esta descida sobre cada um de nós que nos faz ser, que nos faz ser.
Queridos irmãs e irmãos, ativemos o Espírito Santo em nós. Ele às vezes está presente na nossa vida mas desativado, como se não fosse, como se não estivesse, como se não nos movesse. É importante cada um de nós ouvir o que é que o Espírito Santo lhe diz, porque a cada um de nós Ele diz uma coisa diferente, mas a cada um de nós Ele fala e a cada um de nós Ele reforça, a cada um de nós Ele conforta, a cada um de nós Ele exorta, a cada um de nós Ele pacifica, a cada um de nós Ele reconcilia, porque Ele é o Espírito do amor, é o Espírito do amor de Deus derramado em nossos corações. Sintamos este amor dentro de nós e aqui em comunidade.
É muito belo o primeiro Pentecostes, quando os discípulos estavam reunidos, todos com medo, sem saber. E agora? Jesus morreu, ressuscitou, mas agora é a nossa vez. Como é que vai ser? Nós temos os pés atados pelo medo, nós não sabemos nada, nós não podemos nada, nós temos mais inquietação do que certeza, temos mais dúvida que fé. O que é que vai ser agora? O agora só é possível porque o Espírito Santo desce. E, quando o Espírito Santo desceu sobre cada um deles, eles começaram a falar línguas, línguas. E aqueles que os ouviam que eram de nacionalidades diferentes, de línguas diferentes, ouviam-nos todos falar na sua própria língua. O Espírito Santo faz-nos falar línguas. Nós podemos interpretar assim: o Espírito Santo faz-me falar uma linguagem nova. Não apenas uma língua nova mas uma linguagem nova. E que linguagem é a do Espírito Santo?
É a linguagem dos Seus dons, é a linguagem do amor que é a uma linguagem universal, é a linguagem da alegria que é uma linguagem universal; é a linguagem da fortaleza que é uma linguagem universal; é uma linguagem da ajuda, da compaixão, que é uma linguagem universal; é a linguagem da visita, da dádiva, que é uma linguagem universal; é a linguagem do bom conselho, da exortação, do amparo, do abraço que é uma linguagem universal. A linguagem do Espírito Santo não é como o português ou o francês ou o chinês, não, é uma linguagem universal que todos entendem, e nós temos a capacidade de falar essa língua. Às vezes falamo-la pouco mas temos a capacidade de falar essa língua, que todos entendem porque é a língua do amor, é a língua da dádiva, é a língua de um coração desarmado, é a língua do dom, a língua do dom.
Queridos irmãs e irmãos, que o Espírito Santo venha sobre nós. Vamos pedir do fundo do nosso coração: Vem, vem! Vem à terra árida da minha vida, vem à minha solidão, vem à minha dúvida, vem ao meu silêncio, vem à minha fragilidade, vem. Vem e faz-me Teu instrumento, faz-me Teu canal, faz-me o Teu artesão, o Teu anunciador. Vamos agora estar uns minutos em silêncio e vamos rezar: Vem, vem!
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo de Pentecostes
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2017/06/01 - Percurso de Preparação para o Crisma
Maio
2017/05/22 - Avaliação do curso "Filosofar é também agir – grandes correntes da ética ocidental"
2017/05/22 - Curso "Filosofar é também agir - grandes correntes da ética ocidental" – Ética dos Evangelhos - Pe. José Tolentino Mendonça
2017/05/21 - Somos uma invenção do Espírito (homilia)
O drama da primeira geração de cristãos, que é no fundo o drama de todos os cristãos, é perceber se a cruz põe um ponto final, interrompe uma relação de conhecimento, de amor, de vida, de revelação, de esperança. Nós ouvíamos um dos discípulos de Emaús dizer ao misterioso companheiro: “Nós esperávamos que fosse Ele a conquistar a soberania de Israel, nós colocámos Nele tantas expectativas.” A questão é saber se a cruz interrompe essa relação ou se o mistério pascal na sua inteireza de morte e ressurreição, se aquele sepulcro que as mulheres acharam vazio, que João e Pedro confirmaram vazio, na manhã daquela primeira Páscoa, é o sinal de que esta história continua, de que não há propriamente uma interrupção mas há uma continuidade. Há uma transformação na relação, mas ela, na sua verdade, na sua autenticidade persiste e até se torna mais forte, torna-se mais radical.
Os discípulos aproximaram-se deste mistério como nós nos aproximamos, isto é, a tatear, sem ver claro, sem perceber muito bem. Mas como é que é verdadeiramente? Como é que acontece? Como é que vai ser agora? Como é que isto se torna uma verdade em mim? É a tatear, é entre dúvidas – nós estamos da mesma maneira que os discípulos, pois assim nos é narrado pelos primeiros relatos cristãos.
Contudo, do ponto de vista de Jesus, Ele explica como é este mistério que acontece em nós. Ele explica assim, nas palavras do Evangelho de S. João que dedica muito do seu evangelho precisamente a este ponto: Como é que nós vivemos a fé pascal? Como é que nós vivemos a nossa relação com Jesus, hoje, depois da Sua cruz? Não como uma relação interrompida e fracassada mas como uma relação que nos renova, que nos potencia, que nos dá vida, que nos vivifica por dentro. E no Evangelho de S. João, Jesus diz-nos: “Permanecei no meu amor, continuai a amar, continuai a amar. Porque eu não vos deixarei órfãos, não haverá um vazio. Continuai a amar-Me e eu enviarei o Espírito. Esse Espírito é o defensor, esse Espírito é o Espírito da Verdade, esse Espírito é o Consolador, esse Espírito é o Recriador, esse Espírito é Aquele que dentro de vós defenderá a fé. Porque às vezes o dilema da fé e da descrença, da noite e do dia, da esperança e do desalento é sobretudo vivido no palco do nosso coração, no interior da nossa alma. Ora, Eu vou mandar o Espírito e Ele há de ser o defensor da fé, da esperança e do amor dentro de cada um de vós.”
Tendo o Espírito nós permanecemos numa relação firme, amamos e sentimo-nos amados, sentimos que Jesus está presente, sentimos o mundo não como o lugar que é o vazio de Deus mas como um lugar onde esse encontro se celebra de tantas maneiras, numa multiplicidade de sinais. Porque amando nós sentimos Jesus presente e o Espírito ativa em nós essa capacidade de querer, essa capacidade de esperar, essa capacidade de continuar fiel ao próprio Amor. Este é o tempo em que nós dizemos “Maranathá”, dizemos “Senhor, vem. Vem no Teu Espírito.” Cada cristão é uma consequência do Espírito Santo. Nós acreditamos, nós dizemos o Credo (vamos dizer daqui a pouco de novo), o símbolo da nossa fé, porque o Espírito Santo está em nós. Nós dizemos o nome de Jesus, e esse Nome faz diferença na nossa vida, porque o Espírito nos move nesse sentido. Nós rezamos o Pai-nosso porque é o Espírito que grita “Abbá, ó Pai!” dentro de nós e Se junta à nossa fragilidade, dando força para que essas palavras nos arquitetem, essas palavras nos estruturem. O Espírito é a presença do Ressuscitado em nós. O Espírito é a continuação desta história, e uma continuação que é eloquente, uma continuação que não é repetida, não é a mesma; uma continuação que é a fantasia do Espírito, a criatividade do Espírito que faz derramar em nós dons diferentes, carismas diferentes, competências diferentes para construirmos o Reino de Deus, para fazermos essa experiência do Reino de Deus onde quer que estejamos, onde quer que seja o nosso campo de atuação. É o Espírito que nos move, por isso, o Espírito Santo é o grande protagonista.
É interessante nós olharmos para o livro dos Atos dos Apóstolos que estamos a ler nestes domingos de Páscoa. Aparecem-nos atores principais da história do Cristianismo, apareceu-nos Pedro, hoje aparece-nos Filipe que vai converter a Samaria, daqui a pouco vai-nos aparecer Paulo. Mas serão eles os verdadeiros protagonistas do crescimento do Cristianismo? Não, o verdadeiro protagonista dos Atos dos Apóstolos e da Igreja, o verdadeiro protagonista das nossas vidas é o Espírito Santo. Às vezes achamos que somos nós que fazemos, não, é o Espírito Santo que está em nós, é o Espírito Santo que atua através de nós, é o Espírito Santo que nos empurra, é o Espírito Santo que nos move, Ele é a força motriz da vida da Igreja e da vida de cada cristão. Por isso, nós precisamos tanto do Espírito Santo e precisamos redescobrir a fé no Espírito Santo.
O século XX, em termos da teologia e da eclesiologia, é um marco muito importante quando ele descobre a pneumatologia. Isto é, o Espírito Santo tem sido o grande esquecido da história do Cristianismo. Porque nós pensamos em Deus, e somos uma religião monoteísta, e falamos de Deus do Deus único. Nós somos cristãos porque acreditamos no Deus que nos é revelado por Cristo, na vida de Cristo, na Sua palavra e no acontecimento da Sua existência. E o Espírito Santo onde é que fica? O Espírito Santo muitas vezes fica completamente esquecido. E pode acontecer que nós, cristãos, até rezemos a Deus, rezemos a Jesus mas nunca tenhamos rezado ao Espírito Santo. Até pode acontecer que nós, cristãos e cristãs, não sintamos de uma forma consciente como o Espírito Santo está em nós, como nós somos um fruto do Espírito Santo, como precisamos entregar a nossa vida ao Espírito Santo, declararmo-nos seus instrumentos, pedirmos a sua ajuda, a sua iluminação, a sua força para poder ser, para poder ser mais, para poder ser melhor.
Por isso, precisamos redescobrir o Espírito Santo. Porque sem o Espírito a Igreja é só memória, o que nós estamos aqui a fazer é só uma lembrança daquilo que foi. O Espírito Santo é que diz: o Cristianismo não é só memória, é presente e é futuro. Porque, não é só lembrar o passado, nós não estamos aqui a ler palavras com dois mil anos, ou dez mil anos, nós estamos aqui a repetir um gesto que aconteceu há dois mil anos, estamos a fazer uma memória de Jesus, mas o Espírito está hoje em nós. Hoje é o primeiro dia, hoje é o dia da Ressurreição, hoje é o dia em que Jesus nos levanta, hoje somos nós os discípulos que andam a anunciar. Hoje somos nós aqueles, como diz a Carta de Pedro, que estão sempre prontos para declarar as razões da sua esperança. Hoje nós somos aqueles que são chamados a viver com alegria, com alegria mesmo o sofrimento, a perseguição, a doença, o luto, a morte. Somos chamados a viver com esperança todas as situações da vida. E porquê? Porque o Espírito Santo, a energia, a força, o vento, o sopro, o hálito, o alento do Espírito Santo está em nós. Por isso, nós precisamos redescobrir o Espírito Santo e o tempo pascal é um tempo de uma grande catequese pneumatológica. Nós temos o pneuma, o Espírito, o animus em nós.
Até em português, é interessante, temos a palavra “desanimado”. O que é um desanimado? É alguém que não tem o animus, perdeu o animus. E às vezes nós somos uma Igreja, somos uma comunidade, somos cristãos desanimados porque nos falta a vivacidade do Espírito, a juventude do Espírito, a alegria deste Espírito que é sempre uma sementeira. O Espírito que está em nós não nos deixa, Ele é o defensor do Evangelho na nossa vida e, através de nós, Ele explicita de uma maneira pacífica a própria Verdade.
Queridos irmãs e irmãos, que cada um de nós se comprometa, neste tempo pascal, a descobrir melhor o Espírito Santo. A descobrir melhor a ler, a pensar, a conversar sobre o Espírito Santo. Porque pode acontecer connosco o que aconteceu com os samaritanos. Eles primeiro receberam só o batismo, mas quando lhes perguntaram “Que batismo é que vocês receberam? Foi o do Espírito Santo?”, eles responderam “ Mas nós nem sabíamos que existe um Espírito Santo.” Ora, pode ser que nos aconteça isto, nós não sabíamos que existe um Espírito Santo. O Espírito Santo é que faz do barro um ser vivo. O Espírito Santo é que faz de uma fé que não é quente nem é fria, é que faz do nosso estado morno, é que faz do nosso tradicionalismo, é que faz da nossa fé que anda ali ‘quer, não quer’, da nossa fé a 50%, a 40%, uma fé viva. O Espírito Santo é que nos dá o sentido da plenitude, o sentido da missão, é que nos torna discípulos e discípulas de Jesus.
Por isso, descubramos o Espírito Santo e cada um de nós reze ao Espírito Santo. Maranathá! Vem Espírito Santo, enche o meu coração, conduz a minha vida! Vem Espírito Santo, ensina-me! Vem Espírito Santo, guia-me! Vem Espírito Santo e faz-me ser! Entrego-me a Ti, Espírito Santo! E veremos que a nossa vida ganhará outra liberdade, ganhará outra força, porque o Cristianismo não é uma invenção nossa.
O Cristianismo é vivido por nós, não por sermos melhores do que os outros, ou mais fortes do que os outros, ou menos cobardes do que os outros, ou menos impuros que os outros. Não, às vezes nós somos os piores do grupo – os piores, os mais fracos, aqueles que jamais seriam escolhidos para entrar num guião da virtude. E, contudo, não é isso que conta, o que conta é que numa massa frágil, vulnerável como a nossa Deus insufla o Seu Espírito. E então, nós somos uma invenção do Espírito e se nos transcendemos é na força do Espírito, e se nos renovamos é na força transformadora do Espírito, e se a nossa fé débil se fortalece é porque o Espírito acende a Sua luz dentro de nós. E se somos capazes de dizer um “sim” com uma força que nós não sabíamos existir dentro de nós é porque é o Espírito Santo que está a dizer esse “sim”, nesta hora precisa das nossas vidas. É o Espírito em nós. Por isso, precisamos abrir o nosso coração ao Espírito, pedir mais a ajuda do Espírito Santo, conhecê-Lo melhor, amá-Lo melhor. Porque é este Espírito que não nos deixa órfãos, que não nos deixa sós. E é este Espírito que é o vento de Deus, o sopro de Deus que empurra a nossa vida e a cada momento nos torna novos.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo VI da Páscoa
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2017/05/18 - Percurso de Preparação para o Crisma
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2017/05/14 - "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" (homilia)
É impossível para nós celebrarmos hoje a fé, lermos e meditarmos sobre a Palavra de Deus sem nos sentirmos tocados e iluminados pela passagem do Papa Francisco entre nós, pelo seu discurso, pelo seu testemunho, pelo seu silêncio de oração, pelo seu exemplo de peregrino que nas últimas horas nós pudemos acompanhar e que foi sem dúvida uma confirmação e um fortalecimento da nossa fé – o Papa que entre nós quis ser peregrino, que desceu do carro e quis ele próprio fazer o caminho até ao Santuário, recolher-se ali em oração e falar-nos como um pai fala com os seus filhos, como um pai na fé abraça e acompanha, estimula, exorta, entende os seus filhos. São para nós momentos de alegria muito grande, de alegria espiritual também, que sem dúvida não esqueceremos e que queremos hoje muito vivamente agradecer ao Senhor. Agradecer ao Senhor as imagens que nos encheram os olhos e o coração, que nos disseram tanto, agradecer ao Senhor o sorriso e as lágrimas das experiências que fizemos, agradecer a ternura deste Papa e a revolução da ternura de que ele fala, o ensinamento que ele nos traz, a tradução que ele traz do Evangelho na sua linguagem, uma linguagem para as mulheres e para os homens de hoje.
É muito importante que o Santo Padre tenha recuperado de uma forma tão viva a ideia da peregrinação: ser peregrino da esperança e da paz. Porque na experiência da peregrinação nós reaprendemos, de uma forma muito prática, esta Palavra de Jesus que hoje o Evangelho de S. João nos oferece como proposta: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida.”
Às vezes nós vivemos situações da nossa vida completamente bloqueados, em que perdemos a esperança, em que achamos que já não há remédio, não há solução, que já não vamos ou já não estamos a tempo. E a experiência do caminho é a experiência de um desbloqueador interno. É a grande surpresa que o peregrino faz na sua viagem – é, a dada altura, ele compreender que há um caminho, que há um caminho. E esta palavra, só por si, é uma boa-nova, é uma palavra transformadora. É preciso dizer aos sem esperança que há um caminho, é preciso dizer àqueles que acham que chegaram ao fim, que não há nada a fazer se não o desalento das mãos caídas que há um caminho. E a experiência da peregrinação, faça-se ela onde fizer, nos caminhos de Fátima, nos caminhos de Santiago mas sobretudo nos caminhos quotidianos da nossa vida é esta certeza de que há um caminho e de que esse caminho nos fala. Esse caminho diz coisas ao nosso coração na medida em que damos tempo, na medida em que nos entregamos, na medida em que nos expomos radicalmente, em que nos entregamos. Porque a experiência do peregrino é entregar, é confiar. Ele não pode ficar parado num ponto da estrada, não, ele tem de confiar, tem de se atirar mais para longe e nas coisas da nossa vida também é assim. Não podemos ficar parados num tempo a marcar passo, ou numa situação, temos de caminhar, temos de caminhar. E é na medida em que fazemos esse caminho que descobrimos que o caminho se torna significativo, que o caminho fala e percebemos isto que Jesus diz: “Eu sou o caminho, Eu sou o caminho.”
A experiência do peregrino não é só chegar a um ponto, porque um peregrino não chega a um ponto visível, chega sempre a um ponto invisível, chega sempre a um centro espiritual, a um centro interior. E ele percebe que a experiência do próprio caminho é a experiência da revelação do próprio Jesus. Uma das coisas mais extraordinárias da homilia de ontem do Papa Francisco foi quando ele se dirigiu aos doentes, que no fundo somos todos nós – podemos não ser doentes físicos, mas dentro de nós estamos cheios de amolgadelas e disto e daquilo e coisas por curar e tratar. E ele disse: “Pensem nisto: quando subirem a uma cruz, Eu já lá estive primeiro. Quando passarem por um sofrimento pensem: Eu já estive aí. Quando passarem por um inferno, lembrem-se que Eu primeiro desci a ele e desci bem fundo para ser solidário convosco, para antecipar a vossa solidão, a vossa vinda a estes lugares.” Por isso, cada um de nós tem de se sentir acompanhado, na experiência de um Jesus completamente companheiro da nossa vida. E fazer do sofrimento, sofrimento físico e do sofrimento espiritual, um património, fazer desse sofrimento não apenas aquela fragilidade, aquele grito de socorro que precisa de ser ajudado (e que precisa mesmo) mas, ao mesmo tempo, perceber que esse é um património humano, que esse é um lugar, que esse é uma possibilidade ainda de oferecer, de encontrar outro sentido, de encontrar Jesus crucificado.
As palavras do Santo Padre centraram-nos muito na pessoa de Jesus. Maria não é superior a Jesus, disse-nos o Papa. Maria não é aquela porta mais fácil para chegar a Deus, porque o próprio Deus quer ser a porta. Jesus disse: “Eu sou a porta.” Deus é um Deus de misericórdia, Deus não quer o sacrifício, Deus quer a vida, Deus quer a plenitude e Maria é a primeira que entende isso. Mas Maria não vem para substituir um Deus julgador, pelo contrário, Maria é cúmplice de Deus, Maria é parteira de Deus nas nossas almas, nos nossos corações, faz acordar em nós a imagem e a certeza de um Deus que é misericórdia. E isto para nós é extraordinário porque é mobilizador, ouvindo isto nós de facto sentimos que há uma esperança, sentimos que há um caminho, sentimos que há uma verdade que acende a nossa vida e sentimos que há uma vida que não nos larga, há uma vida que não desiste de nós, que é a vida do próprio Deus, que é a vida incessante, incessante do Espírito em nós.
Por isso, nós compreendemos tão bem aquilo que diz esta Epístola do apóstolo Pedro. É uma carta interessante do final do primeiro século, é atribuída ao apóstolo S. Pedro mas, porventura, não terá sido ele mas um autor que se reportou à autoridade de Pedro. Mas, o que importa é isto: esta carta é dirigida aos cristãos que estão na diáspora. Reparem, nós estamos a falar de meia dúzia de mulheres e de homens ali na Ásia Menor, que não têm importância nenhuma e começam a ser perseguidos pela sua fé. O autor cristão escreve esta carta que é uma carta de conforto, mas também é uma carta para que os cristãos compreendam. E não é por acaso que nós lemos no tempo pascal esta Primeira Carta de Pedro. Porquê? Porque o tempo pascal é um tempo de autocompreensão para a Igreja, a partir daqui nós temos de nos compreender. Primeiro queremos compreender quem é este Jesus, morto e ressuscitado, quem é Ele. Mas depois também temos de compreender quem é que somos nós, quem somos nós este povo de batizados. Quem sou eu, homem que acredito em Jesus? Qual é o meu lugar? O que é que eu tenho a fazer? São as perguntas da Igreja neste tempo pascal. E é interessante a resposta que dá o autor da Primeira de Pedro, ele diz: “Substituí os sacrifícios materiais, pelos sacrifícios éticos, espirituais.”
O Cristianismo vem declarar o fim dos sacrifícios. Nós não somos uma religião ritualista, para nós o importante não é o rito, não é fazer isto, não é fazer aquilo. Não é matar um carneiro, não é ter de acender mesmo uma luz. Porque o Cristianismo vem declarar o fim do Templo, o fim do sacrifício, e vem falar da transformação dessa lógica tipicamente religiosa, a exterioridade, a ritualidade como fundamento. O Cristianismo critica e afasta-se disso para dizer o quê? Que agora o sacrifício é espiritual, o Templo é existencial e cada um de nós é uma pedra viva a construir um Templo.
Ora, isto parece que diminui a religião e ao mesmo tempo é o contrário, isto amplia a dimensão religiosa. Porque a dimensão religiosa agora hipoteca a minha vida. Eu sou, como cristão, uma mulher e um homem hipotecado ao Evangelho. Já não me pertenço a mim mesmo. S. Paulo há de repetir isto várias vezes: “Cristo comprou-te, tu és comprado, tu és pertença de Cristo.” E Paulo diversas vezes nas suas cartas se apresentava como escravo de Cristo. Porquê? Porque a sua liberdade e a sua vida ele entendia como liberdade e vida hipotecadas ao projeto de Cristo. Por isso, cada um de nós também se sinta uma pedra viva deste Templo em construção. Palavras tão extraordinárias aquelas! Imaginem este grupo de perseguidos, de descamisados, de gente que sofria nas cidades da Ásia Menor e a Carta de Pedro vem em sua consolação e diz estas palavras tão extraordinárias: “Vós sois geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido por Deus para anunciar os seus louvores.” E é isso que nos é dito hoje, nós que andamos às vezes tão frágeis, tão limitados, tão coartados, tão suspensos, tão indecisos, tão dilemáticos. “Vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido por Deus para anunciar os seus louvores.”
Queridos irmãs e irmãos, o Vitorino Nemésio dizia isso sobre Fátima, que em Fátima a nossa humanidade passou a valer mais. Mas não é só com Fátima. Fátima é uma expressão daquilo que é o Evangelho em nós, o efeito da revelação de Deus em nós. Nós passamos a valer mais! Cada um de nós se sinta verdadeiramente precioso, cada um de nós sinta que Deus não nos descarta nem nos descartará nunca. Cada um de nós se sinta abraçado e amado pelo próprio Deus, por este Deus que é paternal e maternal, por este Deus que nos dá Jesus que visitou cada lugar, cada situação antes de nós para poder dizer ao nosso coração: “Tem força, acredita porque Eu já estive aí, Eu já passei por aí.”
Vamos nesta Eucaristia dar graças ao Senhor pela pessoa do Papa Francisco, por esta peregrinação que ele fez entre nós. Pedir ao Senhor que o seu exemplo nos toque, que nós percebamos o que é o importante, o que é o essencial, que nós sejamos capazes de relativizar aquilo que não é importante, de sacudir a nossa instalação, a nossa zona de conforto e nos tornarmos, agora que a peregrinação de Fátima acabou, peregrinos na vida de todos os dias.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo V da Páscoa
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2017/05/08 - Curso "Filosofar é também agir - grandes correntes da ética ocidental" – Éticas da Justiça e do Cuidado - Fernanda Henriques
2017/05/04 - Percurso de Preparação para o Crisma
Abril
2017/04/30 - Ver Jesus (homilia)
Ao celebrar o mistério da Páscoa de Jesus, que nestes 50 dias de uma forma muito especial nós estamos a celebrar, a viver, a refletir, podemos pensar que a grande questão é: presença/ausência. Perceber se Jesus está ou não presente, se nós O vemos presente na vida, O entendemos assim ou se somos devorados, destabilizados pelo terrível peso de uma ausência a que nós não conseguimos dar significado, a que não conseguimos dar sentido.
Presença/ausência: Onde é que está Jesus? Onde é que O encontraremos? Onde é que O veremos? No fundo, qual é que é o núcleo da fé pascal?
Este texto memorável do Evangelho de S. Lucas funciona como uma espécie de pequeno Evangelho, de resumo, de síntese do próprio Evangelho de Lucas. Diz-nos que o importante para nós não é ficarmos capturados pelo debate entre a presença e a ausência de Jesus, que presença ou que sentido dar à ausência. A grande questão do modo como nós, discípulos e discípulas do Senhor, somos chamados a viver a Páscoa e esta Páscoa é a questão de quando é que os nossos olhos se vão abrir? Quando é que vamos ver verdadeiramente? E uma das coisas que faz este texto, uma das operações mais importantes, é desligar a presença e ausência do ver ou do não ver. Porque, Jesus estava com os discípulos e eles não O viam.
Então, o importante não é saber se Ele está mesmo ou não está, se é a presença, se é o vazio, mas é o drama do ver, a dramática do ver. O ver tem a ver com a forma como nós compreendemos a Páscoa. Porque, depois, no final do Evangelho, quando ao partir do pão Jesus Se ausenta, a ausência de Jesus deixa de ser um problema. Então, o problema para nós não é se Jesus está presente ou se o sepulcro está vazio, o problema não é esse. O problema é: onde é que nós vemos Jesus? Onde é que nós O vemos? Onde é que nós O encontramos? Como é que nós compreendemos? Que visão nós temos da Páscoa do Senhor?
O Evangelho de Lucas apresenta-nos três lugares que são, ao mesmo tempo, três lugares existenciais e teológicos, são lugares da nossa vida: apresenta-nos o caminho, apresenta-nos a Palavra e apresenta-nos a mesa. O caminho, a Palavra, e a mesa. Todos nós fazemos caminho, somos caminhantes, o nosso dia a dia é um somatório de passos para lá e para cá que nós damos e nesses passos está Jesus, está a conversa sobre Jesus. Os dois discípulos iam numa fuga envergonhada, iam numa fuga desiludida, deixavam Jerusalém e iam para a periferia a 60 estádios para esta povoação chamada Emaús. E neste caminho, que é o caminho da sua desilusão, da sua ferida, do absurdo a que eles não conseguiam dar resposta, de uma coisa mais pesada do que eles podiam carregar e eles dizem: “Desistimos, vamos embora.” Neste caminho Jesus vem ao encontro deles.
Então, é importante nós descobrirmos que o caminho da nossa vida é um caminho teológico, que o caminho que nós estamos a fazer é um caminho onde Jesus vem ao nosso encontro. O caminho torna-se uma espécie de sacramento ou uma espécie de sacramental. Porque, qualquer que seja o nosso caminho (mais solitário, mais acompanhado, mais esperançoso, mais desiludido, mais luminoso, mais ferido, mais com fé, mais cravado de dúvidas), esse caminho é precioso. O nosso caminho é precioso porque é no caminho que Ele se vem colocar ao nosso lado, mesmo que os nossos olhos estejam impedidos de O ver. E tantas vezes nós sabemos que é assim. Parece que estamos a caminhar sozinhos com o nosso peso e com a nossa dificuldade, depois, mais tarde, nós vamos perceber que não estivemos sozinhos e que o caminho foi, de uma forma misteriosa, um lugar de encontro, um lugar de audição. Muitas vezes estes momentos de crise, estes caminhos palmilhados nas horas de crise são momentos de auscultação profunda, necessária na nossa própria vida. Os apóstolos tinham de chorar a morte de Jesus, tinham de chorar não compreender aquilo, tinham de chorar as esperanças quebradas a meio. “Nós esperávamos isto, nós esperávamos aquilo e nada disso aconteceu.” Eles tinham de explicitar a sua desilusão, e é muito importante dizer isso, e o caminho é o espaço para isso. De maneira que aprendamos também a dar valor ao nosso caminho, mesmo que ele pareça uma coisa sem sentido, mesmo que ele pareça só uma fuga, um fracasso. Aprendamos a valorizar o nosso caminho como lugar de construção da fé, e da fé pascal, porque o caminho é esse lugar, é esse lugar onde o Ressuscitado vem caminhar connosco.
Depois, nós temos a Palavra. E a Palavra é um lugar fundamental. Jesus começou por Moisés e pelos profetas a explicar em todas as Escrituras o que lhes dizia respeito. Nós precisamos iluminar o nosso sentimento, a nossa vida, a nossa experiência existencial pela luz de uma Palavra e isso liga-se àquilo que nós vemos nos Atos dos Apóstolos, Pedro e a comunidade primitiva, fazerem. O que é que os cristãos começam a fazer à luz da Páscoa? Começam a fazer uma releitura das Escrituras à luz do acontecimento pascal. No caso, S. Pedro pega num salmo do rei David, escrito tantos séculos antes e diz: Este salmo ilumina o que nós vemos acontecer com Jesus, o que nós acreditamos que está a acontecer com Jesus.
Então, a Palavra é muito importante. Às vezes o que nos dói é o silêncio. Porque, aquilo que nos desorganiza é a falta de uma Palavra. No fundo, o tempo pascal é também o tempo que nos dá uma Palavra que serve como de fio de Ariadne no meio do labirinto e organiza as nossas dúvidas, as nossas perplexidades, o absurdo daquela morte, do sofrimento, as nossas lágrimas. Tudo tem a possibilidade de se organizar pela Palavra. E é interessante que Jesus dá uma longa aula de Bíblia, de Escritura aos Seus discípulos. Nós também precisamos de Palavra. Não há fé pascal que não esteja sustentada numa Palavra, numa revelação e numa releitura. O Cristianismo, em grande medida, é uma releitura do Antigo Testamento, é uma releitura do Judaísmo e não só, é uma releitura da história da Humanidade, como depois S. Paulo fará. E nós precisamos reler, precisamos meditar.
Este é o tempo da Palavra, este é o tempo da Palavra. Porque a Palavra é aquilo que pode curar o nosso coração, pode colocar uma luz no nosso coração, e se estamos às escuras e se não descobrimos o sentido a Palavra é luz para os nossos passos. Por isso, nós precisamos ouvir, este é o tempo para escutar a Palavra, para reler, para reinterpretar a Palavra à luz de Jesus e aí encontrar um sentido.
Temos o caminho e temos a Palavra, e temos o terceiro momento. No meio daquela viagem, a viagem daquele dia, começa a escurecer, o dia cai. E os discípulos dizem a Jesus: “Senhor, fica connosco porque o dia vai cair.” E Jesus entra e senta-Se à mesa com eles.
Os primeiros cristãos (por exemplo estes dois homens: Cléofas e o outro anónimo de que nem sabemos o nome, não sabiam nada do que ia ser o futuro, mas eles tinham aprendido uma coisa com Jesus. O que é que eles aprenderam com Jesus? Aprenderam a hospitalidade, aprenderam que a fé é hospitalidade, a fé é responsabilização pelo outro, a fé é a capacidade de acolher o outro na nossa vida, na nossa casa e na nossa mesa. Porque Jesus, neste momento, para eles era um perfeito desconhecido, era apenas um outro viajante que caminhava com eles no caminho, sem identidade. Quando eles fazem este gesto de hospitalidade, de acolhimento, finalmente aquilo que eles eram incapazes de ver agora compreendem. Compreendem que é o próprio Jesus que parte o pão, isto é, o próprio Jesus que garante a hospitalidade, que faz a condivisão. E quando Jesus desaparece dos olhos deles, tudo deixa de ser um problema porque eles perceberam que aquele momento de encontro é um momento de descoberta de que Jesus está vivo, mas não só: é o momento de descoberta da grande transmissão de vida, do grande ensinamento que Jesus nos faz.
Queridos irmãos, no centro desta casa que é nossa está uma mesa, está uma mesa e estão as portas abertas e esta mesa está aberta para todos. Onde é que nós vamos reconhecer Jesus? Onde é que nós O vamos encontrar? Ele vai estar nos nossos caminhos mesmo que nós não O vejamos, ele vai estar na Palavra mesmo que nós ainda não consigamos ver que é Ele que nos fala nas palavras. Mas, quando nos responsabilizarmos pelo outro e dissermos “Não, tu não vais andar para aí sozinho no escuro. Não, fica connosco.”, quando nós sentirmos a responsabilidade do irmão e fizermos da hospitalidade também o sentido natural das nossas vidas, dos nossos trabalhos (E o amor o que é se não uma radical hospitalidade?), quando amarmos verdadeiramente e dissermos “Não, fica connosco” e convidarmos o outro a sentar à nossa mesa, então vamos descobrir que aquele misterioso companheiro, aquele silencioso, aquele que nos explicou, aquele que nos fez arder o coração é o próprio Jesus. Então, os discípulos saem a correr de Emaús e regressam a Jerusalém e regressam à comunidade.
Queridos irmãos, este evangelho de Emaús é uma catequese, é uma catequese sobre o que é a fé, sobre o que é a fé. A fé é o caminho, e o caminho em grande medida é a nossa biografia, é a nossa história, é a nossa trajetória, são os nossos encontros e desencontros. A fé é a Palavra, é o encontro com a Palavra, é o encontro com uma Palavra que organiza, que cura, que dá sentido, que relê, que ajuda a reler a própria história. Mas a fé, a fé cristã, fica sem possibilidade de ver Jesus se ela não é hospitalidade, se ela não é franquear de portas, se ela não é abertura de uma mesa universal, se ela não é convite para dizer “fica connosco porque o dia vem cair” – é aí que o Ressuscitado Se revela. Então, os discípulos já não estão tão sós mas sentem a força e a beleza da comunidade quando chegam a Jerusalém.
Queridos irmãs e irmãos, Páscoa de 2017. Nós temos de encontrar sentido para isto. O que é que nós estamos a viver? Que itinerário, que trajetória? Não é apenas a Páscoa do ano passado ou de há 50 anos, é a mesma e é outra. Porque eu sou outro, porque eu sou diferente. O que é que é para mim a Páscoa? É a ausência? É a presença? Ou é transformar a minha visão, a minha compreensão das coisas? No centro da minha nova compreensão das coisas, sei que há um elemento fundamental. Onde é que Jesus se encontra? No caminho, na Palavra, mas Jesus encontra-Se na hospitalidade e no encontro.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III da Páscoa
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2017/04/23 - Acreditar na ressurreição (homilia)
Hoje, neste relato do Evangelho de S. João, Jesus faz um gesto de criação, de recriação em relação aos Seus discípulos: Jesus sopra sobre eles. A ouvirmos este relato nós lembramo-nos da criação do Adão e da Eva, quando Deus soprou pelas narinas do primeiro adâmico terreno para que ele ganhasse o espírito, para que ele ganhasse, em hebraico diz-se a néfes, o sopro vital, o alento que dá a vida e que depois em grego se vai falar como uma alma.
Este sopro é o sopro da criação, sem este sopro nós estamos desanimados, nós estamos desalentados, nós estamos como que prostrados, nós somos apenas terra, nós somos apenas uma coisa que se desagrega. Não somos vida, não estamos de pé. Precisamos do alento vital, precisamos do sopro, do animus para viver animados, para vivermos com a confiança necessária para tomar a vida como ela é. E Jesus faz isso aos Seus discípulos. Por isso, a tradição cristã, desde os primeiros teólogos, os Padres da Igreja, falava da Páscoa como de um nascimento. Para nós, cristãos, é o verdadeiro nascimento, é um tempo de renascimento, em que nos sentimos a nascer de novo, sentimos que acontece uma metanoia, uma transformação do nosso entendimento, uma mudança, uma alteração da nossa maneira de ver as coisas. Passamos a ser mulheres e homens novos porque o sopro do Ressuscitado foi lançado sobre nós.
Na mesma linha, na Primeira Carta de Pedro que hoje lemos, o autor sagrado diz: “Felizes de vós porque nascestes em Cristo para uma nova esperança.” Cristo é o lugar onde a gente nasce, Cristo é o ponto do nosso renascimento. Isto é, o encontro com Cristo não é apenas o esbarrar na vida de um grande homem, uma figura histórica, d. uma figura referencial para a religião. Mas, mais do que um esbarrar é um verdadeiro encontro e um verdadeiro encontro do qual nós nascemos, do qual nós renascemos. Os nossos olhos como que se abrem e nós olhamos tudo de novo pela primeira vez e olhamos tudo de novo de outra forma, à Sua ótica, ao Seu olhar, ao Seu estilo, à Sua gramática, à Sua maneira de ver. E assim nós renascemos.
Mas, este renascer não é automático, é preciso fazer um caminho. Nós percebemos que mesmo os discípulos precisaram de fazer um caminho. Porque, até ao fim, quando lemos por exemplo os Evangelhos sinóticos, mesmo no último momento quando Jesus está a partir na Ascensão há alguns que não acreditam. Isto é, a erva da descrença, o obstáculo da incredulidade está no nosso coração e temos de contar com ele. Nós precisamos de fazer um caminho para acreditar na ressurreição. E o que é acreditar na ressurreição?
Hoje nós temos duas imagens. Se calhar as imagens são mais importantes do que as palavras, porque são mais sugestivas, tocam não apenas o racional, mas tocam também o nosso coração, mobilizam os nossos sentimentos, abrem-nos caminhos mais audaciosos. Uma imagem é do Evangelho de S. João, a outra é dos Atos dos Apóstolos que hoje nós lemos. A primeira imagem é esta de Tomé que ficou preso nas feridas e nós sabemos que não é difícil ficar preso nas feridas, não é difícil. Eu diria que até é o mais normal. O mais normal é nós acharmos que esta ferida é o fim, que esta ferida não se apaga, que depois desta ferida já não há caminho, que não se pode ir mais além, que esta ferida é o ponto final. E este, se calhar, é o modus de entendimento que nós temos. Vemos um corpo rasgado e dizemos: é o fim, é o fim.
A fé na ressurreição obriga-nos a mudar o lugar onde nós colocamos o ponto final. Porque, onde é que nós na vida colocamos os pontos finais? Se calhar, colocamos o ponto final demasiado cedo, porque contamos só connosco e com a nossa força. Se calhar colocamos o ponto final com desilusão demasiado prematuramente, porque não contamos com a força de Deus, com o impacto de Deus, com aquilo que Ele pode fazer em nós. E por isso, em vez de pontos finais, nós deviamos pôr vírgulas. Vírgulas que são esses tempos de espera, esses tempos de suspensão. Na nossa vida, em vez de preenchermos com grandes decisões para todos os tempos devíamos criar tempos de espera, tempos de pausa, à espera de Deus, à espera de Deus.
O que é que os discípulos foram obrigados a fazer? A retirar os pontos finais. Jesus morreu, vírgula, e ressuscitou. Aquela ferida era uma ferida que Tomé acreditava que era mortal, e ele tinha posto um ponto final. Depois daquela ferida não pode haver mais nada. Mas Jesus vem dizer: Não, depois da ferida põe uma vírgula, porque a história continua, a história continua. E, no fundo, a fé na ressurreição é uma fé que só quem ama entende. Quem ama não se conforma, quem ama está sempre à espera, quem ama está num tempo de suspensão. Para quem ama não há um fatalismo, não há dizer: isto não tem mais remédio. Porque amar é dizer ao outro: “Tu não morrerás.” E dizer isso obriga-nos a recusar os pontos finais e a acreditar que o tempo da ferida, o tempo da dor, o tempo do sofrimento, o tempo da morte que nós experimentamos é apenas uma etapa de um caminho, de um caminho que vai mais longe.
Como será nós não sabemos. O modo de intervenção de Deus nós não controlamos. O que vimos foi um sepulcro vazio, o que vimos foi um vivente que nos apresenta as Suas feridas. Mas apresenta-nos as Suas feridas dentro da Sua vida, dentro de uma vida nova, dentro de uma vida restaurada.
Então, aprendamos a não colocar demasiado cedo os pontos finais. A fé na ressurreição é isso, é acreditar que há uma resolução para a vida que nós podemos não estar a ver mas temos de acreditar nela. Temos de contar com ela e temos de acreditar que a ferida pode ser o lugar de uma fecundidade, que a ferida não é necessariamente estéril e que o rasgão daquele lado pode ser a fenda da esperança, a fenda de onde sopra o espírito novo e isto é acreditar na ressurreição. Mas acreditar na ressurreição não como uma magia, não como uma fantasia. Acreditar na ressurreição como um modo de viver, como um modo de tocar a vida, de a abraçar, de a encarar e a ler, sabendo que na vida temos de contar- precisamos contar e podemos contar- com essa força de Deus que faz tudo nascer e renascer a cada momento.
Por isso, é também extraordinariamente importante aquela imagem do livro dos Atos dos Apóstolos. Porque a fé na ressurreição não é apenas uma fé intimista, não é uma fé solipsista, não é uma fé para eu acreditar e mudar um bocadinho os meus pontos finais e as minhas vírgulas. A fé na ressurreição tem uma dimensão política, tem uma dimensão económica, tem uma dimensão existencial, tem uma dimensão na maneira de viver, na maneira de organizar a minha própria vida. Por isso, essa imagem extraordinária do livro dos Atos dos Apóstolos: aqueles irmãos que estavam reunidos, na bela expressão de S. Lucas, era como se tivessem uma única alma. Porque viviam numa solidariedade, numa capacidade de condivisão, num espírito de serviço e de partilha, num assumir as dificuldades porque passam os outros, num fazer seus os dramas que os outros vivem, numa capacidade de atenção, de entrega, de verdadeira fraternidade que era como se o mundo ressuscitasse, se Jerusalém ressuscitasse, se a comunidade ressuscitasse. E aqui também há tanto trabalho nosso. A ressurreição, o tempo pascal é um tempo para arregaçarmos as mangas e metermos as mãos na realidade transformando-a, fazendo-a renascer na linha daquilo que os Atos dos Apóstolos nos apontam, que é a capacidade de construir uma comunidade qualificando a nossa relação de uma forma nova, de uma forma nova que já não é o meu nem é o teu, que já não é isto nem é aquilo mas é uma capacidade de ser novo.
Isto é um desafio para nós, um desafio imenso, imenso para nós. Vamos pedir ao Senhor que este tempo pascal seja um tempo de desassossego para nós. Porque, a fé na ressurreição não é apenas o happy end desta história dramática, a fé na ressurreição é muito mais do que isso. A fé na ressurreição é dizer: Vá! Agora és tu! Agora faz. O que é que vais fazer com isto? Para que é que isto serve? Porque é que nós acreditamos que Aquele que está crucificado está vivo? Para que é que esta fé serve?
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo II da Páscoa
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2017/04/20 - Percurso de Preparação para o Crisma
2017/04/17 - Curso "Filosofar é também agir - grandes correntes da ética ocidental" – Ética Empresarial - Jorge Rodrigues
2017/04/16 - Aprender a acreditar (homilia)
Aleluia! Esta palavra hebraica que significa “adorai, louvai, enchei de glória, enchei de louvor” é aquela palavra que habita hoje o nosso coração. Hoje é mais verdade que cada um de nós foi criado para adorar, foi criado para louvar, foi criado para dançar. Tudo o que existe bate palmas, tudo o que respira louva. Porque a vida que nós vimos tão ameaçada, tão retida pelos laços da morte, essa vida soltou-se.
A ressurreição é a reviravolta de Deus. A história escreve-se de outra maneira, não há uma fatalidade. Na Sexta-feira Santa nós sentimos o peso da fatalidade, que tantas vezes é a palavra que nós temos de mastigar devagar ao longo do tempo. Tem de ser, temos de nos conformar, temos de aceitar, temos de viver o vazio, temos de viver essa redução a cinzas, a nada, temos de ver o fogo apagar-se e compreender que é assim, que não há mais nada a fazer. E, quando os discípulos rolaram a pedra sobre o sepulcro, era como se um ponto final tivesse de ser colocado naquela história.
A espiritualidade de Sexta-feira Santa é a espiritualidade de uma vida adulta como a nossa. De uma vida inacabada, de uma vida dilacerada, presa nos seus conflitos, nas coisas irresolúveis da nossa história, sentindo que aquilo que temos de fazer ou que teríamos de fazer é tão superior às nossas possibilidades. Então, o que nós sentimos é as mãos vazias, o que nós sentimos é a conformação de abanar os ombros e dizer “é assim”, de encolher a vida e de aceitar que no fundo a morte ganha sempre. A morte e o que ela significa, porque a morte significa muitas coisas, não é apenas o fim desta vida terrena, é também a pequena morte que nos insinua a morte que é o egoísmo, a morte que é a maldade, a morte que é a violência, a morte que é a indiferença. No fundo, olhamos para o mundo, olhamos para nós próprios e dizemos: tarde ou cedo a morte ganha sempre. E a nossa vida torna-se uma vida ferida, uma vida marcada cada vez mais por uma nudez, vamos ficando cada vez mais vazios, cada vez mais ocos, se calhar cada vez mais conformados com a nudez de Cristo que está pregada naquela cruz.
E há a manhã de Páscoa, três dias depois, quando as coisas são levadas ao limite, quando já não há mais esperança alguma, quando tudo começa a entrar num processo de decomposição e de fim, aquela Madalena vai ao sepulcro e descobre que ele está vazio. Vem a correr doida de alegria, intrigada, dizer aos discípulos e eles põem-se a correr ao sepulcro. Hoje é o dia em que os cristãos correm, correm. Porquê? Porque o sepulcro vazio é inacreditável, é inacreditável! O que nós celebramos na Páscoa é inacreditável, é a verdade mais inacreditável. E ao mesmo tempo é a reviravolta, é o levantamento, é a insurreição, é a história como nós não a tínhamos pensado. E isto para cada um de nós, e isto para o destino do mundo.
Por isso, hoje é o dia de celebrar aleluia, de levantar a cabeça. Hoje é o dia de sentir a leveza, sentir a esperança como um sopro que nos refaz, que nos anima, que coloca um sorriso no fundo da nossa alma porque Ele ressuscitou. Aquele que desceu mais fundo do que se pode descer, Aquele que foi até à aniquilação para abraçar toda a minha ferida, toda a minha fragilidade, toda a minha miséria, levantou-Se. E, quando Ele Se levanta, ele leva-nos aos Seus ombros de bom-pastor; quando Ele Se levanta, Ele leva-nos, segura-nos nas suas mãos de misericórdia; quando Ele se levanta também coloca a minha vida de pé.
O verbo “ressuscitar” quer dizer: ficar de pé, levantar-se. Levantemo-nos! Este é o levantamento mais fácil, mas há um profundo dentro de nós, esse é o verbo “ressuscitar”. Podemo-nos sentar. Para compreender a ressurreição é preciso fazer um caminho. Nós perguntamos: quem foram as primeiras testemunhas da ressurreição? E a quem custou mais não acreditar na ressurreição?
As primeiras testemunhas da ressurreição foram as mulheres. Foram as mulheres porque elas não largavam o sepulcro, porque elas choravam, elas precisavam chorar, porque elas levavam perfumes, porque elas cuidavam, elas queriam cuidar na morte e para lá da própria morte, porque elas queriam ficar ali, porque não tinham nada a perder. Não tinham medo que lhes dissessem: “Tu és Dele, tu és Daquele.” Elas não tinham nada a perder. E, ao mesmo tempo, o testemunho das mulheres também não era válido num tribunal judaico. Então, reparem, aquelas que amam, aquelas que não têm medo de correr o risco de amar, aqueles e aquelas que cuidam, aqueles que permanecem são os primeiros a testemunhar o mistério da ressurreição.
Como é que nós vamos tatear a verdade da ressurreição? Se nos colocarmos na fronteira do amor, na fronteira do cuidado, na fronteira do serviço, se permanecermos fiéis à memória do amor e habitarmos esse lugar continuamente, se perdermos o medo de amar então nós vamos ser os primeiros testemunhas da ressurreição. E são elas, como diz o Papa Francisco, Madalena, seguindo a tradição dos Padres da Igreja, “Madalena, a apóstola dos apóstolos”, vai chamar Pedro e João e eles vêm a correr. E eles também têm de fazer o caminho para compreender. Então, há dois verbos. Há o verbo “ver”, e o que é que eles vêm? Veem o sepulcro vazio, vêm as ligaduras caídas, vêm o sudário dobrado. Este é o primeiro verbo, o verbo “ver”.
Os nossos olhos também veem e veem o vazio, veem o silêncio, veem esse lugar refulgente da ausência, veem o invisível, mas esta visão é para podermos acreditar. E o grande trabalho da ressurreição é acreditar, acreditar. Quem ama, quem cuida, quem permanece fiel, quem perfuma a vida dos outros, quem não abandona, quem habita o lugar da vizinhança, o lugar da proximidade acredita, acredita, aprende a acreditar. E é isso, queridos irmãos, que a Páscoa pede de cada um de nós: que aprendamos a acreditar. A acreditar que a vida é maior do que a morte, a acreditar que Deus repara as feridas, que Deus é capaz de salvar o insalvável, que para Deus não há o irrecuperável, que Ele é capaz de fazer e recriar e reconstruir, porque Ele é o Deus da vida. A ressurreição, o sepulcro vazio, é essa irrupção de vida – torna-se fonte, manancial, surto. É dessa fonte que nós temos de nos alimentar para encher a nossa vida de gestos, de olhares, de caminhos, de viagens, de projetos, de pactos. Porque a ressurreição tem de ser vida que nos atravessa.
S. Paulo na Carta aos Colossenses tem uma das mais belas formulações da Igreja antiga, ele diz: “Vós morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus para que ela, com Cristo, se possa manifestar.”
Queridos irmãos, nós celebrámos o Tríduo Pascal e o que é que fizemos? Morremos com Cristo. E nesta Eucaristia nós morremos com Cristo, o homem velho, a mulher velha que subsiste dentro de nós, nós queremos deixar com Cristo o homem da impureza, queremos que morra com Cristo para que possamos renascer com Ele para a vida. Os cristãos sentiram uma coisa quase insolente, pelo menos muito insólita, eles acreditavam que o Espírito do Ressuscitado estava com eles. Nós aqui, não estamos apenas a celebrar um facto de há dois mil anos. Não, nós estamos a estremecer, como a haste de uma flor estremece ao vento. Nós estamos a brilhar, como quando uma luz se acende no interior. Porquê? Porque já não somos só nós, já não contamos apenas com as nossas forças, já não vivemos apenas a nossa pequena história, o Ressuscitado está connosco, o espírito do Ressuscitado hoje desce sobre nós. E Ele também nos transforma, Ele também opera a grande reviravolta, a grande transformação na nossa vida. Hoje, quando nos voltarmos a levantar seremos mulheres e homens novos.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo de Páscoa da Ressurreição do Senhor
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2017/04/14 - "Tudo está consumado" (homilia)
Olhem para o sacrário, está aberto, está vazio. Olhem para o altar, não tem toalha, não há banquete hoje. Procurem a cruz, não está, desapareceu. Não há um único sinal cristão, tipicamente cristão. Nós estamos aqui como se estivéssemos entre escombros, como se estivéssemos num lugar vazio, como não houvesse um único sinal no mundo que nos falasse de Jesus, que nos falasse do Cristianismo, da nossa fé. Hoje é o dia da redução, às vezes nós vivemos a nossa fé com demasiadas coisas, agarramo-nos a isto, àquilo, temos tantas belezas e tantos símbolos que nos falam.
Hoje é o dia da nudez, hoje é o dia em que olhamos para as mãos vazias e não temos nada, vale tanto estar aqui como noutro sítio qualquer, nada nos distingue das outras mulheres e dos outros homens da terra. Nenhum sinal nós ostentamos senão as nossas mãos vazias. Hoje a liturgia começou com os presbíteros caídos por terra, em total silêncio. Essa é a nossa forma de oração neste dia, este dia e o dia de amanhã são os dias do ano em que não há Eucaristia, em que as Igrejas estão assim, como lugares vazios, como terra desolada. Essa é a lição da cruz.
Ontem nós agarrávamo-nos à pergunta que Jesus fez aos discípulos e faz a cada um de nós: “Compreendeis o que vos fiz?” Hoje esse exercício hermenêutico, esse tatear o enigma deste silêncio em que estamos mergulhados continua. Teremos nós compreendido o que Jesus nos fez? As duas últimas palavras de Jesus na narração do Evangelho de João que hoje nós lemos, a primeira “Tenho sede”, a segunda “Tudo está consumado”, parecem duas afirmações que se anulam. Porque “Tenho sede” quer dizer que está incompleto, quer dizer que falta alguma coisa, quer dizer que há o desejo ardente de vida. “Tudo está consumado” quer dizer que se chegou à plenitude, que o destino, que o desígnio se realizou. E a nossa vida habita como um hífen, como um intervalo estas duas frases de Jesus, que para nós são luz para o caminho que nós fazemos. Temos de descobrir que a nossa vida é uma vida que se deve consumar, que se deve realizar.
Já este ano desapareceu um grande sociólogo polaco, Zygmunt Bauman. Ele dizia muito na crítica da modernidade que ele faz que nós como sociedades sabemos muito bem o que é o consumir porque vivemos a consumir – a consumir recursos, a consumir bens, a consumir a nossa própria vida. Sabemos conjugar o verbo consumir e muitas vezes parece que não sabemos outra coisa. Porque, diz ele, “Desaprendemos, desistimos de conjugar o verbo «consumar»”, que é diferente de consumir. “Consumar” é realizar, é levar até ao fim, é concretizar da forma mais plena, é não guardar nada, é ir até onde se tem de ir.
“Tudo está consumado”, e nós vivemos uma vida onde tantas vezes dizemos: “Tudo está consumido”, mas não sabemos o que é estar consumado. Jesus é o Mestre para as nossas vidas, é o Mestre que nos ensina a realizar aquilo que somos, a realizar a nossa humanidade como um projeto que se cumpre, não como uma promessa que fica por realizar. Jesus ensina-nos a ir até ao lugar extremo, a esse lugar que nos deixa no vazio, no silêncio, sem nada como hoje nós estamos. Sem absolutamente nada, não temos nenhum símbolo. Nenhum símbolo mas sentimos que tudo está consumado. Agarremos nisto, agarremos nisto como caminho, como lição que Jesus nos dá. Às vezes ainda estamos agarrados a isto, àquilo, às vezes ainda nos perdemos no labirinto de tantas necessidades verdadeiras e falsas que são o sorvedouro da nossa vida, do nosso amor, do nosso desejo e a vida não se consuma, a vida não se oferece até ao fim. O que a cruz nos grita, o que a cruz nos diz é: ama até ao fim, ama até ao fim, consuma a tua vida, consuma, realiza, plenifica a tua existência. Não vivas a 50%, a 40%.
A Sophia de Mello Breyner dizia: “Meia verdade é como comer meio pão, é como receber meio salário, é como habitar meia casa.” Às vezes nós vivemos de meias verdades e não vivemos essa verdade total, essa verdade plena que é a lição do Crucificado para nós. Ele diz: “Tenho sede.” Porque Ele continua a ter sede, a ter sede daquilo que cada um de nós hoje pode realizar. Agora é a nossa vez, agora é o nosso lugar, agora é o nosso caminho.
No século XX, desenvolveu-se uma teologia muito ligada aos campos de concentração e às perseguições nazis, a teologia do Deus fraco que nós encontramos em vozes como de Dietrich Bonhoeffer, ou encontramos na mística de Etty Hillesum. Deus é fraco, Deus é frágil, Deus é vulnerável, Deus não nos pode salvar. O Deus que nós vemos levantado na cruz é um Deus fraco, um Deus fraco. E é um escândalo a fraqueza de Deus, é um escândalo. Porque nós estamos sempre à espera que seja Ele que resolva, estamos sempre à espera que seja Ele que deicida, estamos sempre à espera que seja Ele a fazer o que nós não conseguimos, ou o que nós não queremos, atiramos para Ele e Deus não pode fazer nada. Deus não pode, Deus não responde, Deus é o próprio silêncio de Deus, é este o enigma desta Sexta-feira Santa. Como olhar para este Deus pobre, para este Deus que não pode salvar?
Etty Hillesum abre-nos um caminho, ela diz: “Eu compreendi que tenho de ajudar Deus.” A fraqueza de Deus pode nos pôr a milhas. Podemos achar que esta palavra é uma palavra horrível e tapamos os ouvidos. Não podemos acreditar num Deus que seja fraco, nós queremos acreditar num Deus forte, no senhor dos exércitos, no Deus que tem a última palavra. Não é esse Deus que hoje nós estamos a celebrar com este vazio, com esta nudez. Não é esse Deus que nos vai ser mostrado daqui a pouco como um espetáculo, como um espetáculo desconcertante aos nossos olhos. Vamos descobrir Deus que está tapado e o que vamos ver é um homem crucificado. Isto é um escândalo!
Nós estamos habituados desde pequenos a olhar para a cruz, mas alguém que olhe pela primeira vez a cruz sente um desfalecimento. Então era isso? Então vamos destapar Deus? Era melhor tapá-Lo de novo. Para mostrar um Deus fraco? Não quero! E tantas vezes é isso que nós dizemos, e olhamos para a cruz sem ver a cruz, sem olhar para aquilo que está lá escrito, escancarado, documentado na cruz que é a vulnerabilidade de Deus.
S. Paulo dizia que isto é uma loucura, é um escândalo, que isto não se entende. E, de facto, não é do domínio do inteligível, é o paradoxo da fé cristã. Nós vamos adorar hoje a cruz, vamos inclinar sobre ela a nossa fronte, vamos receber o seu perfume na nossa vida. Mas, receber e adorar a cruz é compromete-se a ajudar o Deus fraco. Porque, na nossa vulnerabilidade, na nossa fragilidade nós podemos fazer muito, podemos fazer tudo por Deus, podemo-nos colocar ao Seu serviço. Uma mulher como Etty Hillesum no campo de concentração, um homem como Dietrich Bonhoeffer numa cela da prisão nazi, eles foram vozes de Deus em momentos completamente obscuros do século XX. E hoje, os justos que sustentam o mundo continuam essa tarefa de ajudar Deus sentindo-se cúmplices com a impotência de Deus, minorando-a, transformando-a em lugar onde Deus abraça as nossas feridas. Como, em Cristo, como se leu hoje na Carta aos Hebreus, nós temos um Sumo-Sacerdote capaz de se compadecer dos nossos sofrimentos, porque Ele próprio carregou a nossa culpa, carregou a nossa iniquidade. Ninguém se sinta só, ninguém se sinta só.
Muitas vezes até nos infernos que escolhemos percorrer é importante sentir que Ele está lá. Uma das frases mais extraordinárias aplicadas a Jesus pela Igreja primitiva e que nós encontramos no Evangelho é dizer: “Ele foi contado entre os malfeitores.” Ele foi contado, éramos um grupo de malfeitores e Ele foi contado entre nós, éramos um grupo de maldizentes e ele foi contado entre nós, éramos um grupo de miseráveis e Ele foi contado entre nós, éramos um grupo de condenados e Ele foi contado entre nós. Ele está sempre a ser contado entre nós porque é solidário com a fragilidade, com a vulnerabilidade humana. Esta solidariedade de Cristo ajuda-nos a ser, é a âncora, é a mão estendida à nossa humanidade mas é também um desafio a nós ajudarmos Deus.
Pe. José Tolentino Mendonça, Sexta-feira Santa, Celebração da Paixão do Senhor
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2017/04/14 - d'Homini+ na Celebração da Paixão do Senhor
2017/04/13 - “Compreendeis o que vos fiz?” (homilia)
Estamos a celebrar o ciclo pascal de 2017, cada um de nós tem um caminho feito com Jesus. Alguns de alguns anos, porque temos cinco, seis, sete anos ou menos, mas outros de muitos anos. “Compreendeis o que vos fiz?” Esta pergunta não nos larga, porque é muito importante que cada um de nós compreenda. E muitas vezes, nós atiramos esta necessidade de compreender para debaixo do tapete do mistério. Dizendo que é um mistério, que isto era uma coisa de Jesus que era Filho de Deus, que isto é uma coisa que não se percebe bem, isto é uma coisa para acreditar, não é uma coisa para compreender, isto é uma coisa que eu nunca vou chegar lá, isto é uma coisa que me ultrapassa. No fundo, tantas desculpas que nós damos, e, contudo, a resposta de Jesus vai no sentido de que nós possamos compreender. “Compreendeis o que vos fiz?” E mais, Jesus diz: “É importante compreenderdes o que vos fiz para poderdes fazer o mesmo aos vossos irmãos, para poderdes fazer o mesmo uns aos outros.”
Então, o que é que Jesus nos fez? O que é que Jesus nos faz? Jesus, olhemos para as coisas de uma forma muito simples, da forma mais simples, mais desprotegida que tenhamos. O que é que Jesus faz? Primeiro, junta-nos à volta de uma mesa. E uma mesa é um símbolo transversal a tantas culturas humanas. Há mesas mais altas, mais baixas, maiores, mais pequenas mas há sempre uma mesa. Nem que seja uma toalha deitada no chão, é uma mesa. Onde houver mulheres e homens há mesas, porque a mesa faz parte da construção da nossa humanidade. Nós somos o que somos porque passamos por determinadas mesas. Há uma história, há uma biografia de cada um de nós à volta de mesas.
E porque é que a mesa é tão importante? Porque a mesa, de uma forma silenciosa que a gente nem dá por isso, é um lugar que nos constrói. Porque é que é tão importante, porque é que é tão decisivo nos sentarmos à volta de uma mesa? Por exemplo, numa família, porque é que é tão importante comer uns com os outros? É importante, não apenas por razões económicas, porque fica mais barato, mas é importante porque nos alimentamos uns dos outros. Porque, à mesa mais importante do que comer o pão, ou comer o bife, ou comer a sopa, nós comemo-nos uns aos outros. Isto é, alimentamo-nos da presença uns dos outros, olhamos uns para os outros e isso reforça em nós a necessidade de amor, de presença que temos dos outros. Alimentamo-nos dos outros porque nos inspiramos dos outros, alimentamo-nos dos outros porque recebemos o dom de vida dos outros e precisamos absolutamente desse dom. Às vezes é bom comer sozinho, e muitas vezes nós temos de comer sozinhos mas mesmo quem come a maior parte do seu tempo sozinho sabe o que é comer em companhia, e percebe que aquilo que distingue um dia ordinário de um dia extraordinário, um dia comum de um dia de festa é podermos comer uns com os outros. Porque, comer uns com os outros é fazer circular o dom, é receber, é receber vida uns dos outros.
Jesus pega no pão naquela última ceia e diz: “Tomai e comei, isto é o meu corpo.” Pega no cálice com o vinho e diz: “Tomai e bebei, isto é o meu sangue.” Reparem, às vezes nós interpretamos isto de uma forma muito materialista. Claro que é fundamental acreditarmos que aquele pão é o Seu corpo e que aquele vinho é o Seu sangue, e cairmos de joelhos perante esse mistério. Mas esse mistério é um mistério divino, que é um mistério humano que todos os dias acontece ou pode acontecer connosco, porque também nós temos de ter a capacidade de transformar a matéria em vida, também a nós é pedido que transformemos o pão num laço de amor, que transformemos o vinho, ou que transformemos a água, o copo partilhado num laço de vida que nos ressuscita, que nos levanta do chão, que nos enche de esperança. Não tem nada de mágico, no fundo, o que temos em cada Eucaristia é o acontecer de uma dimensão antropológica, que está completamente próxima de nós, não é apenas o mistério de Jesus. Não, Ele encenou e viveu radicalmente, historicamente aquilo que é possível cada um de nós viver. E por isso nós dizemos: a Eucaristia é o centro da nossa vida. A Eucaristia é o útero da Igreja, é o seio de onde a Igreja nasce e renasce em cada dia. Porquê? Porque aqui nós temos a grande lição de Jesus.
E a grande lição de Jesus qual é? Criar uma mesa aberta, criar uma mesa sem fronteiras, uma mesa sem muros, uma mesa aberta a todos, de onde todos se podem aproximar e oferecer-se completamente como alimento, como dom. Entregar a sua vida, dar-se, dar-se aos outros a ponto de dizer: o que tu estás a comer não é pão, o que tu estás a comer é a minha vida; porque eu entrego a minha vida por completo nas tuas mãos.
“Compreendeis o que vos fiz?” Foi isto que o Senhor nos fez, é isto que o Senhor nos faz. E por isso, às vezes penso que as nossas mesas estão demasiado sequestradas, pela nossa insegurança ou pela nossa rotina, ou pelo nosso medo e acabamos por ser pão que fica duro no fundo do saco. A nossa vida muitas vezes é um pão que se perde porque não é dado, porque não é oferecido. Nós vimos à Eucaristia mas ritualizamos a Eucaristia. Ora, a Eucaristia é um rito, mas é um rito para ser vida, não é um rito para ser rito. É um rito para acordar em nós a capacidade de fazer o mesmo, de fazer o mesmo. E fazer o mesmo é termos a capacidade de juntar à volta da nossa mesa os nossos mas não só os nossos, ter capacidade de juntar na nossa mesa os próximos mas não só os próximos. Ter capacidade de juntar na mesa que é a vida, que nem tem de ser uma mesa, mas a vida, toda ela, é uma mesa porque estamos todos sentados à volta desta grande mesa que é a terra; a nossa atitude ser a atitude de quem serve, de quem dá, de quem oferece, a atitude de quem faz da matéria, dos bens, das coisas do mundo, da materialidade da vida, quem é capaz de fazer disso dom, dom.
“Compreendeis o que vos fiz? Fazei o mesmo uns aos outros.” No Evangelho de S. João nós não temos a narrativa da Ceia, temos a narrativa do Lava-pés. Jesus tira o manto, coloca-se de forma mais despojada e começa a lavar os pés aos Seus discípulos. E aquele diálogo com Pedro é muito verdadeiro. Porque Pedro diz: “Senhor, jamais me hás-de lavar os pés. Isso não faz sentido nenhum! Temos de ser nós a lavar-te os pés.” E de facto, não faz sentido nenhum, não é razoável, não é, não é. Mas Jesus ensina-nos uma coisa, que aquilo que resgata a nossa vida, aquilo que dá a ver, aquilo que salva a nossa vida não é apenas as coisas razoáveis que nós fazemos, mas é o excesso de amor que pode assinalar a nossa vida. O excesso de amor, nós somos salvos pelo excesso.
Eu às vezes digo aos pais que têm filhos pequeninos da minha equipa de casais, hoje tenho a alegria de ter aqui uma delas a ajudar-nos no canto, às vezes com os filhos eu digo muito: “Vocês vão ser pais imperfeitos. Convençam-se disso, se acham que nunca vão errar, não, vocês vão errar, vão falhar completamente como pai e como mãe, vão falhar. Há uma coisa que vos safa é se forem capazes de mostrar aos vossos filhos o vosso amor incondicional, em determinados momentos eles ficarem sem a mínima dúvida de que vocês os amam com um amor que não é deste mundo, com um amor maior do que tudo. Serem capazes da pura graça, da pura gratuidade deles sentirem que, pronto, é o amor, é o amor. E isso é através do excesso de amor. Façam coisas que deem a certeza aos vossos filhos desse excesso de amor. Isso vai salvar a vossa relação com eles.”
E é no fundo, isto que acontece no interior de uma família, mas acontece com cada um de nós e acontece com o grupo dos discípulos. Porque é que Jesus lava os pés aos discípulos? Para que nem lhes passe pela cabeça que Jesus não está disposto a amá-los cada um até ao fim, eles não terem a mínima dúvida de que Ele está disposto a dar a Sua vida por cada um deles. E é isso que Jesus diz a cada um de nós, que nem nos passe pela cabeça que Ele não nos ama até ao fim, até ao fundo, muitas vezes até ao fundo do nosso poço, até ao fundo dos nossos dilemas, até ao fundo do nosso inacabamento. Ele ama-nos até ao fim e até ao fundo. “Compreendeis o que vos fiz?”
Pe. José Tolentino Mendonça, Quinta-feira Santa, Celebração da Ceia do Senhor
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2017/04/10 - Curso "Filosofar é também agir - grandes correntes da ética ocidental" – Ética da Justiça - Viriato Soromenho Marques
2017/04/10 - Celebração Penitencial em tempo de Quaresma
Na próxima segunda-feira, 10 de abril, às 21h, terá lugar a Celebração Penitencial da comunidade da Capela do Rato, para preparar de forma sacramental a Páscoa.
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2017/04/09 - "É em tua casa que Eu quero celebrar a Páscoa” (homilia)
Nós acabámos de ler a grande narrativa da Paixão de Jesus. Hoje nós sabemos que a primeira parte dos Evangelhos a ser escrita foi a Paixão de Jesus. Quando olhamos para os quatro evangelhos juntos (Mateus, Marcos, Lucas e João) nós percebemos que aquilo que eles têm de mais próximo, aquilo que é mais comum entre eles é a narrativa da Paixão. Quer dizer que a primeira coisa a ser escrita, aquilo que foi conservado na palavra, no relato, no testemunho, na conversa dos cristãos, aquilo que foi segredado ao ouvido, aquilo que iniciou cada cristão fazendo-o discípulo e discípula de Jesus foi o contacto com esta narrativa da Paixão.
Nós hoje entramos na Semana Maior, na mais santa das semanas do ano. É uma semana para nós muito significativa porque temos oportunidade na liturgia de reviver o mistério pascal do Senhor, sentindo que este relato é a nossa coluna dorsal, que este relato é a nossa arquitetura íntima, que nós somos moldados por este relato, que ele é confiado a cada um de nós como se Jesus viesse bater à nossa porta.
É muito interessante que logo no início do relato aparece-nos uma figura anónima. Os discípulos vêm perguntar a Jesus “Senhor, onde é que queres celebrar a Páscoa este ano?” e Jesus diz “Ide dizer a casa de tal pessoa: o Senhor mandou dizer «Este ano é em tua casa que Eu quero celebrar a Páscoa.»” Nós não sabemos que pessoa é essa, é um anónimo. Seria com certeza conhecido de Jesus e dos outros discípulos. Mas o facto de na narrativa permanecer anónimo permite hoje que cada um de nós, leitores auscultadores desta narrativa, sintamos, porque é mesmo assim, que o Senhor diz ”Olha, este ano é em tua casa que Eu quero celebrar a Páscoa.”
Cada um de nós sinta esta Palavra como uma palavra a si dirigida e, por isso, procuremos viver o mistério desta semana em intimidade com Jesus, em união espiritual com Ele. Tentando perceber o que é esta narrativa, tentando perceber como é que ela pode ser nossa, que mistério extraordinário é este da solidariedade de Jesus que desce ao fundo do abismo, da solidão, do silêncio de Deus, do abandono, do sofrimento de uma vítima, de um justo inocente. Ele desce até aos fundos abissais do sofrimento humano para me abraçar, para me resgatar, para dizer a cada momento da nossa vida: “Tu não estás só. Eu já estive aí, eu já estive aí.” No lugar da nossa dor, do nosso dilema, do nosso impasse, da nossa miséria, do nosso sofrimento, do que nós não conseguimos aceitar nem compreender. Jesus pode dizer com verdade ao nosso coração: “Eu já estive aí, Eu já estive aí.” Ele esteve em todos os lugares onde o homem é vítima, onde a nossa humanidade é crucificada. “Eu já estive aí. Por isso, eu posso estar contigo a cada momento da tua vida.” Sintamos que este relato hoje nos é confiado, confiado a cada um de nós. E o que vamos fazer com isto? O que vamos fazer com esta história?
Dois mil anos depois, num ponto do Ocidente distante da Palestina mas marcado de uma forma indelével por esta história, são os nossos ouvidos que escutam esta história, são os nossos ouvidos que ouvem esta notícia, somos nós que recebemos este apelo e somos nós que temos de sair destas portas e anunciar ao mundo que há um homem crucificado que diz que é o Salvador.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo de Ramos
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2017/04/06 - Percurso de Preparação para o Crisma
2017/04/03 - Curso "Filosofar é também agir - grandes correntes da ética ocidental" – Éticas do Dever - Pedro Alves
2017/04/02 - Viver segundo o Espírito (homilia)
Na Carta de S. Paulo que hoje nós lemos ele fala de dois princípios que servem de bússola para a nossa vida. Muito na linguagem paulina nós temos de um lado a lei da carne, o caminho da carne, o princípio da carne e o princípio do espírito.
S. Paulo desafia os cristãos, os da sua comunidade e os de cada tempo, a viverem segundo a lei do espírito. Isto é, desobedecendo à lei da morte que se insinua em nós, desobedecendo à escravidão, à dependência que limita a nossa liberdade e atrofia a nossa vida; e estimula-nos, inspira-nos para acolhermos uma vida segundo o espírito. Isto é, uma vida em que, a cada momento, nós estamos conscientes de que somos filhos e filhos amados de Deus, que somos cuidados e encaminhados pela Sua misericórdia, que somos divinizados pelo Seu amor. E por isso, a nossa vida tem de ter o sentido, tem de ter a expressão desta vida divina aqui na terra. Viver segundo o Espírito é viver nesta relação permanente com Deus, nesta consciência a cada momento de que estamos perante Ele, perante o Seu amor.
Por isso, as pequenas coisas da vida não são pequenas, são o nosso modo de relação, são a oportunidade, a oportunidade de uma relação. Viver segundo o Espírito é considerar sagrado cada momento, é considerar uma grande oportunidade tudo aquilo que nos é dado, mesmo aquilo que a gente não espera ou aquilo que a gente não quer mas que está para ser vivido. Aceitar isso como oportunidade, como lugar de encontro, como via, como estrada, como caminho que nos conduz até Deus e viver isso segundo o Espírito. Isto é, numa atitude profunda, filial, de confiança. Como um filho pequenino se abandona no colo da mãe, no abraço do pai, nós somos chamados a viver essa entrega da nossa vida, essa confiança, repetindo continuamente: “Eu sou Teu. Eu quero ir para Ti. Ajuda-me a permanecer em Ti.” Libertar-se de um princípio da carne que é uma vida autocentrada, uma vida muito egoísta, uma vida à procura do próprio prazer, à procura daquilo que é o nosso eu para viver uma vida segundo o Espírito, experimentando essa liberdade, essa confiança, essa certeza do amor de Deus e sermos capazes de experimentar o desprendimento. Desprendimento de tudo aquilo que nos aprisiona, de tudo aquilo que nos prende.
A Quaresma é uma máquina de produzir desprendimento, de produzir desapego, é uma máquina de fazer liberdade, de fazer mulheres e homens livres que na oração, no jejum e na esmola encontram formas de se libertar, de pensar no outro, de sentir que a nossa vida é maior do que aquilo que nós somos capazes de construir, que a nossa vida não está apenas ao nosso serviço mas que é um caminho que tem de transbordar. É uma fonte, é uma cisterna que tem de espalhar vida em redor de si. Viver segundo a carne ou viver segundo o Espírito? O que é que nós verdadeiramente vivemos? O que é que estamos dispostos a viver?
Neste tempo da Quaresma, nós estamos já no quinto domingo da Quaresma, entramos na última semana. E a última pode ser a primeira. Não é mal nenhum, a última pode ser a primeira, podemos começar agora, o importante é que experimentemos este viver segundo o Espírito que é viver na escuta, viver na atenção, viver na paz, viver na generosidade, viver na mansidão, viver na reconciliação, viver no amor – este deixar-nos habitar pelo Espírito. Nós precisamos espiritualizar muito a nossa vida porque a nossa vida vive muito escravizada por aquilo que temos a fazer, pela pressão do dia a dia, pela nossa agenda, pelos acontecimentos, que muitas vezes são uma necessidade e outras vezes são uma desculpa para não estarmos em nós mesmos, para não estarmos diante de Deus. É importante parar, é importante colocarmo-nos a verdade de certas perguntas como esta que a partir de S. Paulo nos é feita: como é que tens vivido? Mais na linha do Espírito ou mais na linha da carne, mais na linha do mundo, mais na linha da tua autossuficiência e do prazer do teu eu? Tens vivido esse desapego? Tens-te deixado conduzir pelo Espírito Santo nas grandes e nas pequenas decisões da tua vida? Deus é o construtor da cidade onde tu habitas? Ou não pensamos nisso? Ou isso não é uma coisa que entra nos nossos cálculos, nas nossas discussões interiores?
A palavra que hoje nos é dita, primeiro em forma de promessa e depois em forma de realidade, é que Deus está disposto a tudo para vir ao nosso encontro. E cada um de nós tem de sentir isso. Deus está disposto a tudo para me manifestar o Seu amor. E por isso nós ouvíamos a palavra do profeta Ezequiel: “Eu vos farei ressuscitar dos vossos túmulos.”
O túmulo parece o lugar do irreversível, onde já não há nada a fazer. Lázaro estava morto há quatro dias, já cheirava mal. Muitas vezes na nossa vida há coisas que já cheiram mal, coisas que parece que já não há nada a fazer, já é mesmo assim, só se pode suportar, só se pode aceitar. E contudo, o amor de Deus diz-nos: “Não aceites o irreversível, não aceites a fatalidade da morte, da pequena morte que se insinua dentro da nossa vida, não aceites, não aceites, acredita na força da promessa: “Eu vos retirarei dos vossos túmulos.”
No Evangelho de S. João temos esta cena da ressurreição de Lázaro, está muito bem contada. Aí nós vemos a amizade de Jesus, vemos como Ele Se emociona profundamente, como Ele chora. Vemos profundamente a humanidade de Jesus em cena. Mas, quando Jesus ressuscita aquele homem, aquele amigo chamado Lázaro, o que é que Jesus diz? O que é que Ele nos ensina a ver? O que é que Ele nos leva, nos conduz a acreditar? Ele diz-nos: a morte não é a última palavra sobre o destino humano. Nós temos de atirar o nosso coração para mais longe, temos de atirar o nosso olhar para o infinito. A morte não é a irreversibilidade. Jesus desfaz o irreversível, Jesus desfataliza a nossa história, reabre o nosso assunto. Jesus diz: “Não, isto não é um assunto arrumado.” Vamos reabrir – reabre o processo da nossa vida no sentido da esperança, não para nos julgar mas para nos reanimar, para nos revitalizar, para nos dar uma outra vida no Espírito.
Queridos irmãs e irmãos, confrontemo-nos, cada um de nós, com estes textos – o profeta Ezequiel:“Eu vos farei ressuscitar dos vossos túmulos.”, S. Paulo: “Vivei, não segundo a lei da carne mas segundo a vida do Espírito.” E o que é isso viver segundo o Espírito? Jesus que disse a Lázaro e diz a cada um de nós, manietados tantas vezes pelas nossas mortes, numa vida que tantas vezes já cheira mal disto ou daquele assunto: “Sai para fora, sai para fora.” E tira as ligaduras que nos prendem e devolve-nos à vida. Isto é aquilo que Jesus está disposto a fazer na vida de cada um de nós. Deixemo-nos trabalhar pelo Espírito Santo na vida.
Um cristão é uma criação de Deus, é uma criação do Espírito. É verdade que há muito esforço nosso, há muito compromisso, há muita vontade, há sacrifício da nossa parte, há dádiva, há sonho, há utopia, há desejo profundo de ser. Mas, ao mesmo tempo, sentirmos que esta vida nova em nós é um dom, é um dom que Ele nos dá à partida, que não tem a ver com merecer isto ou merecer aquilo. Ele dá-te o dom. Nós somos filhas e filhos deste dom, somos recriados, transformados por este dom, reinventados pelo Espírito. Desobedeçamos, rebelemo-nos de uma vida que seja apenas um conformismo, uma fatalidade, um “não vejo como possa ser de outra forma”. E sintamos que há uma possibilidade, que há este desejo de Deus, esta fantasia de Deus que é capaz de recriar a mulher e o homem que eu sou, que é capaz de me tornar, eu que sou homem velho, numa nova criatura. Sintamos por isso as mãos de Deus, que moldam silenciosamente a nossa vida e abandonemo-nos com confiança a esse trabalho. Que esta última semana da Quaresma seja para nós um reacordar, seja para nós um entregarmo-nos, seja para nós um exercitar da própria confiança deste Deus que nos conduz pelo caminho do Espírito e nos reveste do Seu Espírito Santo.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo V da Quaresma
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Março
2017/03/28 - Lançamento do livro do Pe. Adelino Ascenso sobre o ‘Silêncio’, de Shusaku Endo
2017/03/27 - Curso "Filosofar é também agir - grandes correntes da ética ocidental" – Éticas Consequencialistas - Pedro Galvão
2017/03/23 - Percurso de Preparação para o Crisma
2017/03/20 - Curso "Filosofar é também agir - grandes correntes da ética ocidental" – Éticas Ambientalitas - Maria José Varandas
2017/03/19 - O conhecimento de Jesus (homilia)
É muito interessante a forma como o Evangelho de S. João está construído porque é o evangelho dos diálogos. Como em nenhum outro evangelho Jesus dispõe-se a conversar. A conversar com aqueles que o procuram e com outras personagens que o próprio Jesus toma a iniciativa de encontrar, como é o caso desta mulher samaritana.
Isto compreende-se porque as mulheres não podiam procurar os mestres, só os homens tinham uma educação religiosa. Por isso, enquanto nós vemos, por exemplo, Nicodemos a procurar Jesus, é Jesus que tem de procurar a mulher samaritana, a iniciativa é Dele. Porque Jesus está disposto a franquear as fronteiras, a franquear os muros, a ir à procura da ovelha perdida, daquela que está mais distante.
Jesus conversa no Evangelho de S. João. Isto é uma imagem que, se calhar, nós não temos habitualmente de Jesus, mas é uma imagem existencial, mas é uma imagem que nós próprios vamos tateando dentro de nós. Porque, no fundo, o que é que é a nossa fé? A nossa fé é uma conversa longa que estamos a ter há vários anos, há muitos ou há poucos, mas que estamos a ter com Jesus. Um diálogo. Um diálogo saboroso como é este, um diálogo também de mal entendidos, como é este, um diálogo em que não se percebe logo à partida tudo, um diálogo que é progressivo e um diálogo que nos dá a conhecer Jesus. E, conhecendo Jesus, com esse conhecimento nós somos capazes de olhar para a vida de outra forma.
Por isso, é muito importante sentirmos que nos diálogos da nossa vida, tal como nos diálogos do Evangelho, o ponto principal é o conhecimento de Jesus. Que conhecimento é que nós temos de Jesus? Porque, porventura, precisamos de descobri-Lo de outra forma. Precisamos que o nosso conhecimento se torne um conhecimento efetivo e afetivo para que depois a nossa vida possa ser vista com outros olhos, com outra disponibilidade e com outra esperança.
É interessante que neste diálogo de mal entendidos vão atirando assim umas coisas como quem não quer. No fundo, às vezes parece que a conversa da samaritana é mais um desconversar. “Mas como é que Tu, sendo judeu, vens falar comigo? Tu dizes que tens aí a água e ofereces a água mas eu não te vejo com balde nem com corda. Como é que vais buscar essa água se o poço é fundo?” É assim um desconversar. Mas, quando Jesus Se vai manifestando, quando Jesus lhe diz “Se tu conhecesses o dom de Deus eras tu que pedirias de beber”, aos poucos, no coração daquela mulher há uma viragem que vai acontecer. Quando ela diz “Eu sei que há de vir um Messias” e Jesus diz “Sou Eu”, não “Sou Eu” em abstrato, “Sou Eu que estou a falar contigo.” Então, “Eu sou o Messias nesta relação, não sou o Messias dogmaticamente, Eu sou o Messias no encontro pessoal que tenho contigo. Eu sou o Salvador, sou Aquele que resgata a tua vida.” Quando a mulher descobre isto no fundo do seu coração, a sua vida transforma-se. Aquilo que eram obstáculos, impossibilidades, tornam-se coisas que são uma oportunidade para o grande encontro, são uma oportunidade para ela ser salva por Jesus, pelo conhecimento de Jesus.
S. Paulo, na Carta aos Romanos, diz-nos isso: “Vede o amor com que Deus nos amou dando-nos o Seu Filho, e um Filho que dá a vida por nós.” Não porque nós somos santos, não porque nós somos os melhores, somos os qualificados eticamente, somos aqueles que vão à frente do pelotão. Deus sabe, Deus sabe como nos arrastamos, Deus sabe a nossa dificuldade, Deus sabe os nossos obstáculos, Deus sabe aquilo que nos forma por dentro. Mas, S. Paulo lembra, por um santo, por um homem justo é normal que se dê a vida, mas por um pecador, por alguém que não merece… Ora, nisto vemos o amor com que Deus nos amou. Jesus ofereceu por nós Sua vida quando éramos pecadores. É esta palavra a que nos temos de agarrar. Que amor é este que se oferece inteiramente a nós quando somos pecadores? Não para premiar o nosso mérito, mas para estimular a nossa fraca esperança; não para nos arrancar do caminho percorrido mas para nos arrancar do caminho que não começa, que resiste a começar dentro de nós; não para dizer “Tu, de facto, cumpriste”, mas para dizer “Tu não cumpriste, tu não fizeste, tu ainda não deste o primeiro passo mas eu amo-te, eu amo-te, eu dou inteiramente a minha vida por ti.”
É este conhecimento de Deus, é este conhecimento de Jesus que mobiliza a nossa vida, que transforma a nossa vida. Por isso, o tempo da Quaresma é um tempo de reencontro com Jesus, é um tempo para aprofundarmos o nosso conhecimento, a nossa relação, não é apenas nós próprios estarmos com os nossos pontos de esforço, estarmos a modificar, a converter a nossa vida por nós próprios, não é disso que se trata. Trata-se de ampliar o conhecimento que temos de Jesus. Quem é este Jesus? No encontro com Ele como é que eu O escuto, como é que eu O descubro? Como é que eu recebo Dele a água viva? A água que desperta todo o meu ser, a água que me liberta da escravidão do meu ser, a água que me liberta da escravidão dos poços, a água que me dá a fecundidade interior, que me dá a liberdade, que me dá a esperança. Como é que eu me construo no diálogo com o próprio Jesus? Porque, o conhecimento de Jesus, o conhecimento do Seu amor é a pedra fundamental.
Por isso, queridos irmãs e irmãos, sintamos o grande desafio de na oração, na leitura da Palavra de Deus, na meditação, nos tempos de silêncio, de recolhimento da nossa vida, na Eucaristia ao longo desta Quaresma nós nos centrarmos na figura de Jesus. Porque, é quando nós descobrimos quem é Jesus que a nossa vida muda e muda para sempre. Não muda porque lhe damos uns retoques e fazemos umas práticas ascéticas que nos tornam um bocadinho mais aceitáveis, não é disso que se trata. Mas trata-se de receber o Espírito dentro de si, de receber o Espírito do Ressuscitado que nos transforma. “Eu Sou o Messias, Aquele que está a falar contigo.” Ele está a falar connosco, está a falar com cada um de nós, sintamos isso. E sintamos aquilo que os samaritanos dizem à mulher samaritana: “Antes nós acreditámos porque tu nos contaste do episódio da tua vida, agora nós acreditamos porque nós próprios vimos e sabemos que Ele é o Salvador do mundo.” Nós precisamos de ver e saber e reconhecer que Jesus é o Salvador, mas isso tem de passar por uma experiência interior, por uma experiência de relação, por uma experiência de fé que é sem dúvida o ponto mais essencial.
Hoje, o livro do Êxodo dá-nos uma imagem e, de facto, as imagens valem por mil palavras. É uma imagem de esperança, é uma imagem de confiança para nós que somos o Povo que caminha, para nós que vivemos tão tentados, tão ameaçados, tão expostos ao vento, tão expostos à sede, à tentação. Aquela imagem é uma imagem de força, porque, quando o Povo reclama e diz “Trouxeste-nos aqui para nos fazer morrer à míngua” Deus dá aquela vara a Moisés e Moisés toca na rocha e a rocha torna-se uma nascente. Isto é, a pedra que é o lugar mais seco, que é o lugar sem nada. Moisés toca com a vara de Deus na rocha e a rocha torna-se nascente. Esta é uma imagem de esperança para nós. Porque, se calhar o que trazemos dentro do peito é uma pedra, se calhar o que sentimos que é a nossa vida neste momento é uma rocha, se calhar aquilo que sentimos é uma sede. E é interessante que todos os personagens têm sede, o povo no deserto tem sede, Jesus tem sede, a samaritana tem sede, todos têm sede. Quer dizer, é a história da nossa vida, todos somos sedentos, todos temos sede, necessidades, estamos a caminho, estamos na luta pela sobrevivência.
Deus transforma a rocha, o obstáculo. Deus transforma o lugar onde é fácil cair, onde é fácil a esperança soçobrar numa nascente. O que é que salta desta imagem? Salta água fresca, mas salta sobretudo a confiança – nós podemos confiar, nós podemos confiar. E esta credibilidade de Deus que Jesus revela é que é a âncora das nossas vidas.
Queridos irmãs e irmãos, nós estamos num tempo de retiro, num tempo de manobras, num tempo para sacudir tapetes, para limpar as coisas dentro de nós, para vencer o inverno dentro de nós, para fazer irromper o verde da primavera dentro de nós. É um tempo de trabalhos interiores, é um tempo para dar-se luta, para apertar-nos, para dizer: vai, acredita, recomeça. Não te instales, não digas: ”Não consegui viver estas três semanas, acabou. A Quaresma já acabou, foi um fiasco”. Não, começa, é hoje o primeiro dia, é hoje o teu primeiro dia. Mas, que no centro desta experiência quaresmal, desta experiência penitencial esteja de facto o diálogo com Jesus, o encontro, a escuta de Jesus. Ele que vem ter connosco, Ele que se mete com a nossa vida, Ele que diz: “Tenho sede”.
Jesus tem sede de quê? Tem sede da nossa vida, tem sede da nossa esperança, tem sede dos nossos sonhos realizados, tem sede da nossa autenticidade, tem sede da nossa verdade, tem sede da nossa dádiva, tem sede do nosso dom, da nossa entrega, tem sede da superação de nós mesmos, do nosso egoísmo, tem sede da capacidade de servir, da amplitude de ser que está dentro de nós. Ele tem sede disso e Ele não desiste de nós. Nós estamos aqui, cada um de nós está aqui, pode pensar que é por uma outra razão qualquer, mas cada um de nós está aqui porque Deus não desiste de nós.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III da Quaresma
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2017/03/18 - Percurso de Preparação para o Crisma
2017/03/16 - Percurso de Preparação para o Crisma
2017/03/13 - Curso "Filosofar é também agir - grandes correntes da ética ocidental" – Ética da Responsabilidade - Manuel José do Carmo Ferreira
2017/03/12 - Pedagogia de cura (homilia)
Nós ouvíamos hoje no livro do Génesis o início da história de Abraão, que é o pai dos crentes e reconhecido tanto no Judaísmo como no Cristianismo. Mesmo na tradição Islâmica, Abraão é considerado o primeiro dos crentes, aquele que começou a aventura da fé.
Abraão é um protagonista improvável dessa história, e isso dá que pensar. Porque, se tivéssemos de escolher uma personagem para pensar a história da salvação, para viver a aventura da fé, sair da sua terra e ir para um lugar que não conhece, passar por tantas situações, porventura nós escolheríamos um personagem diferente, escolheríamos um jovem. Alguém com a força vital, com a abertura, com a capacidade de sonhar, de deslumbramento que uma aventura como estas exige. E, contudo, aquele a quem Deus escolhe e diz: “Olha, sai da tua terra, da tua parentela e vai para a terra desconhecida que tu não sabes onde que eu te vou indicar, olha para o céu e conta o número das estrelas, a tua descendência será ainda maior.” Aquele a quem Deus diz isto é um ancião, é alguém que tinha pensado da sua própria vida: “Vou arrumar as botas, estou no parque de estacionamento da vida, os meus dias estão contados, agora isto já não é para mim.” É esta personagem improvável que Deus vai buscar para começar a aventura da fé.
Por isso, porventura cada um de nós se sente um pouco uma personagem improvável. Quer dizer, se Deus tem de fazer viver alguma aventura, com certeza que no outro, na outra nós descobrimos qualidades que evidentemente nos faltam. E contudo, a história da salvação faz-se assim, com protagonistas improváveis. Em horas em que não se espera, da forma que não se conta, aí vem o apelo de Deus meter-se connosco, a chamada de Deus tocar à nossa porta e a dizer sai de ti e vai para o lugar que eu te indicar.
O que é que Abraão aprende nessa espécie de nomadismo, de itinerância, de rutura com a vida sedentária que ele levava, com seu contexto sociológico e familiar? O que é que Abraão aprende quando passa a ser um viajante, passa a viver na estrada? Ele aprende a confiança. Porque a terra para onde Deus o manda ele não sabe onde é, não é um destino já fixo, já esclarecido. No fundo, ele tem de viver cada dia confiado, agarrado, suspenso como se a sua vida dependesse disso, suspenso dessa Palavra. Isso é que é a fé, a fé não é dizer, eu vou daqui para ali e sei bem o que deixo e sei bem para onde vou. A fé é viver na exposição, é viver no desabrigo, é viver na dúvida, é viver na incerteza, é viver no aberto; mas é viver com confiança, é viver agarrado a uma Palavra.
Por isso, o verbo imperativo que no episódio da Transfiguração aparece bem sublinhado é: escutai-O, escuta, escuta. O que é escutar? Escutar não é apenas ouvir com os ouvidos é ouvir com o coração. É amarrar-se àquela Palavra como Ulisses se amarrou a um mastro para não ouvir os cantos das sereias. É viver ligado àquela Palavra, é fazer a sua vida depender deste ato de escuta fundamental que nos forma e nos arquitetura, é isto o caminho da fé.
Queridos irmãs e irmãos, nós estamos a viver este tempo da quaresma. É um tempo desafiante para cada um de nós e é um tempo de desinstalação, é um tempo também de esforço, também de sacrifício, um tempo de mudança. Essa mudança só acontece quando nós permanecemos fiéis a uma Palavra, nos amarramos, nos agarramos a essa Palavra e persistimos nela. E não é uma força que vem de nós, é uma força que o próprio Cristo nos vai dando e que nós vamos descobrindo em cada dia. Mas é preciso expor-se, é preciso aceitar ir, é preciso correr o risco, é preciso aventurar-se. E depois, Ele revela-se, como diz S. Paulo na Carta a Timóteo: “Sofre comigo, porque isto não é uma graça que nós tenhamos em nós mas é a graça manifestada em Cristo.” E é dessa graça que nós recebemos a força.
Hoje, por exemplo, celebramos o episódio da Transfiguração. O que é a Transfiguração? É Jesus tentar passar aos discípulos uma imagem que os console, que arranque do seu coração acobardado o medo da cruz, o medo do que vai acontecer. Porque, nesta altura do campeonato, os discípulos já estão a ver que aquilo não vai dar certo e que vai acabar sobrando para eles. Eles já perceberam que os sonhos que tinham de um ser coronel, o outro ser general, herdar isto, herdar aquilo dum reino muito terreno nada disso vai acontecer. Eles estão a perceber que as autoridades vão liquidar Jesus e estão completamente apavorados, não sabem o que vão fazer, querem abandoná-Lo, mas ao mesmo tempo também não conseguem. Ficam com os pés pesados quando se trata de acompanhar Jesus. O episódio da Transfiguração é para lhes dizer: “Podem confiar, Eu Sou Aquele que o vosso coração sabe mas o vosso pensamento ainda não chegou lá, Eu Sou Esse, podeis confiar.”
É muito bela esta narrativa de S. Mateus, quase que a pedagogia de cura, de transformação que Jesus faz com os discípulos. É uma pedagogia em três passos. Jesus aproximou-se deles quando eles estavam caídos por terra cheios de medo. Jesus aproximou-se deles, passo um; tocou-os, passo dois; e falou-lhes, passo três. “Levantai-vos e não temais.” E são, no fundo, estes três passos que Jesus faz com a vida de cada um de nós, com a vida caída, a vida sucumbida, a vida assustada, a vida que não sabe se caminha para a Páscoa ou se volta para trás, a vida que não sabe se consegue chegar à cruz ou não, a vida que se acobarda, a vida que fica a meio caminho, suspensa entre tantas questões, a vida de todos nós.
Jesus aproxima-se, sintamos a proximidade de Jesus. Jesus não nos enjeita, Jesus não nos recusa porque não temos a força, não temos a graça, não temos a luz que devíamos ter, não temos a verdade que se espera, não temos isto. Não, isso não é um impedimento, Ele aproxima-Se de nós tal como somos. Tal como estamos, Ele aproxima-Se de nós.
E depois toca-nos, toca-nos. Isto é, toca o nosso coração. Sintamo-nos tocados pelo amor de Jesus, e tocar é assumir, e tocar é incorporar, e tocar é levar aos ombros, e tocar é levar ao colo, e tocar é carregar o peso da nossa vida. Jesus toca-nos, toca-nos. Isto é, abençoa-nos, trata-nos com amor, cuida das nossas feridas como o Bom Samaritano cuidou das feridas do homem caído. Ele cuida de nós, Ele toca-nos, não nos repele, Ele vem ao nosso encontro, e um encontro de verdade, um encontro profundo.
E depois, fala-nos. A palavra é muito importante porque é esta experiência que nós fazemos aqui, dominicalmente, que é cada um de nós é recriado por esta Palavra. A Palavra que vem da Sagrada Escritura, a Palavra de Deus é uma palavra que nos transforma. Nós experimentamos a força performativa desta Palavra que nos faz outros, que nos renova, que nos abre horizontes. Então, Jesus diz: “Levanta-te”. É muito importante este verbo “levantar-se” porque em grego diz-se ‘egeiren‘, que é a mesma palavra para dizer ressurreição. Aquilo que Mateus vai contar no Domingo de Páscoa é que Jesus Se levantou do túmulo. ‘Egeiren‘ é a mesma palavra que Jesus diz aos discípulos, “Levanta-te”, e é a mesma palavra que Ele diz hoje a cada um de nós: “Levanta-te, ressuscita, vive como um ressuscitado, levanta-te!” É essa palavra que Ele nos diz: “Levanta-te.” Tem de haver um levantamento na nossa vida, tem de haver um acordar, tem de haver um pôr-se de pé.
Cada um saberá o que é que isso significa, o que é que isso representa, mas Ele vem dizer-nos isso, mas diz-nos isso e possibilita isso. ‘Egeiren‘, levanta-te. E cura o medo do nosso coração. Levanta-te e não tenhas medo.
Queridos irmãs e irmãos, é este encontro que transforma a nossa vida. É natural o que nós sentimos, o que nós vivemos muitas vezes é o que temos para viver, é o que nos calhou em sorte, é o que está no nosso caminho. Não vamos julgar, não se trata disso, mas trata-se agora de saber o que é que eu vou fazer com isto. O que é que eu vou construir? Qual vai ser agora o meu caminho? É muito importante estes três passos que Jesus celebra com cada um de nós. Por isso, cada um de nós sinta que cada um destes passos acontece com o tempo e com a perceção necessária ao seu coração. Cada um de nós sinta que Jesus Se avizinha da sua vida, da sua história, que Jesus toca o corpo das nossas feridas e que Jesus nos oferece a Palavra restauradora, recriadora: “Levanta-te, não temas.”
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo II da Quaresma
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2017/03/11 - Retiro aberto sobre a espiritualidade de Etty Hillesum
Pode aceder aqui aos textos das reflexões.
1ª Parte
2ª Parte
2017/03/06 - Curso "Filosofar é também agir - grandes correntes da ética ocidental" – Éticas do Cuidado - Maria Luísa Ribeiro Ferreira
2017/03/05 - A construção de Si (homilia)
No início do tempo da Quaresma temos como Evangelho as tentações de Jesus. Sabemos que uma vida no tempo, uma vida em liberdade, é uma vida tentada. Todos temos essa experiência de vozes contraditórias que nos habitam. Ou vamos para aqui, ou vamos para ali, sentimo-nos chamados para direções diferentes, sentimos em nós inclinações. Nós somos um emaranhado de palavras, de tendências, de possibilidades, de desejos. Precisamos esclarecer isso que somos, esse emaranhado de linguagem e de vida por organizar que cada um de nós é.
O modelo de Jesus é também um modelo de organização de si, de organização daquilo que somos. No meio de tudo aquilo que eu sinto, puxado para um lado e para o outro, por onde é que eu quero caminhar? Qual há de ser a minha estrada? Qual há de ser o meu ethos, o meu caminho ético que vou construindo no meu quotidiano?
Jesus não foi apenas tentado uma vez nem recebeu apenas três tentações. Mas este texto é também um texto simbólico e é um resumo de uma vida que, como a nossa, é uma vida exposta à dificuldade, é uma vida exposta à própria contradição. Mas nestas três tentações nós temos, de certa forma, a síntese de tudo aquilo que nos tenta, de tudo aquilo que para nós nos faz cair, nos faz tombar.
E há a figura de um Tentador que a tradição bíblica chama o demónio, o daemon, essa voz interna. As principais tentações não são aquelas que chegam de fora, são aquelas que se insinuam dentro de nós. E chama também diabolos, que é no fundo aquele que divide. Porque nós fazemos esta experiência interna de uma divisão, estamos divididos entre o bem e o mal, entre o erro e a verdade, entre o amor e a violência. Nós sentimo-nos divididos, sentimos que há uma certa diabolização. A figura do tentador serve para, de uma forma dramática, dar-nos a ver alguma coisa que acontece no silêncio da nossa vida. Porque normalmente nós não vemos um diabo vir ter connosco a fazer-nos propostas, não é preciso isso porque dentro de nós está isso tudo. Este teatro externo que nós vemos neste texto de S. Mateus é o nosso teatro internalizado, é o drama que nós vivemos ao nível da nossa consciência.
O demónio faz três propostas a Jesus. A primeira proposta é que Ele transforme as pedras em pão, que Ele coma as próprias pedras transformadas em alimento para Ele. E Jesus recusa. Diz: “Nem só de pão vive o homem.” Isto é muito importante e corresponde a uma tentação da nossa vida, que é tudo existir em função de nós e nos tornarmos devoristas, vivendo numa espécie de rapacidade em relação à realidade. Seja a realidade dos outros, dos nossos irmãos, seja a realidade do mundo, tudo serve para nos enchermos, tudo serve para nos alimentarmos, tudo existe em função de nós.
Há um comentário muito belo de Simone Weil que diz que a história seria muito diferente se Eva, quando olhou para a maçã, a tivesse admirado e não a tivesse comido, não a tivesse arrancado e não a tivesse comido. De facto, é uma atitude diferente: podermos olhar, reconhecer, admirar mas não estender a mão para possuir, para fazer nossa, para marcarmos o nosso território. Quer dizer, há um mundo para lá de nós, há um mundo que tem uma existência que nos ultrapassa, há um mundo que eu tenho de reconhecer como outro. E não numa ilusão enlouquecida da mesmidade, ou do alargamento do eu – tudo é eu, tudo é eu. Não, o eu é uma pequena parte da realidade, e a realidade é outro e eu tenho de respeitar a distância, tenho de respeitar a fronteira que vai de mim ao outro. E o olhar que eu dedico ao outro não é em função de mim, se é bom ou não para eu comer, para eu usar. Não, há uma bondade que não depende de mim, há uma bondade que eu descubro no outro, nas outras coisas do mundo que não depende do bem ou da utilidade ou do uso que eu possa fazer. Nesse sentido, há uma pobreza do nosso eu que é necessário adquirir, que é necessário fortalecer, colocar-se limites, dizer: não posso ir além disto, tenho de parar. As coisas são belas, não têm de ser belas na minha jarra, eu posso ver uma flor belíssima que continuará belíssima se eu não a colher. Mas, se eu olhar uma flor bela, e quiser meter na jarra de minha casa todas as flores belas, eu torno o mundo mais pobre, torno o mundo mais pobre. A questão é essa, quando nós dizemos às pedras para se transformarem em pães nós tornamos o mundo mais pobre e entramos num delírio de nós próprios a achar que tudo existe em função de nós. Dizer “Calma”, colocar-se limites, dizer “Eu sou apenas uma parte, eu não sou o todo”, isso é o ensinamento da primeira tentação.
A segunda tentação é quando o demónio leva Jesus ao pináculo do templo e diz: “Olha, deita-Te daqui a abaixo que Deus vai mandar os seus anjos para te aguentarem.” E Jesus diz: “Não, não tentarás o Senhor teu Deus.” Às vezes nós vivemos com um sentimento exacerbado de omnipotência. Queremos ser Deus, queremos correr todos os riscos, queremos atirar-nos de cabeça para as coisas porque alguma coisa há de acontecer, porque algum milagre, alguma solução há de se encontrar. Temos que dizer: calma, não colocarás Deus à prova, não podes transcender a tua medida. Muitas vezes nós vivemos como se não tivéssemos o corpo que temos, a vida que temos, a realidade que temos, as imperfeições que temos, os limites, vivemos num delírio de superação que não corresponde à nossa realidade.
“Não tentarás o Senhor teu Deus.” Isto é, não adotarás um providencialismo. E o providencialismo não é apenas Deus há de me socorrer, não é apenas de caráter divino, nós podemos usar de um providencialismo secularizado. Quer dizer, alguém há de me aguentar, a minha família, os meus amigos ou o Estado, ou isto ou aquilo, alguém há de pagar a fatura. Não, olha para ti, olha para a tua responsabilidade, sente a responsabilidade pela tua vida, por aquilo que tu és, organiza-te a ti mesmo. Isso é também um trabalho interior de conversão, de correção, de transformação que nós precisamos.
A terceira tentação é quando o demónio oferece a Jesus todos os reinos da terra desde que Ele o adore. Nós sabemos como quase sempre, para não dizer sempre, o poder e um certo tipo de poder implica vender a alma. Implica fazer de conta que certos valores não são valores, implica passar por cima de outras pessoas, implica usar métodos muitas vezes que são já subtraídos àquilo que nós sabemos que é a ética da verdade para podermos dominar, podermos chegar. E isso também é um delírio porque, no fundo, para chegar ao poder os fins tornam-se meios, e nós estamos disponíveis a abdicar, a vender, a comprar aquilo que não tem preço. Estamos disponíveis para nos trairmos a nós mesmos para chegarmos a determinado lugar, a determinado objetivo, a determinada situação. Recusar isso e adotar a clareza do próprio Jesus: “Não, não adorarás senão o Senhor teu Deus.” Isto é, guardarás intacto no teu coração o lugar para a verdade, o lugar para a pureza, o lugar para a integridade, guardarás isso intacto no teu coração e não te venderás, não trocarás a tua alma por outra coisa qualquer, por qualquer bem deste mundo.
O que é que nós assistimos nas tentações de Jesus? Assistimos à construção de Si. Nós esquecemos muito isso no sentido de que parece que temos uns anos de formação, quando somos crianças até à adolescência, os nossos pais têm um poder de correção, de acompanhamento da nossa vida e depois estamos por nossa conta e risco. Depois é como se já soubéssemos tudo, vivêssemos tudo, fossemos pessoas perfeitas, acabadas, concluídas. É como se não houvesse mais caminho interior para fazer. E não, nós precisamos de viver numa formação permanente, numa formação espiritual permanente. Há um processo de caminho que é também um processo ascético de correção, de melhoria, de esforço, de morte para si mesmo, de renascimento que nós temos de ensaiar em nós.
A Quaresma o que é? A Quaresma é um tempo de exercícios espirituais mas com esta forte componente ascética porque é um tempo de conversão. Nós precisamos mudar. É uma ilusão acharmos que não precisamos mudar nada, só precisamos manter aquilo que somos. Não, precisamos mudar, precisamos melhorar, precisamos sentir a tensão de ir mais longe, a tensão de transformar, de corrigir. Isso é uma libertação para a nossa vida, é uma libertação interior que é necessária para nós próprios. Porque o pior da nossa vida são as zonas cinzentas, é aquele claro-escuro, não é que seja mau mas também não é bom. E depois acabamos por viver numa lógica de compensações e não haver um tónus cristão, uma marca cristã, uma evidência cristã, um eu posso dizer que sou cristão. E andamos ali a marcar passo. O tempo da quaresma é um tempo para sacudir, para dizer: não, vou fazer alguma coisa.
É muito bom que façamos juntos, é muito bom que estejamos todos a ouvir esta Palavra, sentindo que a Igreja nos convoca a todos: não é uma coisa de mim, não é uma coisa de ti. E, se calhar, sozinho eu não consigo, mas se eu tiver a força da comunidade eu se calhar consigo.
Agora alguns conselhos práticos. Quando iniciamos um caminho de transformação ascética é preciso uma certa objetividade, no sentido de dizer: eu não me vou conseguir mudar de um dia para o outro e se calhar isso não é bom, se calhar não é isso que Deus quer. Porque eu serei sempre eu, e isso também é bom. Amar-se a sim mesmo, abraçar-se a si mesmo, sentir o amor de Deus na sua vida, isso é a coisa espantosa. Não vou mudar de um dia para o outro e tenho de ter uma objetividade. Tem de ser pequeno, pessoal e possível.
Tem de ser uma pequena mudança, não pode ser uma grande mudança. Tem de ser pequena, tenho de ter a humildade de identificar uma coisa pequena. E é uma coisa pessoal, não posso estar a contar que seja o outro a mudar. “Agora na minha família vamos mudar!” – isso não é propósito de Quaresma. O propósito de Quaresma não é a tua família, és tu, és tu! E que seja uma coisa possível, porque às vezes colocamos metas tão altas que é já o demónio a tentar-nos, porque nunca vamos conseguir, não estamos preparados para chegar lá. Um atleta não começa por saltar o seu record, ele chega ao record depois de muito trabalho, muita tentativa, muito esforço. Por isso, uma objetividade, olhar para a nossa vida, fazer o diagnóstico da nossa vida e selecionar uma ou duas coisas, não mais. Com objetividade, pequeno, pessoal e possível. E depois, rezar essa coisa, colocar essa coisa no centro da nossa oração. Porque, o importante na Quaresma não é uma coisa que eu vou fazendo sozinho, um exercício ascético em que eu me vou penitenciando e castigando e esforçando. Não é isso o sentido da Quaresma. O sentido da Quaresma é eu abrir-me na minha pobreza, na minha fragilidade, na minha humilhação diante de Deus. Contar com Deus, rezar esse meu problema, isso que eu quero transformar, que eu quero corrigir em mim, rezar isso, rezar…
O tempo da Quaresma é um tempo para aumentarmos o nosso tempo de oração, para rezarmos mais. Eu não digo rezar melhor porque nós não sabemos o que é rezar melhor. Rezem mais, se rezarmos mais vamos rezar melhor. Aqui é um daqueles casos em que a quantidade gera também a qualidade. Porque é quando nos expomos a Deus que alguma coisa acontece. Então, vamos rezar, vamos rezar essa questão.
Depois, vamos fazer o tal exercício ascético que nós chamamos de jejum. O jejum é físico, nós começamos a Quarta-feira de Cinzas e temos a Sexta-feira Santa como dias de jejum, mas o tempo da Quaresma é um tempo para praticar um jejum. Jejum de algumas coisas, de alguns confortos, de alguns gostos que nós temos e que muitas vezes deixamo-nos embalar por eles e a nossa vida é só um reforço de si, é só uma satisfação de apetites, de vontades, de paixões. Temos de desenvolver também o sentido crítico em relação a isso. Porque, no fundo, nós não somos livres. Nós somos livres face a todos menos a nós mesmos e nós soçobramos com a maior das facilidades. Por isso precisamos ganhar liberdade e o jejum é isso, é dizermos “Não” a nós mesmos, dizermos “Não” a nós mesmos. E é dizendo “Não” que podemos dizer “Sim”.
Então, vamos identificar essa coisa ou essas duas coisas e vamos trabalhá-las, vamos trabalhá-las dizendo “Não” e com a força da oração. E depois, esta transformação não é uma coisa apenas nossa, porque a Quaresma, estes exercícios ascéticos que fazemos durante 40 dias, não são apenas para nos tornarmos super-homens e supermulheres, muito virtuosos, espetaculares, mas é para sermos mediadores da Graça, mediadores da alegria na vida uns dos outros, para darmos esmola, para socorrermos, para irmos ao encontro da vulnerabilidade dos nossos irmãos. E esse é o terceiro eixo muito concreto que nós temos de adotar.
Queridos irmãs e irmãos, coloquemo-nos a caminho. Que cada um de nós este primeiro domingo faça de facto o seu propósito. No diagnóstico da nossa vida identifiquemos aquilo que somos chamados a mudar, aquilo que é possível mudar, aquilo que eu posso mudar. E coloquemo-nos a caminho, rezando, procurando ajuda. Se calhar este é o tempo em que poderíamos ir por semana uma vez à missa, cada um sozinho, num horário que desse jeito, rezando, expondo, ouvindo a Palavra de Deus. E ser um tempo em que eu também combato as minhas facilidades. Gosto muito de chocolates ou gosto muito de uma cerveja ou gosto muito não sei de quê, é bom privar-se, é bom privar-se. Até para sentir o gosto das coisas, para não se tornar tudo mecânico, é bom privar-se. Que este seja, com realismo, também um tempo de privação, também um tempo de frugalidade porque a Quaresma é um tempo de frugalidade. E depois, seja também um tempo de caridade. Tornemos este tempo rico por exercícios de caridade, de encontro, de serviço aos nossos irmãos.
Nós empobrecemos tudo, não temos flores, o padre veste-se de roxo, não cantamos o “Aleluia”, não cantamos o “Glória”, quer dizer, adotamos um tom penitencial. Mas não pode ser só o rito, tem de ser dentro de nós que esse despojamento também aconteça. Porque, a liberdade pascal, o Aleluia pascal, a ressurreição pascal, nós só vamos viver se aceitarmos morrer um bocadinho para nós próprios.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo I da Quaresma
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2017/03/02 - Percurso de Preparação para o Crisma
2017/03/01 - Um tempo de Graça (homilia)
Nós começamos este tempo da Quaresma. Quaresma quer dizer 40 dias e nós sabemos como o número 40 é um número simbólico, é um número forte. Foram 40 os anos de travessia do povo de Deus no deserto, anos de aprendizagem, de escuta, de tentação mas também de caminho ao encontro da grande Aliança com Deus e da entrada na Terra Prometida. Formam também 40 dias os que Jesus passou no deserto, na memória desses antigos 40 anos mas também na preparação da Sua vida pública.
Nós, em cada ano, temos estes 40 dias que são um tempo de graça, um tempo oportuno. Este é um tempo de retiro coletivo que como católicos nós fazemos. É um tempo propício, um tempo de manobras espirituais, um tempo de revitalização interior, um tempo para quebrar aquela rotina, ou para romper com uma religião que é apenas para ser visto, para os outros dizerem: “Olha que bem, esta pessoa até faz isto e até aquilo.” Para romper, no fundo, com um mundo de aparências em que tantas vezes a nossa vida se resume. E para fazermos a experiência de uma vida autêntica, aquela experiência que passa por entrarmos em nós, no nosso quarto, trancarmos a porta. Isto é, não falsearmos o encontro, mas nos expormos com a nossa nudez, até com a nossa miséria, com a nossa dificuldade, com a nossa imperfeição, mas nos expormos com confiança ao olhar misericordioso de Deus.
Em todo o Evangelho que nós proclamamos Jesus repete a palavra “Pai”. Estamos diante do Pai. Cada um de nós está diante de um Pai que o ama. O que nós vamos fazer juntos estes 40 dias e individualmente não é um castigo porque nós não nos temos portado bem. Pelo contrário, é um estímulo de crescimento, é uma resposta amorosa, é uma resposta de autenticidade que nós damos, queremos dar, em diálogo com este Pai. Sentindo que temos de vencer a orfandade que às vezes nos caracteriza e olharmos para Deus como Pai, sentindo Nele que temos um Pai que nos ama e que nos oferece de uma forma incondicional.
Mas nós não podemos receber esse Amor em vão, foi isso que também ouvimos na leitura da Carta de Paulo que hoje nós lemos: “Não recebeis a graça de Deus em vão.” Nós sabemos que muitas vezes a recebemos em vão, muitas vezes vivemos a verdade como se ela não fosse verdade, muitas vezes ouvimos esta Palavra como se esta Palavra não determinasse nada de novo, não inspirasse, não suscitasse caminhos novos. Muitas vezes, comemos o pão, bebemos o vinho, e não é uma vida nova que entra dentro de nós a contaminar tudo à nossa volta, mas é apenas o rame-rame, é apenas o morno, é apenas o que não é frio nem é quente, é apenas a parte ritual, é apenas no fundo religião, religião, religião e não é vida transformada, não é este sobressalto de vida, não é uma primavera que acontece dentro de nós.
Por isso, o tempo da Quaresma, para nós, é um tempo de primavera, é um sopro de primavera que tem de entrar pelas nossas vidas. Porque a primavera não é apenas fora de nós que acontece: nós somos chamados a romper com o inverno gelado do nosso coração e a sentir que há um degelo. Alguma coisa é possível fazer. Porque o Cristianismo, sendo uma religião de paz, ele também é agónico no sentido que dá luta, Deus dá luta, esta Palavra dá luta, nós entramos também num combate espiritual. É uma expressão que a tradição cristã amou muito, o combate espiritual, e que hoje nós refletimos muito pouco sobre isso porque somos um bocadinho contaminados por esta sociedade instantânea. Parece que se carrega no botão e está tudo feito, e na vida de uma mulher e de um homem não é assim, não há botões para carregar, há caminhos, há sementes, há esforço, há morrer e nascer, há cair e levantar-se, há tomar consciência. Há um itinerário de maturação espiritual que nós precisamos praticar e esse itinerário chama-se combate espiritual. Porque não é apenas na linearidade que nós caminhamos, não, é com altos e baixos. Muitas vezes nós temos de perceber que se não lutarmos nada acontece na nossa vida, deixamo-nos ir, deixamo-nos levar e precisamos de facto de dizer não, não, não. Que o nosso “sim” seja um sim e que o nosso “não” seja um não. Não vivamos como troca-tintas interiores: o “não” até pode ser um “sim” e o “sim” pode até ser um “não”, e tudo vale a mesma coisa. Não, não é assim, tem de haver uma clareza dentro de nós, uma verdade dentro de nós.
A Igreja apresenta-nos três instrumentos de construção, de revitalização da nossa vida e que são propostas para este tempo da Quaresma, que em todo o mundo os cristãos vão pegar nelas e transformar as suas vidas.
A primeira é a oração, porque não há conversão sem oração. A conversão não é: eu caio em mim e com grande esforço meu transformo-me. Isso não é a conversão cristã. A conversão é eu escutar a Palavra de Deus, eu deixar-me curar por Ele, como Jesus curou o cego de Jericó e lhe deu uma nova visão da realidade, permitiu-lhe ver o que ele ainda não tinha visto. Também é na oração que nós subimos àquela temperatura que nos torna maleáveis. Porque nós somos intransigentes, duros e para tornarmo-nos tenros e para se poder fazer alguma coisa connosco tem de ser à força da oração. Precisamos regar o nosso coração com a oração, transformar o nosso coração com a oração. Precisamos todos de rezar mais. A oração é talvez a coisa mais importante para fazer na Quaresma. Que cada um possa, no seu programa quaresmal, colocar a oração em primeiro lugar, descobrir Deus, descobrir isto de estar em silêncio diante Dele. Ler um livro bíblico, imaginem: agora vamos ler o Evangelho de S. Mateus nesta Quaresma e meditar nele. Se calhar vamos a uma missa durante a semana, não só à missa de domingo. Se calhar vamos rezar uma dezena ou um terço em cada dia. Se calhar vamos rezar um salmo, vamos rezar lendo um autor místico, um autor espiritual. Mas o importante é que rezemos, é que rezemos porque aquilo que nos transforma – é o poder da oração, o poder da oração. E a oração parece que é uma coisa inútil, parece que não serve para nada.
Porque é que não rezamos mais? Porque andamos de um lado para o outro? Nós que somos pessoas úteis e só fazemos coisas úteis, achamos que a oração é uma perda de tempo, porque há isto para fazer e há aquilo. O nosso coração dispersa-se e não percebe a força do inútil. Entre a ação e a contemplação nós achamos que devemos privilegiar a ação. E a contemplação? A contemplação dá-nos uma outra capacidade de agir, dá outra densidade à nossa ação, dá outra intensidade, não somos só nós, não somos só nós. Por isso, fortaleçamos a nossa oração nestes 40 dias, procuremos rezar mais em cada dia, procuremos rezar com mais intensidade, procuremos estar diante de Deus, escutá-Lo, ouvi-Lo, rememorar a nossa vida diante Dele, falar das nossas coisas, ouvir a Sua Palavra, ouvir o Seu silêncio, isso é sem dúvida o ponto de apoio, de transformação das nossas vidas. O que transforma as nossas vidas é a oração, o nosso segredo é a oração, é a oração. E assim, esta vida aquecida pela oração, este ferro forjado nas labaredas de uma oração simples, mas sincera, mas buscada, mesmo quando nos custa estar ali, como a lâmpada que permanece acesa junto do tabernáculo, é isso que nos vai ajudar a usar os outros dois instrumentos.
O outro instrumento é o jejum, o santo jejum. É um instrumento que não é tipicamente cristão porque outras tradições espirituais usam o jejum e às vezes pessoas que não têm nada a ver com religião usam o jejum, porque o jejum purifica, é purificador. Purificador porquê? Porque nós vivemos viciados, nós vivemos com demasiadas coisas, para nós o necessário é uma casa cheia de coisas e de razões, quando eramos capazes de viver com muito menos. E o jejum é uma forma de privação, começa por ser isso. Nós praticamos jejum em dois dias: hoje, esta Quarta-feira de Cinzas e na Sexta-feira Santa. São dias em que nos privamos do alimento para lembrar ao nosso corpo, para espiritualizar a nossa própria carne. E também, criando um vazio no estômago, cria também uma disponibilidade para Deus e ela percebe que é chamada também a outras coisas, que não vivemos só de pão, embora o pão nos seja tão necessário. Mas o jejum é essa privação voluntária, essa privação voluntária em nome de um valor espiritual, isso é o jejum.
Mas o jejum também é um símbolo, porque nós precisamos de fazer jejum de tantas coisas. Não é só dos alimentos, não é só das gulodices, não é só das bebidas, não é só no fundo de uma vida em que muitas vezes nós não temos de pensar naquilo que ingerimos, naquilo que são os hábitos da nossa existência. Temos de olhar de forma mais crítica, mais autocritica para os nossos hábitos, as nossas rotinas, aquilo que a gente gasta, aquilo que nos dá prazer. O jejum ajuda a olhar criticamente para isso de uma forma saudável. Porque o jejum não é para nos acabrunhar, um jejum até aumenta o nosso sentido de humor, aumenta a relativização de uma vida que nós percebemos que afinal não depende tanto daquilo que nós achamos de que depende a nossa alegria. Afinal a nossa alegria depende também de coisas espirituais, não apenas de coisas materiais.
Mas o jejum é esta privação do alimento e daquilo que nos alimenta. Por exemplo, nós vivemos numa sociedade da comunicação, vivemos dependentes do telemóvel, não sabemos já viver sem o telemóvel, sem o whats app, sem o facebook, sem essas coisas todas. E se nós olharmos criticamente para isso, de uma forma saudável, qual é a palavra que aparece? A palavra que aparece é dependência, estamos dependentes, viciados verdadeiramente. E aquilo que comunicamos já não é uma coisa de qualidade, não tem uma qualidade. É quase uma reação, é quase um estímulo que recebemos e uma resposta que damos, imediata, e perdemos um tempo, perdemos uma vida com coisas inúteis, a mandar mensagens que não são mensagem nenhuma, a usar palavras de que nos envergonhamos, que não é nada. Melhorar a nossa comunicação que fazemos com os outros, isso também é fazer jejum. Nós vivemos num mundo carregado de imagens e grande parte delas são pura poluição que entra dentro de nós, também precisamos fazer jejum dessas imagens, fazer silêncio.
Então, de facto, o jejum o que é? O jejum é esta liberdade de dizer “não”, é esta privação voluntária. E nós não tenhamos dúvidas, se nós não dissermos “não” nunca conseguiremos dizer “sim”. Por trás de cada “sim” há um “não”. Nós facilmente nos tornamos dependentes, viciados, sequestrados, reféns. Nós facilmente perdemos a nossa liberdade, e o jejum é um instrumento de liberdade. Sermos livres, e muitas vezes sermos livres em relação a nós próprios, porque somos uns tiranozinhos, à nossa escala, à nossa medida, só fazemos os nossos apetites, a nossa vontade, só seguimos as nossas paixões, o nosso eu, eu, eu, eu, eu, eu. E há que batalhar, há que dizer: alto lá menino, alto lá menina, põe-te lá no teu lugar, reduz-te a tua insignificância, calma, não tens de ter o primeiro lugar, não tens de ter a última palavra. E isto é muito saudável, e não é outro que nos diz, somos nós que dizemos a nós mesmos, vigilantes em relação a estes excessos que nos caracterizam.
Por isso, a Quaresma é um tempo para fazer caminho e caminho muito concreto em relação à requalificação da nossa vida interior que está intoxicada, intoxicada. É tempo para olharmos com realismo o que é que é tóxico? De que é que eu me vou libertar? E pedir a Deus a força para fazer isso durante estes 40 dias, que é um tempo para chegar mais leve de muita coisa. Porque só assim é que a Páscoa do Senhor vai ser morte e ressurreição dentro de nós.
Mas não é apenas um exercício interior a Quaresma. É um grande momento de retiro interior, é um grande momento para sacudir coisas dentro de nós, é um grande momento para reconquistar mordendo os dentes a nossa liberdade, é um grande momento para dizer “não”, é um grande momento e privação, de jejum.
E ainda um aspeto importante que não queria esquecer: nós fazemos o jejum na Quarta-feira de Cinzas e Sexta-feira Santa, mas todas as sextas-feiras é um dia de combate espiritual forte e em que há a tradição da abstinência. A abstinência é não comermos carne, e o que é não comer carne? Não comer carne é não derramar o sangue, não cortar outra vida para nós termos vida. Há quem diga: não é nada importante isso de ser carne ou de ser peixe, hoje em dia o peixe é mais caro que a carne. Eu acho que estas coisas têm um grande sentido. Na sexta-feira da quaresma, a abstinência tem esse sentido literal de não comermos carne e comermos outro tipo de alimentos que não impliquem o derramamento de sangue. Mas, claro, esses alimentos têm de ser marcados também por uma frugalidade, porque este tempo é um tempo frugal. Isso compreende-se muito bem: se é um tempo em que nós estamos a caminhar, quem caminha não anda em banquetes, quem caminha leva uma sandes no saco e toca a andar porque o que importa é a viagem. Então, estes 40 dias são dias de viagem, não são dias para estarmos parados com grandes festejos porque isso só impede e distrai do caminho que temos de fazer. Por isso, tem de predominar neste tempo um sentido de frugalidade.
E depois, claro, tudo isto é para ampliar a nossa capacidade de amar, de servir e de cuidar. Por isso, neste tempo, a dimensão da esmola é uma dimensão fundamental. Não é apenas eu, com Deus, aqui a minha luta, o meu combate interno, não, é na expressão da minha relação com os irmãos – ela tem de ser requalificada, tem de ser transformada em gestos de amor, de cuidado, de atenção, de caridade, em multiplicar os atos de caridade. E renunciar até – e a Igreja diocesana pede que façamos isso – por exemplo, se eu bebo três cafés há um que eu renuncio e aquele dinheiro, no fim da Quaresma, é entregue como renúncia quaresmal para uma instituição ou para uma causa que o nosso Patriarca indica. É o nosso contributo, é o meu estilo de vida mas desse estilo de vida eu retiro qualquer coisa para pensar nos irmãos. É só um exemplo daquilo que deve ser uma atenção e uma atitude que nos ajuda a viver este tempo.
Queridos irmãs e irmãos, vamos continuar a nossa celebração, vamos agora abençoar estas cinzas e recebê-las na nossa cabeça. Que estes 40 dias sejam dias bem vividos por cada um de nós, porque é uma oportunidade para a nossa vida. Sintamos como uma necessidade, nós necessitamos deste tempo, nós precisamos renascer. Precisamos mesmo, cada um de nós precisa mesmo. E por isso, recebamos esta cinza como um desafio a uma transformação, a uma aceitação de que somos pecadores e precisamos fazer um caminho. Mas, ao mesmo tempo, com a responsabilidade das cinzas que parecem apagadas, eu tenho de fazer surgir o fogo novo da ressurreição, tenho de reacender esta vida com a graça de Deus em mim.
Pe. José Tolentino Mendonça, Quarta-feira de Cinzas
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Fevereiro
2017/02/27 - Curso "Filosofar é também agir - grandes correntes da ética ocidental" – Ética Animal - Manuel João Pires
2017/02/23 - Percurso de Preparação para o Crisma
2017/02/20 - Curso "Filosofar é também agir - grandes correntes da ética ocidental" – Éticas da Cidadania - Mendo de Castro Henriques
2017/02/19 - A gramática da compaixão (homilia)
Neste domingo temos uma palavra que nos é oferecida com uma forte dimensão ética. No fundo, esta palavra faz-nos refletir sobre o fulcro do nosso estar, do nosso ser, da relação que temos com os outros, e enche o nosso coração de perguntas. A primeira é sobre a qualidade da relação, da expressão de nós mesmos. Que qualidade, que cor tem aquilo que somos em ato, em acontecimento, em situação, em contexto? Será que nós somos verdadeiramente cristãos?
Para a Palavra de Deus que hoje escutamos é muito claro que nós só podemos dizer que acreditamos em Deus se nos tornamos de alguma maneira naquilo que Deus é. Se aquilo que Deus é – e nós sabemos que Deus é amor, porque é essa a revelação – se essa verdade fundamental for expressa naquilo que somos e nós formos uma coisa só com Deus. Não é acreditar que Deus é bom, se eu não sou bom não acredito que Deus é bom, não sei o que é Deus ser bom. Não é acreditar que Deus é amor, porque se eu não amo, se eu não vivo na tensão do amor, eu verdadeiramente não sei aquilo que Deus é.
Então, a vida concreta nas suas relações, o ethos, a expressão prática daquilo em que nós acreditamos é de facto fundamental, é a forma de conhecimento, é a ciência fundamental para sabermos quem é Deus. Se não, nós até podemos dizer um catecismo inteiro de verdades acerca de Deus, mas não sabemos quem é Deus. Porque, o saber de Deus é o sabor de Deus. A nossa vida tem de estar contaminada de Deus, tem de estar banhada, ensopada da arte de Deus, do estilo de Deus, do reflexo de Deus, da luz de Deus para sabermos o que Deus é. Se não o nosso saber é um saber abstrato, é um saber com uma distância enorme e não é aquele saber espiritual, aquele saber íntimo que nasce da convivência que nasce da relação, que nasce de uma mimésis, de uma imitação do próprio Deus. E o saber da fé, o acreditar da fé não é o acreditar simplesmente racional, passa pela nossa cabeça mas tem de passar pelo nosso coração. Tem de passar pelos nossos gestos, tem de passar por aquilo que somos. E este para nós é o grande desafio.
Jesus não tem dúvidas, nós temos de viver numa tensão, numa tensão. Nós ouvimos tantas coisas sobre o modo de viver e como organizar a nossa vida. Jesus diz isso: “Ouvistes que foi dito: «olho por olho, dente por dente».” E esta que é uma das antigas Leis, e teve até o seu papel porque, “olho por olho” não é um olho e eu tiro-te dois olhos. Nesta Lei antiga há uma certa razoabilidade, é um primeiro passo de civilização. Se eu sou prejudicado em 50 é em 50 que eu vou requerer, se é um dente é outro dente, não são os dentes todos. Já aí há um avanço. Mas Jesus não se fica por aí, não se fica por essa espécie de moral negociada, Jesus fala de uma ética que supera. É preciso superar, nós vivemos mergulhados também numa determinada visão ética do mundo que, mesmo de uma forma inconsciente, acaba por regular a nossa vida. Nós reagimos de uma determinada maneira aos acontecimentos, ao que nos fazem, ao que nos dizem, partilhamos uns com os outros “já viste isto e já viste aquilo, vou fazer desta maneira, vou fazer daquela.” E, de repente, há uma praxis ética que vai regendo a nossa vida. A grande questão é saber se ela é uma praxis cristã. Se nós somos cristãos até à medula e se depois isso se exprime no bom e no mau, no certo e no errado, no fácil e no difícil, no feliz e no dilemático da nossa vida, se aí nós somos verdadeiramente.
Jesus é muito claro: nós só somos se superarmos este estádio ético que é até de uma certa razoabilidade, que é de fazer aos outros o que eles nos fazem, que é de criar distanciamento, que é de pagar na mesma ordem de coisas, de sentimentos. Jesus diz: “Não, é preciso romper com isso.” A Palavra de Jesus nós podemos reinterpretá-la, podemos explicá-la, podemos comentá-la, podemos tentar atenuar e domesticar a força desta Palavra, mas a verdade é que Jesus disse isto: “Não resistais ao homem mau. Se alguém te bater na face direita oferece-lhe também a esquerda, se alguém quiser ficar com a tua túnica deixa-lhe também o manto, se alguém te obriga a acompanhá-lo durante uma milha, acompanha-o durante duas. Dá a quem te pedir e não voltes as costas a quem te pede emprestado. Ama os teus inimigos e ora por aqueles que te perseguem.” Este é um código, é um código ético. E é um código ético que nós não podemos dizer: “Não é para nós. Não é para mim, não sou capaz, não consigo.” Não consegues hoje, não consegues agora, mas faz desta Palavra o mapa da tua vida. Faz desta Palavra o teu projeto da casa, da vida, da existência que estás a construir. Habita a tensão, a provocação que esta Palavra te deixa. Porque só isso é que nos coloca dentro de Deus.
Nós podemos dizer: “Se eu viver desta maneira, eu vou ser engolido por todos, eu vou ser espezinhado, eu vou ser esmagado, vão-me tratar como um louco.” Pois é precisamente isso que S. Paulo nos diz na Carta aos Coríntios. Há uma sabedoria de Deus e essa sabedoria de Deus faz-nos aparecer como loucos aos olhos do mundo. O que é viver como loucos? É vivendo numa sabedoria alternativa, vivendo de um modo diferente, de um modo consistente, sentindo que de facto nós somos lugares sagrados. Nós somos expressões de Deus, nós somos fragmentos de Deus, nós somos templos no meio do mundo. Nós não temos a Capela de Nossa Senhora da Bonança, nós somos capelas. Nós estamos aqui uma rede de capelas, uma rede, uma rede de capelas que se junta, nós somos uma confederação, é isso que nós somos. A vida de cada um de nós é um lugar sagrado cheio de encontros, cheio de vida, ou de silêncio, ou de esquecimento, ou de ocultação, mas é isso que nós somos. Estamos aqui, juntos, confederados para tornar santo aquilo que em nós já é santo, já é santo.
Eu esta semana ouvi falar de um projeto que me deixou muito interessado e a pensar o resto dos dias. É uma rede que está a surgir que é a rede das cidades compassivas. No fundo, é a ideia de que as próprias cidades têm de se organizar e as comunidades têm de estar mobilizadas para a compaixão, para ir visitar os doentes, para cuidar daqueles que necessitam, para estar atento às situações de exclusão, para escutar a dor uns dos outros, o sofrimento uns dos outros, para perdermos a atitude agressiva ou de indiferença em relação aos nossos irmãos e fazermos da compaixão o nosso caminho, a nossa forma de estar. Para já, a rede das cidades compassivas está apenas em algumas cidades da América Latina onde está a começar; em Portugal querem fazer, penso que de Castelo Branco, a primeira da rede de cidade compassiva. Mas eu pensei: será que são só as cidades? Porque não também uma rede de famílias compassivas? Porque não uma rede de casas compassivas ou de referentes de compaixão? E como a rede eclesial que nós somos, esta confederação de lugares sagrados que estamos aqui, todos juntos, porque é que não assumimos a compaixão como cultura, como modo de ser, como prioridade?
Hoje no Salmo nós rezávamos isso: “Senhor, sois um Deus clemente e compassivo.” Nós precisamos voltar a esta gramática, a gramática da compaixão, a gramática da clemência, a gramática da bondade. É verdade que nós podemos dizer: “Eu não quero passar por parvo, eu não quero ser enganado.” Mas será que queres ser o juiz do teu irmão? Será que é isso que Deus espera de ti? É que pessoas que nos julguem nós todos temos muitas. Eu acho que temos de mais. Pessoas que olham para nós e nos julgam ou veem de fora, ou não nos conhecem verdadeiramente, ou não pararam um minuto para nos escutar eu acho que todos nós temos de sobra. Mas agora pessoas que nos amaram, pessoas que de uma forma gratuita, de uma forma generosa, desinteressada se colocaram a caminhar a nosso lado, pessoas que nos ouviram sem sobreporem um juízo, um julgamento àquilo que nós dizemos, isso é tão raro, isso é tão raro! E, de facto, aquilo que nos transforma é a experiência de amor, não tenhamos dúvidas. Aquilo que nos transforma é a experiência de amor!
Eu não faço isso, mas lembro-me de uma senhora que eu conheci há muitos anos, uma alemã, que dava esmola a todas as pessoas que lhe pediam. Eu lembro-me muitas vezes dela. Ela sabia que muitas vezes era enganada ou não era necessário, mas se lhe pediam ela dava e aquele gesto que parece um gesto louco, insensato ou radical é um gesto que salva o mundo, é um gesto que salva o mundo. Digamos, a insensatez dela enche o mundo de maior sabor, de maior luz, de maior amor do que a minha sabedoria de só dar a quem eu acho que merece. E é isto: se nós só damos, só amamos aqueles que achamos que merecem o mundo não fica contaminado por Deus, o mundo não fica contaminado por Deus.
Porque, como diz Jesus nesta belíssima imagem: “Deus faz nascer o sol sobre bons e maus.” E é esta que tem de ser a nossa atitude. Porque muitas vezes nós não sabemos o que vai no coração dos outros, e temos uma responsabilidade muito grande, que nós esquecemos, que é: nós não podemos fazer com que o outro perca a esperança. Às vezes a esperança do outro é conseguir vender uma revista. A esperança do outro é uma coisa irrisória aos nossos olhos mas nós somos pastores daquela esperança, somos responsáveis pela pequenina chama naquela torcida, por aquele brilho de luz que está no meio daquelas cinzas. Somos responsáveis por isso, e como tal, a nossa atitude se calhar tem de ser mais complexa do que é, se calhar tem de estar mais próxima de Jesus. Porque nós lemos tantos livros e ouvimos tantas coisas mas depois temos de voltar a estas palavras, estas palavras que Jesus diz, deixar que elas façam eco no nosso coração e deixarmos que elas nos moldem.
O místico Angelus Silesius dizia isso: “Nós não sabemos o que Deus é, só acreditamos Nele tornando-nos em Deus.” Este tornar-se naquilo que Deus é penso que representa o grande desafio para as nossas vidas.
Nesta Eucaristia com alguns irmãos nossos, algumas famílias nós estamos a lembrar também alguns parentes que partiram: mãe, avó, avô. Pessoas que deixaram uma marca indelével de quê? Que marca é que essas pessoas deixaram que 20 anos, meses, anos depois da sua partida nós continuamos a sentir que eles são uma fonte de vida? Que marca é essa? Eu diria, é a marca de amor. E não há amor se não houver excesso de amor. Porque o amor é sempre uma coisa em excesso. O amor não é uma coisa muito equilibrada, muito regrada, muito calculada. O amor é ariscar, o amor é dar o nosso amor ao outro sem controlar aquilo que o outro pode fazer com o nosso amor. O amor é isso, e é quando nós somos tocados por essas experiências de amor que nunca mais nos esquecemos e sentimos que essas pessoas fazem eternamente parte de nós.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo VII do Tempo Comum
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2017/02/13 - Curso "Filosofar é também agir - grandes correntes da ética ocidental" – Bioética – Marta Mendonça
2017/02/12 - Lei, liberdade e sabedoria (homilia)
Nas três leituras que hoje proclamamos há uma palavra que emerge e que, de certa forma, estrutura a organização interna de cada um dos três discursos que nós escutámos.
Sem dúvida que no Evangelho de S. Mateus, nesta extraordinária passagem em que Jesus aparece revestido de uma força ética extraordinária, como o novo Moisés a falar, a refletir sobre a Lei, trazendo para a vivência da fé uma espessura moral, uma espessura ética, não basta acreditar, é preciso praticar, é preciso concretizar. Neste discurso de Jesus, sem dúvida a palavra é a Lei. E o confronto com a Lei é um confronto importante para compreendermos Jesus e para nos compreendermos a nós próprios. Porque a Lei tem uma função. A Lei organiza, a Lei baliza, a Lei protege, a Lei esclarece as situações, a Lei oferece-nos as linhas com que cosemos de uma forma equilibrada a vida, aquilo que é o equilíbrio entre os nossos direitos e os nossos deveres. De maneira que a Lei tem a sua importância. Mas a Lei pode ser uma máscara, a Lei pode ser uma cápsula, a Lei pode ser uma desculpa. Porque nós dizemos: “Eu cumpro a Lei.” E cumprimos a aparência da Lei, o formalismo da Lei. Nós sabemos como todas as leis – e esse é o seu grande pecado – assentam num formalismo muito grande de procedimentos, que muitas vezes funcionam como se tivessem vida própria e como se tudo se esgotasse ali. Como se a justiça fosse unicamente os procedimentos ligados à justiça mas não a justiça verdadeira, não a justiça em si.
A grande crítica que Jesus vem fazer ao espírito legalista da religião do seu tempo é que usavam a Lei para desobrigar-se do amor. Eu cumpro a Lei, como cumpro a Lei já não tenho de fazer mais nada. E muitas vezes fico a cumprir a Lei para que os outros vejam que eu cumpro a Lei, mas no meu coração não fui transformado por uma ideia de justiça, por uma ideia de misericórdia, por uma ideia de amor. Por isso, os legalismos são de sua natureza muito hipócritas, muito dúplices, porque ao mesmo tempo estão protegidos naquela cápsula de aparente legalidade e que ata as mãos e cria uma espécie de desmobilização moral, desmobilização ética na própria vida.
Isso é um discurso e uma crítica que Jesus faz que é também muito importante para a nossa maneira de viver a religião. Porque muitas vezes é uma aparência de religião, é uma aparência de justiça, é alguma coisa que em vez de nos mobilizar, de nos comprometer, de nos radicalizar no amor e na misericórdia pelo contrário tornamo-nos fregueses. Estamos à vontade no Templo, estamos à vontade com as coisas da religião, mas não mergulhamos no seu espírito como pergunta, como caminho, como uma exigência de amor que nunca está completamente saciada, nunca está completamente satisfeita e por isso me obriga a viver numa tensão. Aquilo que Jesus diz é: “Eu não vim eliminar a Lei, eu não vim ab-rogá-la. Eu vim exigir que ela fosse plenamente cumprida.” E ela só é cumprida quando tocar, não apenas a pele, mas quando tocar o espírito, quando nos mover por dentro, quando não nos bastar cumprir apenas a forma mas sentirmos a necessidade de mergulhar no fundo.
Os exemplos que Jesus dá são exemplos tocantes, exemplos até incómodos para nós. Porque se a exigência da Lei começa, de facto, no nosso desejo, na nossa maneira de ver, na nossa maneira de olhar, na nossa maneira de nos relacionarmos com os outros, nesse lugar (que aparentemente ninguém vê, ninguém sabe) que é o nosso coração, se é aí que tudo começa, se é aí que se decide a justiça então, de facto, nós metemo-nos em trabalhos sem fim. Mas é isso que Jesus vem fazer, porque Jesus não vem apenas para satisfazer uma regra, a regra número um da expectativa messiânica. Jesus veio para salvar o Homem, para transformá-lo, para tocar o seu coração. É isso que nós temos de sentir, rompendo muitas vezes com o caminho mais cómodo da nossa vida que é o caminho da Lei, que nos deixa muitas vezes isentos e neutros em relação a deveres mais profundos, a atitudes mais radicais, a transformações porventura mais necessárias, mais comprometedoras, que no fundo são aquelas que Jesus diz que fazem acontecer o Reino na nossa vida. Porque nós podemos cumprir todas as regras, todos os mandamentos e depois no fim Jesus dizer: “Não te conheço, não te conheço.”
O que é que nos torna conhecidos por Jesus? É essa verdade de fundo, é essa radicalidade, é o contrário de um certo descomprometimento, de um certo alívio que o cumprimento de uma regra nos dá e depois nos demite da coisa fundamental. Da coisa fundamental que é o encontro, da coisa fundamental que é a construção de uma relação verdadeira, da coisa fundamental que é ir até ao fim, cumprir até ao fim este chamamento ao amor e ao dom que Jesus faz a cada um de nós.
Na leitura de Ben Sira a palavra que emerge é a palavra liberdade. O autor de Ben Sira é muito claro: “Depende de ti, depende da tua vontade, depende da tua liberdade o seguimento que fazes de Deus. Deus coloca diante de ti o fogo e a água: a escolha é tua.” Nós temos de sentir isto: que a escolha é nossa. Por isso, o nosso viver tem de ser um viver desperto, e temos de sentir que estamos a escolher dia a dia, na forma como vivemos nós estamos a escolher. Parece que só estamos a ir ali ou a cumprir aquilo, parece que é apenas a máquina da vida a funcionar mas não é. Por trás dela estão as nossas escolhas, está a nossa liberdade. E a experiência da fé é também uma experiência de liberdade.
Os grandes crentes, as grandes mulheres, os grandes homens crentes são exploradores da liberdade. Muitas vezes até são libertinos do espírito, completamente libertários, são pessoas fora da caixa, fora do sistema, mais apaixonados por uma trajetória de liberdade e uma liberdade singular que os faz ser a cada momento. Nós caminhamos arrumadinhos no rebanho e muitas vezes esquecemos que a fé é, de facto, uma aventura de liberdade em que nós temos de dizer: ”Eu quero, eu estou aí, eu vou, eu sigo.“ Não é apenas o caminhar sonolento do ir por ir. Não, é uma decisão que me compromete, é uma decisão que eu repito a cada momento, é um “sim” que é um “sim” e é um “não” que é um “não”. E esta clareza, esta limpidez que a liberdade nos dá é fundamental para construirmos também um itinerário de fé.
Na Carta de S. Paulo aos Coríntios neste trecho a palavra que emerge é a palavra sabedoria. Podem imaginar que Paulo está a dizer isto em Corinto que era a segunda cidade grega. Era uma cidade que rivalizava com Atenas, fica a cento e poucos quilómetros de Atenas, para sul. É claro, não tem a grande escola de Platão, de Aristóteles, mas tinha também ali outros filósofos, os cínicos por exemplo partiam muito de Corinto, e havia ali também uma sabedoria, uma quantidade de templos. De maneira que a palavra mágica no mundo grego é a palavra “sophia”, a palavra sabedoria. Todos andavam à procura de uma sabedoria, todos pregavam uma sabedoria, todos viviam galvanizados por uma sabedoria. E Paulo também fala de uma sabedoria, mas fala de uma sabedoria diferente, fala da sabedoria de Deus. Aquela sabedoria que habita o interior de Deus. Paulo poderia ter perdido a cabeça por causa desta frase que ele diz: “Esta sabedoria nenhum dos príncipes deste mundo a conheceu.” Por esta frase Paulo podia ser morto logo ali. Porque dizer isto é dizer, por exemplo, que o imperador de Roma não conheceu a sabedoria. Como é que é possível? O imperador? Acreditava-se que ele era o filho de deus, que ele era o homem mais sábio, que ele detinha tudo e Paulo diz: “Não, os príncipes deste mundo não conheceram a sabedoria. Porque se tivessem conhecido a sabedoria não teriam crucificado o Senhor da sabedoria, o Senhor da glória.”
Então, esta sabedoria de Deus, esta sabedoria da profundidade de Deus é uma sabedoria que nos é revelada e traduzida por Jesus Cristo no seu mistério pascal, na sua morte, na sua ressurreição. Há uma sabedoria, há um conhecimento, há uma ciência na cruz, no mistério da cruz.
É essa ciência, essa arte, essa nova forma de entendimento da realidade, essa chave de compreensão do mundo a que nos temos de agarrar, temos de pedir a Deus que nos dê essa sabedoria. Que não é apenas aquela sabedoria que encontramos nos nossos membros, na nossa carne, no nosso corpo, na nossa inteligência. Desde o braço que sabe fazer isto à inteligência que tem as ideias, ao corpo que parece que anda por si. Há uma sabedoria que nós já encontramos instalada nos nossos membros mas é outra sabedoria. Nós temos de pedir esta que não temos, esta que vem de Deus, esta que o Espírito instala em nós, esta que tem no mistério pascal de Cristo o seu núcleo fundamental, o seu núcleo mais ardente.
Por isso, Paulo está a pregar numa terra de filósofos, domingo passado ele dizia: “Eu estou aqui, no meio de vós com temor e tremor.” Mas há uma só coisa que Paulo vai pregar: a Cruz de Cristo como mistério de sabedoria de Deus. Isto é uma transformação, é uma reviravolta da história, é uma maneira completamente nova, é uma rutura de pensamento, mas é isso que nós precisamos – essa transformação, essa rutura que o Espírito nos permite revelando-nos a ciência da Cruz, a sabedoria da Cruz.
Vamos pedir ao Senhor que estas três palavras: a palavra “Lei”, a palavra “Liberdade”, a palavra “Sabedoria” nos acompanhem. E que o Senhor nos ajude a vivê-las, nos ajude no processo de conversão, nos ajude num caminho autenticamente cristão.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo VI do Tempo Comum
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2017/02/09 - Percurso de Preparação para o Crisma
2017/02/06 - Curso "Filosofar é também agir - grandes correntes da ética ocidental" – Ética das Virtudes e Ambiente – Sofia Vaz
2017/02/05 - Um poder transformador (homilia)
É interessante notarmos na força plástica das imagens que Jesus hoje utiliza: Ele recorre à imagem do sal e à imagem da luz. São imagens muito curiosas porque, tanto o sal como a luz, atuam numa espécie de fusão com a realidade. O sal tem de desfazer-se, deixa de ser sal para tornar aquilo em que ele se desfaz salgado. A luz também é assim, nós não vemos exatamente o ponto da luz, mas vemos a iluminação que ela provoca.
Há assim nestas imagens uma espécie de desafio a nos aproximarmos da realidade, corpo a corpo, pele a pele de maneira que já não possamos olhar como se fosse uma realidade outra, como se fossemos espectadores. Mas estando dentro, sujando as mãos, sentindo que somos uma coisa só. Com o quê? Com o mundo, com a realidade, com a história.
A nossa fé não nos deixa como espectadores da vida, olhando para aquilo que acontece como se o mundo fosse uma realidade estranha à vivência da nossa fé e distante daquilo que Deus pede e espera de cada um de nós. Não, Deus desafia-nos a abraçar o mundo, a abraçar a vida, a abraçar as circunstâncias da história e a sentir que este lugar de contradição, este lugar de desafio, este lugar de luta é também o lugar onde o sal pode ser aquilo que é, pode salgar, e a luz pode ser aquilo que é, pode iluminar. Um cristão precisa de mundo, um cristão precisa de vida, uma fé precisa de concretude. A nossa fé não pode ficar uma realidade abstrata ou uma zona de conforto tão íntima, tão nossa, tão pessoal, tão privada que deixe de exercer um poder transformador.
A nossa fé é chamada a exercer um poder transformador: o poder do amor em relação à realidade. Não podemos ficar, como dizia o Péguy, como aquelas pessoas tão preocupadas por não sujar as mãos na realidade que acabam por ficar sem mãos, sem saber para que é que servem umas mãos. Eu não sei se como cristãos nós sabemos para que é que servem as nossas mãos, para que é que servem os nossos olhos, para que é que servem os nossos ouvidos, para que é que serve a nossa boca, para que é que serve o nosso coração. Para que é que esta máquina humana serve em termos evangélicos, em termos daquilo que o Senhor espera de nós?
Hoje o profeta Isaías e o Salmo 111 que nós proclamamos colocam-nos no centro da nossa atenção a figura do pobre. De facto, o Cristianismo tem desde sempre o desafio de ir ao encontro do pobre. O nosso Cristianismo fica incompleto se não tem uma dimensão social, se não emprestamos à nossa fé uma concretude, um desafio também que se realiza no encontro com os mais pobres, no encontro com o irmão que sofre, no encontro com o irmão que é carente, na pessoa do irmão que passa pelas dificuldades de uma vida.
Ainda estes dias estive fora na Colômbia, conheci lá um escritor, Andrés Felipe Solano, que escreveu um texto muito singular. Ele trabalhava numa revista, tipo Granta, e a revista fez-lhe uma proposta meio maluca que foi ele deixar seis meses a cidade onde vivia e a vida que levava, ir para outra cidade da Colômbia, Medellín, e aí, trabalhar numa fábrica têxtil e viver unicamente com o salário mínimo. Não é que antes ele levasse uma vida rica, os jovens aos 30 anos que escrevem aqui e ali também contam os tostões. Mas se ele tivesse de entrar num táxi não tinha de pensar duas vezes, ou se tivesse de ir comer fora não era um problema, ou se lhe apetecesse comprar um livro ou um disco fazia-o tranquilamente. Mas quando ele se muda para Medellín e passa a viver com o salário mínimo percebe que isso é completamente impossível. E muitas vezes, como ele diz, tem de pensar qual é a coisa que deve escolher: ou comprar lâminas para a barba, ou comprar o remédio para a gripe porque o salário não chega para as duas coisas. Ele diz uma coisa que não me saiu da cabeça desde que a li, ele diz que viver do salário mínimo para a maior parte de nós seria como uma experiência de guerra. Se, de repente, tivéssemos de viver apenas com salário mínimo não sei se nos aguentaríamos. E contudo, temos uma boa consciência em relação ao salário mínimo na nossa sociedade. E muitas vezes são as questões financeiras, a engenharia financeira e económica que pesa, e claro, tudo isso tem o seu peso. Mas não esqueçamos, não percamos de vista a vida das pessoas, a vida dos nossos irmãos mais pobres.
Nesse sentido, a palavra do profeta Isaías é verdadeiramente uma palavra profética: “Se repartires o teu pão com o faminto, se deres pousada aos sem-abrigo, se levares roupa a quem não tem de vestir, se não voltares as costas ao teu semelhante as tuas feridas não tardarão a sarar.” Nós temos de nos perguntar se muitas das nossas feridas, muitos dos nossos dilemas, muitos dos nossos conflitos, muito desta vida que não nos satisfaz também não é fruto de uma vida trancada em si própria, autossuficiente e indiferente àquilo que poderíamos realmente fazer: ir ao encontro dos outros.
Uma coisa que se aprende, por exemplo, na Comunidade de Santo Egídio, e eles são também um texto profético para a Igreja do nosso tempo, é a amizade com os pobres, o valor da amizade com os pobres. Não é apenas fazer assistência social, não é apenas ter o sentido da justiça, isso é o mínimo. Mas é ter amizade com os pobres, cada um de nós conhecer pobres, ter amizade, tratar como da família.
Por isso, uma nota que eu vi que me emocionou também, e temos também de dizer essas coisas, foi a fotografia que ontem o Expresso trazia: o Presidente da República a comer na mesa de um casal de sem-abrigo que refez a sua história. Um Presidente da República não tem apenas de comer nas grandes mesas, nos grandes lugares, ele tem de ir também ao encontro destas vidas últimas. E isso também constituí para nós um desafio a mudarmos muitas vezes as nossas trajetórias e a sermos capazes de nos colocar no lugar dos outros, nos sapatos dos outros, para percebermos a nossa própria marcha, o nosso próprio caminho.
Se o sal não serve para salgar é inútil, ele terá de ser deitado fora. Se a luz não servir para iluminar, porque é que ela é luz? E nós temos com sinceridade, com humildade, mas ao mesmo tempo com confiança e sem descorçoar, também de nos perguntar: o que é que eu tenho feito do meu sal? O que é que eu tenho feito da minha luz?
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo V do Tempo Comum
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Janeiro
2017/01/30 - Curso "Filosofar é também agir - grandes correntes da ética ocidental" – Ética da Virtude – António Pedro Mesquita
2017/01/29 - O filme Silêncio, de Scorsese, na homilia do Pe. Adelino Ascenso (homilia)
Os apóstolos são os ouvintes que transmitem as histórias que eles mesmos escutaram. Assim, o Cristianismo é uma comunidade narradora de histórias. Existe uma linha ininterrupta e as histórias não terminam em qualquer tipo de resultado concreto e acabado. O ouvinte envolve-se de tal forma que se transforma em narrador, o ouvinte transforma-se em ator da narração e segue as suas ações. É neste sentido que podemos imaginar o Cristianismo como que uma cadeia infinita de narrações ou talvez uma infinita narração. Essas narrações ou essa narração que se prolonga ou se prolongam de geração em geração.
Fala-se muito do filme Silêncio, de Scorsese. Tal como sabeis o filme é baseado no romance Silêncio do escritor japonês Shusaku Endo e tem lugar no Japão durante as perseguições ao Cristianismo, na primeira metade do século XVII. O protagonista, Padre Rodrigo, é um missionário jesuíta português que entra no Japão em segredo, é capturado, passa por uma terrível provação psicológica e acaba por apostatar por compaixão para com os cristãos japoneses que estavam a ser torturados, uma vez que as autoridades lhe tinham garantido que libertariam os cristãos japoneses se ele pisasse a imagem de Cristo. Ora aqui está uma narrativa de grande densidade teológica, onde o protagonista trava uma luta terrível com a fé no seu coração.
Começar a partir da leitura, Silêncio, ora que tem isto a ver com o tema da Eucaristia de hoje? Tudo. Vejamos, na narrativa do Evangelho temos aquela passagem do Sermão da Montanha, aquele monumento ao Cristianismo que Mahatma Gandhi não sendo cristão tanto amava. “Bem-aventurados os pobres em espírito, os humildes, os que choram, os que têm fome e sede de justiça”, estes já vivem a lógica do Reino, aquela lógica que é ilógica.
A mesma leitura recomenda a misericórdia, a pureza de coração, a promoção da paz, a perseverança diante das perseguições. Perseverança diante das perseguições, aqui parece que se fala dos mártires, dos fortes. Ora, Silêncio fala-nos dos fracos, dos débeis que não aguentam o sofrimento, seja ele o próprio ou o alheio, o do outro. Digamos que se trata de uma apologia do débil e do direito à sua existência, o direito à existência do débil, do fraco, do cobarde.
Rodrigo, o protagonista de Silêncio, passa por um processo muito doloroso de conversão que é simbolizado na transformação da imagem que ele tem de Cristo. Tal transformação na aparência da imagem de Cristo nasceu a partir do árduo esforço por cruzar as barreiras culturais do Oriente e do Ocidente. A transformação da face de Jesus na imaginação de Rodrigo acontece lenta e gradualmente como parte de um doloroso processo de conversão. Quando partiu de Macau a imagem que ele via era aquela que ele trouxera da Europa, ainda sem qualquer transformação. Isto é, não inculturada, um rosto cheio de vigor e força. Na prisão de Nagasaki o Cristo que Rodrigo imagina é um Cristo sofredor. Finalmente, no capítulo 9 do livro o rosto que Rodrigo vê tem um olhar triste. A segunda e terceira imagens são aquelas que ele vê depois de cair num abismo do desespero, o que nos sugere a necessidade da crise – a crise nunca nos deve assustar. Sugere a necessidade da crise para que possamos voltar a germinar espiritualmente.
Como afirma o teólogo irlandês Michael Paul Gallagher, falecido há menos de um ano: “Perante os desafios da vida ou a pessoa passa por um processo de conversão ou permanece atolada em respostas herdadas.” Em face dos terríveis desafios colocados a Rodrigo ele escolheu o caminho do difícil processo de conversão. Oh, sim! Muito difícil! Quem viu o filme entenderá, mas quem leu o livro entenderá de uma forma muito mais intensa.
No filme Silêncio chegamos à conclusão de que Cristo é aquele se torna vivo connosco, que é nosso companheiro nos pântanos da nossa vida. Um Cristo vulnerável, compassivo, um Cristo que Se ajoelha diante de nós e que nos é exemplo para que nos ajoelhemos diante do outro, do pobre, do desesperado, do buscador de vida, do buscador de vida. Um Cristo que Se comove connosco e Se alegra connosco, um Cristo universal que está mergulhado no lodo de qualquer cultura e na profundidade do olhar de qualquer irmão. Um Cristo que é fraco com o fraco.
É bom que tenhamos em mente o verdadeiro Cristo, não aquele que tantas vezes – falo por mim – transformamos na situação ou na pessoa que nos agrada. Assim, deixaríamos de seguir Cristo, seguiríamos um ídolo criado à nossa imagem ou criado à imagem daquele que veneramos.
Começar a partir da leitura, eu acrescentaria: continuar a partir do encontro. E o encontro com o Evangelho de hoje é precisamente esse caminho descendente. Caminho do desnudarmo-nos do nosso orgulho, da nossa autorreferencialidade, tal como fez Rodrigo, da nossa vaidade, tal como fez Rodrigo, da nossa prepotência, tal como fez Rodrigo. O “cairmos de nós abaixo”, uma expressão que eu escutei uma vez a um dos nossos bispos, “cairmos de nós abaixo”. A primeira leitura também apela à humildade. E como diz Paulo de forma contundente na segunda leitura: “Deus escolheu o que é louco aos olhos do mundo para confundir os sábios.” A lógica do Evangelho deixa-nos muitas vezes desconcertados, também o filme Silêncio, ou o livro Silêncio nos deixa desconcertados. E isso é bom. Tanto o Evangelho de hoje como o romance ou o filme Silêncio devem forçar-nos a refletirmos. Não esqueçamos: a fé é uma luta entre a dúvida e a esperança. É sempre uma luta entre a dúvida e a esperança, é nesta luta que vamos rasgando caminhos de luz.
Que esta seja, para cada um de vós, uma semana iluminada.
Pe. Adelino Ascenso, Domingo IV do Tempo Comum
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2017/01/26 - Percurso de Preparação para o Crisma
2017/01/23 - Curso "Filosofar é também agir - grandes correntes da ética ocidental" – Ética, Moral, Religião e Direito – Teresa Ximenez
Mais informações sobre o curso aqui.
2017/01/23 - Curso de Ética na Capela do Rato - Entrevista da Agência Ecclesia a Luísa Ribeiro Ferreira
2017/01/22 - "Transformai o vosso modo de pensar" (homilia)
Temos neste passo do Evangelho de Mateus, que hoje lemos, o início da vida pública, da missão de Jesus. Em literatura chama-se o incipit, o lugar onde as coisas começam. A forma como se começa é programática, diz muito daquilo que é a intencionalidade do próprio Jesus. A primeira palavra de Jesus, de certa forma, é o seu programa messiânico, o seu mapa para a ação missionária que Ele vai desempenhar.
Jesus diz “Metanoiete”, a tradução aqui diz “arrependei-vos”, que é uma tradução muito na linha do Antigo Testamento. Mas verdadeiramente, “Metanoiete”, o imperativo grego, quer dizer “Metanoein”. “Metá” quer dizer mudar, ir além e “noein” vem de “nous”, que é o pensamento, a inteligência. “Ide para lá do vosso pensamento habitual, mudai o vosso pensamento, mudai a vossa maneira de pensar, a vossa maneira de julgar.” A primeira palavra de Jesus é este imperativo: “ Mudai a vossa perceção, mudai a vossa compreensão das coisas.” Jesus provoca-nos a uma nova visão da própria realidade. Jesus não vem para somar com aquilo que nós já somos, com aquilo que nós já sabemos, com tudo o que trazemos habitualmente dentro de nós. Jesus não é mais um a somar ao existente. Jesus é tudo isso mas conjugado de uma forma nova, numa atitude nova, com um olhar outro sobre nós próprios, sobre o mundo, sobre o nosso destino, sobre a nossa própria missão.
“Transformai o vosso modo de pensar.” É interessante que nós podemos ler toda a ação messiânica de Jesus a partir deste verbo. Por exemplo, Jesus fez muitas curas, muitos sinais, muitos milagres durante a sua vida pública, e esses milagres, para os doentes a quem essa ação era feita, tinham um sentido literal – os cegos viam, os coxos andavam, os leprosos eram curados. Mas aquela ação de Jesus tornava-se para os outros também uma ação simbólica, também uma espécie de chamamento. E o chamamento era a quê? Era a ver com outros olhos, era a andar de outra maneira, com outra força, com outra vitalidade, de outra forma, era sentir-se purificado de todas as lepras, era sentir-se curado de todos os assediamentos que a morte nos faz. No fundo, é esta transformação vital de nós mesmos que Jesus vem anunciar.
Nós estamos a recomeçar um ano, estamos no terceiro domingo do ano comum, temos um longo caminho pela frente, domingo a domingo, e é importante que sintamos que há algo de novo a começar em nós, que há uma proposta de mudança, uma proposta de transformação que não é feita abstratamente, para o mundo em geral, mas é feita para mim. Eu sou desafiado a ganhar outros olhos, a ganhar uma outra inteligência para olhar-me a mim mesmo, para olhar os outros, para olhar para Deus. É esse o repto de Jesus. Porque Jesus constrói a nossa compreensão do mundo, Jesus constrói uma nova atitude, uma nova arte de ser. Sintamo-nos, por isso, muito desafiados a uma desinstalação.
Para nós cristãos – o Papa Francisco fala muito disso – os nossos grandes pecados acabam por ser a autorreferencialidade. Quer dizer, nós anulamos bastante a força profética, o desassossego destas palavras no conforto de uma religião que é vivida muito pacatamente, vivida como um manual de boas maneiras, como uma ritualidade que no fundo não nos tira do sério, não nos tira o chão debaixo dos pés, não nos põe à prova, não nos faz começar de novo a vida em cada domingo, mas é quase uma experiência de manutenção e não este choque de transformação que nós vemos na palavra de Jesus. Este é o primeiro pecado, uma certa autorreferencialidade, tudo é reconduzido a nós próprios e ao nosso conforto.
Outro pecado é a mundanidade, aquilo que o Papa Francisco chama com esse nome, que é, no fundo, uma cedência ao mundo, uma cedência aos apetites, uma cedência ao consumo, uma cedência ao egoísmo materialista, que não nos faz perceber a palavra de Jesus que diz: “Transformai a vossa forma de pensar, transformai o vosso modo de estar porque o Reino de Deus tornou-se próximo, porque o Reino de Deus avizinhou-se da vossa vida.”
E o Reino de Deus o que é? É a presença de Deus, é a possibilidade de Deus, é a hipótese de Deus que é colocada com toda a força, com toda a disponibilidade na nossa vida. Deus faz-Se presente e nós o que é que vamos ser? O que é que vai acontecer a partir disso? Jesus diz estas palavras e parte para junto do mar da Galileia e ali, junto daquelas vidas, vai chamando e dizendo àqueles pescadores: “Vem e segue-Me.” E eles deixaram tudo para seguir Jesus. Uma mudança de pensamento é isto: é deixar o nosso quadro habitual de resolver a nossa vida para resolvermos a nossa vida com Jesus, a partir de Jesus, a partir do chamamento que Ele nos faz. Este “Vem e segue-me” que Jesus diz àqueles pescadores em específico, não é apenas para eles. A vocação não é apenas pensarmos a vocação do matrimónio, a vocação religiosa, a vocação dos padres. A vocação é a nossa vida, é a nossa existência. Nós temos em cada dia de nos sentir chamados, convocados, porque em cada dia Ele passa pela nossa vida. Claro que há a condição com que vamos viver e dar forma à nossa existência, mas a vida de um cristão é toda ela vocacional, é toda ela vivida como escuta de Alguém que chama por nós.
Se no dia a dia muitas vezes parece que ninguém diz o nosso nome, parece que nada nos chama, parece que apenas a vida nos engole ou que vivemos em modo de voo, em modo de pausa, a verdade é que se estivermos atentos no fundo do nosso coração, na realidade da história, nas suas circunstâncias pequenas e grandes nós vamos ouvir a voz de Jesus que passa pelo mar da Galileia da nossa vida e repete: “Vem e segue-me”. E o que é importante é nós termos aquela disponibilidade que os discípulos tiveram, deixaram tudo para seguir Jesus.
Não tenhamos dúvidas, nós temos de deixar para poder seguir. O nosso mal é querermos compactuar: sim e sim e sim e sim e às tantas, de todos os nossos “sins” não se diz um “sim”, não se diz um “sim” que seja verdadeiro. Os discípulos tiveram de deixar para seguir Jesus e nós também temos de deixar para seguir Jesus. Seguir Jesus implica deixar algumas coisas que para cada um de nós possivelmente são coisas diferentes, possivelmente nem são coisas materiais, não são coisas espaciais. São atitudes, são vícios, são círculos viciosos, são modos – é tanta coisa! São coisas que nos prendem e que no fundo nós temos de deixar para seguir verdadeiramente Jesus. Há uma radicalidade na vivência cristã que nós próprios também temos de experimentar. Um cristão é um cristão. Não é um puzzle de coisas e de valores e de memórias diferentes. Não, um cristão é um cristão.
Está agora nos cinemas este filme de Scorsese, “O Silêncio”, que adapta o belo romance de Shusaku Endo também com esse nome. É um filme muito rico que dá conversas muito interessantes. Mas uma verdade evidente é que um cristão é alguma coisa que não se consegue apagar. Ali no filme é impressionante que nem no pecado, nem sequer na apostasia, quando pelas circunstâncias históricas, pelo medo por tanta coisa nós negamos Deus, Deus nos nega. Deus não nos nega. O cristão acaba por ser alguma coisa irremovível, o elemento cristão é alguma coisa irremovível dentro de nós. Por isso, mesmo aqueles que são apóstatas podem negar a Deus e negar a Jesus mas verdadeiramente continuam à luta com Jesus, continuam naquele combate sem fim com o desejo de Deus.
Um cristão é uma coisa muito séria e para nós a memória dos mártires e a memória de todos aqueles que nos precederam também nos deve dar o alento para não reduzirmos o ser cristão apenas a uma característica, mas fazermos dessa condição um foco de vitalidade que fertiliza a nossa vida, que nos dá uma criatividade de ser que potencia aquilo que somos, que nos rasga à sede e ao desejo de infinito que nos torna buscadores, exploradores de sentido em cada dia. Ser cristão é um acelerador de partículas. Nós já não estamos mais parados, não estamos mais estagnados. Estamos sempre em movimento, estamos sempre em caminho. Jesus passa pela nossa vida e diz “Vem e segue-Me” e esse é o nosso caminho.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III do Tempo Comum
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2017/01/15 - Somos nova criação (homilia)
Nós celebramos no Batismo de Jesus a Sua investidura. Isto é, a tomada de consciência de Jesus da Sua própria missão. Naquelas palavras que se escutam do céu, “Tu és o Meu Filho muito amado, em Ti coloco o Meu amor”, Jesus descobre o caminho, o sentido e o horizonte dos Seus próprios passos.
Estes primeiros domingos, na sequência do final do tempo de Natal, trabalham também em nós a nossa própria investidura. Isto é, o que é que nós somos na história da salvação? Qual é o nosso papel? Qual é o nosso lugar? De que missão estamos nós investidos? Qual é a nossa identidade profunda?
É no fundo esse trabalho identitário, da ordem do nosso próprio ser e da relação que temos com a história da salvação, que hoje também nos é colocado como desafio na Palavra que escutamos. Temos na história da Igreja um modelo claro na figura de Paulo. No arranque da primeira Carta aos Coríntios que hoje nós lemos, a saudação inicial e o início de ação de graças, vejamos o bilhete de identidade de Paulo. Como é que ele se apresenta? Isto é, que consciência Paulo tem de si e da sua missão? Ele diz: “Paulo, por vontade de Deus escolhido para apóstolo de Cristo Jesus, à Igreja de Deus que está em Corinto, aos que foram santificados em Cristo chamados à santidade, com todos os que invocam em qualquer lugar o nome do Senhor Jesus.”
Paulo entende-se a si mesmo como escolhido, eleito por vontade de Deus para ser apóstolo, para ser missionário, mensageiro de Jesus Cristo. Ele pensa a comunidade à qual se dirige, neste caso a comunidade de Corinto, como mulheres e homens que foram transformados por Cristo, foram santificados por Cristo.
Na consciência de Paulo a nossa vida não é só aquilo que nós construímos, a nossa vida não é só o resultado das nossas ações, dos nossos projetos. A nossa vida, antes de tudo, é uma vida modificada, é uma vida transformada pelo próprio Cristo: “Aos que foram santificados por Ele.” E santificados quer dizer colocados de parte para ser especialmente trabalhados, elaborados, modelados por Cristo.
Então, o grande desafio no início deste tempo é cada um de nós descobrir-se em Cristo, descobrir o que é na ação de Cristo, naquilo que Cristo faz em nós. Talvez seja uma surpresa para nós próprios a descoberta que podemos fazer da nossa própria vida. Porque a nossa vida não é só isto que está confiado às nossas mãos, a nossa vida é infinitamente mais preciosa do que aquilo que podemos pensar porque a nossa vida não é só a nossa vida. A nossa vida é este lugar santificado por Cristo, é este lugar que recebeu a vida de Cristo, é este lugar habitado, insuflado, transfigurado pelo espírito do ressuscitado.
Cada um de nós passou a valer muito mais, e é assim que cada um é chamado a olhar para a sua própria vida, com um valor que não deriva apenas de mim mesmo mas com um valor que deriva da ação de Cristo em mim. Eu descubro-me mulher e homem, nova criatura, “nova criação” como S. Paulo também dirá. Um cristão é uma nova criação a partir da Páscoa de Jesus. Então, nós somos novas criaturas, não somos o homem velho, a mulher velha que insiste dentro de nós com as manias de sempre, as dificuldades de sempre, os limites de sempre, esta espécie de círculo vicioso que muitas vezes é o nosso quotidiano. Não somos apenas isso, somos uma realidade transfigurada, transformada pelo próprio Cristo, somos nova criação.
É interessante que Paulo se coloque na linha dos profetas de Israel. Hoje nós lemos o profeta Isaías. É interessante que os profetas de Israel entendiam a sua missão, a sua vocação, como alguma coisa que já aconteceu no seio materno. Isto é, não é numa determinada altura da nossa vida adulta que nos sentimos vocacionados ou competentes, ou desafiados a realizar um determinado serviço. Não, os profetas entendiam a sua vocação e missão como alguma coisa que desde sempre tinha estado no pensamento de Deus e Deus preparou-nos desde sempre.
Queridos irmãos e irmãs, o grande desafio neste início deste ano, neste novo entendimento de nós próprios e daquilo que somos também é um desafio a relermos a nossa história. Se calhar, olhando para a nossa própria biografia nós encontramos coisas certas e incertas, encontramos o bem e o mal, encontramos a incompletude. Mas sobretudo nós somos desafiados a encontrar o movimento da Graça de Deus, o fio da Sua misericórdia, do Seu amor, que são eternos para connosco e que desde sempre nos ampararam. Nós estamos aqui porque o Senhor nos trouxe pela mão, porque na Sua misericórdia o Senhor chamou pelo nosso nome. Mesmo que nós pensemos que estamos aqui porque viemos fazer companhia a alguém ou viemos por uma razão fortuita qualquer, isso não existe. Nós estamos aqui porque o Senhor nos trouxe até aqui, porque Ele nos conduziu até este dia, até esta hora. E com que amor o Senhor está a trabalhar cada um de nós, com que gentileza, com que expressão da caridade divina Deus está a formar, Deus está a modelar, a nossa história. Está a modelar para nós sermos capazes de apontar para Jesus. Qual é a missão do cristão no meio do mundo, no interior da história? É apontar para Jesus e é dizer aquilo que João Batista disse: “Ele é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.”
Mas para nós podermos dizer isto com autenticidade, nós próprios devemos antes ter experimentado na nossa própria vida essa radicalidade de vida nova que Jesus coloca dentro de nós. É porque nós saboreamos, porque nós tingimos as nossas vestes no Sangue do Cordeiro, é porque nós nos atiramos para os pés de Jesus, é porque nós reconhecemos Nele Aquele que nos salva, Aquele que dá sentido à nossa história que nós podemos dizer uns aos outros: “Ele é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, Ele é o Salvador, Ele é Aquele que devia vir.”
Queridos irmãs e irmãos, há uma história para escrever. Nós temos de olhar para o tempo que nos é dado como uma oportunidade para escrever uma história. E uma história que seja, não uma história de maldição, não uma história de fatalismo, não uma história de desistência mas uma história de salvação em que olhamos para Jesus com confiança, com esse salto que é a fé e dizemos: “Senhor, Tu és o Cordeiro que me salva, Tu és aquele que repara o mundo, Tu és aquele que dá sentido à nossa vida sobre o mundo.”
Este tempo, queridos irmãs e irmãos, é por isso de uma grande responsabilidade. Que cada um de nós sinta o seu lugar, o seu papel, a sua missão. E aqui o Senhor atua em cada um de nós. Às vezes eu posso perguntar: “O Senhor atua em mim, um homem carregado de pecados? Não sei nada, não posso nada, o Senhor será que pode falar em mim?” Ora, se o Senhor falou através da burra de Balaão, não vai falar através de mim? Se o Senhor falou através das pedras, através da natureza, através da luz e da noite o Senhor não pode falar através de mim? Cada um de nós sinta que a sua fragilidade não é um obstáculo. A nossa miséria não é um impedimento. O Senhor é capaz, o Senhor pode, o Senhor transforma a nossa vida, o Senhor faz de cada um de nós instrumentos da Sua paz, instrumentos do Seu amor.
Por isso, a grande oração é aquela que hoje é proclamada pelo Salmo 39, que hoje nos é dado como palavra de Deus. O salmista, neste salmo que se acredita composto pelo rei David, diz: “Não vos agradaram sacrifícios nem oblações, mas abristes-me os ouvidos. Não pedistes holocaustos nem expiações, então clamei: aqui estou!”
Queridos irmãs e irmãos, que cada um de nós no seu coração diga isto: “Senhor, abre-me os ouvidos. Senhor, aqui estou para fazer a Tua vontade.”
Pe. José Tolentino Mendonça, Baptismo do Senhor
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2017/01/01 - A gratuidade da vida (homilia)
Ontem fui ao barbeiro e no final despedi-me dos que estavam lá a desejar bom ano, e foi interessante a reação de uma pessoa que me disse: “Olhe, eu do alto dos meus trinta e poucos anos há uma coisa que aprendi: se nós não tornamos os anos bons nunca teremos bom ano.” Eu parei, comecei a falar, claro não podia fazer um sermão ali na barbearia, mas comecei a tentar dizer: “Bem não somos só nós, não estamos sozinhos, há coisas que são a gratuidade da vida que vem ao nosso encontro, temos abrir um pouco o nosso coração.” Tentei dizer isto mas a pessoa estava muito fechada na sua lógica: “Não, se nós queremos pêras temos de subir à pereira, não há hipótese senão o trabalho que nós formos capazes de investir e fazer.”
Eu fiquei a pensar naquela conversa porque, por um lado, ele tem muita razão. É muito fácil nós fazermos votos de bom ano, nós descansarmos a bondade dos nossos anos sobre as costas de um incógnito ou sobre o poder de Deus como se nós não tivéssemos de fazer nada, tivéssemos só de respirar e depois tudo vai acontecer. Nós sabemos que não é assim. Evidentemente os anos tornam-se bons ou tornam-se melhores quando nós temos um projeto, quando nós estabelecemos um compromisso, quando nós como dizia a pessoa da barbearia damos o litro, isto é, quando nós damos tudo o que temos, quando nos tornamos dons, artesãos, fazedores. Mas, ao mesmo tempo, nós precisamos ou não de uma bênção? Nós precisamos ou não de Alguém que está para lá de nós? Nós precisamos ou não de uma experiência de graça? Nós precisamos ou não de Alguém que nos salve? Ou a vida, de uma forma muito prática e comezinha, como se pode falar dentro de uma barbearia, é apenas aquilo que nós conseguirmos fazer, senão estamos fritos, ninguém virá em nosso socorro?
E aqui é que se joga de facto o mistério da fé que é, no fundo, esta compreensão de que há uma missão reservada a cada um de nós. Cada um de nós tem de investir, tem de dar, tem de se entregar, tem de modificar, tem de sacudir as sandálias, tem de se pôr de pé, tem de se entregar à luta; mas, ao mesmo tempo, tudo é graça, tudo é dado, tudo é dom. A vida é conquista – certo, claro que sim e é importante dizê-lo. Mas a vida também é dádiva, a vida também é um mistério que nos visita, a vida também é a graça que se vem sentar a nosso lado, a vida também é aquilo que nós não sabemos explicar mas que acontece e que muitas vezes é a experiência decisiva, muitas vezes é a epifania e o milagre na nossa vida. A nossa vida avança numa linha reta, a nossa vida é uma linha, é. Mas também é feita de ruturas, também é feita de saltos, também é feita disso que só o exercício profundo da confiança nos pode fazer tocar.
Por isso, neste primeiro dia do ano, nós sabemos isto: numa mão temos a força da conquista que temos de fazer, dia a dia, hora a hora, plasmando o tempo, sendo nós os oleiros do tempo; mas a outra mão é a mão que recebe, é a mão que a vida vai encher, onde Deus vai colocar caminhos para vivermos – essa mão que é o milagre, essa mão que nos vai encher o coração de gratidão, essa mão que é o mistério de Deus que vem ao nosso encontro, essa mão que é o amor com que Deus em cada dia de uma forma incondicional nos abençoa.
Por isso, neste primeiro dia do ano nós lemos sempre essa maravilhosa bênção do Livro dos Números, com que muitas vezes terminamos a nossa celebração aqui dominicalmente: “Que o Senhor te abençoe e te proteja, que o Senhor te olhe com compaixão, desça sobre ti o Seu olhar com toda a compaixão e que o Senhor te encha de paz.” Nós precisamos disto, nós precisamos desta salvação, nós precisamos de um Salvador porque nós não somos a chave, a única chave da nossa vida. A vida não se resume àquilo que nós podemos fazer, nós precisamos de ser redimidos nesse encontro com o Outro e com todo o outro. Nós não nos demos a vida e não nos damos a vida, a verdade é essa. É na conjugação, é na rede, é na roda, é na dança que a vida surge, que as coisas mais importantes rebentam, nascem, florescem. E por isso, temos de abrir o nosso coração e precisamos sentirmo-nos abençoados.
É claro que quando uma pessoa me diz “Olhe, eu só conto com o meu esforço, não conto com mais nada.”, eu já tenho poucos cabelos e por isso sei também o que essa frase significa. Não é apenas uma tomada de posição ideológica, é uma ferida evidentemente. Uma pessoa que só conta com o seu esforço é uma pessoa que não está completamente feliz, que se sente só, que sente a ferida da solidão, sente o peso das coisas que não aconteceram, deseja mais mas não quer dizê-lo, não quer confessá-lo. E muitas vezes é essa a nossa situação, endurecemos, enrijecemos numa determinada posição porque alguma coisa nos dói ou porque muita coisa nos dói. E então, preferimos desacreditar. Mas nós precisamos de uma bênção, e a maior bênção é aquela que Jesus nos traz, aquela que Jesus é.
Jesus é o Filho de Deus que nasce homem, que toma a nossa condição, toma a vida de qualquer um de nós com uma missão, dizer-nos isto que S. Paulo diz tão bem na Carta aos Gálatas que hoje proclamamos: “Jesus faz-Se homem, para dizer que o homem é filho de Deus.” Para dizer que cada um de nós não é escravo, é filho. Isto é, sobre cada um de nós repousa a vida de Deus, o sonho de Deus, o projeto de Deus, a misericórdia de Deus, o amor de Deus de uma forma incondicional. E, como diz Paulo: “Se eu sou filho, também sou herdeiro.” Então, eu vou olhar para a vida não como uma madrasta que me rouba tudo, que me rouba os sonhos, que não me deixa ir mais longe, mas eu vou olhar para a vida como herdeiro. Vou sentir que o mundo é também construído pelas minhas mãos, mas o que eu recebo do mundo é incalculável, o que nós recebemos da vida é incalculável de bom, de alegre, de maravilhoso, de inexplicável. Nós somos herdeiros fundamentalmente. Claro que somos inventores, descobridores, mas verdadeiramente somos herdeiros porque quando nos sentamos à soleira, no fim das nossas conquistas importantes, nós percebemos que as coisas mais importantes – o ar que respiramos, o vento que sopra, o sentido do universo, estarmos aqui – não são coisas que verdadeiramente dependem de nós. Por isso sentimo-nos abençoados e é importante que esta verdade também nos cure porque nós precisamos de ser reconciliados. Apanhamos pancada aqui, cacetada ali, ferida acolá e depois a vida parece uma coisa cada vez mais estreita que ou fazemos ou nada acontece. Não, há coisas que não fazemos, há coisas que recebemos, há coisas que nos são dadas e a mais bela coisa que nos é dada é esta certeza de que somos filhos e que somos filhos amados de Deus.
Os pastores, quando olharam para o Menino da manjedoura, saíram a contar aquilo que viram e ouviram, Maria guardava tudo isto no seu coração e meditava em cada uma das palavras dos factos que ela assistiu. Nós também no Natal, que agora já vai caminhando para o fim como tempo litúrgico, o que é que levamos daqui para contar? O que é que nós vivemos, o que é que nós vimos, o que é que nós tocamos acerca do mistério da vida que nós vamos conservar no nosso coração e meditar nisso ao longo do ano? O que é que nós vamos contar, partilhar uns com os outros daquilo que vimos? Um Menino deitado numa manjedoura o que é que é para nós? O que é que isso significa?
Nós estamos a celebrar a Jornada Mundial de Oração pela Paz. São já 50 jornadas e, quando elas começaram, o Papa Francisco cita-o na sua mensagem, o Papa Paulo VI disse: “Agora para a nossa geração é muito claro: só há um caminho para o progresso, só há um caminho para o bem-estar na terra, esse caminho é a paz.” Aquilo que parecia claro há 50 anos hoje também para nós é claro. Mas, não é claro para nós todos ou não é claro sempre. A verdade é que a paz continua por cumprir, continua por realizar. Não só no nosso mundo com toda as convulsões, as aberrações, o mal, o mistério do mal perfeitamente injustificado à solta, a fazer vítimas, as atrocidades de que nós somos testemunhas e “vemos, ouvimos e lemos e não podemos ignorar”.
Mas ao mesmo tempo também a responsabilidade de cada um de nós. Dostoievski dizia: “Nós somos responsáveis por tudo diante de todos.” Deste clima de guerra, de medo também nós somos cúmplices, somos responsáveis. E como é que invertemos esta lógica? Transformando o nosso coração. Por isso, a mensagem do Santo Padre sobre a cultura da não-violência, sobre a atitude da não-violência é um desafio muito grande. Ele dá como modelos a Madre Teresa de Calcutá, o Gandhi, o Luther King, todos aqueles que fizeram grandes transformações pelas vias da paz, usando as armas do diálogo, a força que a paz, que parece frágil, é capaz de ter.
Às vezes também nós resolvemos a nossa vida de uma forma violenta, fechando a porta, dizendo a palavra, rompendo. E se calhar aquilo que seria mais fecundo, mais evangélico é de facto a cultura da não-violência. Nós precisamos erradicar do nosso coração a violência, trabalhar isso, porque violentos somos todos. Esse trabalho interior, essa pacificação, essa transformação dos maus sentimentos, da agressividade, do rancor, do ressentimento, mesmo da violência física isso tem de ser vencido dentro de nós, temos de fazer um trabalho interior para que a paz venha aos nossos corações. A paz que Jesus nos ensinou, Ele que viveu até ao fim, que deu a sua vida, que teve aquela morte e sempre de uma forma pacífica: “Não são vocês que me tiram, sou eu que dou.” Esta atitude de Jesus é para nós uma semente, um modelo, um paradigma de uma vida a ser vivida.
Hoje celebramos a solenidade de Santa Maria Mãe de Deus. Maria é para nós um modelo de vida. Aquela rapariga da Galileia tem tanto a ensinar-nos nas atitudes fundamentais da sua vida, na capacidade de dizer “Sim”, um sim a uma história muito maior do que ela, que jamais ela poderia conquistar, que jamais ela poderia fazer e ela abre as portas do seu coração a isso, assumindo que isso tem um custo, que isso se paga também em sofrimento, em compreensão, em solidão – ela assumiu essa história. E depois, a fidelidade que Maria vive em cada momento a essa história. Ela deve muitas vezes ter olhado para Jesus e não ter entendido nada, mas guardava isso no seu coração, guardava imagens, guardava palavras, pedindo a Deus que desse um sentido àquilo que ela via e não entendia, sentindo que tinha ela própria também de fazer um caminho para descobrir Jesus. Maria não é aquela que entende tudo logo, não, ela terá de ter feito um caminho duríssimo de compreensão progressiva do mistério de Jesus. É também esse caminho que nós fazemos, um caminho progressivo de compreensão do mistério que nos visita.
Que Maria Santíssima seja, neste ano de 2017 em que celebramos os 100 anos de Fátima, também aquela que acompanha cada um de nós. Que celebrar os 100 anos de Fátima seja também para nós uma ocasião para redescobrirmos a figura de Maria e que no silêncio desta mulher nós aprendamos os caminhos da nossa alma, os caminhos interiores do nosso coração.
Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus
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