Congratulo-me convosco porque, com o convite para partilhar convosco esta reflexão, estais a tornar realidade o desafio que o Evangelho nos lança à novidade, a romper com o “sempre se fez assim”, desafio tão importante para a Igreja sinodal que desejamos construir juntos.
É muito significativo que o Evangelho de hoje decorra na Galileia, lugar que, por oposição a Jerusalém, tinha fama de influências pagãs e pouco religiosas. É importante recordar que “tudo começou na Galileia”. Contudo, Lucas dará grande importância à presença de Jesus em Jerusalém. Para Lucas, Jesus é o profeta definitivo e nenhum profeta pode evitar Jerusalém. Encontramos Jesus a dar uma grande notícia na sinagoga. A notícia de um tempo novo em que todos cabem na mensagem de acolhimento e salvação de Deus.
Serei muito objetiva e concreta relativamente à parte do evangelho que mais me convida à reflexão. Ei-la: O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano da graça do Senhor.
A primeira reflexão que me ocorre é pensar no quão rapidamente a Boa Nova de Jesus se espalhou. O Cristianismo encontrou um Império que de modo algum valorizava os fracos, os pobres, os doentes… Não existia nenhum “Estado Social”.
Os cristãos não tinham, como país, terra alguma, apenas uma identidade – que a ninguém parecia identidade – e um grande número de paradoxos (porque o cristianismo é um paradoxo): um homem que é Deus; alguém que sofre a morte mais degradante para um romano, volta à vida e é maior do que César… Essa fé que o cristianismo então proclamava com grande convicção, conferiu-lhe um inacreditável poder que, com o passar do tempo, se tornou tão grande que inclusivamente reis, imperadores e até papas dele se apropriaram.
Esse é o grande paradoxo. Uma fé que se tornou poderosa em virtude de ter como símbolo alguém totalmente impotente e que foi a vítima por excelência.
Esta ideia de que os últimos serão os primeiros conseguiu estabelecer-se no pensamento universal. Na sua origem, as grandes revoluções procuraram precisamente isto: que os últimos contem, sejam visíveis, tenham voz… Ser oprimido, o último, o marginalizado, é uma fonte de poder que, paradoxalmente, se pode virar não apenas contra os cristãos, mas contra todas as pessoas em geral.
Por que razão se pode virar contra todos um princípio evangélico universal se nós, os cristãos, não nos comportamos como cristãos?
Procurarei responder em três pontos (embora pudessem ser mais) que são presença frequente no magistério do Papa Francisco e que se encontram interligados:
1/ Hábito:
Porque nos estamos a habituar ao que é injusto, ao que fere a dignidade humana, à desigualdade e à violação dos direitos humanos.
Em última análise, habituarmo-nos a tudo isto significa a morte da nossa consciência crítica diante do sofrimento do mundo, que é o sofrimento de pessoas concretas. Significa adotar uma atitude de resignação (que é a mais contrária ao cristianismo), de fatalismo diante da realidade social, económica e politica.
Daí à passividade é quase imediato. Passar ao largo, não olhar para determinadas realidades porque acreditamos que não podem ser mudadas, torna-nos num certo sentido passivos e cúmplices por não tentarmos mudá-las.
Olhar para estas realidades não significa limitarmo-nos a olhar para elas, mas antes permitirmos que elas nos firam e, desse modo, ter como centro da nossa pessoa um coração que se indigna quando a injustiça se instala na vida das pessoas.
A carne de Cristo é concreta, não é abstrata. A carne de Cristo, hoje, são os corpos e as vidas dos que sofrem
2/ Globalização da indiferença:
Quando ignoramos os outros, não os abandonamos apenas à sua sorte, mas demonstramos igualmente uma forma extrema de individualismo que, quando muito, se limita a aproximar-nos apenas daqueles que mais próximos estão das nossas vidas.
A indiferença blinda-nos emocionalmente, o que significa que nada do que acontece fora do nosso círculo pessoal nos afeta.
A sua situação, a sua dor, a sua frustração, nunca será a minha situação, a minha dor, a minha frustração. A indiferença significa fechar-me em mim mesmo por desejo e decisão própria. É a experiência da autorreferencialidade no mais alto grau.
A indiferença que vivemos não se expressa concretamente apenas contra os seres humanos, embora os afete. A indiferença que vivemos é também ecológica, emocional e, não o esqueçamos, igualmente espiritual. Vivemos alheados da Palavra de Deus, indiferentes às suas variadas e profundas manifestações de amor. A nossa indiferença para com Deus é, em última análise, a grande indiferença para com os outros, uma vez que, sem Deus na nossa vida, como poderemos proclamar o ano da graça do Senhor, que é, na verdade, o que nos leva a cuidar e a ser sensíveis aos outros?
3/ Sair de si:
É uma atitude diante da vida, uma forma de ser e de estar no mundo. Descentramo-nos dos nossos próprios problemas para nos abrirmos aos outros, ao mundo. Não é uma negação de nós mesmos, mas a superação daquela autorreferencialidade que mencionei anteriormente.
Sair de si não implica apenas conhecer outros lugares, línguas, pessoas… Significa também conhecer outras categorias intelectuais, emocionais, afetivas e também espirituais.
Sair de si é o mais próximo de conseguir reivindicar a forma de um recipiente capaz de acolher aquilo que é distinto, aquilo que é diferente, aquilo que é enriquecedor. É saber filtrar a dor e o sofrimento, as carências dos outros, para poder procurar soluções, porque elas existem.
Sair de si é a melhor forma de acabar com a claustrofobia existencial e, desse modo, manifestar o desejo de conhecer a alteridade, a realidade completa do outro e, por outro lado, narrar, comunicar aquilo em que essa realidade completa do outro nos afeta.
Sair de nós mesmos significa tornar realidade a mensagem da Boa Nova e recordar-nos e dizer ao mundo e aos outros que temos a certeza de que O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano da graça do Senhor.
Cristina Inogés Sanz, Capela do Rato, 26 de janeiro de 2025 (III Domingo do Tempo Comum)
Nota biográfica
Cristina Inogés Sanz nasceu em Saragoça, Espanha. Leiga católica, é teóloga pela Faculdade Protestante de Madrid e investigadora nos departamentos de Teologia Fundamental e História da Igreja daquela faculdade. Membro da Comissão Metodológica do Sínodo dos Bispos sobre a Sinodalidade 2021-2024, coordena e apresenta o programa “Mulheres escondidas na história”, na TVE2. Os abusos na Igreja – especialmente o abuso de poder na vida religiosa – e a escuta das vítimas são áreas a que se tem dedicado com particular afinco. Atualmente é colaboradora regular de várias publicações, entre as quais a Vida Nueva e Sete Margens, além de autora de vários livros, entre os quais o recente Beguinas, Memoria Herida (Beguinas, memória ferida), sobre a experiência medieval comunitária e autónoma das beguinas. Com os seus contributos tem ajudado a Comunidade da Capela do Rato a preparar o processo sinodal. Foi uma das mulheres que o Papa Francisco convocou para a última Assembleia Sinodal (outubro de 2024), com direito a voto.
