No presépio deste ano, revisito as memórias de minha infância, no interior da serra algarvia. É também uma forma de partilha, com um traço biográfico. A primeira representação do presépio que tenho memória era a colocação da imagem do Menino Jesus num trono, em forma de pirâmide. A preparação do Natal começava com a sementeira das searas pela Imaculada. Em tigelas, pratos velhos, latas de conserva colocava-se sementes: trigo, centeio, cevada, aveia, ervilhas (griséus). E regava-se. Todos os dias se olhava as cearas esperando a germinação das sementes. Quando estas já estavam germinadas, umas eram expostas ao sol para crescerem mais rapidamente, outras colocadas no escuro para ficarem com uma cor mais esbatida.

Foi uma epopeia encontrar o trigo para estas searas. Procurei nos habituais supermercados, e nada; no Horto, de Campo Grande, e nada. Mas onde? Talvez numa loja de sementes? Mas onde? Fora de Lisboa. Em Lisboa não há trigo? Talvez no Celeiro, alguém me disse. Mas no Celeiro perto de casa não havia. Só no Celeiro dos Restauradores. Lá fui, lá encontrei. Comprei cinco saquinhos de trigo integral para germinação. Já tinha arranjado as bases, umas «latinhas», do Leroy Merlin, douradas com spray adquirido no El Corte Inglês. Semeei as sementes, não a 8 de dezembro, mas a 9. Mas as sementes não germinavam. Ou não germinavam ao ritmo da minha expetativa. Creio que as ia alagando, em meu desejo que germinassem e crescessem rapidamente. Até pensei arranjar adubo… As sementes lá germinaram, lentamente. Na germinação, as raízes empurravam-se umas às outras para crescer. Por fim havia searas, e crescidas. Que contentamento o meu!! Que conquista! Consegui cumprir-me como semeador.

Era minha intenção inicial ir buscar laranjas à nossa horta, onde há tantas, a cair, sem que ninguém as queira. A laranjeira, árvore de fruto típica do barrocal algarvio e de tão boa qualidade, está hoje em regressão, dando lugar, de novo, à alfarrobeira. Cresci com o sabor delicioso da laranja a inundar-me as pupilas gustativas. Um saquinho de laranjas era a oferta habitual de meus pais a quem nos visitava nesta altura do Natal. Acabei por não ter tempo de descer ao Algarve. Arranjei laranjas (compradas) na frutaria que fornece a nossa casa paroquial, gerida por uma família paquistanesa. Lá combinei com o Joel, um dos jovens donos, que queria levantar uma caixa de laranjas sexta pelas 14h. «- Não, disse ele, porque a essa altura vamos rezar à mesquita. Passe por cá pelas 17h. Ah, é para a casa dos padres!!» É que somos bons consumidores de fruta. E o Joel lá me foi levar a caixa de laranjas, alegre e prestável, como o faz sempre. Sem pensar muito, descobri que neste presépio há mãos muçulmanas. E talvez ateias também.

Nas vésperas de Natal, era necessário arranjar um trono na Capela. Mas como? Com quê? No presépio tradicional da serra algarvia, o trono era feito com as medidas de alqueire para cereais, invertidas e colocadas em cima umas das outras, de modo a fazer uma pirâmide, ou uma escada, com três andares. Lá se foi reunindo os materiais: tábuas, serra, cola, arames, metro, cassetes e fita cola… Muitas mãos, muitas cabeças, muitas sentenças, projetos feitos e logo desfeitos, porque o espaço é pequeno, porque as medidas não estavam corretas, porque os materiais eram frágeis e não aguentavam o peso… Muita imaginação, algum engenho… Eu já a pensar que a minha linda a ideia estava difícil de concretizar. Onde me meti… Por fim lá se conseguiu uma engenhoca com três degraus, em forma de trono. Alguém trouxe de casa uns panos bordados, outros foram encontrados no fundo das gavetas da sacristia.

Nas casas da serra algarvia, a imagem do Menino Jesus tinha, por vezes, fabrico muito artesanal. Não fosse a roupinha bonita com que era vestido, podia ser muito feinho. A imagem do nosso presépio é um meio termo, nem muito bonito, nem muito feio. Tem algum traço artístico, sem grande requinte. É uma imagem do século XIX adquirida na OLX em tempos de pandemia. Colocamos o Menino em seu trono. Em sua sobriedade e despojamento, o presépio da Capela inspira-se nos presépios tradicionais da serra algarvia. Presépios sóbrios, humildes, feitos com recursos caseiros, com materiais que se tem à mão: o alqueire, as searas, os panos rendados, as laranjas… O Menino era iluminado com um candeeiro de azeite (de cobre, com três bicas, que servia também para os velórios em casa). O candeeiro que ilumina o presépio na Capela, diga-se, é do IKEA.

Em tempo de lógica bélica, de corrida aos armamentos, de desenvolvimento da indústria militar, de invasões, atentados, linhas da frente, bombardeamentos, consola-nos ouvir uma linguagem de paz. É a que nos é anunciada nesta noite de Natal: «Todo o calçado ruidoso da guerra e toda a veste manchada de sangue serão lançados ao fogo e tornar-se-ão pasto das chamas. Porque um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado». Este «Menino que nasceu para nós, este filho que nos é dado» é Jesus, o «Príncipe da Paz», anunciado pelo profeta Isaías e celebrado pelos coros celestes na noite de Natal: «Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados». No trono colocamos a imagem do Deus Menino, desse Deus desarmado que se oferece a nós vulnerável e exposto ao nosso cuidado, para nos reconciliar e pacificar. Para nos desarmar. Para afastar do íntimo dos nossos corações todo o ruído de guerra e de violência. E somos habitados por tantos ruídos guerreiros a necessitar de pacificação. A paz brota sempre de corações pacificados; é dom de Deus acolhido por corações pobres e desarmados. Que o Menino Jesus seja Príncipe da Paz em nossos corações, antes de mais.

O profeta Isaías sonha um rei futuro cujo «poder será engrandecido por uma paz sem fim». Uma paz que se alarga a toda a criação, numa reconciliação de criaturas «inimigas», pacificando vítimas e agressores (predadores): «Então, o lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito» (Is 11,6). Entronizando o Menino no nosso presépio, queremos expressar que o reino dos céus é daqueles e daquelas que aceitam ser como as crianças, em seu encanto, em sua alegria, em sua imaginação e fantasia, em sua verdade inocente, em sua confiança incondicional. Assim queremos nós ser, como crianças. Aceitando que o modo próprio de Jesus reinar é amar e servir, dando vida, dando a própria vida num amor incondicional, até ao fim.

Nos degraus do trono, onde se pode pressentir alguma influência indiana, colocam-se as searas e as laranjas. As searas simbolizam a oferta dos campos acabados de semear. Colocar as searas no presépio era uma forma de pedir bênção para as sementeiras, esperando abundantes colheitas, promessa de pão repartido. As laranjas, fruta da época, simbolizam o dourado próprio da realeza do Deus Menino. Nas searas e nos frutos colocados no presépio fazemos oferta da inteira criação, do nosso trabalho, das nossas produções e criações, do nosso quotidiano, da nossa própria casa, das nossas coisas, aquelas que precisamos para viver e aquelas excecionais que só usamos em tempo de festa. Peçamos a bênção do Deus Menino para todas as criaturas. Para as sementeiras que são feitas nos vastos campos do mundo, com fadiga e engenho. Para que os campos sejam protegidos das tempestades, da destruição, e produzam abundante fruto. E a mesa do nosso mundo se alargue a todos. E haja pão a matar a fome.

Toda a criação rejubila com o nascimento do Menino, encontro entre o Criador e as criaturas. Canta o Salmo: «Alegrem-se os céus, exulte a terra, ressoe o mar e tudo o que ele contém, exultem os campos e quanto neles existe, alegrem-se as árvores das florestas». No sinal do um Menino recém-nascido, envolto em panos (fraldas), celebramos o encontro de Deus connosco, com cada um e uma de nós. Com toda a nossa vida que continuamente renasce pelo dom do seu amor.

Pe. António Martins, Homilia na Eucaristia da Solenidade do Natal do Senhor – Missa do Galo