Queridos irmãs e irmãos,
É tão raro isto que nós escutamos nesta página do Evangelho de São Lucas acerca dos pastores: eles foram e viram; buscaram e encontraram… e voltaram louvando o Senhor, porque tocaram com a sua mão aquilo que lhes havia sido prometido.
Esta completude, este sentimento de uma justeza, de uma inteireza, de que é mesmo assim, de que não houve palavras vãs, não houve fracasso, não houve falhanço, não houve engano, não houve coisas ditas que desiludiram – mas que há uma exatidão, uma precisão – é alguma coisa que depois, na História, nós não experimentamos.
Se nós pensamos na História do século XX, o chamado século breve, uma História de feridas, crateras, desencontros; se nós pensamos neste primeiro quartel do século XXI, encontramos sobretudo esta dificuldade de tocar a paz, de escutar o apelo à fraternidade, de condividir valores, esperança… de pensar um mundo onde todos tenham lugar…
Esta nossa dificuldade de hoje é uma dificuldade de sempre, porque as nossas sociedades têm de ser pensadas…
Como se pensa a vida de mulheres e homens sobre este mundo, conjuntamente com todas as criaturas?
É interessante que a Bíblia não é apenas um livro religioso, é também um livro que pensa a organização das sociedades – e as pensa de uma maneira esperançosa, não pessimista; e uma instituição, um paradigma que na tradição bíblica se encontrou foi a de que, de 49 em 49 anos, havia uma grande transformação social que garantia que de facto se podia recomeçar. Recomeçar!
São Paulo na Carta aos Gálatas diz: “Tu já não és escravo, tu és filho; e se és filho, és herdeiro.”
A experiência histórica que nós fazemos – e que os antigos fizeram – é o contrário: tu já não és filho, tu és um escravo; e tu não és nada herdeiro, tu és um deserdado da sorte…
Como é que se recompõe a realidade? No fundo, como é que se faz a experiência de salvação?
A experiência de salvação é uma experiência apenas meta histórica, para lá da história? Ou o resgate, a redenção é uma experiência que nós podemos fazer aqui agora – e podemos fazer juntos – não apenas sozinhos?
Então de 49 em 49 anos, tocava em Israel o yobel, de onde vem a palavra jubileu e o e o yobel era a declaração de um Ano Santo – Santo quer dizer à parte de tudo, que não tem nada a ver com o resto.
É um ano que não tem nada a ver com o resto – e não tem nada a ver com o resto, porque a Terra repousava; os animais eram libertos das suas cargas habituais, para poderem ganhar fôlego, os escravos eram libertos; os prisioneiros eram tirados dos cárceres; as dívidas eram perdoadas; os irmãos voltavam às suas terras – e era a possibilidade de voltar o coração para Deus, lembrando de novo a profissão de fé essencial.
E este movimento, cíclico, na história de Israel era aquilo que lhe permitia fazer um caminho – e dizer: a nossa história não é apenas uma soma de dias e de noites, a nossa história é uma história de esperança, é uma história de salvação, porque é uma história onde a palavra reversibilidade e recomeço existem verdadeiramente.
Se a história é irreversível, é uma história sem redenção; se não há possibilidade de recomeçar, a vida torna-se um inferno, torna-se uma escravidão; não uma experiência de filiação, de promessa e de herança.
A Igreja, o cristianismo, pegou na tradição dos anos jubilares, dos Anos Santos: e recentemente, em vez de ser de 50 e 50 anos, optou-se por fazer de 25 em 25 anos; para permitir verdadeiramente uma remexida, uma recomposição – antes de tudo, nos nossos corações… e, depois, no coração da vida social, da vida coletiva, das comunidades humanas.
Queridos irmãs e irmãos, este é o ano da recomposição, da reconfiguração das nossas vidas: é um ano especial, é um ano à parte; é um ano para viver não simplesmente com a lógica habitual.
Não para viver como causa-consequência da História que nós conhecemos; é um ano para ser disruptivo; é um ano para romper; é um ano para instalar dentro, como antídoto contra o pessimismo, que é a grande chaga da cultura contemporânea, o niilismo – o antídoto chama-se Esperança… e uma Esperança que não engana.
Então, este ano é um ano para viver com a grande responsabilidade da Esperança.
Temos de viver com a Esperança; o bordão da Esperança tem de caminhar connosco, em cada dia.
E é um ano para fazer gestos; cada um de nós é chamado a pensar em alguns gestos na sua vida, para fazer neste Ano Santo, que santifiquem este Ano Santo… que digam a nós próprios: este Ano é um ano diferente; para o ano, eu não faria isto, mas este ano é um ano diferente! Declaro este ano um Ano Santo da minha vida.
E o Ano Santo é uma Peregrinação, que nós vivemos como uma Peregrinação; podemos e somos chamados a fazer peregrinações neste ano – e a passar pela Porta Santa; mas as portas santas, antes de tudo, são aquelas dos corações, aquelas que levam aos irmãos, que levam ao mundo, que levam à beleza; que levam ao bem; que levam à verdade; essas são as portas santas que nós temos de atravessar.
O Papa Francisco, na Carta que escreve para este Dia Mundial da Paz, primeiro dia do ano, diz que há três coisas políticas pelas quais convida todos os cristãos a baterem-se publicamente – e nós somos chamados a afirmar isso nas nossas sociedades, e são três coisas muito concretas em que nos temos de nos empenhar:
Primeiro, é o perdão das dívidas aos países mais pobres: é preciso dizer isso, os países mais pobres países nunca vão pagar as suas dívidas – e as dívidas são um bloqueio à sua forma de desenvolvimento; os países mais ricos têm de encontrar formas criativas (e têm encontrado) de substituir aquelas dívidas por outras coisas, que favoreçam globalmente um mundo mais equilibrado, um mundo menos desigual.
Então, a posição dos cristãos é chamada a exprimir-se, pedindo a todos os governantes da Terra (e aos nossos) que também pensem nisso.
A segunda coisa muito concreta é a luta contra a pena de morte – que num tão grande número de países ainda vigora.
Este é também um ano para dizer que a pena de morte não é uma solução; e que nós acompanhamos e percebemos a realidade dos cárceres; sabemos que tem de haver uma justiça, que a justiça tem de acontecer, que ela faz parte do caminho das nossas sociedades; que tem de haver uma justiça reparativa – mas que, ao mesmo tempo, a pena de morte é um conceito que não faz sentido – e que humanamente é contrário aquilo que é a Vida, que nós temos que defender desde a conceção até à sua morte.
E o terceiro elemento, assim muito concreto, que o Papa pede aos cristãos também para dizê-lo publicamente durante este ano é que haja um desarmamento – e que o dinheiro investido na construção de novas armas sirva para criar um fundo de combate à fome e ao cuidado da Terra; às feridas do Homem e às feridas da natureza.
Isto como modelo da construção das nossas sociedades.
E depois o Papa diz duas coisas para nós, para cada um – porque há mudanças culturais, há mudanças estruturais – e há as mudanças pessoais:
Uma mudança, uma conversão pessoal, é sentirmo-nos todos devedores; não relativamente ao que os outros nos devem; mas sentirmo-nos, nós, devedores: em relação à vida, em relação ao bem dos outros, em relação ao que recebemos;
Esse sentimento da responsabilidade de tudo o que recebemos; a Adília Lopes dizia muitas vezes “Eu sou uma obra dos outros”.
É verdade, nós somos uma obra dos outros.
E ela também dizia: “Há milagres; não há só truques, há milagres” – e o grande milagre é este: esta capacidade de construir uma fraternidade, que passe antes de tudo pelo reconhecimento do dom que eu recebo do outro.
Este é o primeiro aspeto.
E o segundo aspeto que o Santo Padre nos oferece para esta recomposição pessoal é desarmar o coração.
Só haverá paz verdadeiramente no mundo quando eu desarmar o meu coração; o nosso coração é o último lugar armado do mundo – e é aquele que primeiro tem de ser desarmado.
Então, este desarmar o coração, este aceitar a vulnerabilidade, aceitar a própria fragilidade, reconciliar-se com ela (com a sua e com a dos outros), este ganhar Esperança – é, de facto, a força transformadora do mundo.
A Bula que o Santo Padre Francisco escreveu para nos acompanhar este Ano Santo chama-se A Esperança não desilude.
Queridos irmãs e irmãos, é um ano que parece uma utopia, que parece irrealizável – e é, é verdade! É uma utopia, parece um sonho, parece um idealismo parece que não vai dar em nada… é, é verdade! Pensando, nós dizemos: bom, isto cheira-me que não vai levar a bom porto…
Mas é porque parece irrealista que é um Ano em que contamos com a ajuda de Deus, em que nos voltamos para Deus, em que pedimos a Sua força, pedimos o Seu auxílio, para transformar aquilo que é impossível em possível…
Deus não trabalha o possível, Deus trabalha o que nós, com fatalismo, declaramos impossível…
Então a Esperança vem ao nosso encontro, para nós fazermos deste ano um Ano que seja uma alavanca – porque a História precisa de uma alavancagem – e essa alavancagem é o Ano Santo, é um ano para tornar Santo o tempo: o Tempo é um templo.
O Tempo é um templo.
Que cada um de nós se empenhe verdadeiramente em viver este ano, em fazer deste ano, um Ano para calçar as sandálias de peregrino, as sandálias de vento, e arriscarmos caminhos novos, caminhos maiores do que aquilo que neste momento nós conseguimos ver.
Que Maria, nossa Mãe, Mãe de Deus seja a estrada e a Estrela.
Cardeal D. José Tolentino Mendonça, Homilia na Eucaristia da Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus