Comentário do Dr. Juan Ambrosio à Palavra de Deus do III Domingo do Advento, durante a celebração da eucaristia na Capela do Rato, no dia 15 de dezembro de 2024.

Seis breves notas.

A primeira, para dizer um obrigado ao desafio e convite que esta comunidade me dirige , na pessoa do padre António Martins, e que eu aceitei com gosto, porque este é, de facto, um momento importante e decisivo da vida das comunidades cristãs dentro desta dinâmica sinodal.

Nós não podemos ter estado num processo que começou em 2021, que não acabou agora em 2024, que continua, e não ousar coisas novas, não tentar a novidade, não tentar alterar – não faria sentido. As comunidades cristãs são chamadas à ousadia do novo e da criatividade, e podermos ser protagonistas disso. É, de facto, importante. Por isso, a minha primeira palavra de agradecimento ao convite-desafio que esta comunidade me dirige.

A segunda nota, muito rápida, para dizer algo que o padre António já disse: não venho aqui dar uma aula, nem partilhar uma reflexão do ponto de vista estritamente teológico. O que venho aqui fazer é partilhar convosco o impacto que esta palavra tem na minha vida, o impacto que ela provocou na preparação deste momento; mas deixem-me dizer também: o impacto que a minha vida provocou nesta palavra.

Porque julgo que o que se pede em momentos destes é esta dupla direção. Ou seja, como é que a palavra pode iluminar a vida, mas como é que a vida pode iluminar a palavra? Como é que a vida concreta, que cada um de nós vive, pode ajudar-nos a entender melhor esta palavra, a entender melhor o desafio da fé, a entender melhor as interpelações que o Senhor nos faz hoje, aqui e agora? E às vezes julgo que nos esquecemos – eu, pelo menos, às vezes esqueço-me desta segunda direção, de deixar que a vida ilumine a palavra. São esses dois movimentos que tentarei partilhar convosco.

A terceira nota é para dar conta deste terceiro domingo de Advento, que é o domingo Gaudete. O domingo que quer celebrar a alegria, que quer pensar a alegria, que quer rezar na alegria. Que alegria é essa? Já nos foi dito. Mas ela é essencialmente porque celebramos a encarnação e porque nos estamos a aproximar desse momento de celebração que é a encarnação. Não é que ela aconteça no dia 24; já aconteceu, está a acontecer sempre. Mas é bom pararmos e pensarmos e celebrarmos esse momento. E esse é, de facto, o grande motivo da alegria.

Alegria que se vê e sente

Esta alegria pontua muito este pontificado. Se nós olharmos para os textos do Papa Francisco, veremos que a categoria da alegria está presente em muitos deles. Dois dos principais textos, Evangelii Gaudium e Amoris Laetitia, apesar de as palavras serem diferentes, gaudium e laetitia, referem-se à alegria do Evangelho, à alegria do amor. E não posso deixar de reagir ao que disse o padre António: esta alegria que nós temos é uma alegria profunda, não pode ser uma alegria superficial. Quando recebemos estes textos, gaudium é a alegria profunda e laetitia é a alegria mais superficial.

Quando pegamos nestes textos, podemos estranhar: como é que o Evangelho é uma alegria profunda e o amor é uma alegria superficial? Isto fez-me confusão quando estes textos vieram para a nossa mão e perguntei a um colega nosso, da Patrística, porquê optarem por laetitia e não também por amoris gaudium? E a resposta foi muito interessante: porque muitas vezes a laetitia é utilizada como a visibilização, a concretização da gaudium. Ou seja, elas não existem separadas. A alegria profunda tem que ser visibilizada, concretizada. Por isso, que esta alegria profunda, que é a celebração do nascimento do Senhor Jesus, se faça sentir epidermicamente também. Que seja traduzida epidermicamente, que seja traduzida visivelmente. Que nós possamos verdadeiramente, mesmo nas coisas superficiais, marcá-las com essa alegria profunda.

E não olhemos a alegria profunda versus a alegria superficial. Mas olhemo-las como complementariedade. Esta alegria profunda tem de ser testemunhada nas coisas banais, quotidianas, da nossa vida.

A verdade é que quando nós pensamos na alegria, e pensamos nos motivos da alegria, de sermos cristãos, a verdade é que às vezes caímos na conta de que a perceção que as pessoas têm do cristianismo é que ele é algo cinzento e têm um olhar desconfiado sobre a condição humana: “do mundo, do ser humano, não pode vir nada de bom.” Muitas vezes damos por nós a pensar nisto assim.

Não me levem a mal, partilho-o porque eu disse que ia partilhar a minha sensibilidade: cantámos agora, no momento penitencial, esse canto que cantei muitas vezes e que agora tenho uma enorme dificuldade em cantar: “Toma a nossa vida de pecado e dor.” A minha vida tem pecado e tem dor, mas não é de pecado e de dor. A minha vida, quando penso nela – e julgo que a imensa maioria dos que estamos aqui, quando pensamos nela – é positiva. Tem coisas boas, mais coisas boas do que más, tem mais bondade do que pecado. Por isso a minha vida não é de pecado e dor, ainda que tenha pecado e dor

Alegria que brota do amor ao mundo e ao ser humano

Vivemos o Domingo Gaudete, mas a verdade é que há uma sensação de que o cristianismo é muitas vezes cinzento e olha desconfiado para a condição humana. Não há que ser ingénuos. Sabemos como muitas vezes o mundo tem coisas que nos deixam terrificados – estamos a assistir a elas – e, como muitas vezes, a condição humana é capaz de coisas muito más.

Esta perceção, muitas vezes, é verdadeira, mas outras tantas é injusta. E destaca este perigo de que o cristianismo, por não apostar no mundo, por não apostar na condição humana, ir correndo o perigo – deixem-me dizer assim, mas é o que eu sinto – de se tornar irrelevante, de não ser capaz de ser verdadeiramente massa que transforma, com propostas concretas para a construção da sociedade e do mundo.

Parece que para ser cristãos a sério teríamos de fugir do mundo e abandonar a condição humana. Não é isso que as leituras nos dizem. Não é isso que este domingo nos propõe.

Quarta nota, sobre a leitura de Sofonias. Sofonias vai exercer o seu ministério profético numa altura em que Judá está de pantanas, de pernas para o ar, a precisar de uma profunda transformação social, económica, política, religiosa – até parece que estamos a falar dos nossos dias, do nosso mundo, do nosso Portugal, também hoje nós sabemos que precisamos de uma profunda transformação social, económica, política, religiosa – mas aquilo que Sofonias anuncia é que Deus revogou a condenação. E por isso devemos alegrar-nos.

Aquilo que ele anuncia é que não há condenação. Denuncia o que está mal, mas anuncia que Deus, apesar de tudo, continua a apostar. Anuncia a presença de Deus que revoga a sentença da condenação.

Queremos nós, comunidades cristãs, ser testemunhos desta presença de Deus? Então talvez a nossa principal missão não seja anunciar a condenação, mas a presença deste Deus que ama profundamente o mundo, que ama profundamente a condição humana. E o que celebramos no Natal é isso mesmo: a certeza desta presença que nos interpela a fazer diferença, a transformar o mundo ao serviço da dignidade humana. E essa é talvez hoje também uma palavra de esperança que é necessária, que é urgente. Algumas traduções falam em esperançar, que em português soa estranho.

Mas esperançar pode ser até interessante, porque esperançar é fazer com que a esperança aconteça. Fazer com que aconteça aquela esperança que esperamos. Ou seja, não é ficar sentadinhos, sossegados, mas mexermo-nos, arregaçar as mãos, para que essa esperança aconteça.

Porque é também disso que somos inspirados, lembrei-me da segunda sessão do II Concílio do Vaticano, quando Paulo VI convoca a segunda sessão do concílio. Depois da morte de João XXIII, ele podia não ter convocado essa segunda sessão, mas convocou-a; e na abertura da segunda sessão tem estas palavras espantosas: “Que o mundo saiba, a Igreja ama-o.” E olha para ele não para o condenar, mas para o servir, para o salvar.

“Que o mundo saiba, a Igreja ama-o. Até soa estranho para nós cristãos. E não deveria soar estranho. Esta ideia de que – não sejamos ingénuos, insisto – estamos no mundo para o transformar, não para o condenar. Denunciando o que está mal, é óbvio, mas para o transformar à luz desta palavra.

Alegria que se traduz em bênção e bem

É isso também que a segunda leitura nos diz: Alegrai-vos, o Senhor está próximo, repetindo várias vezes isto. O padre António já insistiu nisso, não insistirei eu, mas a esta recomendação Paulo junta uma segunda: é o convite à bondade, a fazer o bem. Fazer o bem, bem feito. Dizer bem, procurar dizer bem do que é bem, abençoar – é isso que a palavra quer dizer – talvez seja uma das missões mais importantes, hoje, das comunidades cristãs. Estar no meio do tecido social, no meio da história, abençoando. Não é abençoando o mal, é dizendo o bem, procurando o bem, destacando o bem.

Deixem-me partilhar isto convosco, porque acho que há mais bem do que mal. Se fosse verdade o que ALGUMA? (totalmente de acordo com alguma) comunicação social parece às vezes dizer, de que há mais mal do que bem, já teríamos acabado, o mundo já não existiria. Há mais bem do que mal, não tenho dúvida, é o bem que sustenta o mundo.

Procuremos dizer esse bem, destacá-lo, sublinhá-lo, sem ser ingénuos, insisto, mas procuremos abençoar. E no fundo – e esta é a minha sexta nota – é isso a que o Evangelho nos interpela. Este abençoar implica, exige a mudança de atitudes, e o que o Evangelho nos propõe é essa mudança de atitudes. Atitudes que não são só ditas, mas que são concretizadas em gestos, em estilos de vida, numa mudança de estilo de vida. Isto é também a conversão.

Permitam-me, pois, neste terceiro Domingo do Advento, e a modo de quem partilha, permitam-me um atrevimento.

Julgo que necessitamos urgentemente da conversão a Deus, de continuar a nossa conversão a Deus. Sim, claro, sem dúvida. Mas agora vem o atrevimento: julgo também que temos de ousar, vou mesmo dizê-lo: a conversão ao mundo e à condição humana. Ou seja, convertermo-nos ao mundo, convergir, pôr o nosso foco no mundo, na preocupação de transformar este mundo, de dizer bem do abençoar, e também da condição humana. Porque é isso que nós celebramos no Natal. No Natal, Deus convergiu – pode ser outra tradução para conversão – no mundo e na condição humana, centrou a sua atenção no mundo e na condição humana. E é isso que nós celebramos no Natal. E é isso que nós estamos a preparar.
Não podemos ser ingénuos, não podemos deixar de denunciar o que está mal, também nas nossas comunidades, mas não podemos deixar de transformar. Temos de bem dizer, anunciando com alegria esta boa nova, que se deve testemunhar na laeticia, nisto que deve visibilizar na superfície. Deus está connosco, Deus quer continuar a estar connosco, no meio de nós – esse é que é o Emanuel – para nos ajudar a sustentar, a fazer o bem que este mundo precisa, a destacar o bem.

Essa é a nossa missão. Quando se perguntou “quem é Jesus?”, alguém respondeu: “Foi aquele que passou fazendo o bem.” Que onde haja uma comunidade cristã, se destaque o bem, se faça o bem, e as pessoas sintam que o bem está a acontecer.

Juan Ambrosio é professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa; este texto é a versão escrita e corrigida da homilia de 15 de dezembro de 2024 (III Domingo do Advento na liturgia católica)