A ausência de beleza pode resultar em catástrofe e em tragédia. Cruzando a semântica italiana com a portuguesa, «bruto» (o feio, em italiano) anda próximo da brutalidade e da crueldade. A beleza é uma necessidade de elevação, pacificação e reconciliação, no meio do progressivo mal-estar social, político e económico que estamos a atravessar. A beleza é uma resistente forma de esperança, testemunho da bondade da criação e da bondade dos corações, daquela réstia de bondade em cada ser humano que o livra da brutalidade e da bestialidade.
Em tempos de Advento, podemos clamar: Vem, Senhor do Belo! Vêm, ó Eterna Beleza, regar de justiça a Humanidade de hoje! Vem, Beleza interior dos corações, resgatar as consciências da brutalidade e do horror! Vem, Senhor, Belo e Bom Pastor de nossas vidas!
Na Solenidade da Imaculada, festa tão vibrante do mundo católico e com profundas tradições no nosso País, a Palavra de Deus anuncia-nos que não estamos condenados a uma história de mútuas acusações, a sermos vítimas do mal, como é narrado no livro do Génesis. Pode haver outra perspetiva mais esperançosa, mais redentora, com uma saída feliz. A história da brutalidade e da acusação pode dar lugar a uma outra história, de fraternidade, de vida partilhada. O mal, por mais brutal, feio e penetrante que seja, não chega às raízes do ser; pode ser redimido. Não é o fatal destino da pobre condição humana.
Em contraste com o livro do Génesis, lemos a passagem da Carta de Paulo aos Efésios. Deus Pai, predestina-nos, em seu Filho muito Amado, a sermos filhos. Que bela expressão: somos predestinados para «sermos um hino de louvor de glória a Deus». E havemos de nos cumprir como hino comunitário de louvor pelo testemunho de uma caridade irrepreensível, de uma vida fraterna autêntica. A forma bela, quotidiana, de resistir ao mal é a civilidade da caridade e da fraternidade. O cuidado permanente nas relações, sempre frágeis, sempre ameaçadas, continuamente a se refazerem, com paciência e fadiga.
Hoje, na Solenidade da Imaculada, acolhemos, celebramos e exaltamos aquela parcela da nossa humanidade não contaminada pelo mal, a intacta Virgem Maria, a Imaculada, a Toda Bela. Exaltamos a jovem humilde de Nazaré, noiva de José, a quem Deus visita pelos caminhos da alegria, da jubilação e da beleza: «Tendo entrado onde ela estava, disse o Anjo: “Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo”». Nunca nos esqueçamos: é sempre Deus que toma a iniciativa, que vem ao nosso encontro, que nos querer encontrar aí onde habitamos, vivemos e somos. Para nos convocar a uma resposta livre, responsável, que brote da nossa verdade interior, das entranhas do nosso ser, como aconteceu em Maria: «Eis a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra».
Maria, a parcela intacta da Humanidade, preenchida pela graça de Deus, na qual o mal não se entranha, mas apenas a Palavra que liberta e dá vida. Nunca saberemos bem dizer esta intuição visceral da experiência cristã: Em Maria o mal não entra; toda ela é beleza de ser e de viver, no acolhimento de Deus e no serviço, na entrega de corpo inteiro à Palavra que nela se faz carne. Um dos cânticos mais belos da Solenidade da Imaculada proclama: «Toda bela és Maria», «Toda sois formosa, ó Maria»: Tota pulchra es Maria.
Toda a beleza do mundo, do criado, da humanidade, do coração de cada pessoa rica em sua humanidade, está contida em Maria, a «Toda Bela». Nela se recolhe e se expressa a beleza da criação, dos rostos luminosos, da exuberância das crianças, da irreverência dos jovens, das rugas esculpidas e dos corpos mirrados pela idade vivida. Nela se configura a beleza daqueles e daquelas com o rosto e corpo desfigurados (e são tantas as desfigurações e as deformações da nossa existência…)
Em Maria recolhe-se toda a dádiva de beleza. A beleza de bem cuidar e de bem receber, a beleza da compaixão. A beleza com que os corpos se abraçam e se amam, e nesse abraço preservam o mistério de cada um. A beleza da arte de cultivar a terra, de cuidar do jardim, de manter limpos os espaços públicos da nossa convivência. A beleza desnudada das árvores despidas no inverno que, mergulhando fundo na terra as suas raízes, se regeneram. A beleza dos olhares de ternura, dos rostos que sorriem, da fidelidade dos amigos, daqueles e daquelas cujo amor resiste e se reinventa com o tempo. A beleza interior que se revela nos pequenos gestos quotidianos, simples, autênticos e densos de sabedoria. Aquela beleza oferecida pelos artistas no duro combate entre a graça da inspiração e a dureza da matéria que lhes resiste.
«Toda bela és Maria», ó Imaculada! Beleza materna de toda a criação, e de toda a criatura. De tuas entranhas nasce o Belo feito carne, rosto iluminado de criança, rosto desfigurado na cruz, rosto glorioso na ressurreição. És Mãe de toda a beleza vulnerável. És a Nova Jerusalém, cidade esplendorosa e terra da fraternidade cumprida. Parcela intacta da Humanidade e de toda a criação. Em Ti, ó Maria, Toda Bela, cumpre-se o desejo de beleza e de integridade querido por Deus para toda a criação. Tu és o rosto da Igreja, esposa de Cristo, «sem ruga e sem mancha, resplandecente de beleza», como rezamos no Prefácio da eucaristia de hoje.
Maria, doçura do Belo que nos visita. A sua beleza não esmaga, eleva; não força, convida; não impõe, oferece-se gratuita; não agride, pacifica e reconcilia. Cria pontes onde há fronteiras e polarizações; une o disperso; dialoga com o diferente.
«Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo».
Pe. António Martins
Homilia na Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria