Comentário da Ir. Julieta Dias à Palavra de Deus do XXX Domingo do Tempo Comum,
durante a celebração da eucaristia na Capela do Rato, no dia 27 de outubro de 2024.

Introdução

Agradeço muito o convite que me fizeram para estar aqui nesta posição, mas devo confessar que o telefonema do P. António provocou em mim, em turbilhão, 3 reacções diferentes: 1. Alegria por ver que uma comunidade cristã, de hoje, não tem medo do novo (que não é assim tão novo – novo foi nos primórdios das comunidades cristãs, há mais de 2 000 anos – as Cartas, os Actos dos Apóstolos e os Evangelhos testemunham isso mesmo); 2. Receio/medo – eu não: 3. Não posso recusar – há mais de 50 anos que digo que a Pregação não pode ficar confinada aos clérigos. Se não aceitar, sou inconsequente. Por isso, aqui estou. Obrigada!

Comentário

Ao aceitar o convite, não sabia qual o texto evangélico de hoje. Fui imediatamente ver e, desde esse momento, andou sempre comigo e interroguei-o: o que me queres dizer? Eu já sou velha, mas tu ainda mais e, sobretudo, és de uma outra cultura…

Este texto está no seguimento do de Domingo passado e há alguns pontos de contacto interessantes. No de Domingo passado são 2 do grupo de Jesus que vão fazer-lhe um pedido, depois de terem ouvido Jesus falar, pela terceira vez do anúncio da Paixão. Não precisam de O chamar, vão ter com Ele e Jesus faz-lhes uma pergunta: que quereis que eu faça? – Que, no teu Reino, um se sente à tua direita e o outro à tua esquerda. Claro que sabiam que estavam com o Messias de Deus e, não entendendo nada sobre os anúncios da paixão, estavam convencidos que Jesus iria libertar o povo do Império Romano e eles queriam ser vistos junto dele. A resposta Jesus é uma negativa.

O texto de hoje, apresenta-nos um mendigo cego sentado à beira do caminho, um excluído da multidão que passa. Ouviu dizer que era Jesus, o Nazareno, que passava a caminho de Jerusalém. Não perde tempo e grita: Filho de David, Jesus, tem misericórdia de mim. Mandam-no calar, não tem nada que estar a incomodar o Mestre. Mas ele grita mais alto: Filho de David, tem misericórdia de mim e Jesus ouviu. Pede que lho tragam. O dito cego, atira com o manto – a sua única protecção – e dá um salto até Jesus que lhe pergunta exactamente o que perguntou aos discípulos: o que queres que te faça? O cego diz-lhe: Mestre, que eu veja de novo, que eu veja o teu caminho. Jesus não hesita: a tua fé salvou-te. O antigo cego segue o caminho de Jesus.

Os primeiros queriam ser vistos, o cego quer ver simplesmente…

O que é que isto tem a ver comigo? O que é que tem a ver connosco? Chegada aqui, perguntei-me a mim mesmo: que quero eu? Ver ou ser vista? Que vejo eu ou serei cega?

A verdade é que dei conta que às vezes vejo, outras vezes sou cega. Vejo os meus interesses mesquinhos e sou cega para o que me pode salvar – seguir radicalmente o caminho do serviço! Às vezes, quando tomo consciência da minha cegueira, grito – Senhor, tem piedade de mim, fazei que eu veja. Mandam-me calar e, infelizmente, não faço como o cego, fico em silêncio…

Nos tempos que vivemos, em que o lucro imediato impera e não há escrúpulos em usar os outros nossos irmãos e irmãs como coisa, como mercadoria, tenho de ser capaz de ver a dignidade, sobretudo de quem é mais vulnerável, tenho de ver em qualquer pessoa, minha irmã, meu irmão…

Se os meus olhos ficarem cegos, Senhor, fazei que eu veja.

Hoje termina o Sínodo. O Papa Francisco ouviu os gritos dos leigos – mulheres e homens – e mandou-nos chamar e disse-nos que quer ouvir os nossos pedidos – como Jesus quis ouvir os discípulos e o cego. Nós que nos dizemos Igreja de Jesus Cristo, atiremos com as nossas amarras, os nossos confortos e não nos cansemos de pedir: Faz que veja as injustiças, dentro e fora da tua Igreja: há só um Baptismo que faz de todos nós, discípulas e discípulos, gastando a nossa vida para que todos tenham vida e vida em abundância, como foi a tua vida, Jesus, dada por nós, numa Igreja onde não há judeu nem grego, não há livre nem escravo, não há homem nem mulher porque somos um só em Cristo Jesus.

Descartes dizia: “penso, logo existo” (conhecimento racional). O nosso Damásio afirma: “sinto, logo existo” (conhecimento emocional). Perdoem o meu atrevimento: vejo, logo existo (conhecimento da fé, que é visão).

Não podemos prescindir de nenhum destes conhecimentos e não podemos esquecer que é a forma como vejo qualquer ser humano que me torna mais humana ou mais desumana.

Mestre, fazei que eu veja!

Mª Julieta, rscm