Nesta janela fazemos memória da feliz peregrinação ao Norte de Espanha que um grupo de 33 peregrinos viveu entre os dias 9 e 15 de julho de 2024. É publicada uma reportagem fotográfica, através do olhar e da objetiva de Miguel Veiga. São publicadas também as três homilias (escritas). Por fim, partilham-se testemunhos e impressões, em vários «andamentos», de uma caminho comum e singularmente vivido.

 

Diário da Peregrinação (Rita e Miguel Veiga)

O que se segue não é um álbum de fotografias nem uma descrição da viagem / peregrinação, mas é um “antes pelo contrário” com tudo o que isso possa significar, e isento de comentários ao que mais ou menos gostámos.

Partimos 33 peregrinos do Largo do Rato, uns com alma mais de turista que de peregrino, outros comprometidos com a peregrinação, mas julgo que todos viemos, uma semana depois, a fazer um caminho interior que é desejável não ter acabado na hora da chegada, embora também se tenha aproveitado e bem, a vertente mais turística.

Três pessoas nos guiaram. A dupla José e António da Alegretur, em conjunto com o Pe. António; o José guiou-nos com segurança pelas estradas da península, o António levou-nos aos locais de interesse, e garantiu o bem-estar do nosso corpo tanto na alimentação como no descanso (?). O Pe. António foi o guia do nosso caminho espiritual e nós, cada um por si ou em conjunto, fomos fazendo a nossa (r)evolução espiritual.

Dia 9, terça-feira – Lisboa / Ciudad Rodrigo / Salamanca

Quando na madrugada, ou talvez já na manhã, do dia 9 fomos aparecendo no Largo do Rato de malas e bagagens, conhecíamo-nos uns mais que outros, e íamo-nos juntando segundo as afinidades, mas em pouco tempo tudo se esbateu e, no final do dia, já era um grupo em que cada um se preocupava com todos os outros, e juntávamo-nos aleatoriamente para comer ou para estar. Mas vamos partir. Estamos no Lg. do Rato em Lisboa, malas arrumadas na cave do autocarro. “Sentem-se por favor para contar. 1, 2, 3, 4… 31, 32 e 33. Podes seguir”. E partimos cheios de expectativa e sono a caminho de Ciudad Rodrigo, entremeando com diversas paragens técnicas que vou omitir. “Sentem-se por favor para contar. 1, 2, 3, 4… 31, 32 e 33. Podes seguir”.

CIUDAD RODRIGO

Primeira paragem a sério, Ciudad Rodrigo, que vimos de passagem a caminho do almoço.

De seguida, “sentem-se por favor para contar. 1, 2, 3, 4… 31, 32 e 33. Podes seguir” a caminho de Salamanca.

SALAMANCA

“Levem tudo da camionete” e visita com guia local à Plaza Mayor, Universidade, Casa das Conchas, catedrais Velha&Nova, e tudo o mais que o caminho nos proporcionava.

Na Catedral Velha tivemos a primeira missa. No meio daquelas igrejas trabalhadas em pedra, nós somos as pedras vivas da Igreja, mas ainda e sempre em polimento contínuo.

Depois do jantar no hotel, alguns voltaram à Pl. Mayor para festejar a vitória da Espanha contra a França, com cafés e gelados.

Dia 10 quarta-feira – Salamanca / Ávila / Stº Domingo de Silos

ÁVILA

Na manhã seguinte, cedo, “sentem-se por favor para contar. 1, 2, 3, 4… 31, 32 e 33. Podes seguir” desta vez rumo a Ávila, terra de Stª. Teresa de Jesus (séc. XVI). Por detrás das muralhas encontramos testemunhos materiais da vida de Stª Teresa.

Teresa, filha rebelde de pai Judeu, fugiu para o convento Carmelita da Encarnação, estabelecendo uma observância rigorosa das regras do Carmelo, na altura pouco rigorosas. Teresa, mística e contemplativa, tinha em momentos de êxtase visões que lhe orientavam a vida. Escreveu várias obras e, com o apoio de S. João da Cruz, foi fundadora de muitos conventos de carmelitas descalças, ordem muito austera.

O convento carmelita de Stª Teresa, incorporou a casa onde nasceu Stª Teresa, e foi lá que foi celebrada a nossa missa desse dia.

Almoçados em Ávila, “sentem-se por favor para contar. 1, 2, 3, 4… 31, 32 e 33. Podes seguir” para o convento beneditino de Santo Domingo de Silos…

SANTO DOMINGOS DE SILOS

…com pressa pois o claustro românico, único, deitava-se às 18 horas – “cerramos a las 18”. Felizmente chegámos a tempo de o ver. Era dia de S. Bento, e ouvimos e rezámos as Vésperas cantadas em Gregoriano. pelos frades beneditinos.

Beneditinos fiéis à regra de S. Bento, seu fundador no séc. VI, é uma ordem de clausura monástica, têm como lema “ora et labora” baseia-se na observância dos preceitos destinados a regular a convivência social, aperfeiçoando a beleza dos cânticos e da vida.

E nesse dia pernoitámos em Santo Domingo de Silos.

Dia 11 quinta-feira – S. Domingo Silos / Burgos / Azpeita / Bilbau

“1,2,3… 33” rumo a Burgos, com guia local em especial para ver a Catedral gótica e sua envolvente.

 

BURGOS

AZPEITA

Na terra natal de Santo Inácio de Loyola, onde visitámos a sua casa torre e o santuário barroco ligado à casa. Tivemos a terceira missa no último piso da casa.

Inácio de Loyola, (séc. XVI) de origem nobre, foi ferido gravemente em combate. Durante a convalescença decidiu-se a desprezar os bens terrenos em busco dos sobrenaturais. Em Paris, com mais seis estudantes, funda a Companhia de Jesus, os Jesuítas, cujo lema é “para maior glória de Deus”.

Almoçámos em Azpeitia e seguimos “1,2,3…33” para Bilbau e, ….

…. quilómetros depois, “não deixem nada no autocarro”.

BILBAU

Nessa noite em Bilbau fomos jantar fora.

Dia 12 sexta-feira – Bilbau / Picos da Europa / Covadonga

Volta de camioneta à cidade (chovia) e visita ao Museu Guggenheim com dois guias locais.

Almoço num restaurante em Bilbau, e “1,2,3 … 33” e segue para Covadonga roçando os Picos da Europa.

PICOS DA EUROPA

COVADONGA

Visita ao santuário de Covadonga com a Santa Cueva onde foi celebrada missa com a “homilia da cascata”.

Em Covadonga, no séc. VIII, Don Pelayo, primeiro rei das Astúrias, venceu os mouros com a protecção da Virgem de Covadonga, “La Santina”, e foi o princípio da Reconquista cristã da Península.

Dia 13, sábado – Covadonga / Oviedo / Sobrado / Santiago de Compostela

Ainda em Covadonga, após a visita à Basílica de Stª Maria La Real, fomos (“1,2,3…. 33”) até Oviedo, onde a guia local nos levou à Catedral gótica flamejante onde está a Câmara Santa.

OVIEDO

Depois do almoço num restaurante local, “sentem-se por favor para contar. 1, 2, 3, 4… 31, 32 e 33. Podes seguir” para o mosteiro cistercienses do Sobrado.

SOBRADO

Visita ao mosteiro, seguida de missa concelebrada com o frei Carlos Maria Antunes.

Miséria e Misericórdia, têm a mesma etimologia…

Ordem de Cister, fundada por dissidentes beneditinos do convento de Cluny, no fim do séc. XI, sendo Bernardo de Claraval seu grande mentor, promovendo por toda a Europa o cristianismo e o desenvolvimento das terras.

E “1,2,3… 33” no Sobrado, seguido de “levem tudo do autocarro”! Estávamos em Santiago.

SANTIAGO DE COMPOSTELA

Dia 14, Domingo – Santiago de Compostela

Até ao almoço visita com guia, missa dos peregrinos. Depois, tarde livre.

De noite, enquanto uns foram apanhar chuva em Santiago, outros ficaram no quentinho à volta da lareira; dois a um ganhou a Espanha à Inglaterra e foi a vencedora do Campeonato Europeu de futebol.

Dia 15, segunda-feira – Santiago / Padrón / Braga / Rato (Lisboa)

“1,2,3… 33” com destino a Padrón, onde começa a lenda do culto de Santiago. Lá foi celebrada a missa.

No fim, encontrar-nos-emos face a face com a beleza infinita de Deus (cf.1 Cor13, 12) e poderemos ler, com jubilosa admiração, o mistério do universo, o qual terá parte connosco na plenitude sem fim. Estamos a caminhar para o sábado da eternidade, para a nova Jerusalém, para a casa comum do Céu. Diz-nos Jesus: «Eu renovo todas as coisas» (Ap 21, 5). A vida eterna será uma maravilha compartilhada, onde cada criatura, esplendorosamente transformada, ocupará o seu lugar e terá algo para oferecer aos pobres definitivamente libertados. (Laudato Si’ 243)

“1,2,3… 33” e chegámos a Braga. 

BRAGA

Almoço no Bom Jesus, e visita à Capela da Árvore da Vida, acompanhados por um dos arquitectos.

“Sentem-se por favor para contar. 1, 2, 3, 4… 31, 32 e 33. Ufa! Não se perdeu ninguém. Podes seguir” para o Rato. Hora prevista de chegada 20h, mas como já nos habituáramos, haveria um atraso de 30 a 60 minutos. Hora real da chegada, 21h.

Mas chegámos um grupo muito feliz, e foi o sétimo dia, e mesmo assim não houve descanso. Tivemos tempos de peregrinação, de turismo, de cultura e de convívio. Valeu muito a pena, foi óptimo estarmos com todos vocês, muitos que só conhecemos nesta viagem. Obrigado a todos, às três pessoas que nos guiaram e nós que colaborámos muito bem. Pena foi que trouxéssemos um microscópico intruso, o senhor Covid, mas esse espero que não deixe marcas, para ficar como actor de terceira desta semana.

Saudades, esperamos continuar a saber de vocês diretamente ou pelos meios electrónicos.

FIM que não é o final.

Até sempre,

Rita e Miguel

Homilias

9 de julho: Celebração da eucaristia na Catedral de Salamanca

Damos graças a Deus, Trindade Santa, por celebrarmos nesta catedral de Salamanca, no cruzamento da arte românica com a arte da renascença. O edifício catedral, através da arquitetura, da escultura, dos vitrais, da pintura, da ourivesaria pretende ser uma expressão de arte total; mas, acima de tudo, um belo e esplendoroso hino de louvor ao Deus Santo através de toda a criação. Nos profetas, apóstolos, mártires, santos esculpidos na pedra antevemos a comunhão dos santos na glória do Céu, nosso destino e nossa esperança. Cada pedra nos anuncia o futuro, nos promete à vida eterna, celebra a presença e a morada de Deus no meio do seu povo, antecipa o definitivo do Reino que esperamos. Também nós hoje, peregrinos de passagem, somos acolhidos pela harmonia arquitetónica deste espaço. 

Sentimo-nos felizes por permanecermos, por uma hora (apressada), nos átrios do templo do Senhor. O nosso coração e a nossa carne, com as palavras do salmo, exultam no Deus vivo. Aqui, nesta catedral, também as aves do céu encontram abrigo.

Contemplando as pedras celebramos o que somos, o que somos chamados a ser: pedras vivas do templo do Senhor. As catedrais pretendem dar visibilidade pública à experiência cristã que se torna cultura, política, inspiração para todas as dimensões da vida, christianitas. São produtos do desenvolvimento teológico, da arquitetura, da técnica, da escultura, da liturgia medievais, entre os séculos XII e XIII, a partir de uma nova consciência da experiência cristã acontecida em França. Tudo se harmoniza e unifica em Cristo, pedra angular; a luz natural é transfigurada e decomposta em arco-íris pelos vitrais. A catedral é uma celebração da luz, da luz do mundo que é Cristo. Expressa e celebra a Igreja a edificar-se no espaço público, edifício constituído sobre os alicerces dos apóstolos. O texto de Paulo da Carta aos Efésios é decisivo para a compreensão da dimensão «pública», «arquitetónica», da comunidade cristã como templo que se edifica na cidade (pólis), numa edificação em que cada um entra. «Em Cristo, todo o edifício cresce, bem ajustado, para formar o templo santo do Senhor». 

Importa nunca esquecer: Por mais belas e esplendorosas que possam ser as catedrais, o grande e primordial edifício a construir é o tecido das nossas relações, na unidade e na paz. Com as palavras de Paulo, questionemo-nos: Qual é o meu compromisso pessoal na edificação de uma comunidade cristã una, reconciliada, pacificada, ao serviço da unidade fraterna de toda a humanidade e de toda a criação? Somos pedras vivas no edifício que se vai construindo, pela ação do Espírito e na aventura da nossa liberdade, como morada de Deus? É ainda Paulo que nos recorda e desafia: «também vós sois integrados na construção, para vos tornardes, no Espírito Santo, morada de Deus».

As catedrais pretendem dar a ver o futuro que esperamos, a glória do Céu. São uma antevisão da Jerusalém celeste, da comunhão dos santos que já aqui começa, do definitivo da vida (a vida eterna) que é Cristo, nosso caminho e nossa meta. O livro do Apocalipse, em sua imaginação arquitetónica da Jerusalém celeste, oferece o fundamento teológico/escatológico da arquitetura das catedrais. Dá-nos a imaginar a cidade futura que os arquitetos medievais se atreveram a traduzir e a mostrar em pedra: «a oriente, três portas; ao norte, três portas; ao sul, três portas; ao ocidente três portas; a muralha da cidade tina doze fundamentos e sobre eles os nomes dos doze apóstolos e do Cordeiro» (Ap 21,13-14).

A construção de uma catedral traduz em arquitetura um rigoroso projeto teológico, biblicamente fundado. Uma catedral é uma escritura em pedra recebida e confessa na fé da Igreja. Há aqui uma compreensão do Homem (antropologia) e do universo (cosmologia), uma expressão do Homem como síntese do universo (microcosmos). A catedral expressa uma teologia da luz num movimento ascensional da visão, a partir das coisas exteriores (a criação) para o mistério da Luz inacessível que é o Deus santo. A arte das catedrais é simbólica: a matéria, os materiais, as coisas visíveis anunciam e prefiguram o invisível dos mistérios da fé.

As catedrais são uma explosão de luz transfigurada através dos vitrais, das cores, numa unidade e coerência de formas. Elevam pela altitude das ogivas e das abóbadas, ampliam pela largueza do espaço. Permitem dentro de si mesmas, em seu espaço interior, o movimento dos crentes, ao mesmo tempo que são espaço para uma litúrgica do esplendor e da ostentação. Expressão do poder económico das cidades em crescimento, na arte das catedrais toda a riqueza é convocada para o louvor a Deus. A Deus dá-se o máximo da possível beleza humana. A catedral é um corpo arquitetónico que tem a forma do corpo de Cristo crucificado e glorificado, no qual se inscrevem os corpos dos crentes e se projeta o corpo do universo.

Uma palavra final, a partir do encontro de Jesus com a Samaritana, superando a disputa teológica entre o culto no templo de Jerusalém e no templo (meio pagão, meio impuro) da Samaria. O culto cristão, em sua radicalidade, brota das profundezas da consciência e da verdade interior; não se deixa domesticar por uma liturgia particular usada fanaticamente; está para além de qualquer lógica de pertença identitária e espacial. Diz-nos Jesus, a nós quais samaritanos impuros ou fariseus intolerantes: «Vai chegar a hora – e já chegou – em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, pois são estes adoradores que o pai deseja». Entremos e permaneçamos no desejo do Pai: adoremo-lo «em espírito e verdade» com o Filho no Espírito Santo. Porque o primeiro e grande templo/catedral do culto cristão é a verdade interior da consciência. 

«Os adoradores do Pai devem adorá-lo em espírito e verdade».

10 de julho: Celebração da eucaristia na casa natal de Santa Teresa de Ávila

Celebramos hoje na casa de família, onde santa Teresa viveu, transformada em igreja da Ordem dos Carmelitas Descalços, aqueles que aderiam, não sem sofrimento, à reforma de Santa Teresa e de S. João da Cruz. Aqui evocamos a família de Santa Teresa, as suas origens judaicas, o medo da perseguição e da acusação pública, a humilhação da exclusão e da não aceitação social. Estávamos num tempo em que as comunidades judaicas tinham duas opções (séculos XV-XVI): ou saíam de Espanha ou se convertiam ao cristianismo. Quantas «conversões» forçadas, quantas fugas com medo de perseguição, quanto ocultamento nos ditos «marranos», aquelas pessoas que pareciam, no exterior, católicas, mas guardavam oculta a sua convicção judaica! Quanta intolerância pela história fora em relação às comunidades judaicas!

Teresa, a mística carmelita, com um pai judeu convertido ao catolicismo, a fugir da populosa Toledo para a escondida cidade de Ávila, para se proteger e proteger a família. Nesta casa há uma memória silenciosa judaica que ressoa até nós, esse parentesco conflituoso entre cristianismo e judaísmo. Teresa é o símbolo de todas as famílias onde se cruzam e se encontram pessoas de religiões diferentes, onde a diversidade acontece, não sem tensões e incompreensões. Celebrando hoje, aqui, a memória de Santa Teresa, rezemos por todos os judeus que partilham connosco cristãos a mesma herança da Escritura (o Antigo Testamento) e a mesma promessa feita a Abraão. Recordo o que afirma o Concílio Vaticano II sobre o judaísmo: «deplora todos os ódios, perseguições e manifestações de anti-semitismo, seja qual for o tempo em que isso sucedeu e seja quem for a pessoa que isso promoveu contra os judeus» (NA 4).

Teresa de Ávila (depois também Inácio de Loyola) coloca a experiência no centro da vida espiritual. E isso é a modernidade, a aventura interior do sujeito que se pensa e interpreta a si mesmo. As Moradas, de Teresa, são uma peregrinação interior, um habitar a própria interioridade (subjetividade como espaço) em movimento. Do cosmos passa-se para a subjetividade. Essa é a viragem antropológica da modernidade, narrada com traços de dramaticidade psicológica por Teresa de Ávila. No seu drama interior encarna-se o drama de um tempo histórico: a expulsão dos judeus, a rotura protestante, a fragmentação da Europa, a conquista e ocupação das Américas, a aventura interior, solitária também, do sujeito crente.
Em Teresa de Ávila diz-se a verdade antropológica de uma época como lugar onde a verdade de Deus e do Homem se encontram. Por isso Teresa, por vezes em solidão, foi audaz. Rompeu, espiritualmente, com um passado. Inovou através do testemunho da sua existência. Procurou dizer a fé com palavras da vida quotidiana. Através dos sentidos, do seu corpo exposto ao dardo do amor divino, como nos narra no Livro da Vida: «Via-lhes nas mãos [do anjo] um dardo de oiro comprido e no fim uma ponta de ferro me parecia que tinha um pouco de fogo. Parecia-me meter-me este pelo coração algumas vezes e que chegava às entranhas. Ao tirá-lo dir-se-ia que as levava consigo, e me deixava abrasada em grande amor de Deus» («Livro da Vida», in Obras Completas, Aveiro, Ed. Carmelo, 19782, cap. XXIX, 246).

Teresa experimenta Cristo como Amado, à luz da leitura espiritual do Cântico dos Cânticos. Este livro, em sua linguagem de desejo entre amantes, com traços de profundo erotismo, foi a linguagem através da qual os místicos e as místicas disseram o seu desejo e procura do Amado. O Cânticos dos Cânticos possibilitou na tradição cristã, desde Gregório de Nissa a Santa Teresinha, expressar a experiência crente em termos de relação amorosa (esponsal), a relação entre o crente (a alma, a esposa) e Cristo, o esposo, a mobilizar sentidos, afetos, vontade, ausências, procura na noite escura… Diz a Amada ao Amado: «Grava-me como um selo no teu coração, como um selo no teu braço, porque o amor é forte como a morte e a paixão é violenta como o abismo. Os seus ardores são setas de fogo, chamas do Senhor. As águas torrenciais não podem apagar o amor, nem os rios o podem submergir». Pedimos e consentimos que a verdade do amor tome corpo, seja gravado a fogo no coração, tatuado no braço, sinalizado e selado no corpo. O amor é forte como a morte, é sentimento arrebatador e violento; não é caminho de paz, mas de abismo. O Cântico dos Cânticos foi o código do dizer amoroso dos místicos.

A existência cristã de Teresa de Ávila bem pode ser interpretada através da parábola das virgens, do evangelho de Mateus, há pouco lida. Todo o capítulo 25 de Mateus (onde se insere a parábola) é um apelo à responsabilidade concreta e quotidiana das nossas decisões. Enterramos ou fazemos render os talentos. Cristo identifica-se com o estrangeiro, o prisioneiro, o faminto: «o que fizeste a um destes mais pequeninos, a mim o fizeste». E hoje a parábola de uma liberdade responsável, prevenida com o azeite necessário para atravessar a noite. É no presente, na responsabilidade das nossas decisões, no risco da nossa liberdade, que preparamos o encontro com o noivo que vem, sem se saber quando. Preparamos o futuro (o céu) através da audácia de cada gesto quotidiano. Prevenidos(as) com o azeite necessário, esperamos na noite o noivo que vem mas tarda a chegar. Essa noite em que sentimos em nós o vazio, o desamparo, a depressão, a profunda solidão. Teresa foi aquela que atravessou a noite com a lâmpada da esperança e da fé acesa. Bem nos disse que na noite a espera é longa, e viver parece morrer: «Ai, que vida tão amarga!/ Por não gozar o Senhor!/ Pois sendo doce o amor,/ Não o é, a espera longa,/ Tira-me, ó Deus, este fardo / Tão pesado e tão amargo / Que morro porque não morro».

E é Teresa quem ainda nos diz: «A paciência tudo alcança»; «Só Deus basta».

11 de julho: Celebração da eucaristia na casa natal de Santo Inácio (Capela da Conversão, Loyola)

Cheios de comoção aqui estamos na casa onde Santo Inácio nasceu. Celebramos a eucaristia, precisamente, no quarto onde recuperou do acidente na batalha de Pamplona. Onde, na mais profunda fragilidade e passividade, vê o seu projeto de vida desfeito. Aquele projeto de um nobre destinado a grandes lideranças na cortes de Espanha, marcado pela fama, pela honra, pela glória, pela riqueza, pelo luxo. Diz-nos o seu biógrafo, o português P. Luís Gonçalves da Câmara: «Até aos vinte e seis anos de idade, foi homem dado às vaidades do mundo e deleitava-se no exercício das armas, com grande e vão desejo de honra».

Pela violência das circunstâncias, aqui Santo Inácio se reinventa do profundo trauma e fracasso por que passou. Aqui, no confinamento destas paredes, Santo Inácio atravessa, num profundo combate consigo mesmo, a partir de uma derrota total, quase às portas da morte, o abismo da sua existência. Na sua maior fragilidade, descobre Cristo como força, atração e paixão; na maior passividade, vive uma profunda aventura interior, a peregrinação pelo abismo de si mesmo habitado pelo abismo ainda maior de Deus. Aqui Inácio reconstrói-se a partir da leitura de biografia de santos (os livros que tem à mão…) e coloca a si mesmo a questão: Por que não eu? Aquilo que outros viveram, com radicalidade, o seguimento de Cristo, também eu posso viver. «E se eu fizesse aquilo que fez S. Francisco e aquilo que fez S. Domingos?». A vida dos santos motiva o «fazer mais» de Inácio. Levou tempo a descobrir, na complexa peregrinação que foi a sua vida, que a vontade de Deus não é repetir o modelo de um santo reconhecido, mas aventurar-se, evangelicamente, na santidade, de corpo inteiro, com todo o ser, potencialidades e fragilidades, grandeza e miséria. Descobrir a vontade de Deus na própria vida pessoal, única, concreta, contraditória, tensa.

Aqui Inácio, à força e por graça, se despede do homem velho e se torna homem novo, ressuscitado por Cristo. Daí o nome que evoca essa passagem de vida, de consciência de si, de consciência renovada da sua relação com Deus: capela da conversão. O confinamento de Loyola, após a perna baleada, e depois em Manresa, pobre peregrino, cuidando dos doentes e vivendo de esmolas, rezando e fazendo penitência numa gruta, constituirão os lugares e as vivências que configuram a espiritualidade inaciana, como contínuo discernimento do sentir interior, entre sentimentos positivos (consolações) e sentimento negativos (desolações). A espiritualidade inaciana estrutura-se como um contínuo afinamento interior da própria vontade com a vontade de Deus; como treino do desejo como orientação de vida; como exercitação da liberdade e da vontade através de escolhas e eleições que acrescentem vida, paz interior, alegria de viver, serviço aos outros, dom de si.

Do trecho da primeira carta de Paulo aos Coríntios, aqui lida, retira Inácio o lema da Companhia de Jesus: ad maiorem dei gloriam/para maior glória de Deus: «Quer comais, quer bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus». As mais elementares necessidades e ações humanas, comer e dormir, também entram na vida espiritual. Pode-se descobrir Deus em todas as coisas e em todas as situações. Nada na nossa vida fica fora de Deus. A descoberta de Deus, na espiritualidade inaciana, experimenta-se no concreto, na vulgaridade do quotidiano, na «laicidade» das coisas temporais: comer, dormir, lazer, trabalho, descanso, estudo, afetos, relações, amores, paixões… Qualquer circunstância, de alegria ou de dor, de perda ou de ganho, de consolação ou de desolação, é «hora» para louvar o Senhor e dar-lhe glória. Como canta o Salmo: «A toda a hora bendirei o Senhor, o seu louvor está sempre na minha boca». «Saboreai e vede como o Senhor é bom» faz eco na espiritualidade de Santo Inácio quando escreve: «sentir e gostar as coisas internamente» (EE: Anotação nº 3).

Em sua oração, Santo Inácio fez alguma experiência de encontro com Deus Trindade Santa, perto de Roma, numa localidade chamada La Storta (pelo ano 1544). A sua memória em relação a essa experiência é discreta, e as fontes nem todas concordantes. Em sua oração, Santo Inácio mergulha no mistério do Deus Trino: «O Pai me pôs com o Filho» é o que diz numa frase seca e lapidar. Esta sua memória orante nos insere a todos na oração de Cristo ao Pai, antes da sua paixão; oração na qual integra os cristãos de todos os tempos e lugares em seu desejo filial de comunhão com o Pai: «para que sejam um, como nós somos uns: Eu neles e tu em mim». A espiritualidade inaciana brota da contemplação orante do mistério trinitário. Santo Inácia deixa-nos o testemunho de um cristão que ora a cada Pessoa da Santíssima Trindade, coisa invulgar na tradição cristã.

A espiritualidade inaciana experimenta-se numa dupla dimensão: através da prática da chamada «indiferença» e como ordenação do desejo, do sentir profundo que grita em nossos corações sedentos. No texto Princípio e Fundamento que abre os Exercícios Espirituais, escreve Inácio, partindo do Homem concreto que somos: «O Homem é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus e assim salvar a sua alma», ou seja, alcançar uma vida plena. Tudo é criado para o Homem, e o Homem deve saber usar livremente de todas as coisas criadas. A espiritualidade inaciana convoca à prática de uma liberdade responsável, curada das suas dependências pela graça de Deus: «Donde se segue que há-de usar delas tanto quanto o ajudem a atingir o seu fim, e há-de privar-se delas tanto quanto dele o afastem. Pelo que é necessário tornar-nos indiferentes a respeito de todas as coisas criadas em tudo aquilo que depende da escolha do nosso livre-arbítrio, e não lhe é proibido». A «indiferença» inaciana significa desapego, liberdade interior em relação às coisas (dinheiro, cargos, pessoas, terras, bens, mundo, as coisas criadas). É um caminho difícil, progressivo, feito de pequenos passos possíveis. Daí o nome de «exercícios espirituais», um exercitar da vontade, da arte de decidir, de orientar a liberdade para o fim: louvar, reverenciar e servir a Deus.

A segunda dimensão é a ordenação do desejo, para fazer eleições, ou seja, escolhas em vista da coerência do nosso fim e de um mais a fazer por Deus, pela Igreja, pelos outros, pela humanidade, pela criação inteira. A prática da espiritualidade inaciana, sobretudo dos Exercícios Espirituais, é o «modo de preparar e dispor a alma, para tirar de si todas as afeições desordenadas e, depois de tiradas, buscar e achar a vontade divina na disposição da sua vida para a salvação da alma» (EE: Anotação 1). E tudo fazer em sintonia com Cristo, inspirado em Cristo, oferecido a Cristo, numa contínua ação de graças: «Pedir conhecimento interno de tanto bem recebido, para que eu, reconhecendo-o internamente, possa, em tudo, amar e servir a sua divina majestade» (Anotação nº 233).

Em tudo amar e servir. Para a maior glória de Deus.

13 de Julho: Texto dos Sermões de S. Bernardo de Claraval, sobre o Cântico dos Cânticos, lido e comentado por Fr. Carlos Maria Antunes, na celebração da eucaristia no Mosteiro de Sobrado:

AS CHAGAS DE CRISTO

3
Onde é que a nossa debilidade pode encontrar descanso seguro e tranquilo, senão nas feridas do Salvador? Nelas habito com plena segurança, pois sei que ele pode salvar-me. O mundo grita, o meu corpo oprime-me, o diabo espreita-me; mas eu não caio, porque estou alicerçado numa rocha firme. Se eu cometer um grande pecado, a consciência remorde-me, mas não perderei a paz lembrando-me das chagas do Salvador. Ele foi trespassado pelas nossas transgressões; o que é que há de tão mortífero que não tenha sido destruído pela morte de Cristo? Portanto, se eu me lembrar desse remédio poderoso e eficaz, não mais temerei alguma dolência, por mais maligna que seja.
(…)
4
Eu tomo das entranhas do Senhor o que me falta, porque as suas entranhas transbordam misericórdia por entre os orifícios por onde ela corre. Trespassaram-lhe as mãos e os pés, trespassaram-lhe o lado com uma lança. E, por essas fendas, posso beber mel silvestre e azeite …, isto é, posso provar e ver como o Senhor é bom.
(…)
Tanto os pregos como as feridas proclamam que Deus está de facto em Cristo a reconciliar o mundo consigo. Uma lança trespassou-lhe a alma junto ao coração. Ele já não é incapaz de se compadecer das minhas debilidades. As feridas que o seu corpo recebeu revelam-nos os segredos do seu coração; permitem-nos contemplar o grande mistério da compaixão, a entranhável misericórdia do nosso Deus, pela qual nos visitou sol que nasce do alto. Porque não havemos de admitir que as feridas nos deixam ver essas entranhas? Não temos outro meio mais claro do que as tuas chagas, Senhor, para compreender que és bom e clemente, rico em misericórdia. Porque não há maior amor do que dar a vida pelos consagrados e pelos condenados.

(San Bernardo, SCant 61,3-4)

Testemunhos

E a peregrinação aconteceu

E a Peregrinação ao Norte de Espanha aconteceu. Entre intenso calor e chuva, por planícies e montanhas, sempre em contra-relógio, o programa cumpriu-se. Ambulantes, acelerados, em luta contra o tempo e clamando por um tempo interior maior, seguimos, visitámos, celebramos, fizemos memória. Erámos trinta e três peregrinos e peregrinas, mais o guia da agência Alegretur, o António Barbosa, e o condutor, seguro e experiente, o José. Um dos belos acontecimentos desta peregrinação foi a coesão do grupo: cooperativo, alegre, unido e motivado. O que tornou tudo mais fácil, mesmo quando se anunciava mais complicado. A gratidão de todos a todos, a cada um e a cada uma, por esta intensa e bela experiência de caminharmos em conjunto, de vivermos uma sinodalidade prática (sem pensarmos muito nisso).

Foi exigente, foi cansativo, foi intenso. Por vezes o corpo não resistia e rendia-se de cansaço. Num itinerário comum, orientado em termos de lugares, de objetivos, de mensagens, cada uma(a) vez a sua peregrinação interior. E esta peregrinação interior foi a mais importante, porque a mais pessoal. Com tensões, perplexidades, momentos de esplendor, de beleza, de interrogação. Sementes de caminhos futuros possíveis, na memória dos percursos singulares de Santa Teresa de Ávila, São Bento, Santo Inácio. Atravessando e aldrabando caminhos imaginários e reais de Santiago.

Esta peregrinação nasceu de uma alternativa após um desejo frustrado (não era possível organizar este ano a peregrinação pelas abadias da Borgonha, em França). Conhecendo e percorrendo já (quase) todos os lugares a visitar, a proposta não me suscitou inteira adesão. Mas arrisquei. Após o anúncio pela Páscoa, durante três semanas não houve respostas positivas. Apenas justificações de indisponibilidades. Pouco a pouco foram pingando adesões, depois cada vez mais, em cascata. A tal ponto que os quartos reservados já não davam. E lá tivemos de negociar mais uns quantos quartos… Fiquei feliz com a resposta numérica: impensável à partida. Que bela adesão, cruzando pessoas que frequentam a Capela, informação que passou boca a boca, ou puros contactos através da net.

Gostei de preparar esta peregrinação, em termos de espiritualidade. Nela pus empenho, investigação, rigor histórico. Cruzando expressões diferentes e complementares da espiritualidade cristã: carmelita, beneditina/cisterciense, inaciana. A experiência cristã configura-se plural, sempre existencial e biográfica, reposta singular a um apelo divino. Revisitando o passado, e a grandiosidade dos monumentos que celebram a memória histórica de um cristianismo de outras épocas, quisemos inspirar-nos para a nossa aventura crente no presente do mundo e da Igreja. Abraçando incertezas, atravessando obscuridades, vivendo roturas, inventando algo de novo, com o testemunho da própria vida, a nossa própria carne em Páscoa existencial.

Recordo três momentos que intensamente vivi, em termos pessoais e de grupo, nesta Peregrinação. O primeiro foi na Capela da Conversão, na casa onde nasceu Santo Inácia de Loyola. Nesse quarto onde se reabilitou da sua convalescença. Homem ferido na perna e na alma, homem derroto na honra, no orgulho e na valentia; homem que se reinventa a partir da mais dura experiência de despojamento e de fragilidade. Nasceu de novo para uma imprevisível aventura, a Companhia de Jesus. Celebrando a eucaristia, naquela hoje capela, outrora quarta da convalescença, derramei-me em lágrimas e quase que perdia o controle da celebração de tanta emoção. Aquele lugar envolve-nos e consola-nos.

O segundo momento foi a visita ao Museu Guggenheim, em Bilbao, único lugar que ainda não tinha visitado. Era a surpresa total. Ia com alguns preconceitos, por aquilo que outros diziam: o Museu é mais belo por fora do que por dentro. A arquitetura Frank Gehry é pujante, vanguardista, criativa, engenhosa, funcional. Os guias foram excelentes em sua preocupação de apresentar o ex libris da cidade, expressão de uma conversão arquitetónica e paisagista: Bilbao, de cidade portuária decadente, converteu-se num dos lugares mais icónicos das vanguardas contemporâneas. A visita ao interior do Museu acabou por ser rápida. Faltou-nos tempo para contemplar e fruir as obras de arte expostas. Pelas palavras de Martin Sousa Tavares, em seu livro Falar Piano e Tocar Francês, revisitei a memória da visita. E não deixo de concordar com as suas observações: a estética do lugar é linear, polida, impecável e indolor, pura arte cenográfica para selfie: «Neste museu parece não haver lugar para o desconforto, a fricção ou a inquietação».

O terceiro momento, o mais surrealista que experimentei durante a Peregrinação, foi a celebração da eucaristia na gruta de Covadonga. Lugar de uma intensa memória da resistência cristã na Península, sempre com apropriações nacionalistas e identitárias. Ali a força da água que brotava do interior das rochas e caía pela cascata silenciava tudo e todos em seu redor. Não havia palavra que lhe resistisse. Ficámos todos rendidos à eloquência e à solenidade do seu rumor. Ali só nos poderíamos pôr à escuta. Era impossível ouvirmo-nos uns aos outros. E a celebração (desconcertante) lá se cumpriu, acelerada, pois toda a palavra e qualquer gesto pareciam desapropriados. Numa me senti tão rendido e tão desconfortável. Não apenas pelo rumor intenso da cascata, mas pela disposição do altar em que celebrava de costas. E, confesso, não sei nem quero aprender a celebrar de costas para a comunidade. Foi uma perceção profundamente incomodativa. Sei o que não quero.

P. António Martins

Cânticos do labirinto1

Cântico da Peregrinação – 9 a 15 de Agosto 2024. Peregrinação preparada: Ode a S. Bento, Cantares de S. Teresa, Peregrinação Interior de S. Inácio, e Caminho(s) a Santiago. Peregrinação ruminada na curiosidade.

Saboreada no desejo de partir. Recolhida na inevitável atração pela surpresa. Peregrinação em labirinto, desafios por etapas, sonhos pelo desconhecido turvo e líquido. Calçar as sandálias, levantar a poeira, suar o pó de quantos já peregrinaram. Usar uma veste resistente e leve. Partir com bagagem pouca, essencial.

Cântico do Labirinto. “Escuta, filha, os preceitos do Mestre, e inclina o ouvido do teu coração.”2 Busca na pedra o teu coração novo. Eu vos darei um coração novo, e tirarei o coração de pedra, e vos darei um coração de carne. Vai. Atreve-te ao Caminho novo, grávido de caminhos múltiplos, caminhos sem bússola, em jeito de labirinto. Parte. Um dia em vossos átrios vale por mil.3

Cântico da surpresa. Não sabeis o dia, nem a hora. Desconhecidos: o percurso, os encontros, a hora, a paisagem. Solidão no que se vê e no que se ouve, no agora e no devir. Surpresa no quarto. Um rasgo na parede branca aponta ao largo o Castelo interior. Grava-me como um selo no teu coração. Os seus ardores são setas de fogo.4

Cântico do caminho. Caminho duro, ritmado, amarrado ao assento do autocarro. A batuta severa do cronos faz-se ouvir: quer comais, quer bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus…sede Meus imitadores. Voltai-vos para Ele e ficareis radiantes.5

Cântico da Palavra. Palavra enviada em torrente, em cascata imprevisível. Palavra forte e muda. Palavra abundante feita jejum. Tudo se cala. Pela noite a palavra solta-se, escorre dos corações. É Palavra partida, em carne partilhada. Deus enviou aos nossos corações o Espírito de Seu Filho que clama: Abá. Pai.6

Cântico da Concha. Labirinto de curvas. Névoa e chuva. Estrada cinzenta. Escarpas onde o sol se oculta. Os Picos anunciados e os lagos maravilhosos teimam em ficar escondidos, fechados na concha. A sabedoria virá ao seu encontro. Por fim, cumpre-se a promessa: desdobra-se a costa, na concha. Fará brilhar a tua luz, como a justiça, o sol aparece. As montanhas abraçam areia e mar. Pai Santo, dei-lhes a conhecer o Teu nome, para que o amor com que Me amaste esteja neles e Eu esteja neles.7

Cântico da Glória. A concha guia o Caminho, até ao centro do labirinto: A Catedral – Santiago. Mais uma vez, a pedra feita louvor e exaltação. Ora e labora. Encontraram-se a misericórdia e a fidelidade, abraçaram-se a paz e a justiça. Cântico dos peregrinos que Deus abençoa do alto dos céus. (…) Para instaurar todas as coisas em Cristo.8

Cântico do Finisterra. Porque olham para o céu? Aquele que for o maior entre vós, será o vosso servo.9

Cântico do coração do labirinto. Chegar. Olhar o céu na terra. Guardar os rostos. Dar abraços. Um recado final: Nada absolutamente nada, anteponhas a Cristo que nos conduz juntos para a vida eterna.10

Isabel Vale

 

1 Os cânticos cruzam a minha experiência da Peregrinação com a releitura espiritual do Guião para as liturgias.

2 Regra S. Bento-Prólogo 9/07/2024 – Partida

3 (Ez 36-26) (Ef 2-21) 9/07/2024 – Catedral de Salamanca.

4 (Mt 25,13) (Ct 8,6) 10/07/2024 – Casa de S. Teresa. Ávila.

5 (1 Cor 10,31) (Sl 33) 11/07/2024 – Capela da Conversão. Loyola.

6 (Gal 4,6) | 12/07/2024 – Nossa Senhora, Raínha da Paz. Santuário de Covadonga.

7 (Sir 15,6) (Sl 36) (Jo 17,26) 13/07/2024 – Memória de S. Bernardo. Mosteiro Cisterciense Santa Maria do Sobrado.

8 (Sab 10,11) (Ef 1,11) 14/07/2024 – Catedral de Santiago de Compostela.

9 (At 1,11) (Mt 23,12) 15/07/2024 – Memória de S. Boaventura. Igreja Paroquial de Santiago. Padrón.

10 Regra S. Bento 72 15/07/2024 – Chegada com o Guião Litúrgico.

Querer encontrar um caminho

Foi por acidente – ou por uma feliz coincidência – que me deparei com a Capela do Rato. Este encontro foi muito importante para mim pois há muito tempo que tento encontrar o meu caminho.

Tenho vindo a navegar bastante sozinho. Na tentativa de sair desse “isolamento”, a ideia de fazer uma peregrinação esteve sempre no meu horizonte. Aliás, cheguei a estar perto de uma ida à Terra Santa – que infelizmente foi suspensa devido aos confrontos que irromperam em Outubro do ano passado. Assim esta proposta do Padre António foi uma oportunidade a não perder.

A nossa viagem foi proposta como uma forma alternativa para chegar a Santiago, pois jamais seria uma peregrinação tradicional e “formal” – seria antes uma viagem à fábula, à história. Iriamos, naturalmente, à procura da espiritualidade, mas com a oportunidade para sentir e reconhecer essa espiritualidade dentro do contexto histórico das lendas e do culto.

O Padre António, através das suas intervenções ao longo do percurso entre os lugares visitados, desvendava contextos, factos históricos, pressupostos e desafiava-nos a entender as realidades do passado que resultaram na imensa espiritualidade dos santos que fizeram como se erguesse os muitos monumentos que visitamos.

Esta deslocação patrocinada pelo Padre António levanta questões: Como construir sobre este dom que me foi dado pela viagem? Quais serão os meus próximos passos no meu compromisso para com a minha fé?

Crispin Stilwell

Peregrinação coletiva, peregrinação interior

Partimos de Lisboa às 6.30 da manhã num belo autocarro guiado pelo Sr. (?)
Éramos 32 com o Padre António, bendito seja pela sua sabedoria e empenho; o
António guia que nos ia salvando sempre; a Cristina com a guitarra, a Isabel e a
Teresa incansáveis nas músicas. Eu com o meu banquinho.

SALAMANCA

Visita à catedral e universidade. Um início de peregrinação magoado, ainda cheia
do desapontamento relativo a uma crise familiar que me questiona nos
fundamentos primários da educação religiosa. Além de que nunca fizera uma
excursão em grupo. Cansaço num primeiro dia intenso, mal sabíamos que a
intensidade se tornaria cada vez maior com horários impossíveis que sempre se
cumpriam.

Hotel medíocre. A única refeição de má qualidade..

Dia 10
Saída às 7.30h, todos cumprindo as regras.

ÁVILA

TERESA
A irreverente, a temerária por natureza. A criança que foge de casa arrastando o
irmão numa altura em que a sujeição era incontornável. A mulher que rompe, que
faz escolhas, não me convém este confessor, procura outro, e outro. A cristã que
ousa enveredar pelo misticismo individual, a pessoa que assume o seu caminho
independente, entregando-se a um Deus que não conhece, um Deus misterioso
que não dá garantias, apenas sugere. A noite escura que o seu amigo João da Cruz
tão bem regista, a insegurança da buscaa no negrume interior.

Como a outra Teresa, a pequenina, a doce de Lisieux, que entra em crise de fé no
fim da vida, agora entendo os ateus, o combate com as trevas, morre na ausência
de Deus- Doutora da Igreja como a Mestra.

Seguimos viagem para São Domingos de Silos numa correria magistralmente
conduzida com a perícia do nosso motorista por entre montanhas e vales em
estradas dignas dos mais exigentes ralis. Realizou-se o impossível: conseguimos
chegar 5 minutos depois do fecho do mosteiro e o guarda lá se convenceu a
deixar-nos entrar.

SANTO DOMINGO DE SILOS

O mosteiro despojado com o claustro mais belo que já vi. Um românico cheio de
figuras do Evangelho, não de gárgulas demoníacas.

A espiritualidade na pedra, a tranquilidade no silêncio beneditino. Sinto os séculos
de fé encastrados nas esculturas medievais. Maravilhosas. Mil anos passaram e
os caminhos de misericórdia dos monges continuam em cada um de nós. O padre
Carlos, português residente, celebrou connosco a alegria da renovação.

Obrigada por me trazerem aqui permitindo-me uma pausa na luta com Deus.

BURGOS

A Catedral riquíssima, construída em diferentes fases, contrasta com a
sobriedade do estilo românico que ainda integra.
Gótico flamejante que grita a majestade.
É obra de gerações sem assinatura e os sumptuosos altares são de ouro puro
vindo das américas. Espanha nos seus excessos religiosos – uma beleza estética
impressionante, um poder imperial.
Por opção, prefiro o mosteiro de Silos para encontros com Deus.

 

BILBAO

Bilbau e a reconstrução das ruínas. A Arte do nosso tempo que rompe a estética
habitual. A arte difícil das emoções num mundo em crise.

Duro procurar beleza nas formas despojadas que pedem orientação para
desconstruir paradigmas. Assim precisamos nós, enquanto Igreja, de dialogar
com os sinais dos tempos. A REDENÇÃO TEM NOVAS REFERÊNCIAS

Deslumbramento quando se entende um pouco desta estranha arte despojada e
simbólica ao desafiarmo-nos a nós próprios à renovação. Como Teresa e Inácio,
sem quebrar o fio condutor que nos justifica.

 

LOYOLA

INÁCIO

De novo o rebelde que se atreveu a renovar numa época que precisava de
renovação.

Com urgência.

Inácio que teve confiança na missão de Deus e se sentiu capaz de a começar, não
sozinho, mas com uma comunidade. Arrostando a excomunhão. Mantendo-se
sempre na ortodoxia. Humilde. Teimoso.

Criou diálogos, não efetivou cisões. O que não era fácil neste tempo de grande
crise da Igreja renascentista que abalou mil anos eclesiais. Mil anos construídos
com labor e tatuados na pele dos cristãos. Uma crise que desembocava no maior
golpe na unidade cristã impregnada pelo poder sociopolítico – a religio.

Uma grande crise que tem vindo a agravar-se até aos nossos dias, desaparecido
que está esse poder de tantos séculos.

Obrigação nossa repensar tudo com a mesma audácia de Inácio, o gentil-homem
da Corte que se tornou peregrino de Deus. Sem vacilar, como ele que enfrentou o
poder com a FÉ.

A força de Inácio mantém-se até hoje dentro de cada um de nós, munida da Boa
Nova de Jesus Cristo: Deus é Pai e Jesus o caminho.

 

COVADONGA

Para mim, o clímax da peregrinação coletiva e interior.

Uma missa para memória futura.

A natureza, as fragas, as cascatas, Deus e sua mãe na gruta de pedra encontrada
no fim do caminho na rocha. O silêncio no bramido das águas. A entrega. Faz de
mim o lápis que escreve (madre Teresa de Calcutá) Missões impossíveis num
mundo onde Deus tem cada vez menos lugar. Vozes inaudíveis no fragor dos
ruídos, no excesso das mensagens, a simplicidade. Romper e aceitar a noite
escura do mergulho no impossível. Lendo os sinais do tempo.

 

OVIEDO

Não me lembro muito bem, apenas de mais uma rica catedral na época em que a
Igreja geria o mundo ocidental. Jesus Cristo pobre adorado no ouro e na beleza;
era o modo de criar o espaço da espiritualidade e do espanto com a majestade de
Deus, um modo que já não funciona hoje embora continuemos a sentir lá dentro o
pulsar emotivo da fé.

Aproveito uma pausa na vertigem para referir:

  • O Padre António e o saber que acumulou para nos dizer
  • A Cristina na bela interação dos mosteiros com a natureza cujos códigos ensinam
    sobre os costumes do acolhimento; além das músicas e das vozes animais.
  • A Leonor que na sombra secretariou. O António guia com as suas histórias
    oportunas e os timings alucinantes cumpridos.
  • Os companheiros de viagem sempre atentos aos mais precisados.

 

SANTIAGO

O ponto de chegada dos peregrinos que sofriam longas caminhadas e privações
para chegar aqui, movidos pela fé. Caminhos pedregosos através das montanhas,
abertos durante séculos por gente de todas as raças, de todas as classes.

Muitas leituras podem ser feitas: a carrinha da televisão no meio da praça e os
vendilhões do templo não é a única.

Duas noites menos aceleradas, a euforia da vitória de Espanha no mundial.

 

BRAGA

Uma surpresa bem guardada que fechou sabiamente uma peregrinação que
iremos continuar nos caminhos do mundo.

Estamos aqui, no laboratório teológico da capela que se reconstrói em qualquer
lugar. Os símbolos descodificados para nós pelo próprio arquiteto (ele e o gémeo).
Uma capela despojada de todos os enfeites, o local da palavra frente ao altar, não
ao lado, o sacrário aberto numa caixa que se desdobra para o enquadrar.

Uma capela criada no centro do seminário medieval e que pode ser transportada
para o centro das catedrais comerciais ou das redes que se enredam na
comunicação do absurdo, da despersonalização.

Deus connosco, transportando-se connosco. Sem distrações aleatórias.

Bem-haja Padre António pela fina sensibilidade.

CADA UM DE NÓS É UMA CATEDRAL ONDE DEUS HABITA.
A PEREGINAÇÃO INTERIOR BUSCA DEUS EM NÓS E NO OUTRO.

Espero que continuemos juntos o que começámos porque a crise na Igreja é
talvez maior que a do tempo de Teresa e Inácio. E não podemos ficar confinados
num pequeno grupo fechado e sim ser fermento.

OBRIGADA AO PADRE ANTÓNIO E A TODOS, COMPANHEIRAS E COMPANHEIROS

Estoril, 17 de agosto de 2024
Luísa Beltrão

Uma peregrinação especial

Na sequência do recente reencontro com a Comunidade da Capela do Rato, no alvoroço dos sulcos das minhas memórias do início da década de setenta do século passado, a recente Peregrinação ao norte de Espanha representou um novo debruçar sobre a janela das minhas fontes.

Cada viagem vale muito pela sua preparação e oportunidade de reflexão sobre os outros e sobre si próprio, permitindo absorver os conhecimentos e os valores de uma nova experiência de vida.

Na preparação deste relevante Projeto, saliento os conteúdos das conferências e das fontes documentais, iniciativa muito oportuna do Pe. António, que continuou nas suas valiosas intervenções sobre o enquadramento histórico e espiritual em cada etapa bem como nas homilias diárias. Oportuna e útil cascata de informação a revelar a luz dos faróis da Igreja, Santa Teresa de Ávila, Santo Inácio de Loyola e Santiago de Compostela, as suas singulares histórias, os notáveis exemplos dos seus testemunhos de vida e os transcendentes valores das suas mensagens.

Esta Peregrinação representou um compromisso de abertura e partilha em comunidade que nos agregou e identificou em livre e plural mosaico de vivências e reflexões. Oportunidade de revisitação das fontes essenciais em singelo itinerário pessoal e coletivo.

Fontes de carinho / gestos simples / a iluminar o caminho.
Fontes de acreditar / águas cristalinas / a fixarem o olhar.
Fontes de verdade / indelével maresia / em sincera bondade.
Fontes de diálogo / lavra da palavra / no alicerce do voo do arado.
Fontes de paz / esperança nos corações / em tão atribulados dias.
Fontes ingénuas / íntima maresia / de fecundo silêncio.
Fontes de fé / mensagem espiritual / de lugares santos.
Fontes em fermento / dos grandes exemplos / e seus históricos templos.

Fontes de reflexão em diálogo que continuam a gotejar nos veios da memória desperta, gerando novas janelas de gestos e partilha de valores em comunidade.

Manuel Lopes Marcelo

Um itinerário, uma peregrinação

Cortesia
Dia 9 de Julho de 2024 saímos do largo do Rato em Lisboa 33 pessoas, umas amigas, outras conhecidas e outras, totalmente desconhecidas. Todos bem-comportados. Ao fim de uma semana, continuamos bem-comportados, mas a relação era outra, muito diferente, como mínimo mais próxima.

Aproximação
Mais que uma catarse ou grande transformação espiritual, esta peregrinação foi, para mim, um caminho relacional. Tão giro. Sempre em movimento, tantas saídas e entradas à procura do tempo para ter tempo, que não existia nunca.

Territórios, paisagens e liberdade de oração
Tantos sítios, tantas horas de viagem, tanto desejo de encontro nas paragens, tanta boa disposição, descontração e disponibilidade!
Talvez, como no Evangelho de S. Marcos, um quase périplo do desassossego de Jesus com os apóstolos, a chegar, falar, comer, dormir, partir. E repete, repete e repete este ritmo. E do cansaço e tempo de viagem nasce a vontade de comunicar. A relação surge.
Não será esse o caminho do Espírito: criar um ponto de partida numa viagem incrível, saborosa e muito divertida?
Para mim a experiência espiritual desta peregrinação foi a relação e a evolução desta, minuto a minuto. Foi bom, muito bom!

Espiritualidade: experiencia de Deus em mim ou orientada?
Por mais que ouvisse o P. António, as grandes pistas espirituais para a nossa meditação…pois. Mas, na dita Peregrinação, houve umas introduções aos lugares.
Teriam sido lançadas antes da viagem, nas sessões de preparação cuidada que a antecederam e eu tinha deixado passar. A consequência? Quem quis meditou, rezou, partilhou a sua tranquilidade ou o seu espanto por ter, talvez, de se encontrar com Deus sem “muletas”, sem cartilhas, apenas sentir com surpresa, sem ela em cada lugar.

A estranheza da liberdade de estar com Deus ou o privilégio?
Silos e Santiago. No primeiro não sei o que senti de tal forma fiquei embasbacada! Com densidade de elementos para ver, sentir, sorrir, meditar, cantar… uma tal dose para tão pouco tempo que me senti … aparvalhada. Apetecia-me ficar ali a contemplar.
Em Santiago enterneceu-me e comoveu-me o que o P. António chamou “A teologia do amor”. Nos seculos XII e XIII, na fachada da porta lateral, em esculturas do lado esquerdo, Adão e Eva a saírem do Paraíso… e Deus, de braços abertos, que os acolhe no abraço! À direita, Tomé, que toca os estigmas de Jesus, e da mesma forma, sai em dor, e Deus, lá está, de braços abertos! Que maravilha, o resgate amoroso dos “descrentes”, que delicia. No século XIII, em plena escolástica?! Que delícia.

Não sei se é a estética, se é a espiritualidade; sei que Deus nos chama para aventuras.

Cristina Joanaz

Um turista peregrino

Entrei na peregrinação organizada pela Capela do Rato ao Norte de Espanha, porque ia a sítios turísticos que gostava de conhecer. Mas era uma peregrinação e as visitas tinham como é evidente muito de espiritual.

E felizmente, pois fizeram-me sentir, perante as magníficas catedrais em pedra, espaços em que a luz, o som e configuração facilitam a abertura a Deus, que pela nossa parte somos pedras vivas da Igreja, mas em constante polimento pela vida fora.

Depois houve visitas a locais como Ávila, que me tocou pela vida e testemunho deixado por Santa Teresa, que com humildade, perseverança e muita oração nos mostrou como nos podemos aproximar de Deus. Ou como em Loyola, onde Inácio, de família nobre, ferido numa batalha, se virou para Deus que lhe virou a vida, a dele e a da Igreja. Conseguiremos também transformar as noites das nossas vidas em claridade?

Santo Domingo de Silos, com a beleza do claustro românico e a oração em gregoriano cantado pelos beneditinos, não me deixaram indiferente. A beleza de Covadonga, uma pérola da criação, e a memória do conflito de cristãos e mouros em tempos idos fizeram-nos pensar quanto temos de fazer tanto para preservar a natureza como para incentivar a paz entre os povos.

Segue-se o Sobrado dos monges, um dos últimos abrigos para caminhantes antes da entrada em Santiago, onde são acolhidos, tratados e reconfortados. É a ordem de Cister na sua vertente de acolhimento aos peregrinos. E chegámos a Santiago de Compostela, na minha imaginação uma anti-Torre de Babel; há pessoas de muitas raças e línguas, vindas de caminhos e por modos diferentes, mas que em vez de se dispersarem e confundirem, encontram-se para em conjunto louvar e glorificar a Deus. O verdadeiro Caminho de Santiago não é o que se faz a pé, de bicicleta ou de carro, mas antes o caminho interior que cada um de nós faz neste percurso, que passa por aqui, Santiago de Compostela, e continua, confiando que siga agora um rumo diferente, com objetivos e esperança renovadas, mas, sempre sempre o mesmo caminho vida fora.

Foi muito bom, também pelo fantástico grupo em que todos nos entendemos e confraternizamos, e pelo bom acompanhamento espiritual e também pelo turístico.

Bendito seja Deus, e que esse tempo seja para todos ponto de mudança de vida.

Miguel Veiga

Algumas notas sobre a Peregrinação

Quando o Pe. António nos falou pela primeira vez sobre a possibilidade de estar a pensar estruturar uma peregrinação ao norte de Espanha senti-me um bocado na dúvida… seria que a população envelhecida da Capela iria aderir?

Aguentariam? O seu entusiasmo seria suficiente? Salvaram-nos os aderentes digitais. Pela minha parte, achei que pelos locais a visitar, pelo menos não se perderia a paisagem, porque, quanto a peregrinação tive algumas dúvidas se “pegaria”.

Como me enganei!!!

Não vou falar de todos os locais visitados, embora logo de princípio me tivesse entusiasmado Loyola e Ávila, não só porque sou entusiasta apoiante da Companhia de Jesus, mas também porque Santa Teresa sempre me cativou. Eram para mim estes os dois locais que me despertavam maior expectativa e que a preencheram amplamente. No entanto tive uma grande surpresa ao chegar a Covadonga. Todo o ambiente, a grandiosidade da natureza que nos rodeava, me fizeram pensar que, para mim, era ali que começava a peregrinação. A pequenez do homem perante a grandiosidade que nos rodeava, a enorme força sentida no santuário, mesmo que não tenha ouvido nada ou pouco do que o Pe. António disse, fizeram com que aquela missa tivesse sido um forte momento em que me senti mais perto de Deus.

Cantei e só me ouvi por dentro, a força da água só nos deixava ouvir o que não se ouvia aos ouvidos humanos. Quando penso nesta peregrinação é neste momento que logo me lembro.

Por outros motivos, o Mosteiro de Sobrado, Santiago de Compostela e o Guggenheim de Bilbau foram outros dos pontos altos. Imagine-se agora que a maior surpresa foi a de Braga e a jóia que o Pe. António nos deu a conhecer. Fiquei extasiada e quero lá voltar para ver a igreja que não chegámos a ver. Para o fim ficou todo o ambiente, carinho, amizade, entreajuda e alegria que se fez sentir entre todas as pessoas que nos acompanharam e que, sem elas, nada teria sido tão bom como foi. Um grande Obrigada a todos do fundo do coração.

Um Obrigada especial ao Pe. António que pôs todo o seu empenho nesta peregrinação e que a preparou com tanto cuidado e carinho.

Leonor Fernandes

Por que não ir?

Vamos? Pergunto-lhe eu a ele?
Vamos? Pergunta-me ele a mim?
Vamos, concordamos os dois.
Por que não ir?

Já por várias vezes havíamos falado, em família, em ir a Santiago de Compostela, em turismo. Porque não irmos em peregrinação, integrados numa comunidade religiosa, com espírito de peregrinação, isto é, com espírito de devotos de Cristo, que somos, rodeados de pessoas que não conhecemos, é certo, mas que deverão estar imbuídas do mesmo espírito?

Mas se não estivessem? Se fosse apenas uma excursão de reformados em ocupação dos seus tempos livres? Longos percursos de camioneta. O desconforto de horas e horas sentados. Uma canseira.

Mas depois havia também o Padre António Martins. Iriamos certamente ser catequizados com os seus ensinamentos, com palavras leves e simples, mas que nos transmitem tanto, tanto…. E soube aguçar-nos o apetite, com os ciclos de encontros, os locais que iriamos ver. Completamente convencidos. Vamos embora. Vai ser bom.
Bora lá então.

Dia 9 de Julho, a caminho, 6h30 da manhã no Largo do Rato, ponto de encontro.
Primeiro local Salamanca. Cidade Salamanca, cidade é conhecida pela elaborada arquitetura em arenito e pela Universidade de Salamanca, cidade para cuja agitação contribui a sua população de estudantes internacionais, que já conhecíamos, porque também a nossa filha aí fez parte da sua formação académica, em ERASMUS, mas que teve outro sabor: acompanhados de guia, tudo fica mais claro.

Depois Ávila e S. Domingos de Silos, e missa na casa natal de Santa Teresa de Ávila. Que alegria, Senhor. Obrigada Padre António Martins. O nosso coração encheu-se de sentimentos de Paz.

Após, Burgos, Azpeitia e Bilbao. Visita e missa no Santuário de Loyola. Mais um momento de intensa introspeção e paz.

E seguiu-se o dia que foi para mim o mais intenso, que mais me encheu a alma e de que não esqueço nem um pormenor: Parque natural dos Picos da Europa, Santuário da Covadonga dedicado à Virgem de Covadonga, “La Santina”.

Talvez pela mistura da vegetação espalhada pelos enormes picos que rodeavam o local, o silêncio, só interrompido pelo ruído de uma queda de água que perfurava a montanha, foi para mim, e perdoem-me todos os que não serão da minha opinião, o local que mais me preencheu. Tudo contribuiu para a criação de um ambiente de entrega, despojamento e meditação que ainda hoje me arrepio quando relembro: altas montanhas verdejantes a envolver-nos, uma humidade que provocava uma luz natural penetrante e uma cova dentro de uma rocha, sob o som permanente de água a jorrar e a imagem da virgem. E depois a liturgia do Padre António. Senti-me só eu, o ruído da água e as palavras do Padre António Martins. Senti o meu interior despojado, totalmente aberto a pensar na minha vida, a pedir perdão a Deus por muitas vezes me achar só e sem o seu colo. Chorei, rezei, falei com Ele, agradeci à Virgem de Covadonga e prometi voltar.

No dia seguinte, Oviedo, Mosteiro do Sobrado dos Monges. E uma missa com um monge português aí residente. Senti-me totalmente em Portugal. Curioso.

E finalmente, Santiago de Compostela. Achei demasiado turístico, demasiada gente, muita confusão. Confesso que não me senti integrada, nem introspetiva. Confesso que tive dificuldade em conseguir concentrar-me, rezar ou estar junto d`Ele. Fiquei triste por isso. Esperava muito mais daquele local. Deus me perdoe.

Por fim Padrón. Com as “connections” do Sr. Padre António Martins tivemos uma visita especialíssima a um Seminário de local, com explicações preciosas de um dos arquitetos autores do projeto de um pequeníssimo local de oração, que se podia achar, até, austero, mas que tudo foi pensado e colocado ao pormenor, para mais intima oração a Deus.

Peregrinar não é apenas executar um trajeto com um determinado número de quilómetros, uma jornada realizada por um devoto de uma dada religião a um lugar considerado de culto para essa mesma religião; é reconhecido que peregrinar implica caminhar-se motivado “por” ou “para algo”.

Senti isso nesta Peregrinação organizada pelo Sr. Padre Martins, da Capela do Rato.
Até porque me encontrava num momento especialmente sensível e carente de apoio espiritual, que recebi na maior parte dos locais que visitei. Senti-me apaziguada em algumas das minhas dores interiores. Até os percursos de camioneta, que eu temia cansativos e desmotivantes, serviram para meditar e me encontrar com Deus.

Por alguma razão se diz que cada peregrinação tem um sentido e um valor acrescentado que é necessário descobrir por cada pessoa que a executa. E assim foi.

Obrigada Sr. Padre António Martins. Até à próxima!

Ana e António Ramalho

Uma peregrina algarvia

O que dizer em algumas linhas?

Antes de mais quero salientar a forma cordial como esta parcela da comunidade da Capela do Rato me acolheu, pois embora não sendo parte dela, senti-me com se o fosse.

Foi muito, muito bom!

Em relação à peregrinação em si, posso dividi-la em duas partes distintas.

A primeira, a visita a cada um dos lugares que todos tivemos o privilégio de visitar onde pude admirar a beleza incomensurável de cada um deles.

Saliento os que mais gostei:

O Claustro de São Domingos de Silos, a cidade de Avila e em particular a casa de Stª Teresa, o mosteiro do Sobrado, e a catedral de Burgos.

Para além das magnificas obras arquitetónicas, não posso deixar de salientar a beleza natural tanto da zona costeira, como da montanhosa que percorremos até chegar a Covadonga, onde a força da água que jorra da nascente nos fez calar a todos.

Em relação à vertente espiritual, posso testemunhar que vivi momentos muito bonitos e de muita interioridade, principalmente durante a participação em cada uma das celebrações da eucaristia, onde vivi e senti momentos de muita paz interior.

Foram dias de crescimento espiritual onde apesar de ter percorrido muitos quilómetros, tive tempo de parar por alguns momentos.

Resta-me agradecer a todos e em particular ao meu querido Pe. António, pois foi ele o responsável por esta magnifica aventura.

Um forte abraço a todos e até uma próxima se Deus quiser.

Isabel Camilo
(a algarvia)

Convivência Pacífica

As «vistas», naturais e humanizadas, foram excecionais, similares em Portugal e Espanha, vendo considerável diferença agrícola, reduzida no percurso da A 23, nas zonas planas, abundante em Espanha, revelando que os portugueses não rendem os seus talentos nos bens que estão a seu cargo.

Curioso vermos eucaliptos em Portugal praticamente em todo o país, quando em Espanha só nos Montes Cantábricos, de Covadonga para a Galiza.

Os monumentos são muito trabalhados e cuidados, os religiosos relevantes para a Cristandade, mostrando o apoio do Reino dos Francos, cuja união de esforços permitiu a Reconquista.

A Universidade de Salamanca foi grande centro cultural, inspiradora a Francisco de Vitória de defender a igualdade dos indígenas americanos aos ocidentais, ou seja, os Direitos Humanos, depois reafirmados pelos filósofos franceses na Revolução Francesa.

A igualdade conventual implementada por Santa Teresa de Ávila. A maravilha da Catedral de Burgos que alberga o túmulo de El Cid. O claustro em S. Domingos de Silos mostrando baixos-relevos de cenas bíblicas, um dum resgate de cristãos dos muçulmanos através de pagamento.

A casa natal de S.to Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus e o convento associado, mostram-nos a vida dele um nobre militar ferido defendendo Pamplona do cerco por Francisco I de França, que se recuperou na fortaleza parental, através das leituras de biografias de santos e se converteu. Foi o fundador da dita companhia por reconhecimento do Papa Paulo III, que a redirecionou da Terra Santa em 1540, para serem os obreiros da Contrarreforma. Faleceu em 31/07/1556. Foi beatificado em 1609 por Paulo V; canonizado pelo P. Gregório XV em 12/03/1922. É festejado em 31 de julho.

Impressionou-me igualmente o museu Guggenheim, em Bilbao, maravilha da arte moderna.
A magnitude da Natureza em Covadonga, onde Pelágio das Astúrias derrotou os mouros e permitiu a primeira vitória cristã na Península.

O espólio religioso magnífico em Oviedo, muito interessante.

A estatuária em Padrón e a monumentalidade em Compostela interessantes, lamentando a falta de partilha da homilia e da Oração dos fiéis aos responsáveis peregrinos estrangeiros, que daria universalidade à cerimónia.

A mensagem peregrina que relevo, é a conveniência da unidade cristã no mundo, importante para a divulgação da Boa-Nova, caminho para a sociedade humanizada ocidentalizada, fundamental para a “convivência pacífica”, crendo ser incompatível com discursos contra os direitos humanos que o Ocidente não deve esconder nas relações económicas, políticas e culturais.

Joaquim Freitas