É o amor que nos funda, que nos faz viver. Toda a nossa vida, em cada dia renovada, é a resposta possível e falível a esse amor primeiro, incondicional que nos é dado: o amor do Pai pelo Filho que chega a cada um de nós: «o amor vem de Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus»; «porque Deus é amor», assim sintetiza a Primeira Epístola de S. João. Todo o amor humano, nas suas diferentes formas de expressão, é resposta ao amor de Deus que funda e inspira em nós o amor de filhos amados, capazes de amar: «não fomos nós que amámos a Deus, mas foi Ele que nos amou e enviou o seu Filho». Daqui as implicações práticas e concretas, a contínua construção e reconstrução do tecido das nossas relações, sempre em risco, sempre em recomeço: «Amai-vos uns aos outros (…) porque Deus é amor». Respondemos ao amor do Pai pelo Filho praticando, tentando experimentar, o estilo do Filho: «É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei».
«Amai-vos uns aos outros». Não se ama no abstrato; todo o amor é concreto, pessoal e interpessoal, ou não é. Amar é uma prática, e não uma ideologia. Procuramos amar pessoas concretas, com corpo singular, identidades, história. Ama-se esta mulher que nos parece desconhecida, mesmo convivendo com ela há mais de 50 anos. Ama-se este homem que nunca mais se emenda, repetindo sempre os mesmos defeitos. Ama-se aquele rosto asiático com turbante, ou aquela mulher com o véu a tapar-lhe o rosto; ama-se aquela pessoa trans com a sua enigmática e indecifrável estranheza; ama-se aquela pessoa doente, ou com deficiência… Amar é tocar a pessoa concreta, corpo a corpo, face-a-face. Sempre com esforço e fadiga, com aquela sensação de não sermos capazes, de não estarmos à altura…
«Amai-vos uns aos outros como eu vos amei»: Não há medida, não há metro, não há peso para o amor. O Amor não se mede nem se quantifica. Vive-se e arrisca-se ao estilo de Jesus. O seu estilo nos inspira em nossa aventura pessoal de resposta ao Amor. Com uma liberdade inventiva, até para falir e recomeçar. Como Cristo amou, em seu corpo de contacto, feito cuidado, asilo, hospital, abraço compassivo. E por fim, corpo-grão de trigo dado, num amor até ao fim, para que os amigos (os irmãos) tenham vida em abundância. Não sabemos nunca «como». Porque aprende-se a amar amando, deixando-nos amar, sem manual de instruções, sem GPS. Se amamos, mesmo com possíveis riscos e falhas, sempre prontos a recomeçar, a nossa vida não falha. Vai-se cumprindo. Com custo e fadiga, atravessando sempre o desconhecido. E descobrimos que amando somos felizes. «Gente feliz com lágrimas».
Bem o sabemos também: o amor não é um sentimento quimicamente puro. Pode comportar desejos de posses, violências passionais. É sempre imperfeito, praticado por ignorantes, aprendizes, que somos nós. Todos guardamos, na memória dos nossos amores e desamores, silenciosas feridas. Quando, corajosa e humildemente verbalizadas, estas feridas podem ser reparadas e curadas. O amor cria espaço, é hospitaleiro. Precisamos continuamente de treinar a hospitalidade e a inclusão, neste ginásio existencial que é a arte de aprender a amar e a perdoar, a reparar. Profundamente gratos pelo que recebemos, pelo que somos, por quem nos habita, por quem nos ama ou nos amou. Mesmo que o amor tenha chegado ao fim, houve nele, nessa promessa falida, um traço do amor de Deus.
Mudo de registo.
A democracia tem origem no povo, não é de origem divina. Mas estou convicto de que na fidelidade ao evangelho, a democracia é aquele regime político que mais se pode aproximar da Santíssima Trindade, de um Deus amor, comunhão de pessoas, pois é unidade na pluralidade; inclusão de todas as diferenças e singularidades sem renunciar a um projeto comum de sociedade. Precisamos de honrar todos aqueles e aquelas que antes do 25 de abril lutaram pela liberdade, pela democracia, pelo fim da censura política, pela paz e pelo fim da guerra colonial. Católicos militantes, formados na escola da Ação Católica, inspirados na Doutrina Social da Igreja, nos sindicatos, nas revoltas académicas dos anos 60, no aparelho da administração pública, na urgência da mudança nos princípios dos anos 70. O Concílio Vaticano II tinha marcado a consciência católica num diálogo sincero com o mundo contemporâneo, no compromisso pelas causas comuns da liberdade, da democracia, da justiça social. Se o 25 de abril é iniciativa militar (e honra aos Capitães de Abril), é também expressão de uma consciência nacional e de uma urgência que se vai consolidando. Daí a imediata adesão popular. A revolução mais bela e mais poética do século XX, como alguém disse, foi a nossa revolução dos cravos, em que a poesia desceu à rua. Essa festa que este ano celebramos, a festa da nossa unidade, do nosso projeto comum de País, do que nos une, sem ser propriedade de ninguém. Andando nesse dia pelo País em comboios, tive pena de não ter estado na Avenida da Liberdade.
Precisamos de honrar também aquele e aquelas que no pós-25 de abril, até hoje, lutaram e lutam pela democracia. Nestes 50 anos, a democracia teve avanços, recuos, impasses, novos impulsos; houve quem não aceitasse uma democracia representativa e quisesse um regime totalitário. Houve quem resistisse a essa deriva. À data fundadora do 25 de abril, outras se seguiram igualmente importantes no processo democrático: as eleições de 25 de abril de 1975 para assembleia constituinte; o 25 de novembro de 1975 que nos devolve a estabilidade democrática; a consolidação da democracia na alternância democrática depois; a integração de Portugal na União Europeia, a alegria de ser cidadão da Europa sem fronteiras, a dimensão social da construção europeia. A democracia é o nosso espaço comum de identidade, mas também de responsabilidade. É uma herança a cuidar pois é um bem frágil. A história recente já o demonstrou: através das próprias regras democráticas a democracia pode ser destruída por dentro e instaurarem-se regimes totalitários que instrumentalizam o medo, o ressentimento, a cólera coletiva devido às injustiças sociais.
Na fidelidade à herança democrática, pertence a nós, no presente, reinventar a democracia, renová-la, dar-lhe vitalidade e futuro corrigir as injustiças, conter os riscos que a minam. E a nós cristãos, a convicção de que a democracia é, certamente, o regime político que mais se aproxima do mistério trinitário, do Deus que é Amor.
Com a convicção e o compromisso de todos nós.
Pe. António Martins – Homilia do VI Domingo da Páscoa
