Em nosso itinerário quaresmal, guiados pelo ritmo da Palavra de Deus, a liturgia apresenta neste II Domingo da Quaresma a leitura do evangelho da transfiguração Jesus no Tabor (versão de Marcos). Jesus precisa de pacificar e consolar os corações inquietos dos discípulos. Pouco tempo antes tinha-lhes dito o primeiro anúncio da sua paixão: «o filho do Homem tinha de sofrer muito… ser rejeitado… ser morto e ressuscitar». Os discípulos não conseguem aceitar, porque lhes é inconcebível que o seu Mestre seja crucificado: isso é escândalo e impensável. Pedro até procura impedir Jesus. Atravessam uma crise de esperança. Por isso Jesus apresenta-se a eles a partir da sua identidade filial mais profunda, com o esplendor da glória divina.

No desespero dos tempos presentes, em que somos vencidos pelo horror da violência, pelo caos da guerra sem fim, pelos ódios homicidas, pela prepotência de Estados em iluminar os seus opositores, pelo pouco valor e dignidade que pode ter a vida de milhões de seres humanos, a leitura do evangelho da transfiguração é consoladora. Oferece-nos uma visão de encanto, de não rendição à brutalidade do mal no espetáculo de violência e de destruição. Devolve-nos uma promessa de esperança: A promessa de que as trevas não apagarão o esplendor da luz; que o destino da humanidade e de toda a criação, não é o horror da destruição e do caos, mas a transfiguração, a incandescência da matéria iluminada, purifica, transfigurada pelo esplendor da glória do Ressuscitado.

Sublimo três aspetos do evangelho: a subida ao monte, a beleza da transfiguração e o envolvimento pela obscuridade da nuvem. Primeiro aspeto: «Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e subiu só com eles para um lugar retirado num alto monte». Os primeiros discípulos que foram chamados, são convocados agora por Jesus para uma experiência íntima, um encontro ao nível da profundidade do seu ser Filho na relação com o Pai. Para esse encontro, precisam de subir a um monte. O encontro íntimo com Jesus implica deslocação para outro espaço, esforço de subida, movimento de passagem de um lugar a outro. Isso nos diz quanto a vida cristã é movimento, contínua deslocação. Nenhum lugar podemos dado por adquirido: nem o lugar da nossa habitação, nem os lugares das nossas relações e afetos, nem os lugares das nossa ideias e produções. Enquanto vivermos, estamos a subir o monte, com fadiga, com cansaço, sem ver o final do caminho, incertos entre o que falta percorrer e a impossibilidade de recuar.

O texto também nos diz que em nossa vida precisamos de cultivar lugares de intimidade, de maior profundidade nos contactos com as pessoas, com os amigos, com a realidade. Frequentemente os nossos contactos são rápidos, passageiros, não criam raízes, não mergulham na profundidade da vida. Precisamos de procurar «lugares retirados» da produção quotidiana, para vermos mais longe, mais alto, com outras perspetivas mais amplas. Todos sabemos como é transfigurante olhar o horizonte no cimo de um monte; e que fadiga passamos para lá chegarmos, se for a pé. Essa experiência de «largas vistas», de «miradouro», ou como dizem os franceses, de belvoir, devolve-nos encanto, largueza no olhar, amplia-nos as perspetivas: vemos mais longe, porque vemos mais alto. Precisamos de cultivar momentos e lugares de altura, de largueza, de ampliação do nosso ângulo de visão, para além da estreiteza do nosso quotidiano, frequentemente cumprido em circuitos fechados.

O segundo momento: Jesus «transfigurou-Se diante deles. As suas vestes tornaram-se resplandecentes, de tal brancura que nenhum lavadeiro sobre a terra as poderia assim branquear». O verbo grego metamorfóthe/foi transfigurado está na passiva e assinala que Jesus não é o sujeito ativo da transfiguração. Outra possível tradução: «foi metamorfoseado», a indicar uma transformação a partir de um Outro. Para «fazer ver» o leitor, Marcos convoca mesmo a nossa experiência. Se «omo lava mais branco», na memória da publicidade, a Transfiguração foi um excesso de beleza e de brancura em que todas as comparações, necessárias, são pobres. A beleza das vestes transfiguradas de Cristo não tem comparação com qualquer realidade humana: «de tal brancura que nenhum lavadeiro sobre a terra as poderia assim branquear». Conhecemos bem o esforço para devolver brancura ao branco quando está sujo, com nódoas, encardido. Recordamos nesta brancura a nossa veste batismal e pascal, a veste da nossa transfiguração em Cristo pela ação do fogo do Espírito. Precisamos de acreditar que somos continuamente transfigurados pelo amor incondicional do Senhor, pois é o amor que nos transfigura. O amor, o perdão, a compaixão, a alegria do encontro, o silêncio fecundo da oração…

Toda a celebração é um «dar à luz», uma iluminação. A liturgia tem uma dimensão transfigurante do espaço e do tempo, dos rostos e dos corpos, das vestes e dos gestos, da matéria e das cores…. Por isso é uma beleza transfiguradora: ilumina com «outra luz» (a do Ressuscitado) as pessoas, os espaços, as coisas. Voltamos ao evangelho de Marcos: «As suas vestes tornaram-se resplandecentes». Cada eucaristia acontece como uma manifestação de beleza, porque estamos a celebrar sempre a transfiguração de Jesus e a nossa transfiguração nele. E se essa beleza é dom, o seu acontecer depende de cada um de nós, da beleza, da elegância e do rigor dos nossos gestos, do nosso canto. Porque é belo acreditar. As palavras de Pedro fazem sentido em nosso desejo de prolongarmos a experiência do encontro arrebatador e transfigurante com a beleza: «Mestre, como é bom/belo estarmos aqui! Façamos três tendas». É belo estarmos aqui: vivermos em conjunto, na tenda da Capela do Rato, na transfiguração e inundação da luz que «a janela para o céu» oferece em cada celebração, aos nossos olhos.

Entramos no terceiro momento que queremos sublinhar no evangelho de hoje. A beleza da transfiguração foi instantânea. Depressa Jesus volta à normalidade de homem comum, sem grandeza. Volta a banalidade do quotidiano, a obscuridade dos dias que passam. «Veio então uma nuvem que os cobriu com a sua sombra». Acabou-se o esplendor, o belo atraente a convidar à permanência. A nuvem envolvente diz a espessura do que não se consegue vislumbrar diante de nós. Todos fizemos já a experiência de quanto custo avançar no caminho em denso nevoeiro. A visão dá agora lugar à audição, à escuta: «Este é o meu Filho muito amado: escutai O». E na escuta do Filho, a escuta sincera, hospitaleira, de uns aos outros. Todos bem o sabemos: A escuta passa pela incompreensão, pela dificuldade de entender a experiência e a palavra do outro. Há uma dimensão de nevoeiro em toda a comunicação humana; as palavras dizem e não dizem tudo.

«Olhando em redor, não viram mais ninguém, a não ser Jesus, sozinho com eles». Há na passagem um traço de desencanto: a experiência maravilhosa do belo já passou. Moisés e Elias desapareceram. As vestes de Jesus voltaram à normalidade. Voltaram ao quotidiano com a sua aridez, a sua banalidade, a sua secura, as suas fissuras irreparáveis, com o seu horror e a sua violência. Voltou a fadiga de descer do monte. Voltou a solidão. Vivemos na obscuridade da história. Nada é claro. A violência, o despotismo, a arbitrariedade do poder, parecem triunfar. A incapacidade de diálogo, de se arriscar pequenos passos no caminho da paz. A memória da luz, a saudade do esplendor, das visões transfigurantes alimentam a nossa resistência nas noites longas da história, como esta que estamos atravessando. É a memória ou promessa do esplendor que nos leva a atravessar a noite. Como a memória e a promessa do sol primaveril nos ajuda a resistir e a atravessar os pequenos dias escuros e as longas noites do inverno.

Alimentados pela memória de todos os nossos momentos transfigurantes, e pela promessa de que novos virão, caminhamos na presença do Senhor, na terra dos vivos (cf. Sl 115).

Pe. António Martins, Homilia do II Domingo da Quaresma