Queridas Irmãs, queridos Irmãos,
Bela cena de filme de ação, insólita e inesperada, até chocante, é o gesto que Jesus faz na esplanada do templo de Jerusalém. Gesto violento feito por um pacífico, um não violento: a expulsão dos mercadores e cambistas que faziam negócio, segundo o relato, hoje lido, do evangelho de S. João. O templo de Jerusalém era uma complexa máquina religiosa, com o seu culto sumptuoso e espetacular, o seu corpo de sacerdotes e levitas, os seus sacrifícios. Havia todo um mercado de venda de animais, ali mortos e devorados pelo fogo. Mas como as moedas pagãs (as que circulavam no comércio) não podiam entrar no templo, havia o negócio dos cambistas que trocavam (sempre com ganhos) as moedas romanas pelas sacrossantas moedas oficiais, puras e sem contaminação. Porque o mercado quando é abençoado pela religião, crê-se mais puro e legitimado.
Eis o relato de João: «[Jesus] encontrou no templo os vendedores de bois, de ovelhas e de pombas e os cambistas sentados às bancas. Fez então um chicote de cordas e expulsou-os a todos do templo, com as ovelhas e os bois; deitou por terra o dinheiro dos cambistas e derrubou-lhes as mesas». Há no gesto violento de Jesus a radicalidade de uma autoridade que não cede a jogos de conveniência, e devolve àquele espaço sagrado a «limpeza» que a «casa do Pai» deve ter, lugar de acolhimento para todos, e não centro comercial: «não façais da casa de meu Pai casa de comércio».
Também em nós, no mais íntimo da nossa relação com Deus e com os outros, pode existir a grande tentação do mercado, de tudo reduzir a um valor de troca, ou a uma expectativa de ganho e de lucro. Quantas vezes nos nossos juízos sobre as coisas e nas nossa relações pessoaos, antes mesmo dos nossos compromissos e decisões, não colocamos aquela silenciosa pergunta, por vezes até verbalizada: «O que ganho eu com isto? Para que é que isto me serve?». No mais profundo do nosso desejo, podemos identificar uma tentação de lucro e de ganho. A nossa própria relação com Deus não deixa de estar marcada pela lógica do mercado. Dou-te para que me dês, era a velha máxima da religiosidade romana: fazer do sagrado transação, comércio, troca de valores, investimento; dou para que o divino me volte a dar, acrescido, com mais abundância.
É certo que podemos afirmar que pode haver uma lógica económica do dom, porque o dom dado apela a uma resposta de reciprocidade (tese clássica do antropólogo Marcel Mauss). Mas assim não passaríamos de mera troca de dons na nossa mais profunda relação com Deus. Creio que uma das maiores falsificações que podemos introduzir na experiência da fé é, precisamente, a lógica da transação dos dons), dou a Deus (o meu tempo, a minha oração, a minha confiança…) para que Ele me volte a dar: proteção, saúde, paz, conforto, estabilidade no emprego, família estável e amorosa, empresa viável e com sucesso… E quando algo falha, logo acusamos a Deus de ingratidão, ou nos culpamos por algum mal feito que desagradou a Deus e nos penaliza: «Que mal fiz eu a Deus?».
Não é mercado a nossa procura de belos textos e belas orações, com tudo o que isso nos pode satisfazer espiritual e culturalmente? Não é mercado a procura de um lugar de culto, de um capelão da moda, no vasto mercado da oferta religiosa da cidade? Não é mercado, nós pregadores, estarmos sempre a procurar fazer a mais bela, mais oportuna e a mais eficaz homilia? Não é mercado as altas expetativas que as comunidades e as pessoas colocam sobre os seus pastores, exigindo deles férrea resistência física e psíquica, uma eficácia sem brecha, uma capacidade de resposta sem tréguas? Não são mercado as leituras e os livros que nos são propostos, pelas mais santas e missionárias editoras? Não é mercado quando queremos, entre nós, ampliar o público, alargar auditórios, aumentar o número de subscritores das nossas redes sociais? Qual a fronteira entre a tentação e a necessidade do mercado? Entre o puro lucro e aquela dose de venda e de benefício necessários? Será que nada do que é humano acontece fora da lógica da oferta e da procura, mesmo a vida espiritual, celebrativa ou missionária?
«Não terás outros deuses além de Mim»; «Não invocarás em vão o nome do Senhor, teu Deus».
Eis-nos o apelo, o mandamento provocatório de Jesus, acompanhado de um gesto (raro nele) de contida violência, ou de indignação que se torna urgência de ação: «Tirai tudo isto daqui; não façais da casa de meu Pai casa de comércio». Não expulsa apenas os cambistas da esplanada do templo, mas todos aqueles que continuam a fazer comércio nas esplanadas de qualquer templo, de qualquer lugar sagrado. Os lugares sagrados organizam-se também como grandes centros comerciais. O sagrado e a religião são teremos propícios ao florescimento do negócio; são bons mercados, têm bons consumidores, a suscitar também as melhores ofertas (ex votos, velas, imagens, incensos, recordações, alojamentos…). Mas vamos mais fundo, e numa exigência de escavação interior, perguntemo-nos: Estou a fazer da casa de meu Pai uma casa de comércio? Podemos expandir o termo «casa do Pai» para fora do espaço sagrado ou de culto. Podemos alargar a «casa do Pai» à «casa comum» que é a criação, explorada, destruída, poluída, e com ela tantos povos indígenas no seu habitat, para rentabilidade de empresas, com as suas consequências de esgotamento de recurso, de pobreza, de destruição do meio ambiente. Como cuidamos e preservamos a «casa comum» que é a nossa Cidade? Ou a «casa comum» que é a nossa Capela, espaço de acolhimento em que todos nos queremos sentir em casa? Ou a «casa do Pai» que é o quarto interior, onde me recolho para no mais íntimo de mim mesmo acolher o Pai que vem ao meu encontro e que me precede em toda a minha procura? Quanto na nossa oração é ainda comércio? Quanto na expressão da nossa espiritualidade não entra no complexo e vasto campo do comércio religioso?
Podemos aprofundar ainda uma possível dimensão, a necessária vigilância para não fazermos da nossa vida (e do nosso corpo) mercado. Vivemos em registos de concorrência; somos avaliados por métricas, objetivos e concursos. Há em tudo isto uma dimensão de competição: é a concorrência do mérito. Mas há uma dimensão da nossa vida que não se reduz a comércio, e é a dimensão mais bela e mais autêntica. Aquele em que nos podemos cumprir eucaristicamente, dando-nos por inteiro, à semelhança de Cristo: «isto é o meu corpo que é para vós». O melhor da nossa vida está no dom sincero de nós mesmos, aquilo que, no mais profundo de nós, está isento da lógica do lucro, do ganho e da perda. Aquilo que é a loucura do amor. Esta é, talvez, uma das mais profundas conversões a que nos tempos atuais somos chamados. Porque também o nosso corpo, o nosso pensamento, o nosso conhecimento é um valor no mercado. Como cultivar a dimensão do gratuito, do dom sincero de nós mesmos, purificado pela lógica do mercado?…
Numa economia de guerra como a contemporânea, em que as empresas mais lucrativas são aquelas que têm negócios de armamento, fica adiada a paz que ninguém quer. Porque a guerra é lucrativa. Que inspiração pode dar-nos ainda hoje o gesto de Jesus, «Fez então um chicote de cordas e expulsou a todos do templo»? Qual a fronteira entre a violência e a não violência? Questão nunca resolvida, e que nunca deve ser esquecida. Qual a violência legítima dos cristãos no mercado das armas e na brutalidade da força? Entre o perigo da indiferença, de abençoar armas e de declarar guerras santas, qual o espaço para nós cristãos de uma urgência evangélica numa opção pela não violência?
Parece que o gesto de Jesus não teve grande impacto… A máquina comercial do templo, após breves momentos de interrupção, voltou logo a funcionar. Não tenhamos pretensões de mudar imediatamente a lógica dos sistemas organizados. Não deixemos, sim, de denunciar essa lógica, numa contínua revisão de vida interior, para sermos sinal de diferença. Podemos sinalizar que são possíveis outras alternativas. Que o triunfo do mercado não signifique imediatamente a minha redenção. Podemos recusar a fazermos do corpo do outro um mero valor, uma força de trabalho mal paga, mera mão de obra útil. A passagem do Livro do Êxodo hoje lida ajuda-nos a termos para com os outros uma cultura do respeito e do cuidado: «Não cobiçarás a casa do teu próximo; não desejarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo nem a sua serva, o seu boi ou o seu jumento, nem coisa alguma que lhe pertença». Que profunda e radical exigência que nos é pedida: Não reduzirmos o outro à materialidade e à utilidade do seu corpo, do seu valor ou da utilidade que nos pode dar.
Que a loucura da cruz nos inspire interiormente, modele a lógica do nosso pensar e do nossa agir, e nos coloque em contracorrente perante a lógica triunfante do mercado que invade até os mais profundos recantos do nosso coração: «o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens».
Pe. António Martins – Homilia do III Domingo da Quaresma