E entramos no evangelho hoje lido. Diz-nos Jesus: «Tu, porém, quando rezares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora a teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa». «Tu, porém»: No relato do evangelho de Mateus, após referir o exemplo da oração ruidosa e exibicionista dos fariseus, Jesus interpela-nos dirigindo-se a cada um de nós, num diálogo tu-a-tu. Este «tu» a quem o Senhor hoje se dirige sou eu mesmo, com a minha situação concreta, pobre, frágil, hesitante. A conjugação adversativa «porém» assinala uma contraposição com o que foi dito antes. E essa contraposição é decisão minha. O Senhor convoca-me, diretamente, a cultivar um estilo «diferente», íntimo, de orar; a celebrar a oração como um encontro pessoal com o Pai «no segredo do quarto». Essa é a diferença cristã: tudo fazer na discrição (no «segredo»), como oferta pessoal a Deus.
«Tu, porém, entra no teu quarto». O quarto é o lugar mais íntimo e privado de uma casa; aí celebramos, no encontro dos corpos, a dimensão esponsal do amor. É o lugar de descanso, onde nos recolhemos para dormir após o cansaço do dia. É o lugar do sono e do sonho; de longas vigílias noturnas expectantes da manhã. É o lugar da intimidade e da solidão, do encontro amoroso e da privação. Para entrar no quarto é preciso renunciar a outros espaços, a outros movimentos, a outros encontros e presenças. Esta «entrada» é uma «saída» de outros lugares. Não acontece sem uma decisão da vontade. E até alguma violência até na organização do nosso tempo. Mantermo-nos fiéis a um tempo e a um espaço de oração, todos bem o sabemos, requer uma ascese diária.
Temos medo de habitar o silêncio de nós mesmos. Por isso inventamos contínuos divertimentos, atividades lúdicas para adiarmos o encontro com a nossa pobreza e o nosso desamparo. Recordamos Pascal: «Só procuramos as conversas e os divertimentos dos jogos porque não sentimos prazer em nossa casa» (Pensamentos 126). No ritmo acelerado das nossas vidas, custa-nos tanto parar para habitar o nosso espaço interior. E, contudo, essa entrada no quarto, essa procura de descanso no silêncio orante, é uma regeneração de todo o nosso ser. Damos oxigénio à nossa respiração. Todos bem o sabemos: não regressamos «ao nosso quarto» sem alguma violência. Mas essa violência que introduz pausas e qualifica o descanso, o silêncio, a serenidade dos gestos, é um antídoto contra a violência que nos força viver uma vida desumanizada, uma vida que não é nossa.
Entramos no quarto de corpo inteiro. E no silêncio do quarto, o nosso corpo torna-se, verdadeiramente, o que já é, e é chamado a ser, templo do Espírito Santo. Também precisamos de repousar e escutar o nosso corpo, dar-lhe tréguas na velocidade das atividades diárias. Precisamos de escutar o ritmo da nossa própria respiração, de aquietarmo-nos. O nosso corpo é o nosso primeiro e imediato «lugar» de culto: «Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo?» (1 Cor 619); «glorificai a Deus em vosso corpo» (1 Cor 6,20). É na oração que o nosso corpo se cumpre como templo do Espírito Santo. A oração é a «função» mais íntima e mais espiritual do nosso corpo.
«Fecha a porta»: entrar no quarto e fechar a porta implica uma renúncia, uma separação, um dizer não. E com que violência! Fechando a porta criamos um «dentro», um espaço íntimo inviolável. É no «fechar da porta» que o segredo da oração acontece. O quarto torna-se, assim, sala nupcial. E não nos esqueçamos que Cristo é a própria porta, pela qual entramos e saímos livremente: «Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim, será salvo» (Jo 10,9). O Senhor é também o Pedinte que bate à nossa porta e espera que o acolhamos para cear connosco: «Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo» (Ap 3,20). Entramos no quarto e fechamos a porta para dar hospedagem ao Pedinte que nos bate, por dentro (interiormente), à porta.
«Ora a teu Pai em segredo», como as crianças no colo do Pai (do Papá). No segredo da oração, ternamente dizemos Abba!Paizinho! Uma simples palavra de crianças, apenas duas sílabas, e nela toda a nossa oração filial, a nossa presença, o nosso abandono confiante. E ao dizermos como crianças Abba! Ó Pai!, não rezamos sozinhos; é o próprio Filho que reza em nós e por nós. Ele é o garante de que a nossa oração é escutada. Tomamos, então, consciência que na autenticidade da oração já não nos pertencemos. Habitamos o coração da Trindade, e a Trindade habita em nós. O quarto/espaço da inabitação trinitária somos nós mesmos, de corpo inteiro, com todo o nosso ser. Na oração damos lugar ao Outro, pois o Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis (cf. Rm 8,26). É «Deus que envia aos nossos corações o Espírito de seu Filho que grita: Abba/Pai» (Gal 4,6). Na oração entramos no segredo do Filho, na intimidade do Pai, no gemido do Espírito Santo.
Começamos a Quaresma com o convite evangélico à concentração interior, ao regresso à nossa intimidade, simbolizada no quarto, aí onde o Pai nos espera e nos acolhe no mais profundo de nós mesmos. Na voragem dos dias e no ritmo de vida agitada, não voltamos a habitar o quarto e a nossa interioridade sem uma decisão de vontade, sem disciplinar o nosso tempo, sem estabelecermos prioridades, sem tomarmos pequenas, mas possíveis, decisões corajosas. Façamos a nós mesmos perguntas que nos apelam a reorientar a nossa vida: Que decisões tomar para «entrar» e «habitar» o quarto interior? Como ordenar o meu tempo para assegurar um tempo diário de fidelidade orante? Como organizar o espaço que habitamos de modo a que possamos ter um espaço para podermos orar com tranquilidade, com uma solidão fecunda. Aproveitemos este tempo de Quaresma para fazermos as nossas eleições por um estilo de vida sóbrio, simples, concentrado no essencial. Por aí encontramos a perfeição, sempre provisória, de cada dia, com a sua jubilosa e dolorosa surpresa.
«E teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa».
Pe. António Martins, Homilia de Quarta-feira de Cinzas