Ao mesmo tempo sabem, e celebram, que no percurso convulsivo da história, entre guerras, derrotas, vitórias, todos os impérios e formas de organização política são passageiros, por mais tempo que possam resistir em sua brutal força dominadora. Com os olhos da fé e da esperança colocados no futuro, no Senhor Rei do universo que virá em glória, para julgar os vivos e os mortos, os cristãos sabem que as vítimas da história, os humilhados, os perseguidos, os escravizados, os ignorados não ficarão perdidos no anonimato: serão exaltados, porque eles foram os que asseguraram o mundo em sua humilde resistência e persistência: «Bem-aventurados os pobres em espírito porque deles é o Reino dos céus; bem aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça porque deles é o Reino dos Céus» (Mt 53.10).
Entramos na solenidade cénica do juízo final narrado no evangelho de Mateus, hoje lido, neste final do ano litúrgico. A começar, o cenário típico da literatura apocalítica: a vinda em glória da figura messiânica do Filho do homem; a sua aparição como juiz do universo, sentado no trono, em sua corte celeste; a convocação das nações para o julgamento; a separação das «ovelhas» dos «cabritos», entre aqueles que se cumpriram numa liberdade criativa, responsável, de cuidado e de atenção ao concreto, e aqueles que gastaram inutilmente a vida, cegos e indiferentes ao que estava a acontecer diante de si. Com estas categorias discriminatórias, a separação das «ovelhas» dos «cabritos», o evangelho coloca a vida cristã continuamente submetida ao juízo de Deus. E o juízo significa contínuo discernimento da consciência, avaliando as motivações evangélicas do nosso agir, e as suas concretizações. Vivemos continuamente em estado de juízo (discernimento). Por fim, o juízo (discernimento) final, a palavra última Cristo a confirmar, ou a acusar, as nossas quotidianas opções, o que fizemos dos nossos encontros humanos, sobretudo com os mais débeis e vulneráveis da sociedade: «tive fome e destes-Me de comer; tive sede e destes-Me de beber; era peregrino e Me recolhestes; não tinha roupa e Me vestistes; estive doente e viestes visitar-Me; estava na prisão e fostes ver-Me».
E nós perguntamos, como os outros: «Senhor, quando é que Te vimos com fome e Te demos de comer, ou com sede e Te demos de beber?». Sim, nunca vimos Cristo com fome, com sede, preso, estrangeiro. Nem imaginamos isso. Encontramos pessoas concretas de cor que nos prestam serviços domésticos e com quem temos uma relação de superioridade. Encontramos nas ruas das nossas cidades gente tão variada, tão colorida, e dizemos que os centros históricos das nossas cidades estão a perder a identidade local. Não nos interrogamos em que condições desumanas de trabalho, de contratação e de alojamento vivem esses orientais que cultivam as nossas terras, as nossas herdades. Quantos são vítimas das redes de tráfico ilegal, de contratação miserável, de poucas condições de higiene e alojamento, vulneráveis em sua condição de estrangeiros dependentes de outros. Temos medo da sua cor e da sua religião, do aumento dos seus lugares de culto. Quando os vemos juntos, pensamos logo que estão a organizar alguma revolução islâmica, ou atentado terrorista.
Questionamos o aumento de imigrantes de culturas bem diferentes das nossas; vemos por aí o perigo de perda da nossa identidade cultural e civilizacional. É certo que precisamos de ter uma política de imigração com critérios. Mas não nos questionamos da falta de mão de obra nacional, da necessidade de aumento das contribuições ativas para a segurança social para continuar a apoiar as reformas de uma sociedade cada vez mais idosa. Ouvimos falar de presos, mas desconhecemos as condições indignas de vida e de higiene nas nossas prisões. Tantos idosos sofrem de solidão, em suas casas, e de isolamento, em tantas regiões do país. Bem-aventurados e bem-aventurados aqueles reformados que dão do seu tempo a visitar, a acompanhar, a ajudar pessoas idosas e doentes. Pequenas atenções, pequenos serviços, um cuidado, e aí está a diferença. A diferença evangélica.
A força subversiva do evangelho de hoje está na identificação de Jesus com o pobre, o faminto, o sedento, o doente, o prisioneiro, o imigrante, o exilado: «tive fome e destes-Me de comer; tive sede e destes-Me de beber; era peregrino e Me recolhestes; não tinha roupa e Me vestistes; estive doente e viestes visitar-Me; estava na prisão e fostes ver-Me». Todos eles são carne ferida e vulnerável, em estado de carência e dependência. Em cada corpo carenciado e vulnerável, em cada corpo ferido, a ousadia da fé cristã encontra um Cristo humilhado, excluído, rejeitado: «Quantas vezes o fizestes a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes»; «Quantas vezes o deixastes de fazer a um dos meus irmãos mais pequeninos, também a Mim o deixastes de fazer». Entre o «fazer» e o «deixar de fazer» pelos mais pequeninos, aí decidimos o nosso céu, por aí construímos, desde já, o nosso futuro. O juízo final, a última palavra de Cristo, confirma os «sim» da nossa vida, e o que deixamos de fazer, a nossa omissão (e há tanta omissão. Talvez seja o maior pecado da nossa vida, a omissão, o deixar de fazer…). Cada um dos nossos gestos quotidianos de cuidado, de hospitalidade, de justiça social tem um destino eterno. Que responsabilidade, e que gravidade! «Afastai-vos de Mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o Diabo e os seus anjos. Porque tive fome e não Me destes de comer; tive sede e não Me destes de beber».
Poderá a esperança cristã aliar justiça social, convicta e empenhada defesa da democracia, cultura do cuidado, defesa da pessoa vulnerável e compromisso pelo reino que há de vir? Pode e deve. Sabendo que tudo é provisório, tudo muda, não há direitos definitivamente adquiridos. E pobres sempre os tereis. Aparecerão novas injustiças sociais e novos excluídos. Os poderes instituídos são sempre temporários, mesmo os mais longos. Tudo na história tem a marca do passageiro: os estados, as relações, as instituições, as empresas, os ritos, as liturgias, as leis, as modas, a organização da própria Igreja, os ministérios, os sacramentos… tudo isto é passageiro. «Só a caridade permanece», diria S. Paulo. A esperança no juízo final estimula e motiva o nosso juízo (discernimento) quotidiano, as motivações por que vivemos e fazemos. Não por medo de condenação eterna, mas por risco de falência em nossa liberdade responsável e vigilante.
O nosso berço, o nosso nome de família, os nossos títulos académicos, a nossa condição social, económica e cultural comportam uma responsabilidade social, são talentos a multiplicar para o bem comum. As elites de uma nação transportam consigo a gravidade e a urgência de um compromisso social, não de uma distinção ou mundo separado dos cidadãos comuns; e mais as elites católicas, a marcar evangelicamente a sua diferença na justiça social, no compromisso pela paz, pelo diálogo e por uma democracia inclusiva, protetora dos mais vulneráveis. No estado de crise atual da sociedade portuguesa, mais ainda precisamos da vigilância, do pensamento e do compromisso das elites católicas: está em causa a salvaguarda da vida democrática, a seriedade da responsabilidade política, o cumprimento de um Estado de direito, o cuidado dos mais frágeis.
Criar riqueza tem de andar sempre aliado a uma justa distribuição da mesma. O perigo dos extremismos grita alto e alicia descontentes. Atiçam fogo nas consciências e nas ruas. Corroem, por dentro, a vida democrática.
Com as palavras do Salmista, confiemo-nos ao Senhor, o Rei Pastor e Servo, que dá a vida pelas suas ovelhas: «O Senhor é meu pastor: nada me falta. Leva-me a descansar em verdes prados, conduz-me às águas refrescantes e reconforta a minha alma. Ainda que tenha de andar por vales tenebrosos, não temerei nenhum mal, porque Vós estais comigo».
Pe. António Martins, Homilia na Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo