A Primavera já chegou. E «verdes são os campos da cor do limão». Há uma pujança de vida que brota. Rebentos tenros crescem, galhos de árvores vão-se preenchendo de verde. Ouvimos o chilrear de pássaros quando passamos pelos campos. Vemos o florir, a várias cores, da terra, florescências de cerejeiras, pessegueiros, macieiras…; e a dança dos insetos. Os nossos olhos alegram-se e vêem mais longe, o nosso coração dilata-se, a vida acontece pelo brotar no novo, pelo crescer do tenro, sempre frágil em seu começo. Há um esplendor de beleza que se revela diante dos nossos olhos. E nos retira do noturno das nossas emoções, da angústia do nosso sentir eclesial.
Na epifania da Primavera, no renascer da natureza, somos convidados a não ficarmos prisioneiros da fúria das nossas revoltas, das nossas acusações, na fornalha ardente dos nossos sentimentos. O esplendor a acontecer diante dos nossos olhos, convoca-nos a uma esperança no renascer (ressuscitar) da vida dentro dos túmulos dos nossos ressentimentos, das nossas raivas, das nossas violências recalcadas, desses lugares cavernosos da nossa alma em que nos sentimos atravessados e sufocados por forças de morte.
De ressurreição nos fala a Palavra de Deus neste V Domingo da Quaresma. «Ressurreição» de um povo exilado que perdeu a soberania e a liberdade. Em terras da Babilónia, o povo de Deus está à mercê do opressor. Atravessa uma grande crise: sem terra, sem templo, sem liberdade, sem futuro. Duvida até da fidelidade de Deus. No meio da crise, surge a promessa de um renascimento; no meio da experiência de morte, a promessa de uma nova vitalidade; no meio da opressão em terra estrangeira, a promessa de um novo êxodo: «Vou abrir os vossos túmulos e deles vos farei ressuscitar, ó meu povo, para vos reconduzir à terra de Israel». Na atual experiência de dor eclesial, no profundo dos abismos das nossas crises, das nossas feridas abertas, dos nossos medos, acolhamos a palavra do Senhor que nos promete futuro: «Infundirei em vós o meu espírito e revivereis». Revisitemos as nossas experiências dolorosas com um novo alento, soprados pelo sopro do Espírito Santo que continuamente nos vivifica. E que fonte de consolação encontramos no sopro divino!
Mergulhamos na narrativa joanina da ressurreição de Lázaro, o morto que saiu do túmulo vivendo, desenfaixado, corpo solto, devolvido a homem livre. Acolhamos o texto evangélico como palavra que nos visita, que nos ressuscita, que nos desenfaixa. Há uma dolorosa situação de morte. Lázaro, amigo de Jesus, morre, após doença, e ele não está presente. À primeira vista a avaliação de Jesus não foi realista; parecia que a doença não era mortal, e afinal foi. Mas não nos esqueçamos que a mensagem fulcral de João é esta: «Eu sou a ressurreição e a vida». Por isso, no realismo da morte vivida, a promessa da fé: «Quem acredita em Mim, ainda que tenha morrido, viverá». A morte não é iludida; mas Cristo é vida, vida maior do que a morte.
Nos evangelhos, raras são as vezes em que o Senhor chora. Neste relato, perante o amigo sepultado, Jesus chora; comove-se intimamente. Vemos Jesus vulnerável em sua humanidade. As lágrimas de Jesus são de ressurreição. Também as lágrimas que brotam da fonte dos nossos olhos são medicina para a nossa agressividade. Assinalam que a nossa carne sente, experimenta compaixão, comove-se. Somos vulneráveis e sensíveis. Experimentamos a doçura e a ternura. As lágrimas são esse deixar brotar a fonte da ternura e da compaixão de corpo inteiro, numa autenticidade sentida. E quanto precisamos de lágrimas! Lágrimas de doçura que limpem o nosso olhar.
Na casa daqueles três irmãos (Marta, Maria e Lázaro) Jesus descansa da fadiga das suas viagens; ali encontra repouso, acolhimento, hospitalidade, amizade gratuita e afeição. Esta família/comunidade de três irmãos é o porto seguro de Jesus, o espaço afetivo onde se abriga. Como precisamos de uma rede de amigos para nos mantermos vivos. Os amigos regeneram-nos, são respiração para o nosso viver. A perda de um amigo é como que uma amputação. Ficamos mais pobres e incompletos; perdemos uma âncora. Pelas nossas experiências de amizade, podemos perceber melhor as lágrimas de Jesus, a dor da sua perda.
As duas irmãs têm reações completamente diferentes. Marta é corpo em movimento. Podemo-la imaginar a correr gritando para Jesus. O seu grito é de socorro, busca consolo, mas também de acusação: «Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido». Há um apontar de dedo, um atribuir culpas, um grito de revolta. Em Marta podemo-nos rever em nossos gritos acusatórios, por vezes selvagens. Mas esses gritos vêm do profundo da nossa solidão, da dor da nossa perda. Maria ficou em casa. Talvez paralisada pela dor, pelo choque da morte do irmão. Podemos ser Marta e Maria, correndo gritando, ou ficando paralisados. Gritando acusações, ou incapazes de dizer palavra. Ninguém é dono das suas reações emotivas: dizem sempre algo de nós, da nossa ferida interior, dos medos que nos atravessam, do desejo de vida, para nós e para quem amamos. Como precisamos uns dos outros para viver: «Se estivesses aqui…». Mas nenhum amigo nos livra de nós próprios, e nos livra do perigo de viver.
Diante do túmulo do amigo Lázaro, Jesus pede para deslocar a pedra (redonda, tipo mó de moinho) que tapava a entrada. Ninguém quer deslocar a pedra, pois já cheira mal. Também nós precisamos de atravessar, por vezes, o cheiro da morte para encontrar caminhos de vida e de ressurreição. Há túmulos que precisam de ser destapados e inundados de luz, para que as forças do silenciamento, da vergonha possam ser vencidas. Todos reagimos não querendo deslocar a pedra. Temos medo, acreditamos que o tempo tudo esquece, que a vida sempre se refaz. Mas as forças de morte apenas estão tapadas com pesadas pedras de ocultamento. Grita Jesus: «Lázaro sai para fora». Quantas vezes sentimos que se acabaram as forças para lutar? Jesus apela a sairmos de tudo o que nos impede de sermos nós próprios, a deixarmos os nossos esconderijos, a vencermos o silêncio sufocante que nos oprime, a vergonha que nos humilha. O seu grito é um grito de amor que nos convoca a viver com mais verdade, libertos dos nossos medos, devolvidos a nós próprios, na aventura arriscada da nossa singularidade.
Mas o grito libertador/ressuscitador de Jesus convoca a nossa colaboração: «Disse-lhes Jesus: «Desligai-o e deixai-o ir». Pertence a nós desenfaixar as faixas de morte com que os nossos irmãos estão atados, amarrados, desligados de si mesmos, da sua verdade interior. Pertence a nós retirar as faixas de morte que ainda restam em tantas memórias feridas; pertence a nós ajudar a curar as feridas da alma, a atravessar a vergonha da humilhação. Pertence a nós criarmos oportunidades para que cada pessoa humilhada possa libertar-se das faixas opressoras das suas memórias. Pertence a nós sermos uma comunidade que sabe desenfaixar, retirar amarras. Pertence a nós «deixar ir», devolver a pessoa à aventura da sua liberdade, ajudar a curar a sua identidade ferida.
Na dor, na revolta, na incerteza e na mortal violência do tempo presente, tão belicista, tão polarizado, fazemos nosso o grito do salmista: «Do profundo abismo chamo por Vós, Senhor, Senhor, escutai a minha voz. Estejam os vossos ouvidos atentos à voz da minha súplica». Na nossa espera, para além das emoções do imediato, da voragem das notícias e da velocidade dos acontecimentos, somos como sentinelas que, na noite, esperam a aurora: «Eu confio no Senhor, a minha alma confia na sua palavra. A minha alma espera pelo Senhor, mais do que as sentinelas pela aurora».
Pe. António Martins, Homilia do V Domingo da Quaresma