Vivemos todos uma semana agitada, e a palavra é suave. Nunca a Igreja em Portugal esteve tão exposta na praça pública a tantas e violentas críticas. Ficámos todos incomodados, perplexos, indignados com a reação desastrosa dos nossos bispos à lista de abusadores entregue pela Comissão Independente. Não dedicaram tempo à procura de consenso. Parece que a reflexão interna entre eles não fora feita. Faltou preparação na comunicação da mensagem. Onde estavam os assessores de comunicação? Faltou rigor na indicação dos procedimentos canónicos e disciplinares. Onde estavam os canonistas? Faltaram propostas concretas de acompanhamento das vítimas. Onde estavam os psicólogos, os terapeutas, os psiquiatras? A generosidade do laicado também não foi tida em conta. Das mais diversas sensibilidades e geografias eclesiais, os leigos gritaram alto a sua indignação. Sugiram pressões do poder político e dos partidos, com o risco de a Igreja perder a sua liberdade e autonomia. Foi uma semana dura, mas também foi uma semana de despertar.

Partilho convosco algumas mensagens que fui recebendo durante a semana, todas de mulheres da nossa comunidade, bem expressivas da dor e da perplexidade sentidas: «Que os vendilhões do templo se apresentem voluntariamente. Repondo assim dignidade e o respeito do trabalho que a igreja faz a favor dos mais frágeis»; «Acho muito importante que a Capela modere uma iniciativa que ajude a dilucidar caminhos alinhados com a essência do Cristianismo»; «urgência de um debate…»; «tenho estado silenciosa e triste por tudo o que se está a passar e como se está a passar. Não exagero se disser que este é o problema mais grave do que a guerra colonial. A fé não é um partido e não vou abandonar a Igreja mas também não ficarei calada (…). Creio que é urgente fazermos um debate».

Outra voz feminina que me deu o eco do seu sentir: «… continuo a acreditar que a Igreja, bispos, padres leigos não são só o que há de mau… a Igreja dos cristãos é mais que isso. Não quero ver rolar cabeças; queria encontrar uma via para estancar sofrimento e afastar quem tem de ser afastado sem sangue e saliva de exposição pública pela vergonha e vingança ou de imagem… Que Igreja é a minha depois do sofrimento revelado aparece clamar por purgas. Queria uma via de resgate para quem sofreu e sofre. E acima de tudo não quero julgar quem fez e continua a fazer bem!!! Não quero encurralar quem tem de lidar com estas situações e decidir». E outra me gritava por escrito: «Estou mais que preocupada, sinto-me dilacerada, porque o mal não define a Igreja, a nossa salvação é Cristo ressuscitado, o mal não tem a última palavra». Vozes diferentes, todas indignadas, todas a expressar com sinceridade e dor a sua condição eclesial. E isto, queridas irmãs e queridos irmãos, é sinodalidade ao vivo, a vitalidade do sentir dos crentes. O vosso sentir eclesial, ferido mas esperançoso; abatido mas não rendido.

Vimos, no suceder dos dias da semana, um despertar, uma onda de lucidez e de coragem, a começar por bispos e dioceses mais periféricas. Pouco a pouco foram chegando pronunciamentos episcopais corajosos, consequentes e serenos: «Depois da vergonha e do escândalo que a revelação da existência de abusos provocaram junto da sociedade, em geral, e dos cristãos em particular, é tempo de ação» (Bispo de Angra). O próprio D. José Ornelas já o reconheceu: «compreendo e assumo que não fui feliz. Não correu bem, a comunicação não foi adequada. Não conseguiu passar aquilo que levava para dizer». As questões foram-se esclarecendo: Afastamento preventivo de atividades pastorais (medida cautelar), enquanto se organiza o processo canónico e civil, não é pena canónica de suspensão. Também os nossos bispos precisam de tempo interior para se refazerem do choque emotivo. Também os nossos bispos são homens frágeis; ficaram desorientados com a lista de nomes que lhes caiu nas mãos.

O caminho vai-se fazendo num diálogo exigente também com a Comissão Independente, pois há aspetos a esclarecer. Na lista dos 100 padres (e leigos) abusadores no ativo entregue aos bispos, após verificação das situações por parte das dioceses, alguns já morreram, outros já estão fora do ministério, outros têm processo canónico arquivado, outros já estão com medidas de prevenção. É difícil perceber como os mortos «ainda estão no ativo». É urgente que bispos e Comissão Independente voltem a encontrar-se, com lealdade e transparência, para mútuo esclarecimento. Para a dignificação e prestígio do trabalho da própria Comissão, para a tranquilidade das comunidades cristãs, para alívio de todos os sacerdotes que estão sob suspeita. É preciso que a justiça, civil e canónica, não se torne numa caça às bruxas e se queira fazer «sacrifícios» ou «fogueiras» na praça pública.

Alguém me dizia nos últimos dias, uma mulher também: «Tenho esperança. Sei que os nossos bispos são melhores do que isto». Misteriosamente, por caminhos de prova e de fracasso das nossas forças, precisamos de experimentar as nossas fragilidades para acolhermos a força curativa que só pode vir de Deus, e que faz a nossa diferença evangélica: «É na fragilidade que a força se manifesta todo o seu poder» (2 Cor 12,9). É passando pela morte que se chega à ressurreição; é passando pela noite que se alcança a luz da aurora; é passando pela prova da dor e do fracasso que se encontra a consolação e a pacificação. É passando pela miséria das nossas próprias forças que mergulhamos na força ressuscitadora do evangelho. Vivemos todos em estado existencial de penitência pública; mas também vivemos caminhos de ressurreição, de acordar das consciências, de decisões corajosas, de convocação à ação. Tudo isto, queridas irmãs e queridos irmãos, é páscoa em direto, ao vivo. Precisamos, em conjunto/ eclesialmente, de cuidar e curar as nossas feridas, as feridas psíquicas das vítimas, as feridas de abuso de confiança, as feridas do ocultamento, as feridas das decisões adiadas, as feridas das comunidades e dos fiéis chocados. E também as feridas daqueles pastores, eles também feridos, que feriram a dignidade, o coração e o corpo de outros. Se eles se deixarem cuidar e aceitar caminhos de cura…

Entremos no evangelho de João hoje lido, neste III Domingo da Páscoa. A caminho de Jerusalém, Jesus arrisca atravessar os caminhos perigosos, impuros e heterodoxos da Samaria. Atravessa o território de um povo desprezado e encontra-se com uma mulher na insólita hora de maior calor, à beira do poço. «Como é que Tu, sendo judeu, me pedes de beber, sendo eu samaritana?». De facto, os judeus não se dão com os samaritanos». Naquele improvável encontro (entre homem e mulher à beira do poço, à hora do meio dia; entre um judeu e uma samaritana), Jesus e a Samaritana partilham a comum condição de sedentos, de quem precisam da ajuda um do outro.

Jesus, com sede e sem balde para tirar água do poço, pede ajuda à Samaritana. A Samaritana, com a carência e a sede de amor, com cinco amores fracassados (casamentos desfeitos) e agora mais um homem que não é seu marido, pede uma água para não mais voltar ao poço: «Senhor, – suplicou a mulher – dá-me dessa água, para que eu não sinta mais sede e não tenha de vir aqui buscá-la». Mulher traída e que, certamente, traiu; corpo provado, tornado objeto, por onde passaram e desfrutaram cinco homens. A Samaritana é o símbolo de todas as infidelidades do povo de Israel, da Igreja, de todos os pastores, de cada um de nós. Somos todos samaritana, sedentos à beira do poço, com as nossas dependências, as nossas amarras ao passado, as nossas bilhas que não conseguimos largar. Só a verdade que é Cristo nos pode libertar e curar as feridas profundas do nosso coração.

Temos na nossa comunidade duas pessoas que se apresentam em seu caminho para o batismo, no processo da iniciação cristã. A sua vontade, a sua presença é sinal de esperança para todos nós, para a nossa comunidade. Porque vós dizeis que ainda é possível acreditar, amar e esperar nesta Igreja, tão pobre e tão humilhada. Vós dizeis, num dizer de corpo inteiro, que acreditar e aceitar ser cristão, hoje, é um ato de coragem, de resistência, de esperança, para além do que se vê e se sente no imediato. E vós protagonizais essa coragem e essa esperança. Com as palavras de Paulo aos Romanos, queremos proclamar e testemunhar, nesta hora grave da história da Igreja: «a esperança não engana, o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado».

Com as palavras de um teólogo ortodoxo, de origem russa, Pavel Evdokimov: «Por mais profundo que seja o inferno em que os homens se descubram [a humanidade no horror da guerra, a Igreja no inferno dos escândalos de abusos], mais profundo se encontra ainda Cristo esperando-nos. O que Ele pede ao homem não é a virtude, o moralismo, a obediência cega, mas um grito de confiança e de amor do profundo do seu inferno».

Senhor, tem piedade de nós!! Como terra seca, a nossa vida tem sede de vós.

Pe. António Martins, Homilia no III Domingo da Quaresma

PAUSA ESTIVAL

A Capela do Rato encontra-se em pausa estival, reabrindo a 15 de setembro, com a Eucaristia às 11h30.

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