Porque a vida é frágil, sempre ameaçada; porque comporta em si mesma um pathos, um sofrimento, uma agonia, uma luta com a morte, com os limites, com agressão exterior, necessita de permanente compaixão. Todo o ser vivo sofre, necessita de cuidado, de ternura e de proteção. E muito mais nós, seres humanos, chamados a cuidar e a vivermos uma ternura compassiva para com toda a criação: «De todos Vos compadeceis, porque sois omnipotente, e não olhais para os seus pecados, para que se arrependam». Precisamos todos de ser olhados, esperados e amados com benevolência e compaixão, para que brote em nosso coração a bondade que nos funda. Pelo perdão, como gesto de amor (e até de amor ao inimigo), a vida avança, renova-se, não fica prisioneira do ressentimento, de uma justiça vingativa, da acusação. Por nos sentirmos compadecidos e perdoados por Deus, somos capazes de experimentar compaixão pelos nossos irmãos em sofrimento, pela dor dos seres viventes.
Há 50 anos, um grupo de jovens universitários e quadros, inquietos com a ferida da guerra colonial, pela ausência de democracia, pelo retardamento de um país que não acertava o ritmo com as democracias europeias, tomam a iniciativa, ousada, subversiva para alguns, de promover aqui na Capela do Rato, na passagem do ano de 1972 para 1973, uma vigília de oração e jejum. Convocaram a comunidade que a aqui se reunia e a cidade para rezar e refletir sobre a paz e sobre a guerra, no contexto real da vida do País de então. Promovem a vigília inspirados pela mensagem do Papa Paulo VI para o dia mundial da paz de 1973.
Escrevia então Paulo VI: «a paz é possível, se for verdadeiramente querida; e se a paz é possível, ela é obrigatória». E apelava com veemência: «fazei dela tema para a opinião pública, com a vossa capacidade persuasiva». Insistia, com ênfase, no «convite à reflexão sobre a possibilidade da paz»; «Não deixemos, pois, decair a ideia da paz, nem a esperança da mesma paz»; «procuremos renovar sempre nos corações o seu desejo».
Aquela vigília e a adesão à mesma da Comunidade da Capela do Rato, não isenta de dolorosos processos de tensão interna, foi expressão da própria consciência de que a comunidade cristã não podia ficar alheada dos problemas reais do País; de que a fé não podia ficar confinada ao espaço privado do culto, mas tinha implicações sociais; era fermento para inspirar uma sociedade renovada, para alterar estruturas injustas. A comunidade da Capela do Rato era então motivada pela palavra profética do seu então capelão, o P. Alberto Neto.
Passados 50 anos, podemos dizer que o apelo de Paulo VI, que inspirou a intervenção, a oração e o jejum daqueles católicos de então, continua atual, a inspirar a nós hoje, perante a tragédia dos acontecimentos da guerra atual, da crise alimentar e ambiental, da pobreza, novas formas de intervenção e de oração. Porque oração e ação são um todo no agir cristão; a oração como inspiração, discernimento, escuta dos apelos de Deus e do grito das vítimas; a ação como urgência de intervenção das estruturas políticas e sociais, nas redes de relações, no despertar da opinião pública, no inserir na agenda pública assuntos contra-corrente, na defesa da nossa comum humanidade.
Hoje é o grito do Papa Francisco que convoca a consciência de crentes de todas as religiões e não crentes, numa oração e ação comum pela paz: «O grito da paz muitas vezes é silenciado não só pela retórica bélica, mas também pela indiferença. É silenciado pelo ódio que cresce enquanto se combate». E o mesmo apelo pela urgência da paz: «Quanto sangue deve ainda escorrer para nos darmos conta de que a guerra nunca é uma solução, apenas destruição? Em nome de Deus e em nome do sentido de humanidade que habita em cada coração, renovo o meu apelo a um cessar-fogo imediato. Silenciar as armas e procurar as condições para negociações que conduzam a soluções que não sejam impostas pela força, mas concordadas, justas e estáveis» (Angelus, de 2 de outubro de 2022). E no discurso por ocasião do encontro de oração pela paz, organizado pelo Comunidade de Santo Egídio, no Coliseu de Roma, renova o seu apelo: «Não nos deixemos contagiar pela lógica da guerra; não caiamos na armadilha do ódio pelo inimigo. Voltemos a pôr a paz no centro da nossa visão do futuro, como objetivo central da nossa ação pessoal, social e política, a todos os níveis. Desativemos os conflitos com a arma do diálogo» (25.10.2022).
Celebramos hoje a missa de 7º dia pelo nosso querido José Alberto que, de um modo tão inesperado, partiu para o Pai. Nunca sabemos a hora desse encontro decisivo da nossa vida. Enquanto comunidade, juntamente com toda a família, ficamos chocados com a sua agonia, convocando uma esperança que espera contra toda a esperança. O José Alberto era uma pedra angular, estruturante da vida da nossa comunidade há mais de 50 anos. A sua história de leigo socialmente comprometido, e mais recentemente de diácono, está inseparável da história da nossa Comunidade. Ele próprio participou na vigília de oração, e me narrava em primeira pessoa a força profética das homilias do P. Alberto Neto, a ocupação policial, o delicado diálogo com a hierarquia. Com a sua família, queremos agradecer o dom da sua vida e do seu ministério a esta comunidade.
Por feliz coincidência, lemos no evangelho de hoje a narrativa do encontro do Senhor com o publicano Zaqueu. Era um dos textos evangélicos prediletos do José Alberto. Inspiração para uma Igreja que acolhe sem julgar, que acompanha respeitando percursos de vida, limites próprios da condição humana. Zaqueu o corrupto, o aliado do opressor, o impuro, o traidor da causa judaica, socialmente censurado e evitado, nada disto foi impedimento para um feliz e redentor encontro com o Senhor, que passava por Jericó, a caminho de Jerusalém. Zaqueu procurava, por todos os meios ver o Senhor. Mas quem toma a iniciativa é o próprio Senhor: «Quando Jesus chegou ao local, olhou para cima e disse-lhe: «Zaqueu, desce depressa, que Eu hoje devo ficar em tua casa». O Senhor faz-se necessitado do acolhimento de Zaqueu, precisa de ficar em nossa casa.
Somos chamados a sermos nós também casa para Jesus. Deste evangelho ficamos também a saber que nenhum dos nossos limites é impedimento ao encontro com o Senhor; pelo contrário, podem motivar uma procura criativa, imaginativa, fora da norma, do habitual: «…devido à multidão, não podia vê-l’O, porque era de pequena estatura. Então correu mais à frente e subiu a um sicómoro, para ver Jesus».
Com a nossa pequena estatura, subindo aos nossos sicómoros, aí nos olha e nos convoca o Senhor para sermos sua casa. Ele o pobre que precisa da nossa pobreza. Não lha neguemos.
Pe. António Martins, XXXI Domingo do Tempo Comum