«Até quando, Senhor…?», interroga o profeta Habacuc, lançando a Deus um grito de súplica e de incompreensão. Em seu silêncio, Deus parece ser cúmplice do triunfo da violência e dos agressores. «Até quando, Senhor, chamarei por vós e não me ouvis? Até quando chamarei contra a violência e não me enviareis a salvação?». Enquanto Deus silencia, o agressor invade, ocupa, destrói e mata. Qual é a confiança que se aguenta no avanço da opressão? Quando a violência domina, que lugar resta ainda para a esperança? Perguntas gritantes do profeta, perguntas que saem do quotidiano das nossas dores e angústias. Sentimo-nos impotentes perante o alastrar da loucura da guerra; vemos a nossa vida quotidiana cada vez mais perturbada por uma crise alimentar, energética e climática que alastra.

A resposta do Senhor ao profeta vem envolta em enigma; é um convite às raízes (radicalidade) da confiança, para além das possibilidades imediatas do decorrer dos dias e da evolução positiva dos acontecimentos. A resposta de Deus ao nosso grito não coincide com o ritmo da urgência dos nossos desejos; devolve-nos a uma ativa esperança que motiva a nossa resistência e o nosso agir. Deus promete futuro, mas acrescenta: «esta visão só se realizará na devida altura, ela há de se cumprir com certeza, e não falhará». Pertence a nós, a cada um(a) de nós, orientar a nossa vida nessa direção em que imploramos a intervenção de Deus: o fim da violência, a paz entre os povos, a reconciliação entre as pessoas. Com atitudes possíveis, ao nosso alcance.

«O justo viverá pela sua fidelidade». Se gritamos «até quando?», de igual modo não nos podemos adiar. A esperança e a confiança marcam uma urgência, uma renúncia à passividade. Depende da vontade de cada um de nós a orientação do nosso querer e do nosso agir na espera de Deus. A fé convoca-nos a uma fidelidade quotidiana. Uma fidelidade a Deus e à sua Palavra, à nossa consciência, a esta humanidade ferida que grita por consolo e compaixão.

O justo tem futuro (viverá) porque (já) confia, e faz da confiança o alicerce de sua vida. O justo não responde à violência com a violência, à opressão com outra opressão. Tenho-me perguntado, sem encontrar grandes respostas, como poderá a nossa fé na Boa nova que é Cristo, o Príncipe da Paz, inspirar um pacifismo cristão, uma opção pela não violência? Qual poderá ser o contributo da nossa experiência de crentes para uma consciência crítica da guerra, desta temerosa corrida aos armamentos, da ameaça nuclear que paira no ar? Que perguntas atrevidas a Deus ousamos fazer hoje como crentes mergulhados num tempo de violência? Que caminhos de não-violência nos atrevemos ensaiar no presente?…

Para nos adentrarmos na exploração do sentido do evangelho de Lucas hoje lido, precisamos de ligar o texto com os versículos que o antecedem. Jesus diz aos discípulos, no caminho para Jerusalém, que o perdão para com o irmão arrependido não tem limites: «caso ele peque contra ti sete vezes por dia e sete vezes retomar dizendo “Estou arrependido”, tu lhe perdoarás»? Quem aguenta perdoar sete vezes por dia a um irmão que não se emenda? Ao segundo pedido de perdão já nos imaginamos de mau humor ou a conter alguma reação mais brusca. Neste excesso, «sete vezes», reconheçamos, está a novidade (impossível) do evangelho: não há limite para o perdão, como não o há para o arrependimento. Porque o perdão é expressão de um amor infinito que espera, cuida, cura, acredita e constrói futuro. Não cessa de esperar pelo irmão.

Reconhecendo-se incapazes para perdoar «sete vezes» ao dia, os discípulos pedem um reforço ao Senhor: «Aumenta em nós a fé!». É também o nosso sincero pedido: Aumenta em nós, Senhor, a capacidade de acreditar, de esperar e de amar. Aumenta em nós, Senhor, a confiança em nós mesmos, na tua promessa que não falhará, na tua fidelidade permanente. Porque somos dilacerados por tantas dúvidas e medos. Vivemos relações feridas, traímos e somos traídos. Temos receio em arriscar de novo. Com humildade, do profundo da nossa vulnerabilidade, pedimos reforço, encorajamento, motivação: «Aumenta em nós a fé!».

A resposta do Senhor espanta-nos; vem como enigma que nos custa a decifrar. Parece-nos incompreensível: «Se tiverdes fé como um grão de mostarda, diríeis a esta amoreira: “Arranca-te daí e vai plantar-te no mar”, e ela obedecer-vos-ia». Excesso de fantasia, retórica de ficção, impossível de se concretizar?… De facto, não imaginamos uma fé capaz de produzir palavras com efeitos mágicos. Mas nesta excessiva linguagem simbólica não haverá uma convocação à dimensão criativa e imaginativa da fé? Às suas possibilidades de criar o novo? Talvez esta fantasia literária diga as potencialidades de fantasia contida na nossa frágil fé.

«Se tivéssemos…», então é porque não temos… Assim compreendida a resposta do Senhor, ela reforçaria o nosso sentimento de impotência e debilidade. Aumentaria carga negativa ao já negativo da nossa vida. Mas seria uma resposta verdadeiramente evangélica? O pequenino e insignificante, quase invisível, grão de mostarda diria, assim, a nossa terrível pequenez e insignificância. Mas o Senhor não nos quer humilhar, mas sim engrandecer em nossa pequenez; quer valorizar as nossas pequeninas sementes, potenciá-las a um crescimento, a uma vida que desabrocha e se torna fecunda: «a menor de todas as sementes [o grão de mostarda], quando cresce é a maior das hortaliças e torna-se árvore, a tal ponto que as aves do céu se abrigam nos seus ramos» (Mt 13,32). Com outra possível tradução, o texto surge-nos bem mais claro e existencialmente implicativo: «Com a fé que tendes, como um grão de mostarda…» (BJ).

Talvez possamos compreender a parábola da fé como grão de mostarda como a dignificação, o reconhecimento, a valorização de que já somos, em nossa pobreza e vulnerabilidade. Pela nossa frágil confiança, sempre ameaçada, já somos portadores de uma promessa de vida: em nós, em germinação, está a potencialidade de uma árvore de vida que abriga, acolhe, protege e multiplica a vida. No realismo da nossa pobre experiência de crentes, sempre frágil, habita-nos uma promessa de vida. Com a fé que já temos podemos fazer maravilha, inventar novas relações, ousar criar novos e outros espaços vitais, fora da norma e do convencional. Podemos plantar vida no caos do mar, símbolo da morte e da destruição. Há uma fantasia criativa e criadora na pequenez da fé que já temos, sentimos e vivemos: «Arranca-te daí e vai plantar-te no mar

Quero assinalar ainda outro traço enigmático e desconcertante no texto do evangelho de hoje. Como se pode chamar «servo inútil» àquele servo que lavrou o campo, guardou o gado, preparou e serviu o jantar, e só depois descansou? Esta expressão não se harmoniza com o tanto fazer do servo que foi tão útil. Teremos de procurar outros caminhos de sentido. A nossa sensibilidade atual de justiça social e de igual dignidade de todos os seres humanos pode escandalizar-se por Jesus ter reproduzido na parábola a ordem social existente, separando senhores e servos. Aquele senhor nem agradeceu ao seu servo nem permitiu que se sentasse à mesa consigo. Mas por aqui estaríamos a ler o evangelho com critérios contemporâneos com o risco de distorcer a mensagem.

Em rigor a parábola não legitima nem condena a ordem social do tempo; oferece, sim, outro sentido. Quer assinalar a satisfação que o próprio serviço pedido nos dá, quando cumprido com rigor, dedicação e competência. Alegro-me profundamente quando encontro alguém que encontra felicidade no que faz, e fá-lo com gosto, com beleza, com harmonia. Com «solenidade e risco», como escrevia Sophia. Tirar fotocópias, cuidar da horta ou do jardim, arrumar o lixo, fazer uma cirurgia, preparar um parecer jurídico, realizar uma investigação académica, preparar uma aula. Quando agimos para agradar ao chefe de turno a nossa vida já se empobreceu. Perdemos liberdade criativa, somos interesseiros, queremos reconhecimento e protagonismo. E isso é uma forma de pequenez e de pobreza. Uma tentação presente no mundo empresarial, académico, no funcionalismo público, nas nossas comunidades eclesiais. A expetativa de reconhecimento público torna o servo indigno. Precisamos que praticar o rigor do bem servir, seja qual for o serviço que somos chamados a fazer, na sociedade ou na Igreja. A dignidade do serviço não está no seu posterior reconhecimento, mas na dignidade com que é feito por quem o faz.

Não somos servos inúteis, porque reconhecemos a nossa utilidade. Mas queremos ser «simples servos» que cumprem o seu serviço, e assim se cumprem, com simplicidade. Queremos ser servos cumpridos na alegria e na satisfação de um serviço bem feito. Para podermos dizer, com inteira tranquilidade e humildade: «Somos simples servos: fizemos o que devíamos fazer». Cumprir as nossas tarefas com fidelidade a gestos quotidianos, a horários repetidos, com cansaço, é uma forma de se cumprir em nós a passagem: «o justo viverá pela sua fidelidade».

Pe. António Martins, XXVII Domingo do Tempo Comum