Queridas irmãs, queridos irmãos

Gostaria de recordar a nossa amiga Leonor Xavier em três traços, que se entrecruzam e se completam naquela que foi a sua peregrinação nesta vida e que nos congrega hoje, aqui, quais «fios humanos de ligação» que a Leonor foi «costurando»: amizade, e vida como dom.

«Amei muito, nunca de mais, e acredito em afeto, amizade e bem-querer como expressões de um só sentimento». São palavras de Casas Contadas e revelam bem uma das dimensões do estrado identitário da Leonor Xavier. Conhecemo-nos há pouco mais de quatro anos, quando a Leonor me visitou para me fazer uma entrevista. A partir daquele primeiro encontro, foi-se solidificando uma bela amizade, tal como belas são as genuínas amizades; e a amizade só é amizade quando é genuína. De vez em quando, íamos almoçar àquele restaurante, onde ocupávamos sempre a mesma mesa do canto da sala, mesmo junto ao vitral colorido. As nossas conversas deslizavam por confidências e mistérios, vivências de fé e dúvidas, interrogações e fios de luz. Costurávamos o pensamento, para usar uma expressão sua em Há laranjeiras em Atenas. Em março de 2021, escrevia-me, numa mensagem: «Estou frágil, mas não mal. Talvez seja um dos tais mistérios de que vamos falando». Sim, mistério da fortaleza da fragilidade. Falávamos muito da imagem de um Cristo frágil, vulnerável, companheiro de estrada pelos pântanos da nossa existência. No fundo, também tal imagem de Cristo estava imbuída de um anseio sempre perene de «afeto, amizade e bem-querer como expressões de um só sentimento». Em Passageiro Clandestino, pode ler-se: «“A avó alimenta-se de amor e não de comida”, diz a minha neta Maria Leonor quando me visita no hospital». Sim, a Leonor Xavier alimentava-se de amor, daquele «amor à vida, que não é coragem nem bondade, que não é inteligência nem dever, é o dom que tudo explica» (palavras suas). Sim, a Leonor alimentava-se de amor, daquele amor por tudo o que é humano, que se revelava na sua capacidade de escutar e de se interessar que levava o outro a transmitir-lhe confidências (escutar e interessar-se, em formas verbais de dinamismo, muito para além dos substantivos «escuta» e «interesse»); sim, a Leonor alimentava-se daquele amor que a transformava em ponte e em «garimpeira» de humanidade pelo asfalto da cidade, exploradora de pepitas escondidas no coração das pessoas.

Ela sabia que é quando somos genuinamente mulheres e homens na nossa humanidade que nos aproximamos do divino e que «cada alma é uma escada para Deus», como escrevia Fernando Pessoa, pelo seu heterónimo Álvaro de Campos. Mulher de fé, de uma rebeldia saudável, em cujas palavras transparecia sempre a solidariedade para com os mais discriminados e vulneráveis, com realce, nunca esquecido, para as mulheres vítimas de violência doméstica. Não se conformava, tal como não se deve conformar a Igreja, na sua saída, ao encontro das periferias – no deserto, na floresta ou no alcatrão da cidade –, sempre impulsionada pela «rebeldia» do Espírito, que não se deixa prender nem domesticar, porque «sopra onde quer» (Jo 3,8) e nos ajuda a imaginar novos horizontes do possível. Num daqueles encontros que a Leonor tecia diligentemente, alguém dizia, uma vez, quase que em lamento, «eu não fui bafejada pela fé». Mas a Leonor, sim, vivia embebida na fé. De tal modo que, quando se aproximava o fim, ela dizia – e eu acredito que fosse com uma convicção que eu próprio gostaria de sentir – que ansiava por ver o rosto de Deus. Ainda no Passageiro Clandestino, podemos ler: «Sou sobrevivente, serei ressuscitada!» Mas que grande confiança! Vejo aqui uma esperança inabalável, aquela esperança que Vaclav Havel definia como «a certeza de que algo faz sentido». «A sua esperança estava cheia de imortalidade», diz-nos o autor do Livro da Sabedoria. A fé dava-lhe coragem para ver o sentido daquele passageiro que lhe ia minando o corpo, mas não o espírito; uma fé cheia de imortalidade.

Aquele passageiro clandestino imprimia na sua identidade a convicção de que «a vida é um milagre e o mistério é a morte». A vida é um dom e a Leonor não queria desperdiçar tal graça. Aproveitava corajosamente cada momento e imprimia-lhe intensidade. Recordo ainda aquele retiro que ela organizou na sua casa de Vila Nova do Coito. Éramos nove ou dez pessoas. Três dias de oração, de reflexão, de convívio ao redor da mesa e de silêncio. Os olhos espreguiçavam-se sobre as colinas, a partir do jardim, e respirávamos o ar puro de um oásis. «Na minha casa do campo, na paz do isolamento, sou capaz de fingir que o desgostar não existe», extrato da sua décima-terceira casa de Casas Contadas. Volto a Fernando Pessoa: «A melhor maneira de viajar é sentir». A Leonor viajou incansavelmente, sentindo com intensidade, «vivendo o fio dos dias», reparando que havia laranjeiras em Atenas e pepitas por explorar no coração de cada uma e de cada um.

«As almas dos justos estão na mão de Deus», diz-nos a Sagrada Escritura. Gosto de imaginar a nossa querida Leonor na mão de Deus, a costurar redes de encontro e de ligação entre pessoas, naquilo que cada uma e cada um tem de melhor. «Em casa de meu Pai há muitas moradas», palavras de Jesus, pela pena de São João. Esta será aquela casa não contada, pois sai dos limites de tempo e espaço, de definição e limitação. Acredito que a Leonor continuará a acompanhar-nos «sobre a terra dos vivos», na linha da garantia do salmista. Aprendamos, com o testemunho da Leonor Xavier, a aprofundar a amizade, a provarmos a nossa fé no alambique das interrogações e a valorizarmos o dom da vida, pois «O amor à vida (…) é o dom que tudo explica».

Pe. Adelino Ascenso
Capela do Rato, 12 de janeiro de 2022