Queridos Irmãos
De novo uma quaresma confinada. É caso para dizer: já não é novidade. A experiência imprevista do ano passado tem a vantagem, ao menos, de nos ter oferecido alguma aprendizagem forçada que, no presente, nos pode servir de guia. Já não fomos apanhados de surpresa neste confinamento da terceira vaga. Mas não podemos deixar de reconhecer, e confessar, que estamos todos cansados; as nossas resistências esgotam-se; a nossa vida incerta, anormal, parece não ter fim à vista. Sentimo-nos todos mais frágeis, mais tensos e desanimados. E, todavia, não podemos desistir desta responsabilidade social que a todos nos envolve e une: o cuidado da saúde uns dos outros, mas também de uma justiça social ameaçada pela debilitação da economia.
Mais do que nunca, precisamos de alimentar a esperança, ou melhor, alimentar-nos da esperança. Daquela esperança que, nas palavras de S. Paulo, «espera contra toda a esperança». Espera para além das soluções imediatas, que não se vêem ou que vêm chegando atrasadas. Uma esperança que espera e resiste na ausência de respostas evidentes e seguras. Acreditamos no futuro da humanidade, ainda que muitos irmãos e irmãs, na fé e em humanidade, fiquem pelo caminho, vítimas da violência do vírus e suas consequências laterais. Acreditamos que tudo o que vivemos no presente é para ser integrado, processado e transfigurado na fé em Cristo que percorre, connosco, os caminhos infernais da nossa humanidade e dos abismos da morte nos escancara as portas da vida em plenitude.
Centra-nos o início do Livro do Apocalipse, que aprendemos a amar nestes tempos de pandemia, à luz do qual o drama da história, os combates da nossa vida encontram sentido: «Não temas! Eu sou o Primeiro e o Último, o Vivente; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves da morte e dos infernos [a morada dos mortos]» (Ap 1,17-19). A Páscoa do Senhor é a fonte que inspira o nosso viver quotidiano, dá força aos nossos pequenos e hesitantes passos, apela-nos a um caminho de futuro, para além do que vemos e sabemos. Dizemos, com banal verdade litúrgica, que a quaresma nos prepara para a Páscoa; mas precisamos de dizer, com uma verdade ainda maior: é a Páscoa que dá sentido às nossas quaresmas, aos nossos confinamentos e às nossas renúncias. Sejam elas pela via da liturgia ou pela força das circunstâncias.
Guia-nos, este ano, o evangelho de Marcos, com o seu estilo literário abrupto, apressado, sempre a convocar-nos para a urgência de uma resposta que não se pode adiar. Tudo sem floreados, sem elegância, num tom pragmático. Os acontecimentos sucedem-se sem tempo para a interiorização: o leitor não tem descanso na urgência da narrativa. Há uma pressa no narrar, porque há uma pressa na urgência do anúncio do Evangelho. Após o momento luminoso e epifânico do batismo de Jesus, em que os céus se rasgam, e pelo Espírito o Pai confirma a missão do Filho («Este é o meu Filho muito amado, no qual me comprazo»), Marcos coloca Jesus a ser impelido para o deserto pelo Espírito, esse sopro impetuoso (aqui) de Deus, ao qual não se resiste: «E logo o Espírito o impele para o deserto».
Pelo Espírito mergulha na origem do seu ser, o Pai; pelo Espírito mergulha no abismo da sua liberdade humana. O mesmo Espírito que «crisma» o Filho, leva-o para o deserto de uma longa e contínua tentação durante 40 dias: «Jesus esteve no deserto 40 dias e era tentado por satanás». O Advogado, o Consolador (o Paráclito, na linguagem de João) lança o Filho para a prova da tentação. Desconcertante estranheza, para não dizer escandalosa contradição. Mas não sejamos ligeiros nem simplistas; aceitemos a paradoxalidade como própria da condição cristã, como nota evangélica. Mais do que um lugar geográfico, o deserto é um lugar relacional e interior; é o «espaço» onde se cumpre ou se nega a nossa liberdade filial.
Na tradição bíblica, o deserto significa o lugar da infidelidade e do perdão, da aliança quebrada e da aliança renovada por graça. É o lugar onde a liberdade humana escolhe um «amor» não fiel, e onde experimenta o amor fiel do Deus, primeiro e incondicional amante. O deserto é, paradoxalmente, desolação mas também promessa de fecundidade; terra árida e fonte que brota da rocha. O deserto é esse lugar interior, nosso, íntimo, onde a solidão é desolação, a secura morte, a ausência ferida insuportável; mas, igualmente, possibilidade de se ser perdoado(a) e amado(a). Lugar da nossa exposição indefesa onde a vida se experimenta em perigo, mas lugar de miragens e de alucinações. No deserto o nosso ego é imolado, a nossa humanidade devolvida à sua radical pobreza e vulnerabilidade. Habitar o próprio deserto é um ato de coragem e de humildade, a que resistimos, a que estamos constantemente a fugir. Com Cristo, o Espírito impele a cada um de nós a habitar e permanecer no seu próprio deserto. Pessoalizemos: «E logo o Espírito me impele para o deserto».
Marcos não apresenta Jesus a jejuar, a argumentar dialeticamente com o diabo através das Escrituras, a tipificar as tentações. Apenas nos diz que Jesus foi tentado durante quarenta dias. Marcos tem a originalidade teológica de assinalar que, mais do que tentações específicas no final do seu retiro quaresmal de jejum, Jesus esteve sujeito a uma contínua tentação. A tentação é um dos lugares teológicos da manifestação do Espírito, porque é uma dimensão intrínseca à vida cristã. Cumprimo-nos entre a fidelidade à nossa identidade (de sermos filhos, com uma liberdade que nos é dada), e a arrogância pretensiosa de uma liberdade que nos aliena de nós mesmos. «Satanás», mais do que uma fantasiosa entidade exterior a nós, é a expressão possível do trágico da liberdade humana, da sua dimensão alienante. E a tentação consumada é a traição a nós mesmos, a negação da nossa condição de filhos, a arrogância de uma liberdade que tudo quer possuir, sem limites. «Satanás», o «diabo» é a figura do adversário, do acusador, do tentador que existe em nós. Por isso o combate é sempre combate com esse adversário que nos rouba a nós mesmos, que nos despersonaliza. E esse combate é permanente.
E mergulhando no abismo das potencialidades da nossa liberdade, no risco das nossas escolhas (de aceitação de uma liberdade recebida, ou de se querer cumprir na arrogância de uma liberdade absoluta), que nos provamos filhos. Esta prova (entre a fidelidade e a recusa, entre a aceitação e a negação), que nos verifica como filhos, é uma permanente provação; é um contínuo combate sem tréguas, tentação a que nunca deixamos de estar sujeitos. Porque a tentação é o lugar da verificação da nossa fidelidade filial. A humilde e agradecida aceitação de sermos filhos, continuamente gerados no amor paterno, ou a arrogância de nos querermos determinar por nossa conta e risco.
«Vivia com os animais selvagens, e os anjos o serviam». Os animais selvagens são animais do deserto, lugar da natureza violenta, que não se deixa domesticar, lugar onde a vida frágil e indefesa se torna presa dos predadores. Jesus convive pacificamente com os animais selvagens. Podemos encontrar aqui ecos da profecia messiânica de Isaías: «o lobo habitará com o cordeiro (…) e o menino meterá a mão na toca da víbora» (Is 11,6-8). O Menino cresceu; é agora o Filho adulto a fazer as contas com todas as dimensões da sua humanidade, e também da sua animalidade. Descendo ao profundo abissal da sua liberdade, Jesus desce também à sua animalidade. E pacifica-se com a besta selvagem que há em si, pois nele se reconcilia toda a criação. Em Cristo, humanidade e animalidade encontram-se reconciliadas e pacificadas. A aventura da nossa humanização (filiação divina) passa por não ignorar a fera que há em nós. Essa fera é o nosso instinto predador, violento, agressivo. Essa fera se não é reconhecida e aceite, um dia volta-se contra nós, torna-se predador à solta. A isso também nos impele o Espírito: acolher e evangelizar a nossa animalidade, integrando-a na aventura do amor e da liberdade. Tarefa nunca concluída.
Descendo às cavernas das nossas alucinações, abraçando a fera que há em nós, aceitando visitar e atravessar o nosso deserto interior, acolhendo a nossa mais profunda humanidade (que integra a violência e a agressividade da nossa animalidade), identificando, com verdade e humildade, os perigos da nossa liberdade auto-suficiente, acolhemos o apelo evangélico: «Arrependei-vos (mudai de direção) e acreditai no evangelho». Mas este desafio à nossa liberdade, sempre capaz de reorientação e de cortar com o passado, é consequência da aproximação de Deus: «Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino dos céus».
Porque, em Cristo, Deus aproxima-se de nós, vem ao meio de nós, é Deus connosco e Deus em nós, a nossa humanidade não é um abismo tragédia, tem uma promessa de redenção; tem futuro. Nunca é tarde para recomeçar. Estamos sempre no momento (kairos) oportuno. Porque sabemos que por nós não conseguimos, pedimos sempre a força que só Deus, pelo seu Espírito pode dar: «Mostrai-me, Senhor, os vossos caminhos, ensinai-me as vossas veredas».
Pe. António Martins, I Domingo da Quaresma