Neste início de Quaresma, apetece-nos todos gritar bem alto, num tom de lamento, de protesto e de esperança: Senhor, chega de jejum. Chega de renúncias e de privações, chega de luto e de dor. Não suportamos mais esta longa e pesada penitência que a pandemia nos tem imposto. Estas cinzas antes das cinzas.
Comparadas com todas as privações, renuncias e jejuns que a pandemia nos tem imposto, as nossas quaresmas do passado (não a do ano passado) foram passeios por prados suaves. Nunca passámos uma tão dura e longa penitência, crentes e não crentes, católicos, protestantes, muçulmanos, hindus…, todos na mesma barca agitada pela tempestade da pandemia. Longo jejum temos vivido, entre confinamentos e desconfinamentos, sucessivos estados de emergência, vagas que se sucedem e alguns, ligeiros, momentos de alívio que, depois, pagamos caro.
Temos vivido privados de afetos, em rigoroso distanciamento social, sem nos vermos e tocarmos uns aos outros. Rigoroso e imposto jejum de relações e de afetos, de festa e de encontros, de partilha e de celebração. Viagens e sonhos adiados, projetos suspensos, um quotidiano de permanente emergência. Alguns de nós vamos passando entre os pingos da chuva; outros ficando infetados e, graças a Deus e ao cuidado médico, recuperados; outros ainda arrebatados à violência imprevista da morte. Lutos difíceis, vidas mal cumpridas, finalizações precipitadas.
Com palavras emprestadas ao profeta Joel, podemos dizer: Senhor há quase um ano que os nossos corações andam rasgados. Temos vivido um contínuo jejum, entre lágrimas e lamentações. Senhor alivia-nos, torna a nossa vida mais serena, mais doce, menos atormentada. Não precisamos de mais jejum, de mais renúncias. Precisamos, sim, de cura, de alívio, de pacificação interior, de abraços e de compaixão, de ternura partilhada, de rostos luminosos que nos sorriem, sem máscaras. À dureza do nosso jejum precisamos acrescentar a leveza e o aroma do perfume.
E, todavia, precisamos de aproveitar bem a graça deste «tempo favorável» que, através do ritmo litúrgico, a vida eclesial nos oferece, neste tempo em que, violentamente, jejuamos da presença comunitária. Fica a pergunta: como podemos atravessar este tempo quaresmal integrando, na fé, na esperança e no amor concreto aos irmãos e irmãs, esta longa renúncia que a pandemia nos impõe? Como podemos viver, com sentido, responsabilidade, mas também com imaginação e doçura, este «tempo favorável» de cura, de reconciliação, de encontro com o Pai e connosco próprios no segredo?
Atrevo-me a dar duas sugestões, que são igualmente para mim também tarefas urgentes. A primeira: cuidar bem das nossas relações quotidianas. Recordamos a pergunta que Deus fez a Caim: «O que fizeste do teu irmão?» e da sua descomprometida e insolente resposta: «Por acaso sou polícia do meu irmão?». Nestes tempos corremos o risco de sermos polícias uns dos outros, prontos a acusar, a denunciar, a «multar» as infrações dos irmãos no quotidiano. Há um estado permanente de «policiamento» que não é saudável, uma vigilância atenta uns dos outros que chega a ser perseguição. O medo do contágio do outro pode acordar em nós esse «grande inquisidor» adormecido.
Estamos todos a viver tempos de profunda inquietação interior. Ficamos mais tensos e mais agressivos. A violência acumula-se no interior e explode, por vezes incontrolável, nas palavras e até nos gestos. Este é o tempo para nos suportarmos, para nos tolerarmos nos nossos excessos, nos nossos incontidos estados de alma. Precisamos de nos suportar (apoiar, aguentar) uns aos outros com ternura e paciência, essa arte quotidiana da espera do outro, para além do ritmo da nossa vontade. Vivemos todos mais expostos e mais vulneráveis, com menos defesas. Estejamos atentos à dimensão reparadora ou acusadora das nossas palavras.
A reconciliação com Deus, a que nos apela Paulo na segunda leitura, passa pela quotidiana reconciliação com os irmãos e as irmãs, e até connosco próprios, com o que nos desagrada, com o que nos humilha. Confinados, as tensões adensam-se, as palavras precipitam-se, as relações ficam mais expostas. O cuidado atento pelo irmão ou pela irmã, a benevolência e o respeito pelos seus ritmos, pelos seus silêncios, pela sua excentricidade, pela sua estranheza pode ser um propósito para melhor vivermos esta quaresma.
Uma segunda sugestão: Vivemos roturas no tecido das nossas relações que nos deixaram feridas abertas, por ventura ainda não curadas. Queremos justiça que, talvez, nunca virá a acontecer. Vivemos dolorosas consequências de escolhas arriscadas que fizemos, ou de erros e imprudências cometidas que lesaram outras pessoas de quem devíamos cuidar. Este tempo em que também fazemos jejum da eucaristia e do sacramento da reconciliação, poderá ser a oportunidade para reaprendermos com a antiga prática penitencial da Igreja que se perdeu no tempo: antes do sacramento da reconciliação, há um processo de cura a fazer e a oferecer, uma reparação pelas injustiças acontecidas, uma palavra de reconhecimento da própria falta/falha. Uma palavra sincera de verdade e de arrependimento, talvez seja essa a justiça necessária e possível.
Talvez tenhamos celebrado o sacramento da reconciliação, para aqueles que ainda o fazem, de uma forma muito rotineira e ritualista, sem processo de cura das relações feridas. Talvez seja este «o tempo oportuno» para avaliarmos a qualidade das nossas relações, as roturas acontecidas ainda não pacificadas nem reparadas. E o que não for possível reparar, saibamos entregar ao fogo da misericórdia de Deus que queima todas as impurezas e reduz a cinzas toda a maldade, de que fomos vítimas, de que fomos também protagonistas. A celebração das cinzas expresse a nossa confiança no fogo do amor do nosso Deus que desce, na paixão de Cristo, ao mais profundo do abismo da nossa humanidade, qual pastor ao encontro da ovelha perdida.
Esmola, oração e jejum; partilha, hospitalidade e educação do desejo são dimensões permanentes da vida cristã, em todo o tempo, nas circunstâncias concretas de qualquer crente. O evangelho de hoje apresenta-nos a essencialidade da vida cristã, a que, particularmente, a quaresma apela a uma concreta exercitação. Prática discreta, livre, responsável, profundamente íntima e profundamente social e pública. A esmola lembra-nos a quota parte de destino social dos nossos bens; não são pura propriedade privada. O jejum é a educação permanente do desejo que nos habita, que pode ter desvios de posse e de apropriação, de consumo egoísta. A esmola e o jejum encontram o seu fundamento e a sua fecundidade na oração pessoal, esse cultivo da intimidade com Deus, o estar presente diante de Deus, na espera da sua visita. A oração é esse tempo «inútil» em que nada fazemos, em que nada acontece, em que nos deixamos (re) fazer: esse consentir que se faça em nós. Por isso é puro tempo de hospitalidade, de acolhimento, no segredo de uma solidão que se torna fecunda. E tantas solidões por fecundar estamos a viver, solidões solitárias, desérticas, desabitadas, inóspitas… «Tu, porém, quando rezares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora a teu Pai em segredo».
Bem sei que as nossas casas e os nossos quartos têm sido lugares de uma clausura forçada, que não escolhemos. O apelo evangélico de hoje ressoa a mais restrições. O que queremos é abrir a porta, sair, respirar ar a plenos pulmões, atravessar largos espaços, ver a promessa de primavera que já está a acontecer. Entrar no insuportável do nosso quarto, isso fazemos com tanta frequência. Atravessar a nossa insuportável solidão interior e exterior, o deserto das nossas relações, o silêncio dos dias e das noites desamparadas? Mas isso é duro.
Sim, é isso mesmo: habitar a própria solidão. Não desperdiçar nenhum instante de solidão, fazer desse lugar inóspito e árido um fecundo lugar de solidariedade: estamos irmanados numa comum solidão, cada um vivendo-a a seu modo, no seu espaço. Vivemos solidários, na solidão, uma fraternidade universal. Que graça nos é dada: na minha solidão encontro-me, agora, com a solidão de cada ser humano. Vamos tentar tornar fecundas as nossas solidões; fazer da solidão um lugar de fraternidade, de acolhimento de Deus, dos outros, de mim mesmo, da beleza da criação, da revelação das coisas, de reconciliação com as feridas das nossas relações. Um lugar de cura, de compaixão, de encontro. «Entra no teu quarto… e teu Pai que vê o que está oculto, te dará a recompensa».
Façamos nossa a prece do Salmo 50, que é, simultaneamente, confissão das próprias faltas e confissão, ainda maior, de uma esperança sem limite no Deus da misericórdia: «Criai em mim, ó Deus, um coração puro e fazei nascer dentro de mim um espírito firme». «Dai-me de novo a alegria da vossa salvação e sustentai-me com espírito generoso».
Pe. António Martins, Quarta-feira de Cinzas