Queridos Irmãos
O nosso caminho de Advento avança, ao ritmo da liturgia. Em cada domingo há uma palavra, uma frase especial que nos provoca e nos convoca. No I domingo do Advento, gritámos, rezando, por socorro: «Ó se rasgásseis o céu e descêsseis» (Is 66,19). Tantas vezes sentimos o céu cerrado de escuridão, e a distância de um Deus silencioso. No II domingo acolhemos a profecia dirigida ao povo no exílio de Babilónia: «Abri na estepe uma estrada para Deus» (Is 40,3). Na estepe espinhosa e árida deste tempo que atravessamos, preparamos um tempo novo. Celebramos com alegria a Solenidade da Imaculada Conceição, saudando com o Anjo: «Avé, cheia de graça, o Senhor está contigo» (Lc 1,18). Saudamos Maria, a «toda formosa/tota pulchra», «a mais jovem do que o pecado» (Bernanos).
Aqui estamos neste III Domingo do Advento para acolhermos o testemunho de João Batista e nele avaliarmos o nosso próprio testemunho de crentes. Como João, também nós somos convidados a «confessar» o lugar da nossa relação com Cristo, e como nos reconhecemos e nos identificamos a partir do Senhor. A luz do evangelho de João, hoje lido, ilumine as nossas consciências, e nos ajude a decifrar a nossa identidade na relação com o Senhor.
«Veio João como testemunha, para dar testemunho da luz (…). Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz» (Jo 1,8). Aí está João Batista, lançado no mundo sem se saber de onde vem (evangelho de S. João), com uma missão: «dar testemunho da luz». Precisa o evangelho: «Ele não era a luz»; está ao serviço da luz; dela é testemunha de corpo inteiro. A identidade e a missão de João estão em referência a Cristo; expressam-se a partir de Cristo. Cristo é a «luz verdadeira que ilumina todo o homem que vem a este mundo» (Jo 1,19). É ao serviço desta luz que João Batista se apresenta e dá testemunho. O seu testemunho é o compromisso da inteireza da sua vida dedicada, entregue ao serviço de um outro. Por isso o seu testemunho é credível, dá confiança, porque é verdadeiro. O testemunho de João, na narrativa do evangelho, é a confissão pessoal de como se situa em relação a Cristo. Por outras palavras: Como ele se compreende e se reconhece a partir de Cristo.
As autoridades judaicas enviam uma comissão de inquérito para saber quem é João. Pela adesão popular que a pregação do Batista suscitava, havia o perigo dele ser tido por Messias. Essa é a razão pela qual, repetidas vezes, João diz quem não é. Diz a verdade de si negando-se: «Eu não sou o Messias». Mas o interrogatório continua: «És Elias?»-«Não»; «És o Profeta?»-«Não». Porque só Cristo pode dizer de si mesmo «Eu sou»: «Eu sou a luz do mundo», «Eu sou o caminho…», «Eu sou». A expressão «Eu sou» tem valor de revelação, diz a condição divina de Cristo, a sua identidade filial com o Pai, o seu ser do Pai, no Pai e para o Pai. João só pode dizer «Não sou». Maravilha de uma confissão de si, sabendo que é e onde se situa a partir de um outro que é o seu centro, o centro unificador do seu ser e agir.
O inquérito continua, porque as respostas de João não satisfazem a comissão… «Quem és tu (…), que dizes de ti mesmo?» Esta provocação a dizer «de si mesmo mesmo» com uma verdade afirmativa, não apenas negativa, leva João a confessar a sua identidade na relação com um Outro. Podemos até pressentir alguma hesitação, um embargo de voz: «Eu?, sou a voz do que clama no deserto: “Endireitai o caminho do Senhor». João dá a sua própria voz a um outro, a Isaías, cuja passagem ouvimos no domingo passado: «Preparai no deserto o caminho do Senhor, abri na estepe uma estrada para o nosso Deus» (Is 40). Mas João não cita Isaías à letra; transforma o texto. A forma verbal «preparai» é substituída por uma outra nada inocente, «endireitai». Parece que as estradas abertas, em Isaías, entortaram-se, tornaram-se estradas com obstáculos, sinuosas, cheias de perigos e lombas. São estradas que precisam de ser, de novo, endireitadas, desbloqueadas, limpas, reabertas. São os nossos caminhos.
Podemos ver na reinterpretação de João uma crítica declarada às autoridades judaicas que entortaram os caminhos de Deus com o seu legalismo; podemos ver aí também uma crítica profética às autoridades religiosas de todos os tempos, e deste nosso tempo, que se tornam obstáculo à relação do Homem com Deus pelos seus escândalos. Podemos ver ainda nesse «endireitai o caminho do Senhor» um apelo direto a uma avaliação pessoal da nossa vida: quantos obstáculos temos criado no nosso caminho para Deus e com Deus? Quantos senhores (de poder, de luxo, de prestígio, de sucesso, de competição…) não temos servido como dóceis escravos? «Endireitai o caminho do Senhor»: um apelo tão antigo, com tantos sentidos e aplicações, sempre atual. Um apelo dirigido a cada um de nós.
Podemos dizer que João Batista é um excêntrico descentrado de si, mas centrado em Cristo. Todo o seu dizer e agir é expressão da sua identidade acolhida e percebida a partir de Cristo. Sabe quem é e sabe quem não é. Situa-se em relação a Cristo: «Aquele que vem depois de mim, a quem é não sou digno de desatar a correia das sandálias». Lemos, habitualmente, esta passagem como expressão da humildade de João, do seu descentramento. Ele é pioneiro de Cristo já presente: «no meio de vós está Alguém que ainda não conheceis». Mas dizer a humildade descentrada de João é ainda pouco.
Com a expressão «não sou digno de desatar a correia das sandálias», João Batista apresenta-se como amigo do Esposo, inteiramente ao serviço de Cristo, aquele que o evangelho de João revela como esposo nas bodas da nova aliança. João Batista é a testemunha dessa viragem da história, o último dos antigos e o primeiro dos novos tempos, aquele pioneiro que desbrava o caminho, que (re)abre caminhos, por ventura, já abertos, que nos provoca deixando-nos esse urgente, pessoal e insubstituível apelo de endireitar o caminho do Senhor. Caminho tão sinuoso por onde, cegamente, seguimos.
A liturgia deste domingo está marcada por um apelo à alegria. Possamos fazer nossas as palavras jubilatórias de Isaías, na primeira leitura: «Exulto de alegria no Senhor, a minha alma rejubila no meu Deus, que me revestiu com as vestes da salvação». Acompanhamos Maria no seu Magnificat, pedindo ao Espírito que inspire em nós um cântico novo de louvor e de ação de graças: «A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu salvador». Acolhemos de Paulo esse apelo, tão perplexo e tão ousado, a uma alegria permanente: «Vivei sempre alegres, orar sem cessar, dai graças em todas as circunstâncias». Alegria permanente, oração incessante, agradecimento em tudo… o (im)possível da experiência cristã, a loucura da fé e da esperança.
E pudesse tudo isto criar infinitas cadeias de contágio, para as quais não pudesse haver nenhuma vacina.
Pe. António Martins, III Domingo do Advento