Queridas Irmãs
Queridos Irmãos

Chegamos ao fim do ano litúrgico; um novo ano começa hoje com o início do Advento. Vivemos todos, a partir de meados de março, um ano litúrgico profundamente estranho e desorientado com a expansão de pandemia. Tivemos uma Quaresma e uma Páscoa confinadas, num prolongado exílio. Recomeçamos as celebrações comunitárias em dia de Pentecostes, invocando o Espírito que faz novas todas as coias. E já estávamos às portas do verão e das férias… com gestos necessários de descompressão e de expansão ao ar livre. Era urgente que isso nos acontecesse.

Agora, a segunda vaga e a subida exponencial dos contágios, obriga-nos a vivermos renovados estados de emergência. Situação que se vai prolongar, certamente, até final do ano civil. É neste contexto que iniciamos o Advento e vamos celebrar o Natal, com responsabilidade cívica, com exigência interior. Mais do que nos lamentarmos, protestarmos ou revoltarmo-nos, vamos, antes, atravessar e viver este tempo com uma atitude positiva, como dom único, excecional que nos é dado no presente da história humana; como graça (como vinda e presença do Deus vivo) à nossa vida tão concreta, tão frágil, tão condicionada e ameaçada.

Não lamentemos a ausência de circunstâncias habituais, tão frenéticas, tão consumistas, tão tensas, no nosso Natal deste ano. Saibamos fazer dos limites oportunidades, dos impedimentos redes de criatividades e de inovação. Vivemos todos condicionados, é certo. Mas vivemos um tempo único, tão excecionalmente diferente e irrepetível, que só podemos aproveitar e nele mergulhar com a criatividade da fé. Perder este «momento/kairos» seria um desperdício, uma traição à própria vida, a Deus que vem a nós no concreto dos acontecimentos. Que graciosa oportunidade para acolher o Deus que ama e abraça a nossa vulnerabilidade e nela quer habitar.

Deixemo-nos moldar pela Palavra de Deus que vamos escutar neste tempo de Advento, como o barro nas mãos do oleiro, profunda imagem bíblica da nossa condição filial. Deixemos Deus trabalhar em nós, unificar-nos, refazer-nos. Com confiança, coloquemo-nos em suas mãos de oleiro que, com ternura, recomeça, de novo, uma vez mais, a dar forma de filhos e filhas ao barro da nossa frágil humanidade: «Vós, Senhor, sóis o nosso Pai e nós o barro de que sóis o oleiro». Isso não significa passividade, ou sermos manipulados por Deus; significa que não nos acabamos a nós mesmos, que somos constantemente modelados pelas circunstâncias, pelos acontecimentos, pelas relações, pelo que vem a nós. E tudo isso acolhido como vinda de Deus.

A nossa vida é, continuamente, modelada por paternais mãos de ternura e de compaixão: as impurezas do nosso barro são retiradas, as fissuras tratadas e curadas, a nossa fragilidade (sempre exposta a quebrar-se) está amparada. E, porque barro a deixar-se moldar, vamos tomando forma e beleza: «Como o barro nas mãos do oleiro, assim queremos ser nós nas mãos de Deus» (Jer 18,6). Esta metáfora relacional e filial é uma expressão de fé. Mas assinala também aquela sabedoria prática de que a vida é portadora de uma infinita plasticidade. Adaptamo-nos e moldamo-nos às circunstâncias. A nossa vida é portadora de um potencial regenerador, de uma força criativa própria. As mãos do Pai continuamente nos moldam à imagem do Seu Filho encarnado, feito homem.

Com as palavras do profeta Isaías, na primeira leitura, interpretamos e damos sentido à nossa atual situação existencial e coletiva. Não vamos confessar uma culpa coletiva, que não há, nem acusar outros, com infundadas teorias conspirativas. Mas, como o profeta, podemos sentir o incómodo e o desconsolo de um Deus silencioso perante a expansão da dor e da violência no mundo. Perguntamos: «Onde está Deus?»; «Por que não intervém?». Olhamos o céu, metáfora do rosto inacessível de Deus, e vemos ameaça de tempestade nas nuvens cerradas, densas e escuras. O sol, que ilumina e revela as formas das coisas, desapareceu. As epifanias de sentido tardam a revelar-se. Perante o Obscuro, o Invisível e o Silencioso, gritamos o nosso desejo feito prece: «Ó se rasgásseis o céu e descêsseis».

O Salmo prolonga esta angustiante e esperançosa prece com as expressões: «vinde em nosso auxílio»; «vinde de novo»; «olhai dos céus e vede, visitai esta vinha». Mas logo a seguir ao grito por um rasgão luminoso no céu, o profeta assinala a vinda de Deus, a sua resposta-intervenção: «Mas vós descestes». O Senhor desce, o Senhor vem, não ao ritmo do nosso urgente desejo, mas na gratuidade do seu dom feito tempo oportuno. O Senhor vem «porque somos obras das suas mãos», cepa que sua mão plantou e continuamente cuida.

No evangelho de Marcos, que hoje lemos, Jesus faz-nos um intenso apelo de alerta, uma convocação à vigilância, a uma atenção concentrada ao que acontece, ao que está para acontecer. A vigilância é o apelo da urgência evangélica e, por ventura, aquela dimensão da existência cristã que tanta dificuldade temos em experimentar. Porque nos distraímos do essencial da vida; porque não hierarquizamos prioridades; porque temos dificuldade a habitar a nossa própria interioridade, a escutarmos as vozes dos nossos desejos; porque somos bombardeados por tantos apelos e informações que nos dispersam. Esta dispersão e desconcentração de nós mesmos é um dos perigos do nosso tempo e um dos riscos a que mais estamos expostos.

Ouvimos, de novo, com insistência, o apelo do Senhor, hoje, neste Primeiro Domingo do Advento: «Acautelai-vos e vigiai»; «vigiai pois não sabeis quando virá o dono da casa»; e mais uma vez, no fim do evangelho· «Vigiai». Três imperativos: «vigiai», e ainda uma forma verbal: «mandou o porteiro que vigiasse». Tudo se decide nessa concentração de nós mesmos ao que acontece, numa atenção expectante, tensa, aberta à surpresa, ao risco, ao perigo iminente, à maravilha da surpresa, à epifania da beleza dos pequenos gestos, das coisas discretas.

Uma nota do evangelho aponta para o imprevisível da vinda, do acontecer da vida, da surpresa dos acontecimentos: «Acautelai-vos e vigiar, porque não sabeis quando chegará o momento (o kairos) (…), se à tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se de manhãzinha». O tal «momento», essa qualidade de tempo revelador, esse «kairos», é8 instante de graça, de revelação de sentido, de epifania da nossa verdade, do esplendor das coisas, da transparência das relações. Perante a vinda desse «momento», desse tempo de Deus para nós, nada sabemos: não sabemos a hora em que vem o dono da casa, mas sabemos que virá. Só o podemos esperar, numa esperança atenta, expectante, disponível e hospitaleira. Este não-saber é saber esperar o tempo certo, o momento oportuno.

Este o nosso permanente tempo de Advento, na espera do momento revelador, do encontro com o Senhor que vem. E, entretanto, esperamos, desejamos, gritamos: «Vinde, Senhor Jesus»

Pe. António Martins – Homilia do I Domingo do Advento