Queridas Irmãs
Queridos Irmãos

A nossa vida pessoal tem um sentido, mesmo quando não nos parece claro e certo; a história da humanidade e da Igreja está orientada para um fim feliz. Não estamos condenados ao aniquilamento, ao vazio, ao nada. Vivemos marcados pela dor e pelo drama da morte; e mais ainda nestes nossos tempos de crise pandémica. Bem sabemos, pelas notícias e possíveis previsões, que os tempos mais próximos não vão ser fáceis e precisamos todos de redobrar cuidados e precauções. A morte espreita e expande-se, misteriosa, silenciosa, imprevisível. Estamos expostos, como nunca imaginamos, à fragilidade da vida.

A liturgia de hoje canaliza todos os nossos medos, incertezas e esperanças para a solenidade de «Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do universo». O Senhor Ressuscitado, vida plena e abundante que triunfou da morte, espera-nos, atrai-nos para si; para Ele convergimos, para Ele nos orientamos.

Vivemos, no presente tempos de morte e de violência: a propagação do vírus alastra e parece descontrolada; aumenta a revolta e o mal-estar das populações cansadas de tanta contenção e confinamento; sucedem-se ataques terroristas a cristãos e a lugares de culto; refugiados continuam a naufragar e daqueles que estão na precariedade dos campos de acolhimento já não se fala; Estados ditos civilizados continuam a condenar e a executar a pena de morte; no Ngorno-Karabakh (Azerbeijão), cristãos arménios são obrigados a deixar a sua terra e a exilar-se, perante, mais uma vez, a indiferença da política internacional; fanatismos religiosos e populismos políticos atiçam o ódio entre religiões, entre etnias e culturas.

Mas não desistimos de acreditar e de esperar. Proclamamos a nossa esperança no futuro, para além do que vemos, do que podemos prever no imediato. Com as palavras de Paulo da Primeira Carta aos Coríntios (segunda leitura): «É necessário que [Cristo] reine, até que tenha posto todos os inimigos debaixo dos seus pés. E o último inimigo a ser aniquilado é a morte». Sim, o último inimigo, a morte, será vencida e destruída, na humanidade e no universo inteiro. Então Cristo será Senhor do universo; tudo e todos nele viverão em plenitude. Deus será tudo em todos.

No final do ano litúrgico e início do Advento, a liturgia da Igreja trás à leitura dos fiéis o enigmático e fantasioso Livro do Apocalipse. Qual o significado desses estranhos símbolos (bestas, dragões a vomitar fogo, mulher em dores de parto, cordeiro a sangrar, cidade vestida de noiva, livro selado com sete selos…) para nós hoje? É o livro do terror do fim dos tempos, como alguns lêem? Não! É uma profecia de esperança e de apelo à resistência ativa e criativa do cristão no meio da violência do mundo; diz a dor e a violência da história, a devastação negra do anjo da morte que avança e ceifa, mas proclama, sobretudo, o triunfo da vida que é Cristo o Vivente, o Cordeiro Imolado, a fonte da vida, o princípio e o fim do universo e da história.

À luz dos atuais tempos de crise pandémica, a Comunidade da Capela do Rato propõe três sessões sobre o Apocalipse. No primeiro encontro (dia 25 de novembro, 21h.30) convocamos o saber bíblico do Professor Doutor João Duarte Lourenço que nos apresentará a reflexão: «“Abrir as páginas seladas”. O Apocalipse, uma profecia para tempos de crise». No segundo encontro (sábado, dia 26 de novembro, 18h), o ator e encenador Luís Miguel Cintra comenta e lê o Livro do Apocalipse. No terceiro encontro (dia 02 dezembro, 21.30h), a pintora Emília Nadal oferece-nos uma reflexão sobre o Livro do Apocalipse como fonte de inspiração artística.

A linguagem apocalítica, que anuncia o fim dos tempos e o julgamento das nações, também está presente no texto do evangelho de Mateus lido hoje.
Esta é a novidade de Mateus: não estamos perante o terror de um julgamento, mas perante um sério apelo à exigência e à responsabilidade dos nossos gestos quotidianos. Relemos as palavras de Cristo: «Porque tive fome e destes-Me de comer; tive sede e destes-Me de beber; era peregrino e Me recolhestes; não tinha roupa e Me vestistes; estive doente e viestes visitar-Me; estava na prisão e fostes ver-Me».

O nosso julgamento no fim dos tempos será este: a confirmação, ou não, de todas as discriminações, indiferenças, gestos de exclusão, de desinteresse, de desumanidade. Cada gesto, cada encontro, cada relação por mais instantânea ou rápida que tenha sido, tem valor definitivo; constrói o nosso rumo futuro. É a nossa vida uma biografia de encontros inclusivos, de gestos reconhecedores da humanidade daquele ou daquela que aparece, de improviso, diante de nós?

A orientação para Cristo da história e das nossas vidas pessoais constrói-se, passo a passo, nos pequenos gestos de cada dia, na humanidade reconhecida, partilhada, abraçada dos nossos encontros. A colheita que apresentaremos, no juízo final, perante Cristo, será a recolha da nossa inteira biografia, o filme retrospetivo de todas as cenas da nossa vida, em que falhamos ou acertamos no encontro com Cristo, encontrando e acolhendo-O no irmão mais vulnerável e indefeso. Não é o cumprimento fiel de um culto, não é a dignidade de uma moralidade exemplar. É a urgência do acolhimento da humanidade do meu irmão, do mais pequenino, do mais indefeso, do mais exposto em sua humanidade vulnerável, ferida e humilhada: «Quantas vezes o deixastes de fazer a um dos meus irmãos mais pequeninos, também a Mim o deixastes de fazer».

Cristo revela-se-nos identificado, disfarçado e confundido com os mais pequeninos e os indefesos. Não é um Cristo que nos aparece luminoso e triunfante, mas um Cristo identificado com o pobre, o estrangeiro, o preso, o doente. Um Cristo rejeitado, sem abrigo, violentado e morto pelo SEF, humilhado na via sacra das repartições administrativas; um Cristo faminto que aparece, à noite, nas filas das refeições das nossas paróquias, que dorme envolvido em cartão nas entradas dos nossos prédios, ou até feito pedinte às portas das nossas igrejas e capelas; um Cristo disfarçado, escondido e revelado no irmão mais pobre: um Cristo negro, cigano, transgender; um Cristo mulher vendida e violada, preso com covid, idoso a quem foi retirado o ventilador… «Quantas vezes o deixastes de fazer a um dos meus irmãos mais pequeninos, também a Mim o deixastes de fazer».

«Senhor, venha a nós o vosso reino».

Pe. António Martins, Solenidade de Cristo, Rei do Universo