Queridos Irmãos
Aqui estamos, presentes, para formar o corpo de Cristo (a Igreja) comungando do corpo eucarístico, esse pão que nos dá vida. Somos e queremos ser corpo eclesial, no encontro, na comunhão fraterna, abraçando-nos uns aos outros, ainda que seja só com os olhos… Não esquecemos os irmãos e as irmãs ausentes, doentes, fragilizados: comungam no corpo de Cristo em seu próprio corpo debilitado; oferecem-se existencialmente, por entre alegrias e dores, surpresas agradáveis e desagradáveis.
Faço minhas as palavras de Paulo retiradas da Carta aos Filipenses (segunda leitura): «completai a minha alegria, tendo entre vós os mesmos sentimentos e a mesma caridade, numa só alma e num só coração». Sim, cada um de vós, em sua singularidade concreta, e todos em comunidades, aqui presentes ou ausentes, sois a minha alegria. A vossa presença alegra-me, a vossa fé reforça a minha. Somos uma bela comunidade, agora um pouco mais dispersa, mas que havemos de nos congregar de novo, de voltarmos a ser compactos.
Mesmo nos limites e condicionalismos do tempo presente, precisamente nestas circunstâncias de aperto e de risco, de insegurança e de prudência, somos chamados a ousar, a criar alternativas. «… tende entre vós os mesmos sentimentos e a mesma caridade». Somos todos tão diferentes. A pluralidade é expressão da criatividade do Espírito e da liberdade de consciência. Mas estamos todos disponíveis para o milagre do evangelho, «a mesma caridade», o mesmo amor fraterno. Acreditamos que é possível um «sentir comum» na nossa pluralidade. Possa a Comunidade do Rato continuar a cumprir-se como espaço de amor fraterno, onde atravessamos fronteiras ideológicas, de género, de origem, de raça, para sermos em Cristo uma nova humanidade, aqui connosco já começada.
Na riqueza semântica da parábola do evangelho de hoje podemos ver sempre a tensão entre dois modos opostos de responder ao pai, de nos cumprimos filhos de Deus: num formalismo obediente de quem não discute, mantém as aparências da ordem e da paz, não contradizendo a autoridade, mas, por dentro, negando, sem ter a coragem de expressar o seu sentir; ou numa rebelião espontânea, contestatária da autoridade paterna, livre e resoluta na expressão da própria vontade: «Não quero». Mas a bruta recusa inicial não é definitiva; é de quem está a caminho, de quem se avalia por dentro, de quem se questiona e reconsidera as opiniões e decisões iniciais. Depois «arrependeu-se e foi». A moral evangélica não é a da obediência cega, a do formalismo hipócrita; comporta a liberdade de escolher, de errar, de crescem em si mesmo(a). Aquele filho que recusou, por fim descobriu-se corresponsável de uma vinha que também era sua.
Também podemos interpretar a parábola como espelho das contradições de cada um de nós, em nossa existência filial. Quantas vezes nos comportamos como aquele filho resolutamente obediente, e dizemos logo «Sim, Senhor» mas depois adiamos o nosso compromisso concreto? Somos decididos em responder logo sem contestação ao pai (à autoridade), mas depois, silenciosamente, fazemos uma resistência e oposição passiva. Salvamos as aparências, pois ninguém nos acusa de críticos, do contra. Outras vezes somos esse filho contestatário, no exercício de uma liberdade sincera, mas muito epidérmica, que é capaz de dizer: «Não quero»; o que ganha em espontaneidade perde em ponderação.
Para voltar atrás e reconhecer mudar de opinião é preciso muita humildade; e reconheçamos que não é processo normal nem na política nem na Igreja. Ninguém quer «perder a face», «dar o dito por não dito». Mas a parábola nos diz que esse pode ser o caminho necessário para chegar à decisão certa, num processo de discernimento e crescimento interior. Não somos perfeitos, e as nossas contradições ajudam-se a crescer. O arrependimento exige um grande trabalho de verdade interior, de reconhecimento dos próprios erros, de descoberta do que nos faz viver melhor e sermos mais felizes. Ali ir trabalhar para a vinha, que também é sua; entrar, com esforço, no trabalho partilhado para, depois, beber da alegria do vinho novo.
Podemos imaginar a revolta e a indignação das autoridades judaicas quando ouviram de Jesus: «Os publicanos e as mulheres de má vida irão adiante de vós para o reino de Deus». Foi este pôr em causa a autoridades religiosas uma das razões da morte de Jesus. A sua palavra escandaliza, incomoda, põe em causa. «Os publicanos e as mulheres de má vida» eram, na altura, as categorias sociais mais recusadas. Ninguém de bem poderia relacionar-se com tais pessoas. Jesus é amigo dos publicanos, come em sua casa, deixa-se beijar em público por uma mulher de má vida. Tudo isto escandaliza. E ainda nos escandaliza.
Na sociedade de hoje, dentro das nossas próprias famílias, nas nossas comunidades cristãs, na nossa própria mentalidade, há pessoas excluídas. Precisamos de fazer esse juízo sobre nós mesmos. Quem excluímos, quem recusamos, quem nem sequer nos atrevemos a pensar em sua existência? Quanta violência e rejeição não é descarregada (num olhar) sobre pessoas negras, de origem cigana, transgénero, refugiados, imigrantes…Vêm logo os preconceitos, as etiquetas. Mas que sabemos nós dos seus dramas de vida? Das suas dores, lutas, solidões, humilhações? Aquele ou aquela a quem pomos uma etiqueta pode estar à nossa frente em sua aproximação ao projeto de Deus. Pode estar mais perto da santidade. A entrada no reino de Deus não passa pelas nossas alfândegas ideológicas. A luta contra o preconceito e a exclusão é urgente nos tempos que correm. É uma causa evangélica, como o evangelho de hoje nos afirma. Não nos podemos demitir.
Hoje, Dia Mundial do Migrantes e Refugiado, rezamos pelos refugiados e migrantes, por tantos homens e mulheres, crianças, jovens e adultos que se deslocam pelo mundo, sem abrigo, sem poiso, sem repouso. Rezemos pelos refugiados em dramáticas condições de vida nos campos de acolhimento. Rezemos pelos decisores políticos para que tenham a coragem de equilibrar ferozes políticas de retorno com políticas mais alargadas de acolhimento e integração. Rezemos para que todos os países da União Europeia assumam uma solidariedade numa política solidária na integração dos refugidas. Recordamos as palavras do Papa Francisco: «No seu rosto [dos refugiados], somos chamados a acolher o rosto de Cristo que nos interpela».
O Senhor oriente os nossos caminhos na bondade e na justiça. Seja também nossa a oração do Salmo: «Mostrai-me, Senhor, os vossos caminhos, ensinai-me as vossas veredas».
Pe. António Martins, XXVI Domingo do Tempo Comum