Queridos Irmãos
Vivemos e atravessamos inquietos este tempo interminável, sem vislumbrarmos um futuro próximo de tranquilidade. E isto, se aumenta em nós a tensão e a angústia perante a incerteza do futuro, exige de nós resistência interior e coletiva. Precisamos de continuar a ser resilientes, mantendo redes de solidariedade, de entre ajuda, de cuidado. Não podemos baixar a necessária disciplina sanitária, para bem da nossa saúde e da dos outros.
Mas também precisamos de relação, de celebrar encontros com pessoas que estimamos, que fazem parte de nós. Precisamos de nos expandir, em festa e em celebração, para fora de nós, com os outros, em espaços comuns. É nesta tensão que vivemos e que, com sabedoria e fecundidade, precisamos de aprender a habitar, por largo e demorado tempo, encontrando aí o alimento quotidiano da nossa esperança. A expressão «novo normal» não nos serve, antes nos ilude: a anormalidade, a insegurança, o imprevisto passam a fazer parte do nosso quotidiano: essa é a certeza «do novo» que vivemos.
Inquietação interior, como fratura a habitar, e esperança no futuro, que se não vislumbra nem sequer se pode prever: bem podem ser estas as marcas da nossa existência cristã na atualidade. Com palavras emprestadas a Paulo, da sua Carta aos Romanos, podemos testemunhar em nós mesmos que um gemido interior nos atravessa, um grito de dor nos habita, que nem sequer conseguimos decifrar e nomear; não apenas no mais profundo de cada um de nós, mas em toda a humanidade contemporânea e em toda a criação. «Sabemos que toda a criatura geme ainda agora e sofre as dores da maternidade». Esse gemido interior é gestação do futuro, uma maternidade de um tempo novo que já começa.
Consolam-nos e encorajam-nos, hoje, as palavras de Paulo: «os sofrimentos do tempo presente não têm comparação com a glória que há manifestar-se em nós». Mas não podemos ignorar nem silenciar a dor do presente; precisamos de acolhe-la, de saber integrá-la, de aprender com ela e nela a construir novos horizontes para a nossa condição de crentes e de seres humanos. Sabemos, na esperança da fé, que este tempo angustiante passará; mas não o podemos ignorar nem deixar de o atravessar, com dignidade, aprendizagem interior e responsabilidade criativa.
A as leituras bíblicas deste domingo vão buscar ao campo e ao semeador imagens para nos convocar à consciência de sermos campo semeado e fecundado pela Palavra de Deus, a fazer acontecer em nós um ressurgir primaveril: «Vicejam as pastagens do deserto, e os outeiros vestem-se de festa. Os prados cobrem-se de rebanhos, e os vales enchem-se de trigo. Tudo canta e grita de alegria» (Salmo). A criação é também livro da revelação pelo qual Deus que se oferece à nossa decifração, leitura e celebração. Este tempo de verão, a convocar-nos à expansão, ao contacto direto com a natureza, possa ser uma celebração da nossa ligação ao criado: tudo está interligado. O nosso corpo é irmão da rocha, das estrelas, do sol, da lua, da árvore, do mar, do ar, da ave… A nossa vida pode acontecer como liturgia contemplativa e existencial nos próprios lugares em que estamos ou visitamos.
Vamos ao evangelho de hoje: «Jesus saiu de casa e foi sentar-se à beira-mar». Também podemos encontrar em Jesus esse movimento de exteriorização, da saída do confinamento (a casa), de expansão, de contacto direto com a criação (e foi sentar-se à beira mar). Maravilha-nos e surpreende-nos a sua típica linguagem em parábolas. Jesus está atento à vida concreta e vê aí sinais da presença de Deus. Descobre nas coisas e nas situações existenciais significados para além do imediato. Vê o não evidente. Também nós somos desafiados a encontrar no concreto da nossa existência sinais do Reino, esse modo de Deus vir a nós e de se tornar presente. Esta é a lógica da fé que se faz interpretação e discernimento do concreto.
Jesus vê a humanidade como um grande campo onde Deus lança, sem discriminação nem seleção, a semente da sua Palavra. Todos os tipos de terreno são, à partida, beneficiários do dom da Palavra: «Saiu o semeador a semear». E a semente vai caindo em vários lugares/terrenos. A todos Deus se oferece por igual. A sua graça não exclui ninguém.
Mas, de imediato, a narrativa de Mateus muda de perspetiva. À gratuidade incondicional do dom, junta-se a responsabilidade ativa do ouvinte que acolhe a Palavra, a enraíza em si mesmo, e torna-a fecunda em sua frutificação pessoal. O dom para ser fecundo requer acolhimento e enraizamento. Na diversidade dos tipos campos (o caminho exposto às aves, os sítios pedregosos, com espinhos, a boa terra) podemos interpretar a nossa própria situação existencial de crentes: como acolhemos e vivemos do dom da Palavra? Qual o grau das nossas resistências, infidelidades, desistências, adiamentos, superficialidades que tornam a nossa vida cristã infecunda? Com que tipo de terreno me identifico no meu presente?
Saliento dois aspetos: o primeiro: o acolhimento e o enraizamento da Palavra em nós estão sempre ameaçados; é uma tarefa permanentemente a recomeçar; é luta contínua, sem tréguas. O pequeno passo dado pode regredir. A frutificação de um momento pode dar lugar à esterilidade e à aridez. Estamos expostos ao assalto permanente do que em nós foi semeado: «vem o maligno e arrebata o que foi semeado no seu coração». Por isso a nossa vida acontecerá sempre em vigilância aos ladrões, numa atenção permanente à dissonância dos nossos desejos, dos nossos pensamentos, à «sedução das riquezas.
O segundo aspeto é o perigo da inconstância, de não fazermos da nossa existência crente uma história, um caminho continuado. Por vezes falta-nos a capacidade de perseverar, de resistir no meio da prova. A dom da Palavra vem a nós mas não é interiorizado, não se enraíza em nós, não se torna carne em nós. Todos vivemos belos e inaugurais momentos de revelação, de descoberta interior, onde reconhecemos a visita de Deus. Mas não passaram de instantes. Podemos ler esta parábola como espelho da nossa própria vida. Os diferentes tipos de terreno podem ser expressão de diferentes situações existenciais, marcadas por inconstância, por alguma desorientação, por assaltos…
Mas nenhum terreno é uma fatalidade irreversível. Qualquer terreno, se bem tratado e cuidado, pode tornar-se «boa terra». Pode haver mudanças/revoluções/conversões em nossa vida, e tornarmo-nos produtivos. A nossa vida está em aberto, e essa é a sua evangélica grandeza. «E aquele que recebeu a palavra em boa terra é o que ouve a palavra e a compreende. Esse dá fruto e produz ora cem, ora sessenta, ora trinta por um».
Uma nota de consolo: não há uma medida única que a todos seja exigida de igual modo. O importante não está numa tabela com objetivos predefinidos, mas nas possibilidades de cada um em cada omento. E ninguém consegue produzir sempre o mesmo; há altos e baixos, avanços e recuos, abundância e escassez.
Mas haja sempre empenho em ser boa terra, em cuidar do próprio terreno. E isso ninguém fará por nós… nem Deus.
Pe. António Martins, XV Domingo do Tempo Comum