Procelária

É vista quando há vento e grande vaga
Ela faz o ninho no rolar da fúria
E voa firme e certa como a bala

As suas asas empresta à tempestade
Quando os leões do mar rugem nas grutas
Sobre os abismos passa e vai em frente

Ela não busca a rocha o cabo o cais
Mas faz da insegurança sua força
E do risco de morrer seu alimento

Por isso me parece imagem justa
Para quem vive e canta no mau tempo.

(Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética III, Caminho, Lisboa 1991, 19)

A poesia de Sophia pode ser um bom guia para as nossas férias de verão, sobretudo quando elas acontecem junto do mar, em banhos de luz e de sol; quando as ondas nos acariciam os pés e de corpo inteiro mergulhamos na água.

Sophia, com toda a sua genética nórdica, ficou transfigurada com a luz do Sul. A sua poesia é celebração e nomeação da aparição do real em seu corpo expectante de silêncio ouvinte: «O meu viver escuta»; «Eu me busquei no vento e me encontrei no mar». «Igrina», «Senhora da Rocha», «Cacela» são lugares da costa algarvia por por ela nomeados e celebrados. Como só ela soube nomear o som interior do búzio, a suavidade da anémona flutuando ao ritmo das ondas, a luz a pique do sol, a réstia de sombra rente ao muro, o perfume do orégão…

Para quem passa uns dias no Algarve, (re)ler a sua poesia é descobrir esse poema imanente que é a própria criação, as coisas no seu acontecer e revelação diante de nós: «Nossa atenção ao mundo/ É o culto que me pedem». Nos «dias de verão vastos com um reino /Cintilantes de areia e maré lisa» descobrimos e celebramos a nossa pertença e inserção na criação de corpo inteiro: «irmão do lírio e da concha é nosso corpo».

O poema «Procelária», lido a partir da nossa presente inquietação, revela-se-nos com novos e surpreendentes significados. Ressoa como poema pessoalíssimo nosso que brota das entranhas da nossa atual insegurança e incerteza. E para alguns pode ser também a descoberta, pela primeira vez, de uma ave desconhecida (a procelária) que, em bandos, anuncia tempestade e nela sabe viver:

«Ela não busca a rocha o cabo o cais
Mas faz da insegurança sua força
E do risco de morrer seu alimento».

Por isso a procelária é a «imagem justa/ Para quem vive e canta no mau tempo». A procelária nos ensine a fazer da insegurança força e do risco de morrer alimento de vida.

Sophia no Algarve© D.R. — Porto — 1919 — Lisboa — 2004
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