Amanhã

Na última reunião do Foco Ecológico da Capela do Rato, no passado dia 3 de Março, programou-se a passagem do filme Demain numa sala de cinema disponibilizada pela Freguesia de Santo António. O filme é um documentário de Cyril Dion e Mélanie Laurent (realizado em 2016, ganhou os prémios César e Lumière para o melhor documentário) que, conjuntamente com uma equipa de quatro pessoas, se propuseram viajar por dez países, com o objectivo de encontrar soluções para possíveis catástrofes ecológicas que ameaçavam o planeta. Ao longo desta sua busca de iniciativas positivas no domínio da agricultura, da energia, da economia e da educação, depararam-se com diferentes modos de viver que lhes permitiram antecipar o que poderia ser o mundo de amanhã. Com o deflagrar da pandemia, tudo se alterou, o Foco não voltou a reunir-se e a visualização foi adiada para uma data futura. Deste modo, o vídeo do documentário Demain continua no seu invólucro de papel celofane, numa gaveta da minha mesinha de cabeceira. Não pretendo vê-lo sem o resto do grupo. Mas a palavra “amanhã” mantém-se para mim como esperança de um futuro pós Corona-VID.

Antecipando esse futuro avanço com alguns tópicos que gostaria de ver alterados. E em primeiro lugar debruço-me sobre aspectos secundários de somenos importância como é o caso de uma desejável mudança de linguagem. De facto, nestes tempos de reclusão obrigatória usou-se um vocabulário com significado desconhecido e por vezes surpreendente. Lembro, entre outros o termo “idoso”, aplicado aos mais de sessenta anos e identificado com uma espécie de menoridade intelectual. Os idosos perderam a sua autonomia pois há quem pense por eles. Com o pretexto (obviamente justificado de vítimas mais frágeis da pandemia) são colocados num limbo – não podem sair à rua, evitam-se as visitas dos familiares e admite-se como normal a hipótese de ficarem confinados até que a epidemia cesse ou que se descubra uma vacina, ou seja, a perspectiva que lhes é oferecida é de mais um ano de clausura. Outra expressão curiosa é a de “distanciamento social”. De modo algum ponho em causa a desejável distância a manter entre as pessoas mas a designação é infeliz, sugerindo barreiras inter-pessoais. Sonho com um amanhã onde não se fale de letalidade, de confinamento, e de EPIS (equipamentos de protecção individual).

Passando a aspectos essenciais, importa tomar consciência de que se ligarmos o termo “amanhã” com o fim da pandemia há que pensar num modo diferente de habitar o mundo e de nos relacionarmos. Escolho como guia as propostas do Papa Francisco quanto a uma mudança de mentalidades, de atitudes e de objectivos. E revisito a Laudato Si’ tomando-a como guia premonitório de uma ecologia integral e como convite a uma mudança de vida que se impõe com cada vez mais urgência. Dela sublinho a tese de Francisco quanto à nossa pertença à Terra: “O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar e a sua água vivifica-nos e restaura-nos”(L.S.§2).

Ultrapassando o domínio dos cristãos, o apelo é feito a todos os habitantes do planeta, que deviam unir-se num debate comum: ” (…) porque o desafio ambiental que vivemos, e as suas raízes humanas, dizem respeito e têm impacto em todos nós” (L.S.§ 14). Posteriormente, numa mensagem a 1 de Setembro de 2019, Francisco volta a interpelar-nos, falando da emergência de um combate em que todos deveremos participar: “A dissolução dos glaciares, a escassez de água, o menosprezo das bacias hidrográficas e a considerável presença de plástico e microplástico nos oceanos são factos igualmente preocupantes que confirmam a urgência de intervenções inadiáveis”.

O Papa denuncia os crimes contra a criação e apela a uma mudança de vida, propondo que troquemos uma cultura do descarte e da aceleração por uma vivência frugal e por um ritmo de vida que impeçam a deterioração das relações dos homens entre si e com a Natureza. O esgotamento dos recursos naturais, a desigualdade planetária, os desperdícios de vária ordem, o crescimento desmedido das cidades, são denunciados como factores a combater. A eles há que contrapor uma nova ética nas relações internacionais. O dia de amanhã deve apostar numa ecologia integral onde as diferentes culturas tenham voz. Por isso, num texto mais recente – Amazónia: Novos Caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral Francisco considera este território como um lugar teológico, compara-o a uma carícia de Deus e apresenta-nos esta cultura como possível fonte de inspiração para muitos dos desafios que se nos colocam.

Com este texto pretendemos apontar para o amanhã, deixando para trás os dias pardos que temos vividos (como diz o poeta, “os dias sempre aos dias são iguais”). Lembraremos, no entanto, o que de bom também aconteceu – a solidariedade, a esperança, a coragem, o cuidado dos outros. As redes sociais encheram-se de anedotas, posts, memes e gifs. Muita asneira circulou, mas também se trocaram mensagens que guardaremos para o futuro. Uma delas é um poema lindíssimo de autor desconhecido, embora atribuído falsamente ao Papa Francisco. Levantou-me o ânimo nos períodos de maior depressão. Por isso o lembro ao terminar este texto sobre o amanhã que desejamos:

“Esta noite antes de dormir pensa em
quando voltarmos para a rua. Quando
nos abraçarmos de novo,
quando formos às compras todos juntos e nos
parecer uma festa.
Vamos pensar em quando regressarem
aos cafés, aos bares, as conversas,
as fotos em que nos apertamos uns aos
outros. Vamos pensar que agora é
apenas uma memória mas que a
normalidade nos vai parecer um
presente inesperado e lindo.
Vamos amar tudo o que até agora nos
pareceu inútil. Cada segundo será
valioso. Os mergulhos no mar, o sol até
tarde, o pôr do sol, os brindes, as
gargalhadas. Voltaremos a rir-nos
juntos.
Força e coragem. Vemo-nos em breve!”