Queridos Irmãos
De novo, e mais uma vez, estamos sintonizados à distância, a partir deste lugar de referência comum, a Capela do Rato. Comungamos a mesma Palavra, sem ainda comungarmos do corpo de Cristo na comunhão da comunidade. Aguardamos, num misto de intenso desejo e profunda prudência, esse tempo em que, gradualmente, nos vamos podendo reencontrar no mesmo espaço comum. Sentimos a dor deste prolongado jejum eucarístico e comunitário, numa passagem pelo deserto que parece não chegar ao fim.
A nossa presente experiência social e eclesial é iluminada pela segunda leitura, retirada da Primeira Carta de Pedro. Trata-se de um texto solene e paradigmático da comum condição sacerdotal de todos os cristãos. Nunca esqueçamos a revolução cultual e litúrgica introduzida pela experiência cristã: o culto desloca-se dos espaços sagrados para o concreto da vida, do templo para o corpo. É aí, na vida familiar, empresarial, laboral, cultural, relacional, afetiva que o cristão celebra o seu culto diferenciado, a oferta da própria vida, fazendo da existência concreta sacerdócio, entrega (sacrifício), dom e celebração: «E vós mesmos, como pedras vivas, entrai na construção deste templo espiritual, para constituirdes um sacerdócio santo, destinado a oferecer sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus por Jesus Cristo».
É compreensível, aqui e além, o mal-estar pelo retardamento da reabertura dos lugares de culto, não considerados prioritários. Podemos até perguntar se as igrejas são lugares mais perigosos do que os restaurantes. Contrariando a precipitação de alguns, a Conferência Episcopal Portuguesa pede prudência. Nas orientações para o recomeço das celebrações, publicadas sexta feira passada, com realismo afirmam os nossos bispos: «será preciso esperar algum tempo até ao integral restabelecimento da vida eclesial e religiosa». É certo que as celebrações da eucarística «constituem o cume e a fonte» da vida cristã, mas as mesmas não «são o todo da nossa fé, esperança e caridade». Perante a possibilidade de reabertura dos lugares de culto, deparamo-nos com um profundo dilema que precisamos de resolver com maturado discernimento pessoal e comunitário: Como reabrir os lugares de culto e conter o risco de maior contaminação? Esse é o desafio que, com toda a responsabilidade, prudência e sentido do bem comum temos diante de nós: «Ao mesmo tempo que se retoma a participação comunitária na liturgia, há que garantir a proteção contra a infeção».
Tendo em conta o espaço concreto (apertado e fechado) que é a nossa Capela do Rato, pergunto, hesitante, como recomeçar, quando recomeçar, com que medidas de prevenção sanitária? E até deixo a pergunta a um discernimento comunitário: não seria mais prudente recomeçarmos aqui o culto em setembro, no início do novo ano pastoral? Eu próprio, entre emoções e racionalidade, avanço e recuo. Mas também digo: como em tudo na vida, ponderando prós e contra, é preciso correr riscos. Porque viver é o grande risco.
Qualquer comunidade humana, como também qualquer comunidade cristã (porque humana), nunca será um lugar tranquilo; haverá sempre tensões e conflitos de interesses a suscitar contínuas reorganizações. Foi assim na primitiva comunidade cristã de Jerusalém, será assim em toda a comunidade cristã, onde quer que aconteça. O grupo social mais empobrecido, as viúvas, não é integrado nem valorizado na repartição quotidiana do pão, do «serviço das mesas»: «os helenistas começaram a murmurar contra os hebreus, porque no serviço diário não se fazia caso das suas viúvas».
Todos o sabemos: esta crise agravou as desigualdades sociais e gerou novos pobres. Com o encerramento das atividades económicas o desemprego aumentou brutalmente. Pessoas com empregos sazonais que pareciam seguros encontram-se sem condições para assegurar o sustento necessário. Famílias sem desafogo económico procuram agora ajuda para alimentos, medicamentos, pagar a conta da água e da luz… Muitas empregadas domésticas deixaram de poder contar com o seu ordenado mensal. Aumenta a pobreza e a exclusão. Reportamos a situação de duas famílias acompanhadas pelos voluntários da Santo Egídio e da Capela do Rato:
A Fátima, de 70 anos, diabética, hipertensa e com problemas cardíacos, vive com uma exígua pensão de doença. Na sua pequena casa em Marvila residem 7 pessoas, incluindo filhos atingidos pelo desemprego e netos, desde um bebé de 1 ano até um jovem de 16 anos, agora sem escola nem computador. Um dos netos, de 9 anos, veio da Guiné para ser operado a um quisto na orelha que lhe provoca muitas dores e passou a Páscoa no Hospital. Para tentar sustentar este agregado familiar, praticamente sem outras fontes de rendimento, a Fátima deixou de conseguir comprar os medicamentos dos quais depende a sua vida. A Comunidade de Sant’Egídio tem garantido os medicamentos, alimentos e fraldas para o bebé.
A Francisca vive sozinha com os filhos, uma menina de 12 anos, um menino de 5 anos asmático (com crises que obrigam a ter que ir recorrentemente ao Hospital e tomar medicamentos específicos) e uma menina de 9 meses com graves problemas de crescimento, a precisar também de acompanhamento médico. Desde que o marido deixou a casa de família e não contribui para as despesas, a Francisca tem grandes dificuldades em pagar a renda (275€) e fazer face a todas as despesas da farmácia, da casa e das crianças, agora sem sequer a ajuda das refeições antes asseguradas pela Escola. Para além do cabaz semanal, Sant’Egídio tem conseguido levar sopa e refeições caseiras.
Há ainda outras situações que são reportadas no site da Capela.
Com a linguagem bíblica da Palavra de Deus deste domingo, estas são as «viúvas e os viúvos» da sociedade atual, vítimas colaterais do vírus, a que somos solicitados, com urgência, a «fazer caso». O mesmo é dizer, a acolher, a acompanhar, a cuidar, a ajudar com partilha material e presença humana.
Recomeçamos e avançamos, ainda hesitantes e medrosos, o quotidiano das nossas vidas, confortados pelas palavras de Cristo no evangelho de hoje: «Não se perturbe o vosso coração. Se acreditais em Deus, acreditai também em Mim. Em casa de meu Pai há muitas moradas». A circunstância em que Jesus diz aos discípulos estas palavras é a de um adeus, uma despedida: Jesus vai partir para a sua páscoa (morte e ressurreição) e vai estar com os discípulos de um modo novo, que não é mais de contacto físico. Eles são preparados pelo Senhor para uma dolorosa experiência de luto e de perda; e nós também o somos no presente. Talvez não vamos conseguir viver isentos de receios, de perturbações, de medos. Mas as palavras do Senhor são também desafio a não nos deixarmos sufocar e paralisar por eles.
Estamos todos, como pessoas singulares, como famílias, como empresas, como comunidades cristãs, a fazer o luto de uma normalidade que tínhamos como adquirida e não voltará mais. Inventaremos, sim, uma nova normalidade, correndo riscos, vencendo medos, adquirindo novos comportamentos. Temos diante de nós um caminho novo e desconhecido. Talvez possamos dizer com Tomé que não conhecemos o caminho, que temos receio do desconhecido. Mas o novo do futuro não é um ponto de chegada, é o passo possível numa nova direção dado em cada dia. Só conhecemos o caminho caminhando, pondo o corpo em movimento, arriscando esta viagem com ousadia, fazendo o luto de tantas seguranças, aprendendo a viver em novos contextos. Caminhamos com Cristo, e pelo caminho que Ele próprio é. «Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por Mim». Só caminhando a vida acontece.
Possa cada um e cada uma de nós continuar a reconhecer e a agradecer que, apesar da brutal violência do tempo presente, «a terra está cheia da bondade do Senhor». Está cheia porque acreditamos que cada pessoa, cada criatura é expressão da bondade do Senhor. E que nesta vasta e desafiante terra, nossa «casa comum», a bondade cresce com os nossos quotidianos gestos de compaixão e de partilha.
Honra, portanto, a vós que acreditais e esperais.
Pe. António Martins, V Domingo da Páscoa