Queridas Irmãs
Queridos Irmãos
Nas palavras que trocamos, nos nossos gestos quotidianos, nos pensamentos mais profundos, continuamos todos marcados e condicionados pela pandemia. Já sentimos este tempo de confinamento demasiado longo e insuportável. Somos habitados por um profundo desejo, libertário mesmo, de sair do isolamento das nossas casas e atravessar amplos espaços, ver rostos e abraçar aqueles que amamos. Somos habitados por um imenso desejo de nos soltarmos. E, todavia, um terrível receio nos inibe e oprime. O vírus anda à solta; vai e vem, sem pedir licença, de uns para outros, circula livremente, e nós não.
Entretanto vamos aprendendo a viver condicionados e alterados pela sua invisível presença, sempre ameaçadora, a marcar a normal anormalidade do nosso quotidiano. A primavera avança e nós não vemos os campos floridos, as aguarelas ao vivo das paisagens, o chilrear dos pássaros soltos pelos campos. Daqui a pouco é verão e nem o mar nos vai acalmar. Nem um mergulho de corpo inteiro poderemos fazer em liberdade. Estamos na noite de uma longa tortura. Torturados por dentro, em nossa liberdade de movimento e de relação. Precisamos de rasgar horizontes, alargar espaços e movimentos, sair da estreiteza do confinamento. Precisamos de saltar os muros interiores do medo e do receio que nos separam.
Estamos cansados de virtualização, de teletrabalho, de telemedicina, de video aulas, de telemóveis, de eucaristias on line… A eficácia do virtual não substitui o sentir da carne e o contacto do corpo. Os écrans são sedutores, mas desencarnam. Precisamos de tocar, de agarrar, de sentir com a pele o sabor do mundo e dos outros. O corpo é insubstituível. Somos carne, afeto, relação, contacto, pele que sente, abraça, vive, toca. Isso a experiência cristã sabe muito bem: Na comunhão eucarística comungamos o corpo da comunidade e dos irmãos. Mas disso estamos privados. Só muito lentamente a nossa vida comunitária irá recomeçar, sem saber quando nos poderemos voltar a abraçar sem receio de contacto.
A narrativa dos discípulos de Emaús ilumina hoje as nossas vidas. Dois discípulos de Jesus, após a sua morte, abandonam a comunidade de Jerusalém e regressam à sua casa de origem, a periférica Emaús. Regressam ao passado tristes, desiludidos e derrotados, marcados pelo trauma da morte do Senhor a quem entregaram as vidas e a esperança. Eles vão connosco e nós com eles, neste tempo de ilusões perdidas, de desencanto acrescido, de projetos e sonhos adiados. Todavia, esse aparente regresso ao passado é viagem para o futuro; pelo caminho a suas vidas renascem e a sua esperança é refeita. Porque não caminham sozinhos no vazio e no desencanto: com eles, feito forasteiro e desconhecido, caminha Cristo. O Senhor ressuscitado, o Vivente, percorre com eles, e connosco, os caminhos do desencanto e da derrota, para, por dentro, fazer renascer o futuro: «Jesus aproximou-Se deles e pôs-Se com eles a caminho. Mas os seus olhos estavam impedidos de O reconhecerem». A derrota e o fracasso tinham cegado os seus olhos e endurecido o seu coração. Como frequentemente também nos cegam e nos embrutecem.
Não caminham calados, sufocados pelo medo e pelo silêncio. Pelo contrário verbalizam e partilham a sua tristeza, reelaboram, em comum, o luto pela perda do Senhor a quem entregaram a vida e a esperança. Fazem, a dois, lado a lado, um caminho terapêutico: dizem um ao outro a dor que lhes vai no coração, a ferida interior que os dilacera. Escreve Lucas que «falavam e discutiam». Talvez possamos imaginar alguma tensão, leituras diferentes para o que aconteceu, tantas perguntas em aberto sem resposta. Bem-aventurada discussão que os liberta da solidão e os une no caminho de casa. Nessas palavras e nessa discussão reelaboram o sentido para o que viveram em comum. Bem sabemos que a pior solidão é quando não há comunicação, quando não se tem ninguém com quem falar, onde, quando ninguém pode testemunhar a profundidade da dor que nos habita.
Jesus, entrando no seu caminho daqueles discípulos, torna-se parceiro da conversa, interrogando e causando espanto. Estimula-os ainda mais a contarem o que sentem e viveram: «Que palavras são essas que trocais entre vós pelo caminho?». Esta pergunta de Jesus, como se aquele forasteiro viesse de um outro planeta, alienado e ignorante do que se passara, ainda aumenta neles a tristeza. Mas estamos perante uma fina pedagogia da elaboração do sentido, a partir das raízes da dilaceração interior. Jesus vai ressuscitar o sentido dos discípulos, reunir as páginas soltas da sua vida, revelar-lhes o sentido da Escritura: «… começando por Moisés e passando pelos Profetas, explicou-lhes em todas as Escrituras o que lhe dizia respeito». A inteligência das Escrituras, a inteligência da vida e a revelação do sentido são o mesmo caminho que Jesus fez com eles e continua a fazer, pacientemente, connosco.
Só depois, quando estão reunidos à volta da mesa e Jesus abençoa e reparte o pão, é que os olhos se lhes abrem e o reconhecem. Este amanhecer interior, esta revelação do sentido, acontece quando o dia acaba, a noite chega. Já começa outro dia. A ressurreição dos discípulos, e a nossa, é sempre ao quarto dia, leva tempo, é lenta. Mas esse abrir dos olhos e essa inteligência do coração, ao menos em sua forma consciente, são preparados por um incendiado interior, por um fogo que dentro se atiça pelas palavras de Jesus que com eles caminha: «Não ardia cá dentro o coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava o sentido das Escrituras?» Este momento de reconhecimento é preparado por um longo e paciente caminho, feito de presença e de ausência, de palavras e silêncios. Por quantos caminhos inesperados não se traça a nossa ressurreição no tempo presente? Com que palavras, perguntas, experiências sofridas, gestos inesperados, presenças desconhecidas, silêncios densos, leituras ocasionais Jesus não incendeia hoje a inteligência do nosso coração?
No preciso momento em que se lhes abrem os olhos, Jesus «tornou-se invisível». Não desaparece, continua presente de outro modo, que não passa pela visibilidade exterior. Jesus continua presente na «fração do pão», a eucaristia, na palavra da Escritura que incendeia por dentro os nossos corações, na nossa comunhão fraterna, na nossa partilha fraterna de bens. Nesse momento em que se torna invisível, os discípulos decidem regressar imediatamente a Jerusalém, para junto dos outros irmãos. Podem agora regressar de noite, porque neles já é madrugada. Quando tudo parece ter chegado ao fim, tudo recomeça de novo. Esta é a atualidade da ressurreição.
Reaprender, recomeçar, voltar a partir. Recomeçar a economia, reabrir empresas, serviços, escolas, universidades, salas de cultura e de espetáculo, igrejas, restaurantes e bares, voltar ao nosso quotidiano alterados, renascidos, com um novo folgo e um fogo interior. Podemos viver tudo de outro modo. Com uma incandescência interior, um incêndio no coração. Podemos fazer os nossos percursos de fuga, de recusa, de medo, de sobrevivência, de regresso aos nossos pontos de partida, de travessia dos nossos vazios e dos nossos desencantos, até das nossas frustrações e traumas, de um outro modo. Possa este tempo de confinamento dar-nos a força genesíaca de uma nova inteligência coletiva, de um novo sentir comum, de uma nova inteligência política, económica, social e até eclesial. Podemos ir mais longe, e sermos protagonistas de algo inaugural, a que ainda não sabemos dar nome.
Recordamos e dizemos de novo o poema de Sophia, porque as suas palavras, sendo memória de um passado que celebramos, são também profecia de um futuro ainda por acontecer:
«Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo».
Na evocação do poema hoje, duas madrugadas libertadoras se conjugam, a do sepulcro vazio com o aroma da ressurreição e a da liberdade recuperada com a cor primaveril dos cravos. Uma e outra, em sua distância e aproximação, são momentos inaugurais de um tempo novo, horas genesíacas do futuro.
«E livres habitaremos a substância do tempo».
Pe. António Martins, III Domingo da Páscoa