Queridos Irmãos
Somos guiados pela Palavra de Deus: ela é o nosso critério de vida, a nossa orientação. Nestes domingos da Quaresma, os textos bíblicos que ouvimos, do Antigo e do Novo Testamento, são uma preciosidade. Foram mesmo escolhidos a dedo para serem nosso alimento, nosso critério de discernimento. Peregrinamos, neste tempo de Quaresma, ao ritmo da Palavra de Deus, que cada um de nós acolhe no contexto concreto de nossas vidas.
A vida cristã é uma experiência corpórea. Tanto em termos pessoais como comunitários. Somos sempre corpo. Cada pessoa é corpo singular, cada comunidade forma um corpo de corpos concretos. Cada um de nós, de corpo presente, dá corpo à Igreja. Interagimos uns com os outros. Cada um de nós tem uma história única, tem um passado, um presente e um futuro. A Igreja, humanamente falando, a Igreja é uma realidade concreta porque é a nossa realidade, na grandeza e na miséria de cada um de nós. Somos corpo edificado e transfigurado pelo Espírito, que nos une em nossas diferenças. Somos corpo que se relaciona através dos sentidos: cheiramos, ouvimos, comemos, tocamos, vemos. Toda a nossa vida, as nossas relações, o nosso acontecer no mundo passam pela sensibilidade.
A leitura de hoje do livro dos Génesis oferece-nos, com grande beleza e realismo, uma antropologia existencial dos sentidos. Viver é respirar. A vida é esse grande acontecimento de respiração, do nascer ao morrer. Entramos no mundo por uma inspiração (esse choro inicial pelo qual o nosso sistema respiratório começa a funcionar) e deixamos o mundo expirando. A nossa vida é um processo contínua de inspirações e expirações. Somos a nossa respiração. Precisamos de um bom ar, de um bom ambiente; precisamos também de dilatar os pulmões, de respirar fundo, de tranquilizar a nossa própria respiração, por vezes tão agitada, tão tensa, tão oprimida.
Possa a Quaresma ser um tempo oportuno para dilatar e distender a nossa respiração, para respiramos com mais folgo e maior profundidade. O ar que respiramos é graça de Deus que nos faz viver: «O Senhor Deus formou o homem do pó da terra, insuflou em suas narinas um sopro de vida, e o homem tornou-se um ser vivo». A respiração liga-nos a todos os seres vivos que respiram, na comunhão vital do ar. Saibamos agradecer o dom da nossa respiração, e criar condições de um ar/ambiente menos poluído: «Todo o ser que respira louve o Senhor» (Sl 150,6).
Ainda na primeira leitura do livro do Génesis encontramos essa passagem fascinante e problemática sobre a origem misteriosa do mal, que nos fascina e dilacera, que nos atrai e destrói. No meio do jardim está a árvore da vida. Sobre a mesma Deus tinha dito: «podeis comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comerdes, morrereis». Deus dá-nos uma abundância de árvores de fruto, mas ao mesmo tempo impõe-nos limites. Limitando o nosso desejo, Deus preserva-nos de uma mortal voracidade. Comer tudo significa matar e acabar por morrer. A disciplina do desejo e dos limites preserva a vida. A salvação da nossa existência está na permanente disciplina do desejo, nessa incessante aprendizagem a viver com os limites, e a salvaguardar a vida das outras criaturas.
Mas há uma dificuldade em aceitar os limites. O fruto daquela árvore suscita um desejo irresistível; aparece como belo e bom: «A mulher viu então que o fruto da árvore era bom para comer e agradável à vista, e precioso para esclarecer a inteligência». Quem é que não queria este fruto? Quem é que não queria uma coisa bela, atraente, fascinante, que entra pelos olhos dentro, está acessível à apropriação da mão, apetece tocar e comer. Esta é a dimensão enigmática do mal, que vem a nós e é experimentado por nós como dimensão atraente e fascinante, irresistível. Uma proposta de vida sedutora, de prestígio, uma bela carreira internacional sacrificando família, a possibilidade de uma empresa com lucros garantidos sem custos sociais, a novidade de uma relação apaixonada e arrebatadora atrai-nos e fascina-nos. É o fruto sedutor. A sedução do mal, com a aparência fascinante de bem e de belo, fratura-nos e dilacera-nos por dentro.
E já estamos no campo das tentações de Jesus no deserto, outro modo de apresentar o fruto sedutor da árvore, agora em propostas de vida bem sucedidas. O campo de combate de Jesus é uma dimensão permanente da nossa existência de crentes; a de um combate sem tréguas ao longo da vida. Diz o tentador a Jesus: «Se és Filho de Deus, diz a estas pedras que se transformem em pães». Parece um jogo de crianças, que bem recordamos nas disputas da nossa infância e adolescência quando alguém nos desafiava, provocando: «Não és homem não és nada….»; «mostra que és capaz». Todos nós queremos mostrar que somos homens ou mulheres com força e capacidade. Porque dar parte de fraco é humilhante. O ego narcisista afirma-se sobre o eu profundo (a verdade da consciência).
A tentação de Jesus, e nossa, está em mostrar que é capaz, que é Filho de Deus, com força e poder para desafiar e superar os limites, atravessar a fome com a abundância de pão. Podemos dizer que a vitória de Jesus foi resistir a não sair dos limites da normalidade da humanidade, a não querer para ele, e por ele mesmo, excecionalidades, vida facilitada e diferenciada. Também Jesus aprendeu a disciplinar o seu desejo de comer, de possuir; também aprendeu a dominar o seu narcisismo: «‘Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus’». Vivemos de outros alimentos; vivemos do pão da relação, dos amigos, da natureza, do silêncio, das leituras. Tudo isso é nosso pão quotidiano. Tudo isso é Palavra que sai da boca de Deus e nos alimenta.
Jesus é também nosso Mestre nesta disciplina do ver e do comer. O tempo da Quaresma aí está para ser vivido como uma oportunidade a (re)educarmos o nosso desejo. Apetece-nos tantas coisas, mas precisamos de experimentar a renúncia, de atravessar os nossos desertos de privação, de fome, de solidão, de impotência, de ausência, fazendo a radical experiência dos limites e da vulnerabilidade. Esses lugares desérticos são terríveis, tremendos lugares de tentação, que nos põem à prova, onde todas as seguranças e esperanças são questionadas, quando não demolidas.
O Espírito Santo conduz Jesus ao deserto para ser tentado. Confesso que não percebo bem esta passagem do evangelho… O Espírito conduz-nos e está presente no lugar da prova, da fratura, do confronto, do perigo entre a vida e a morte. O deserto da tentação não fica fora de Deus; e para aí vamos e aí estamos marcados pela presença do Espírito. Não combatemos sozinhos, meramente entregues às nossas forças. O Espírito Santo é nosso aliado, e talvez combata até por nós, quando caímos mesmo em tentação.
Termino referindo a segunda leitura, da Epístola de Paulo aos Romanos. A experiência do mal pode ser devastadora, dilacerante, mortal até, mas não é uma fatalidade. O mal não tem a última palavra. Se Adão é o símbolo universal da humanidade ferida pelo pecado e pela morte, há um outro Adão, Jesus Cristo, que nos garante o reino da vida: «Se a morte reinou pelo pecado de um só homem, com muito mais razão, aqueles que recebem com abundância a graça e o dom da justiça reinarão na vida por meio de um só, Jesus Cristo». Onde abundou o pecado, superabundou a graça.
É nesta esperança que nos confessamos como pecadores, mas sobretudo como filhos e filhas que tudo esperam de Deus em Cristo.
Pe. António Martins, Domingo I da Quaresma
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