Queridos Irmãos
Continuamos a ler o sermão da montanha, do evangelho de S. Mateus. Neste longo texto, Jesus é apresentado como «novo Moisés», que sobe à montanha e aí ensina uma nova e radical interpretação da Lei. Não uma nova Lei, mas o seu sentido pleno, mais puro, mais original: «… não vim revogar/destruir [a Lei], mas completá-la». A Lei na tradição judaica codifica e orienta, em mandamentos, a relação com Deus: «Não terás outros deuses além de mim», e as relações sociais: «Não matarás; não cometerás adultério; não roubarás; não apresentarás falso testemunho» (Ex 20,1-17). Este dizer novo de Jesus é permanente, sempre a atualizar em nós, a reorientar a raiz do nosso desejo e da nossa intencionalidade, a configurar e a rever a qualidade das nossas relações, no contexto da vida familiar e social de todos os dias.
O evangelho apela, incessantemente, a um mais, a um excesso fora da norma, para além dos hábitos adquiridos, do politicamente correto, do socialmente aceitável e esperado. A nossa justiça (a qualidade do nosso viver) há de exceder a dos escribas e fariseus, a dos fazedores e interpretes das leis e das normas, sejam elas quais forem. Sim, o excesso é a marca da diferença cristã. Começa por ser o excesso do dom, do amor apaixonado e incondicional de Deus por nós: «Deus amou de tal modo o mundo que nos deu o seu próprio Filho» (Jo 3,16). Excesso de dom a configurar também respostas excessivas, imprevisíveis, fora da norma fecundas em sua ousadia atrevida.
No texto do evangelho aqui lido, estão propostas novas e radicais interpretações do mandamento «não matarás!» e da necessidade contínua de reconciliação entre os irmãos: «Ouvistes que foi dito aos antigos: “Não matarás; quem matar será submetido a julgamento”. Eu, porém, digo-vos: Todo aquele que se irar contra o seu irmão será submetido a julgamento». Começamos por sublinhar o «porém», o excesso da diferença evangélica. Passa por aqui a loucura da profecia cristã: ou amamos ou somos homicidas: «Quem não ama o seu irmão é homicida» (1 Jo 3,15).
Quem não ama, mata; mata de forma lenta, invisível, silenciosa; mata e mata-se a si mesmo. Porque a nossa vida é relação, encontro, interdependência. Com profunda honestidade reconhecemos: matamos com as nossas exclusões relacionais, matamos com a nossa indiferença, com a nossa raiva, com as nossas acusações, matamos com os nossos julgamentos e rancores, com os nossos ódios de estimação. Com aquelas «excomunhões» silenciosas dentro das famílias e nas nossas relações. Quem não ama, morre e mata. O ódio e o desamor são as incubadoras de um lento homicídio e suicídio.
«Não matarás!», palavra fortíssima, desarmante, inscrita na nudez indefesa do rosto de cada ser humano. Sobretudo nos rostos mais expostos em suas vulnerabilidades. Cada ser humano diante de outro, na nudez do seu rosto, é um grito implorante de acolhimento, uma exigência de preservação de vida, um veemente apelo ético ao cuidado e à responsabilidade: «Não me mates!», «cuida de mim», «preserva a minha vida». Este apelo do rosto de cada pessoa, sobretudo das mais vulneráveis, responsabiliza-me, impõe-se a cada um de nós como exigência de respeito e de cuidado. Cada ser humano, sobretudo os mais vulneráveis e indefesos, são um grito e um apelo a cada um de nós, à sociedade inteira, ao Estado, aos legisladores, aos cuidadores, aos profissionais de saúde: «Não me mates!», «cuida de mim».
Não ignoramos a dura realidade de uma vida humana que se confronta com uma doença incurável e se experimenta num insuportável sofrimento e numa profunda solidão. Nessas circunstâncias tão difíceis pode surgir o grito desesperado de dor e de revolta de querer acabar com a vida. Ou o pedido de uma morte serena. Esse grito de desespero bem poderá ser também, um dia, o nosso. Precisamos de saber acolher com seriedade esse grito, por vezes confuso, entre o pedido de morrer e o desejo de querer viver uma vida com sentido, assegurada por um tecido de relações e de afetos, por um acompanhamento de profissionais de saúde que atenue a dor e ajude o doente ou a pessoa idosa a despedir-se da vida, de modo pacificado e sereno.
«Não matarás!» é o mandamento civilizacional que edifica a sociedade humana, marcada por uma cultura da vida, da compaixão, do cuidado e da entre ajuda. E uma sociedade será cada vez mais humana quanto mais for capaz de proteger e cuidar das pessoas mais vulneráveis, mais desprotegidas e isoladas: a criança por nascer, a pessoa em circunstâncias de profundo sofrimento e doença incurável, as pessoas condenadas à morte, os náufragos refugiados recusados nas fronteiras dos Estados, os idosos que se sentem descartados e sozinhos… Essa é a missão de um Estado de direito, humanista, através das suas leis, dos seus serviços de saúde, da sua segurança social. A defesa da vida, numa coerência sem fissuras nem hesitações, é causa que a todos nos mobiliza.
No atual contexto da composição parlamentar, voltam a surgir projetos de lei de despenalização da antecipação assistida do fim de vida (eutanásia) e do suicídio assistido. O debate, fraturante, polarizador e apaixonante, cheio de dilemas e de incertezas, volta à sociedade portuguesa. Porque se trata da decisão mais grave, senão trágica, de uma vida (o decidir do seu próprio fim), o ato legislativo requer prudência, sabedoria e delicadeza. A urgência das propostas legislativas causa perplexidade. Porque se entra no campo das decisões irreversíveis, sem retorno, não pode haver precipitação. Há nos diferentes projetos de lei uma convergência que não nos deixa indiferentes: aliviar a dor e o sofrimento e dignificar o momento de morrer. A perplexidade está, precisamente, que essa dignificação se faça consentindo na morte assistida. Ao doente é-lhe permitido solicitar, como ato médico, a antecipação da morte, em circunstâncias de doença incurável, de sofrimento insuportável, com plena consciência no uso da liberdade. Mas com que critérios objetivos se pode mensurar e definir o grau de sofrimento insuportável? Quem pode ter autoridade para o fazer? Em nome de que legitimidade o faz? As questões não acabam e não há soluções claras.
O debate é antropológico, na decisão entre a viver e a morrer. Choca, levanta perguntas, cria perplexidades e dilemas. É dramático e emotivo. Neste debate confrontam-se, com paixão e tensão, duas visões antropológicas: Por um lado, a pessoa como o sujeito que se dispõe de si mesmo, e em sua liberdade pode decidir o fim antecipado da sua vida. Nesta perspetiva a dignidade decide-se no uso da liberdade. Por outro, a pessoa como o sujeito que vive pelos outros, e é chamada a integrar os limites do seu viver. Esta perspetiva antropológica, de herança humanista, parte do pressuposto de que a vida é dom/bem indisponível e que uma sociedade será tanto mais humana quanto mais for capaz de compaixão, de inclusão e de cuidado das pessoas mais vulneráveis. A dignidade é uma dimensão ontológica prévia da pessoa; é anterior ao exercício da própria liberdade, e não se pode esgotar nela. O atual debate sobre a eutanásia é expressão, no legislador e na sociedade, da visão antropológica dominante, individualista, subjetiva, centrada na eficácia do agir, de uma qualidade e dignidade de vida medida pela capacidade de autonomia. É o triunfo do medo de viver, de sofrer e fazer sofrer, de morrer só e abandonado. É o triunfo da anti-fraternidade e da anti-solidariedade.
Faço minhas as palavras do Cardeal D. José Tolentino, na sua crónica «10 razões civis contra a eutanásia»: «Não é o primado da vida que tem de estar sujeito às circunstâncias de cada tempo, mas sim as circunstâncias que devem estar sujeitas ao primado da vida»; «A vida dos fracos vale tanto como a vida dos fortes. A vida dos pobres vale tanto como a vida dos poderosos»; «temos de reconhecer que o sofrimento é vivido de modo diferente quando é acompanhado com amor e agrava-se quando é abandonado à solidão»; «A solução não é avançar para medidas extremas como a eutanásia, mas inspirar modelos de maior coesão, favorecendo práticas solidárias em vez de deixar morrer na indiferença e o descarte».
Porque toda a vida é bem indisponível. Um dom a acolher e a cuidar, em qualquer circunstância. Um bem «público»/comunitário a não deixar entregue ao próprio. Porque todos somos responsáveis uns pelos outros, pela nossa comum humanidade.
Pe. António Martins, Domingo VI do Tempo Comum
Clique para ouvir a homilia