A oração na experiência dos limites
Introdução
Na vida humana emerge a dura experiência do mal, com essa dimensão de violência ora padecida, ora provocada. O mal, a experiência dos limites, a violência da doença, da perseguição, o envelhecimento, a solidão, altera a consciência que temos de nós mesmos, da relação com os outros e com Deus. Tudo fica posto em causa. O Mal agride e agride mais quando protagonizado por humanos. O mal sofrido, do qual somos vítimas, pode desencadear a violência da vingança e da agressão, perpetuando a cadeia do mal. O sofrimento provocado pela dura experiência do mal (a perseguição do inimigo, a ameaça mortal da doença, a caducidade da vida que se aproxima da morte, a desordem interior e relacional do pecado…) é o contexto para o crente/o salmista gritar por Deus, pedir socorro, compaixão, ajuda, perdão.
A oração dos Salmos que hoje sublinhamos brota da brutal experiência do mal, expressa-se num grito suplicante, que é de confissão visceral de uma profunda angústia, e expressão de uma confiança sem limites em Deus, em luta, em combate, em agonia, entre a vida e a morte. A vulnerabilidade é o contexto em que se experimenta o perigo da existência, mas também em que se experimenta essa transformação interior que é crescer e renascer na confiança e na esperança, para além das poucas expectativas imediatas. O grito orante do Salmista é já libertação, saída da estreiteza do círculo da violência e da angústia, abertura a uma promessa de futuro que está para além do imediatamente previsível. O sofrimento, nos Salmos, aparece como um lugar onde se reinventa a confiança e a esperança, onde se reelabora o sentido da vida; é um poderoso lugar para atravessar e decifrar. A fragilidade humana, e esse é o testemunho orante dos Salmos de súplica, pode ser experimentada não apenas como um lugar de desgraça e de humilhação, mas como um lugar onde se experimenta um novo renascer humano, onde se experimenta a ternura de Deus e a própria pacificação.
Os Salmos de súplica narram o carácter excessivo do mal, são confissão visceral e uma violência padecida, de uma radical passividade em que não há fuga. Narram a radicalidade do drama da existência humana que é sempre combate entre a vida e a morte. No seu grito de súplica, o Salmista clama a Deus socorro. Mas com a mesma sinceridade com que se expõe e grita a sua dor perante o Deus em quem confia, igualmente com a mesma sinceridade põe Deus em causa pelo silêncio da sua inação, pelo retardamento do seu agir. O grito confiante e suplicante dos salmos é também um grito contra Deus, um grito acusador pelo seu silêncio. Atrevidamente são uma provocação a Deus, uma denuncia do seu silêncio. Nos Salmos podemos estar diante de Deus contra Deus. Gritar de protesto e de confiança, com raiva e com fé, clamar justiça e consolação, expondo um coração e um corpo feridos à pacificação e à reconciliação. Os Salmos de súplica assinalam a incapacidade radical do ser humano sair, por si mesmo, da dura e violenta experiência do mal. Sente o mal mais forte do que as suas forças, mas acredita que Deus seja mais forte do que o mal. Deus pode dar vida no coração do mal: «Tem compaixão de mim, Senhor, que vivo atribulado, os meus olhos consomem-se de tristeza, a minha alma e o meu corpo definham. A minha vida mirrou-se na amargura, e os meus anos em gemidos. A aflição acabou com as minhas forças: os meus ossos consumiram-se» (Sl 31,10-11). Esse é o testemunho orante dos salmos que hoje queremos celebrar. Grito e louvor, súplica e júbilo: assim oscilam os Salmos. Mas para que possam terminar em júbilo e gozo, começam por narrar a carência, os limites, as ameaças. O júbilo é o momento final, consolador, reconfortante da súplica e do grito.
Assim se compreende que o Livro dos Salmos se diga em hebraico, Sefer Tehillim («Livro dos Louvores»). Por que nessa compilação de orações de louvor encontramos orações de súplica, lamentações, imprecações, gritos de violência e de acusação, gritos de revolta e de dor? A este propósito afirma o biblista belga André Wenin: «Talvez porque os editores do Saltério tenham compreendido que o que consente exprimir perante Deus súplicas, lamentos ou sede de vingança, não seja senão o próprio espírito do louvor que canta a vida mais forte do que a morte. Talvez, para além do grito, do lamento ou da raiva, tenham percebido que o que move tais palavras nada mais é senão aquela força de vida que explode em louvor quando sai do beco cego [da violência] ou quando atravessa a morte»[1].
Com linguagem que todos compreendemos, apresente assim os Salmos o saudoso cardeal de Milão, Carlo Maria Martini: «Há inimigos ou amigos, há a vida ou a morte, a saúde ou a doença, a dor ou a alegria e, a maior parte das vezes, não há cambiantes ou gradações. As palavras são como pedras e as poesias como penedos esculpidos a cinzel»; «Os Salmos são um pouco como os carreiros da montanha, simples especialmente quando se caminha sobre a neve, mas que conduzem aos cumes; são carreiros em direção aos cumes do encontro com o Senhor»[2]. Escreve André Chouraqui na sua tradução da Bíblia a partir do hebraico: «De facto, o Saltério bem mais do que um livro escrito num longínquo passado, permanece um ser vivo, que fala e vos fala, que sofre, geme e morre, para ressuscitar e cantar fora do tempo, da perenidade do presente do homem, e que vos toma, vos envolve, do começo ao fim. Sim, este volume esconde um mistério, para que as sucessivas gerações não cessem de voltar a este canto, de se purificar nesta fonte, de interrogar cada versículo, cada palavra da antiga oração, como se nos seus ritmos batesse a pulsação do mundo»[3].
- Na perseguição e na injustiça: Salmo 7
1Lamentação que David dirigiu ao Senhor,
a propósito de Cuche, o benjaminita.
2SENHOR, meu Deus, a ti me confio;
livra-me de todos os que me perseguem e salva-me.
3Que não me arrebatem como o leão
e me dilacerem, sem que ninguém me valha.
4SENHOR, meu Deus, se fiz algum mal,
se há injustiça nas minhas mãos,
5se atraiçoei o meu amigo,
se poupei o agressor injusto –
6então, que o inimigo me persiga e me apanhe;
que ele pise no chão a minha vida
e a minha glória tenha de morar no pó.
7Levanta-te, SENHOR, na tua ira,
e faz frente à fúria dos meus inimigos.
Desperta, ó meu Deus, e decreta a sentença.
8Junta em redor de ti a assembleia dos povos,
vem presidir a ela do alto do teu trono.
9O SENHOR julga os povos;
julga-me, então, SENHOR, segundo o meu direito
e segundo a minha inocência.
10Peço-te: acaba com a malícia dos ímpios;
fortalece os que são justos,
Tu, que perscrutas o íntimo dos corações,
ó Deus de justiça!
11A minha proteção está em Deus,
que salva os de coração sincero.
12Deus é um justo juiz,
que, a todo o momento, pode castigar.
13Se o ímpio não se converter,
pode afiar de novo a sua espada,
retesar o arco e apontar a seta:
14contra si prepara armas de morte,
das suas flechas faz tições ardentes.
15Pode conceber a maldade,
gerar a iniquidade e dar à luz a mentira.
16Abre um fosso profundo para os outros,
mas cai na cova que ele mesmo fez.
17A sua malícia recairá sobre a sua cabeça,
e a sua violência, sobre a sua fronte.
18Louvarei o SENHOR pela sua justiça
e cantarei o nome do Deus Altíssimo.
Meditação:
É recorrente nos Salmos o tema da «justiça de Deus», que não abandona o justo/o inocente) mas intervém contra os perseguidores e os opressores, em socorro das vítimas e dos desprotegidos: «Protegei o fraco e o órfão, fazei justiça ao pobre e ao necessitado. Libertai o fraco e o indigente, livrai-o da mão dos ímpios» (Sl 82,3-4). O presente Salmo (7) é a súplica de um inocente injustamente acusado, que apela, confiante, ao juízo de Deus. Tem a forma estilística de um processo judicial em que o inocente argumenta, perante o juiz (aqui Deus), em defesa da sua inocência. O Salmo abunda em expressões judiciais: «injustiça», «julgar», «agressor injusto», «sentença», «Deus de justiça», «castigar»… O acusado pronuncia um juramento de inocência (vv. 4-6), acusa os adversários; o juiz (Deus) é chamado a instruir o processo (vv. 10-12) e confia numa sentença de absolvição (v. 10: «acaba com a malícia dos ímpios, fortalece os que são justos»). Há recurso a linguagem bélica… «A minha proteção/o meu escudo está em Deus que salva os de coração sincero» ( v.11); «… afiar a espada… e apontar a seta» (13). É um Salmo que proclama a justiça de Deus. O que acusa faz uma descrição psicológica dos agressores: «O ímpio pode conceber a maldade, gerar a iniquidade e dar à luz a mentira» (v. 15).
Ninguém colocaria este Salmo entre os seus preferidos. Não fala de amor, nem de misericórdia, mas apenas de justiça, de inimigos, de acusação. É um Salmo mal conhecido, mal-amado e nunca citado no NT[4]. Faz eco de uma conceção de justiça retributiva (os justos serão recompensados, os malvados condenados) que a dramática e dura realidade da história pode desmentir, ou ao menos matizar, evitando uma compreensão da justiça divina demasiado ingénua e imediatista. Além disso este Salmo que acusa os inimigos e para eles pede justiça precisa de ser completado, e mesmo corrigido, com a boa nova de Cristo de rezar e perdoar os próprios inimigos. A novidade evangélica é dimensão impensável e incompreensível na lógica do presente Salmo.
O Salmo 7, através do qual iniciamos a nossa lectio, é bem a expressão dos Salmos de súplica tão frequentes no Saltério. Estes Salmos trazem à oração a revolta perante a injustiça, perante a violência infligida, perante o sofrimento do qual se é vítima. Trazem à oração profundas experiências humanas de perigo, de ameaça, de vida em risco de se perder/de morte (pela doença, pela ameaça e perseguição do inimigo…). Em sua violenta experiência de injustiça e de perseguição, o Salmista suplica a Deus socorro e justiça, esperando dele salvação. O Salmo inicia-se com uma confissão de fé e de total confiança: «Senhor, meu Deus, a ti me confio, livra-me de todos os que me perseguem e salva-me» (v. 2). Esta primeira frase é a síntese de todo o Salmo: a expressão de uma total confiança em Deus no meio da vida ameaçada de morte. Os inimigos são considerados «leões», termo bem expressivo para dizer a brutalidade da violência e da agressão de que se sente vítima. Afirma-se, sem equívoco, uma situação desesperada que só Deus pode socorrer.
O Salmo termina com um cântico de louvor que, segundo a crítica textual, poderá ter sido acrescento posterior: «Louvarei o Senhor pela sua justiça e cantarei o nome do Deus Altíssimo» (v. 18). Pode ter sido a expressão de um favor recebido. Integrado no presente Salmo ajuda-nos a compreender que o louvor brota de uma vida salva, de uma vida recuperada, liberta da ameaça. O louvor não é o momento inicial na oração, é antes o momento final, após um processo de libertação, após uma dramática de vida ameaçada e recuperada. O louvor é uma expressão agradecida por uma experiência de salvação vivida. É afirmação da exuberância, do milagre da vida, do seu triunfo no meio das ameaças e dos perigos. Louvor e súplica são duas dimensões da mesma experiência orante, da vida feita oração nos Salmos. A inserção expressa deste versículo de louvor no Salmo 7, que estamos a ler e a meditar, o que move o grito de socorro, a súplica, o lamento, a sede de vingança, «não é senão o próprio espírito de louvor que canta a vida mais forte do que a morte»[5].
Os versículos 4-6 são expressão de uma confissão negativa da inocência do justo, ainda que coloque a hipótese, condicional, de poder ser acusado: «se fiz algum mal… se atraiçoei o meu amigo… se poupei o meu agressor…». Trata-se de um elemento retórico que só pretende sublinhar ainda mais a sua inocência e «forçar» Deus a fazer-lhe justiça. Os versículos 7-9 colocam Deus no exercício da justiça, em seu trono de juiz soberano. Podemos imaginar os rituais da justiça próprios de um tribunal: «Levanta-te, Senhor…»; «Desperta, ó meu Deus, e decreta a sentença»; «vem presidir à assembleia dos povos do alto do teu trono». Não poderemos ler no presente Salmo traços de uma arrogância de quem se julga portador de uma justiça imaculada e que só Deus pode fazer fazer-lhe justiça? Este Salmo precisa de ser corrigido com outras passagens da Escritura em que se afirma que nenhuma pessoa se pode considerar justa perante Deus: «Se tiveres em conta os nossos pecados, Senhor, quem poderá resistir?» (Sl 130,3). Estamos no centro da novidade de Cristo e da pregação de Paulo: É Deus que, gratuitamente, justiça o Homem, sem mérito da sua parte. Se o presente Salmo aponta para uma conceção de justiça retributiva, o NT aponta para uma justiça totalmente gratuita.
Chamo a atenção para a antropologia contida no Salmo. Deus, juiz soberano dos povos, «perscruta o íntimo dos corações» (v. 10). O Deus transcendente é o Deus que conhece o profundo dos corações, o Deus da nossa interioridade, no dizer de Santo Agostinho, «o mais íntimo do nosso íntimo». Mas a tradução que lemos não faz inteiramente justiça ao texto bíblico. Lemos na tradução da Bíblica de Jerusalém: «tu sondas os corações e os rins»; «examinas os corações e os rins» (TOB, Chouraqui). Na antropologia hebraica, o coração (leb) é a sede da vontade, da inteligência, da decisão e do consentimento a Deus: «Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua força…» (Dt 6,5). A antropologia grega, que marcará toda a nossa cultura ocidental, põe o acento na mente, na razão, ligadas à cabeça e ao cérebro. Na antropologia hebraica, o coração é o centro da identidade mais profunda do ser humano, o núcleo da sua verdade constitutiva, aquela que Deus sonda, examina e só ele pode julgar: «O Homem vê segundo a aparência, mas Deus vê o coração» (1 Sm 16,7). É do coração do Homem que brota tanto a bondade como a maldade. Os rins, por seu lado, são a sede das paixões, das emoções, do inconsciente, dessa dimensão visceral e entranhada do sentir e do viver que a Escritura tanto sublinha. «Coração» e «rins» dizem a interioridade do ser humano, o coração situado na parte superior do ventre, os rins na parte inferior[6]. Os sentimentos e a vontade dizem o ser humano em sua totalidade, examinada/perscrutada por Deus. E só Deus pode sondar os corações e atravessá-los em suas decisões e paixões: «Deus formou o coração dos homens e discerne todas as suas obras» (Sl 33,15). O coração do Homem é o ponto em que o Senhor Juiz do universo alcança a existência humana.
Outro elemento muito particular neste Salmo, e podemos dizer o seu traço de maior originalidade, é o retorno do mal contra quem o pratica. Não são apenas os outros que são vítimas da violência; quem pratica o mal também é vítima de si mesmo. A violência causada tem o seu retorno sobre o próprio, desumaniza-o, fá-lo crescer em agressão e em dinamismo de morte. Estamos perante uma profunda reflexão sapiencial sobre as consequências dos próprios atos, não apenas para os outros mas também para si próprio. «Abre um fosso profundo para os outros, mas cai na cova que ele mesmo fez» (v. 16). O mal é uma armadilha na qual quem o pratica se torna presa e vítima. O retorno sobre si próprio do mal praticado é uma dimensão que a experiência confirma e que a literatura sapiencial ajuda a consciencializar: «A sua malícia recairá sobre a sua cabeça» (v. 17). Na poética do Salmo, a maldade pode «gerar a iniquidade e dar à luz a mentira» (v. 15). Este conceber a propagação do mal é a negação da vida. Mas nada é uma fatalidade; há sempre a esperança de uma conversão. A liberdade tem a última palavra.
A experiência de ameaça e de perigo mobiliza o crente a suplicar de Deus vida, salvação, socorro, justiça. A sua súplica é expressão de profunda confiança, a esperança de uma justiça divina (última) quando está já desencantado de toda a justiça humana. O sofrimento, sendo uma agressão ao Homem, é também uma provocação a Deus.
- Na doença: Salmo 41
(1Ao diretor do coro. Salmo de David)
2Feliz daquele que cuida do pobre;
no dia da desgraça, o SENHOR o salvará.
3O SENHOR o guardará e lhe dará vida
e felicidade na terra;
não o abandonará à mercê dos seus inimigos.
Refrão: Senhor, tem compaixão de mim
4O SENHOR o assistirá no leito do sofrimento;
quando estiver de cama, o restabelecerá da doença.
5Eu disse: «SENHOR, tem compaixão de mim;
cura-me, embora tenha pecado contra ti!»
6Os meus inimigos falam mal de mim e dizem:
«Quando morrerá e será esquecido o seu nome?»
Refrão: Senhor, tem compaixão de mim
7Os que me visitam dizem palavras triviais,
o seu coração está cheio de malícia.
Mal saem à rua, dão-na logo a conhecer.
8Todos os que me odeiam murmuram contra mim
e planeiam contra mim toda a espécie de mal:
9«Uma doença maligna o atingiu,
donde está deitado não voltará a erguer-se.»
10Até o meu amigo íntimo, em quem eu confiava
e que comia do meu pão, até ele se levantou contra mim.
Refrão: Senhor, tem compaixão de mim
11Mas, Tu, SENHOR, tem compaixão de mim;
levanta-me, para que me possa vingar deles.
12Nisto reconhecerei que me queres bem:
se o meu inimigo não triunfar de mim.
13Tu me ajudarás, porque vivo com sinceridade,
e me farás viver sempre na tua presença.
14Bendito seja o SENHOR, Deus de Israel,
desde agora e para sempre. Ámen! Ámen!
Refrão: Senhor, tem compaixão de mim
Meditação:
O Salmo 41 brota da experiência de uma profunda desvitalidade, de uma vida ameaçada pela doença, pela solidão, pelo abandono, pela falta de laços de sociabilidade e de apoio. Doença física, exclusão relacional e social, ferida interior (pecado) vão, neste Salmo, em conjunto. Por isso a cura pedida, e que corresponde ao mais profundo desejo de vida, à respiração do próprio ser, é salvação, nova relação com Deus, nova compreensão de si mesmo, do seu lugar no mundo, da sua relação com os outros. A doença não é apenas sofrimento pessoal; tem implicações sociais: pode implicar abandono, solidão, exclusão, hostilidade, desintegração dos laços afetivos e de sociabilidade. A doença é, numa compreensão lata, para além de um diagnóstico exclusivamente técnico, «a destruição do meio vital do orante»[7]. Este Salmo ajuda-nos a uma compreensão relacional da doença e da cura. Do ponto de vista literário, o Salmo apresenta uma dimensão narrativa em primeira pessoa: é o próprio doente que se diz em sua carência, solidão, sofrimento, dirigindo-se a Deus em súplica, pedindo cura e perdão: «Os meus inimigos falam mal de mim» (v. 6). Há também, formalmente, a referência a um «ele», a uma universalidade de experiência humana, para além da dimensão biográfica e pessoal: «Feliz daquele que cuida do pobre» (v. 2). No Salmo acontece também a expressão de um diálogo e de uma relação diretas com um «tu», Deus: «Mas, Tu, Senhor, tem compaixão de mim» (v. 11).
Uma nota, para nós, de profunda estranheza: Chama-nos a atenção que a enfermidade, da qual o presente Salmo faz eco, não gere sentimentos de compaixão, de cuidado, mas de hostilidade e de acusação. Todos os conhecidos do orante parecem estar desejando, no profundo de si mesmos, que a sua vida termine: «Os meus inimigos falam mal de mim e dizem: “Quando morrerá e será esquecido o seu nome?”» (v. 6), em que ninguém mais se lembrará dele. E o próprio amigo íntimo, o mais próximo, não tem melhor comportamento: «Até o amigo íntimo, em quem eu confiava e que comia do meu pão, até ele se levantou contra mim» (v. 10). Inimigos e amigos como que se tornam aliados no desejo de morte e de permanecer prostrado na cama. A doença implica aqui morte social e relacional. Estamos perante um mero recurso literário/retórico do Salmista, ou perante costumes praticados na época? Não sabemos… Sabemos sim que as curas para doenças graves eram raras, e que o enfermo era um peso para a família e para o seu grupo. Por isso era, para ambos, uma situação penosa, uma ameaça. Acresce também o facto de, numa mentalidade religiosa persistente, a doença era compreendida como castigo de Deus, como penalização por alguma falta grave. Por isso os conflitos e as inimizades latentes afloram, com violência verbal, sem filtros de pudor, em situações de grave doença. O próprio doente sente-se cercado, sem forças para reagir e se defender. «A doença produz uma desolada solidão, encerrada num circulo de hostilidade. Em tal situação, ao doente não resta senão dirigir-se a Deus»[8].
Está também presente neste Salmo uma justiça retributiva: a quem pratica o bem para com os outros, Deus virá em seu socorro no presente dos seus perigos. A prática do bem é como que um «crédito» para uma futura ajuda/salvação de Deus na desgraça, na doença: «Feliz daquele que cuida do pobre; no dia da desgraça o Senhor o salvará» (v. 2). A felicidade que aqui é cuidado do pobre, do necessitado, do ser humano exposta em sua vulnerabilidade e carência, será acrescida de uma felicidade dada pelo próprio Deus. «Feliz do homem que cuida do pobre», e feliz porque é Deus que o torna feliz; porque a sua vida está assegurada por Deus. Não deixa de ser paradoxal que, num Salmo em que o orante se expõe em sua doença e solidão, tudo comece com uma declaração de felicidade: «Feliz daquele que cuida do pobre».
A fonte da felicidade, do júbilo da própria vida, está no cuidado pela fragilidade humana, no cuidado do outro em sua carência. Aquele que cuida da vida ameaçada de ser irmão, Deus cuidará também da sua. E aí está a fonte e a raiz da felicidade, uma felicidade que é circulação de vida, partilha, cuidado, relação feita proteção do irmão. Esta declaração de felicidade, e de novo o paradoxo, não significa que se desconheça a infelicidade. Mas sim que mesmo no próprio leito da doença pode-se experimentar o feliz encontro com Deus: «O Senhor o assistirá no leito do sofrimento; quando estiver de cama, o restabelecerá da doença» (v. 4).
Detenhamo-nos no versículo 5, na tradução de André Chouraqui: «cura a minha vida/cura o meu ser (nefesh), pois pequei contra vós». A expressão hebraica nefesh traduz-se por garganta, sede da respiração vital, da carência de ar e de alimentação. Indica o ser humano na sua mais profunda carência, no seu mais vivo desejo de vida. A cura pedida a Deus é um restabelecimento da totalidade da vida, do ser humano em sua inteireza. Por isso podem as traduções modernas traduzir o termo nefesh como sinónimo de pronome pessoal («cura-me»). A cura pedida não é apenas cura da doença, é um pedido de uma nova vitalidade, de um reequilíbrio relacional e interior, de uma vida restabelecida em todas as suas dimensões.
Doença relaciona-se, no Salmo, com o pecado: «Cura-me, embora tenha pecado contra ti» (v. 5). No caso concreto sejamos prudentes. Pelo texto não se pode concluir, sem mais, que a doença seja aqui imediata consequência do pecado. A afirmação parece ser mais ampla: pode referir que o pecado é outro modo de enfermidade, uma enfermidade na relação com Deus, uma desvitalidade e morte interiores. Por isso perdão e cura vão em conjunto, tanto no AT como com Cristo, no NT. A cura não é meramente um restabelecimento da saúde perdida, mas um novo estado relacional. A cura alcança o Homem em sua inteireza: é física, espiritual, relacional e interior. Vem de Deus que é fonte da vida e do perdão. Pedir o perdão é, pois, pedir compaixão: «Tu, Senhor, tem compaixão de mim» (v. 11).
Uma vida sã, íntegra, refeita em seu tecido relacional é o maior sinal da benevolência divina, o sinal de que a vida que vem de Deus é maior do que a maquinação dos inimigos e a hipocrisia dos amigos. O levantar-se da cama, recuperando vida, é o maior sinal de «vingança» sobre os inimigos, sinal de que Deus é aliado da minha vida e meu defensor: «Levanta-me, para que me possa vingar deles. Nisto reconhecerei que me queres bem: se o meu inimigo não triunfar de mim» (v. 11-12). «Viver na presença de Deus» não significa nenhuma referência à vida eterna, desconhecida nos Salmos, mas a expressão de uma confiança que Deus não abandona o crente em sua existência, por mais dramática e humilhante que seja. Por isso o Salmo termina com a expressão hebraica da aceitação e da confiança, a palavra que marca, por excelência, a resposta crente: «Ámen! Ámen!».
- No efémero da vida: Salmo 90
(1Oração de Moisés, o homem de Deus)
Ant: Senhor, tu és o nosso refúgio de geração em geração
Senhor, Tu foste o nosso refúgio
de geração em geração.
2Antes de surgirem as montanhas,
antes de nascerem a terra e o mundo,
desde sempre e para sempre Tu és Deus.
3Tu podes reduzir o homem ao pó,
dizendo apenas: «Voltai ao pó, seres humanos!»
4Mil anos, diante de ti,
são como o dia de ontem, que passou,
ou como uma vigília da noite.
5Tu os arrebatas como um sonho,
ou como a erva que de manhã verdeja,
6como a erva que de manhã brota vicejante,
mas à tarde está murcha e seca.
7Na verdade, somos consumidos pela tua ira,
ficamos angustiados pelo teu furor!
8Colocaste as nossas culpas diante de ti,
os nossos pecados ocultos, à luz da tua face.
9Todos os nossos dias se esvanecem pela tua indignação;
os nossos anos dissipam-se como um suspiro.
10A duração da nossa vida poderá ser de setenta anos
e, para os mais fortes, de oitenta;
mas a maior parte deles é trabalho e miséria,
passam depressa e nós desaparecemos.
11Mesmo temendo-te e respeitando-te,
quem poderá compreender a tua ira e indignação?
12Ensina-nos a contar assim os nossos dias,
para podermos chegar ao coração da sabedoria.
13Volta, SENHOR! Até quando…?
Tem compaixão dos teus servos.
14Sacia-nos pela manhã com os teus favores,
para podermos cantar e exultar todos os dias.
15Alegra-nos pelos dias em que nos afligiste
e pelos anos em que sofremos a desgraça.
16Manifesta aos teus servos a tua obra,
e aos filhos deles, o teu esplendor.
17Venham sobre nós as graças do Senhor, nosso Deus!
Confirma em nosso favor a obra das nossas mãos;
faz prosperar a obra das nossas mãos.
Ant: Senhor, tu és o nosso refúgio de geração em geração
Meditação:
O Salmo 91 coloca frente a frente a eternidade de Deus e a caducidade, o efémero da vida humana, e o desencanto que isso acrescenta. Apesar da nota de dramático realismo desiludido, o Salmista não se deixa vencer pelo desespero, mas abre-se, na estreiteza dos seus limites existenciais, da condição mortal que o habita, à confiança em Deus. Está classificado entre os Salmos de súplica, e por isso aqui hoje o trazemos; mas, a par da súplica que lhe dá o tom de fundo, o Salmo apresenta-se também como uma meditação sapiencial sobre a caducidade da vida. Esta meditação integra a tristeza da finitude. O orante, dirigindo-se a Deus, transcende a própria finitude e melancolia existencial na oração. O inimigo contra o qual se pede a intervenção de Deus é, aqui, a morte, um inimigo difícil de combater, como nos indica a própria Escritura: «o último inimigo a ser destruído será a morte» (1 Cor 15,26). O Salmista não pede a Deus o fim dos males nem a destruição do inimigo, mas essa aprendizagem quotidiana, a sabedoria de «viver com o inimigo»: «Ensina-nos a contar os nossos dias, para chegarmos à sabedoria do coração» (v.12).
Caso único no Saltério: o Salmo é atribuído a Moisés, possivelmente pelas suas referências ao Livro do Génesis e a Dt 32. Deus/o Senhor é invocado como estabilidade, segurança, refúgio, morada estável perante a caducidade da vida e a mudança geracional: «Senhor, tu foste o nosso refúgio de geração em geração» (v. 2). Proclama-se a anterioridade de Deus em relação ao mundo criado. Deus é anterior às montanhas, consideradas o elemento mais sólido da terra que a mantém sobre o abismo e seguram as águas celestes: «Antes de surgirem as montanhas…, desde sempre tu és Deus» (v. 2). Do sólido das montanhas se transita para a fragilidade estrutural da condição humana, esse destino de voltar a ser pó, imagem da morte e do reencontro com a terra, da qual o ser humano é modelado. Esse destino de pó, que a qualquer momento nos pode acontecer, esse descer ao vazio e ao não-ser, é no Salmo acolhido como ação de Deus: «Tu podes reduzir o homem ao pó». Toda a história do Génesis está invocada neste versículo: todo o poder criador de Deus que é, igualmente, uma capacidade de fazer voltar as criaturas ao não-ser; no poder criador há também um poder destruidor: «Voltai ao pó, seres humanos» (v. 3)[9]. Mas ficam algumas dúvidas: como se pode conciliar a invocação de Deus como segurança, com um Deus que pode retirar a vida, a respiração? O incómodo da pergunta não tem resposta no Salmo.
No Salmo, a brevidade da vida humana é mais do que uma condição natural; tem uma explicação teologal. Aqui uma antropologia da fragilidade e da finitude abre-se a uma teologia da permanente presença de Deus: tudo acontece ao Homem no vasto âmbito da sua vontade: «Mil anos, diante de ti, são como o dia de ontem, que passou, ou como uma vigília da noite» (v. 4). O versículo 5 é difícil de compreender: «Tu os arrebatas como um sonho, ou como erva que de manhã verdeja, mas à tarde é cortada e seca». A metáfora poética da caducidade da erva é recorrente na Escritura, pois estamos num clima desértico, em que as ervas têm vida breve, praticamente de um dia, em que o sol queima e depressa reduz tudo a pó. A imagem da caducidade da erva serve para evidenciar a fragilidade do Homem perante a eternidade e a estabilidade de Deus. Como o calor do sol seca as plantas, a cólera de Deus queima como um fogo. Toda a vida humana acontece e desenvolve-se sob o olhar perscrutador de Deus, que nada deixa em oculto: «colocaste as nossas culpas diante de ti, os nossos pecados ocultos, à luz da tua face» (v. 8). O Salmista compreende-se como alguém que não consegue ficar fora do juízo de Deus; nada do que é oculto lhe escapa. O pessimismo do Salmista chega mesmo a quantificar a média dos anos de vida: «de setenta, e para os mais fortes, de oitenta». Estamos num tempo em que a esperança de vida era baixa, e chegar aos 80 era já a bênção de uma bela longevidade. A maior parte dos anos «é trabalho e miséria, passam depressa e nós desaparecemos» (v. 10).
Nos versículos 13-16 o Salmo toma a forma de explícita súplica: «Volta, Senhor! Até quando…?». Parece um queixume perante o silêncio e o retardamento de uma ação salvífica, criadora de Deus; o Salmista parece estar a querer afirmar que a ação de Deus tem sido apenas de destruição e não de criação, de permitir a caducidade, a aproximação da morte e não potenciar a vida. Impressiona-me nos Salmos que, pela oração, perante Deus, o crente possa acusar Deus, revoltar-se contra Deus, julgá-lo até. Trata-se de uma oração apaixonada, visceral, intensa, que expressa a complexidade dos sentimentos, da confiança à revolta, do júbilo à acusação, mas sempre em oração, em busca de uma pacificação e de uma sabedoria do coração, ainda que seja pelos caminhos do desencanto, da raiva, da revolta, da difícil integração da violência das circunstâncias. Os Salmos em nada fazem economia da violência; mas a mesma é atravessada coram Dei, perante Deus. «Volta Senhor, tem compaixão dos teus servos» (v. 13).
Chegamos à parte mais bela do Salmo: Se, por um lado, a vida humana é experimentada como uma vigília na noite (breve), por outro, espera-se um tempo novo marcado pela intervenção de Deus, uma madrugada no seu agir. A manhã é, na Escritura, a hora por excelência do agir salvífico de Deus. Saciado dos favores de Deus, o Salmista, e com ele todo o povo de Israel, cantarão e exultarão: a angústia da finitude e da mortalidade dá lugar à celebração jubilosa da vida. Sabendo, com todo o realismo, que a existência humana caminha para o pó, e está permanentemente ameaçada, na oração do Salmista não há rendição; confessando e narrando a dureza inexorável da vida, sempre ameaçada, a sua oração abre-se e termina numa celebração da esperança: «Alegra-nos pelos anos em que nos afligiste e pelos anos em que sofremos a desgraça» (v. 15). A desgraça sofrida abre-se à esperança da graça: «Venham sobre nós as graças do Senhor». E conclui pedindo: «Confirma em nosso favor a obra das nossas mãos» (v. 17). Sem a ajuda e a confirmação de Deus, o Salmista, em tom sapiencial, sabe que toda a obra humana deixada é vã e efémera. O agir humano é mais do que uma afirmação das capacidades humanas; é consentir e corresponder o agir de Deus com o nosso agir, e fazer do nosso agir a procura do cumprimento da sua vontade. A concluir, verificamos no poema um duplo movimento, da vida para a morte, a passagem da manhã à noite, e da morte para a vida, da noite para a madrugada. E já estamos próximos da linguagem da Páscoa cristã.
[1] André WENIN, Entrare nei Salmi, EDB, Bolonha 2002, 5.
[2] Carlo Maria MARTINI, A sede de Deus, Paulinas, Prior Velho 2014, in https://www.snpcultura.org/rezar_com_os_salmos.html.
[3] André CHOURAQUI, «Écrits. Liminaire pour Louanges», in La Biblie. Traduite et presentée par André Chouraqui, Desclée de Brower, Paris 2003, 1116.
[4] Hervé TREMBLAY, «Le Psaume /. Prière du juste persécuté injustement», in http://www.spiritualite2000.com/2007/10/le-psaume-7-priere-du-juste-persecute-injustement/.
[5] André WÉNIN, Entrare nei Salmi, EDB, Bolonha 2002, 5.
[6] Bernard JANOWSKI, Dialogues conflituels avec Dieu. Une anthropologie des Psaumes, Labor et Fides, Génebra 2003, 102-103.
[7] Bernard JANOWSKI, Dialogues conflituels avec Dieu. Une anthropologie des Psaumes, 201.
[8] Luis Alonso SCHÖKEL-Cecilia CARNITTI, Salmos I, Verbo Divino, Estella (Navarra) 2002, 606.
[9] Hervé TREMBLAY, «Psaume 90 (89) Fragilité de la vie humaine» in
http://www.spiritualite2000.com/2013/01/ps-9089-fragilite-de-la-vie-humaine/ .