Queridos irmãs e irmãos,

Celebramos hoje a festa da Sagrada Família. Quando nos aproximamos do Presépio nós vemos uma família, não vemos apenas Jesus – vemos a história daquele encontro, daquela relação entre aqueles três personagens. São a família de Jesus. E aquela família ilumina a nossa própria família, as nossas famílias, e ajuda-nos a entender o que é uma família. A família de Nazaré nós chamamo-la a Sagrada Família porque toda a família é sagrada. Sagrada porque faz parte do plano de Deus – a família é um instrumento da salvação de Deus na história dos homens. Cada um de nós precisa de uma família, é fruto, é consequência de uma família e é construtor de família. Nesse sentido, a família é um marco onde podemos tatear o plano de Deus, a vontade de Deus, o desígnio salvador de Deus na história. A família não é apenas uma invenção cultural, a família tem uma força, tem uma dignidade, tem um papel que é anterior à própria cultura – porque ela é a raiz da própria vida, a raiz da própria existência. E é sagrada como a família de Nazaré é sagrada. Mas é sagrada não por um determinismo. A família é sagrada não porque foi declarada sagrada, simplesmente.  A família é sagrada porque se descobre sagrada. E muitas vezes, na família, nós descobrimos os laços, a importância, o significado desses laços muito para a frente, muito depois – e aos poucos vamos aprendendo que a família é sagrada. A perceção de que a família é sagrada não é uma coisa da origem. É alguma coisa que nós vamos percepcionando ao longo da vida, percebendo o significado daqueles laços onde o amor incondicional circula – é a forma de expressão onde a gratuidade é a linguagem, a generosidade e a capacidade de dom é o estado permanente. E, nesse sentido, vamos percebendo que aquilo que são os laços de que se nutre a família é alguma coisa verdadeiramente sagrada. Por isso o “sagrada” não é um adjetivo para ficar “lá atrás”, mas é um horizonte de descoberta permanente, de perceção daquilo que é esse tesouro, que é esse património que é a família.

Depois, o segundo aspeto é que a família é um dinamismo – a família não é uma coisa que existe, não é um mapa. É um engano dizer: “A minha família é uma família tradicional” – não há famílias tradicionais… Nós olhamos para o Presépio, não há famílias tradicionais, há famílias! Há esse chamamento de amor e de encontro… e isso é vivido numa construção permanente. É muito belo olharmos para os textos de hoje, de Ben-Sirá, da Carta de Paulo, do próprio Evangelho de Lucas e perceber os verbos de ação: “Filho, age desta maneira, Pai age daquela, Mulher age daqueloutra, Marido, age daqueloutra” … a família é um lugar de ação, é um lugar de construção. Não há um programa pré-definido que nós, com o piloto automático, vamos vivendo vida fora… não há piloto automático na família, é preciso estar sempre a reinventar, é preciso estar sempre a fazer, a construir…

A família é alguma coisa que se constrói, não é alguma coisa que se herda. Nós pensamos: “Nasci numa família, herdei aquela família” … – isso só é verdade numa pequenina parte, porque depois a família é o que nós construímos, é esta tarefa, porque a família é uma tarefa. A família é um fazer, a família é uma ação – porque a relação não é uma coisa estável, a relação é alguma coisa que se aprofunda continuamente, que se descobre, que se redescobre, que se trabalha, que se investe, que se qualifica… Isso é a família. 

Por isso, para nós, a família é uma tarefa. Não é aquilo que nós conhecemos ontem. Não basta o conhecimento de ontem para viver a família, é preciso o amor de hoje, e é preciso o investimento que todos nós somos chamados a fazer na nossa família. E cada um tem um papel. É muito interessante nas Leituras que nós ouvimos perceber que numa família todos são protagonistas, todos têm um papel a desempenhar. Não há um que dá e um que recebe, simplesmente, não, todos são chamados a dar, todos são chamados a construir, todos são chamados a viver o compromisso, todos são chamados a cuidar – e isso é a força da família: é de facto envolver todos os seus componentes, não deixar ninguém de fora.

Mas o Evangelho de hoje lembra-nos outra dimensão da família, muito importante, e que faz parte certamente de todas as nossas experiências de família: a família é o lugar onde nós acolhemos a verdade do outro que nós não compreendemos… a família é o lugar onde nos encontramos, mas também onde nos perdemos. A família é o lugar onde nos temos de procurar, porque não sabemos onde o outro está… – é uma ilusão pensar que se o outro está na minha mesa ou porque está à noite em casa eu sei onde ele está… não, não sei! A família é o lugar onde se experimenta a ferida, a fragilidade dos laços. A família é o lugar onde escorrem porventura as lágrimas mais difíceis que cada um de nós tem para chorar – e por isso a família precisa sempre de reparação, precisa sempre de reconciliação, precisa sempre de reconstrução e de cuidados… porque aqueles laços não são pré-fabricados, não duram para sempre, não permanecem isentos do tumulto do mundo e da fragilidade das coisas.

Pelo contrário, numa família o amor também morre, numa família a fraternidade também se esgarça, numa família os laços também se evaporam – e por isso há toda uma tarefa, no fundo, de reconstrução da própria família em que é necessário que nos empenhemos verdadeiramente.

A cena do Evangelho: Jesus cresce… e os pais não perceberam que Ele cresceu e quando o vão procurar num determinado lugar, o filho não está naquele lugar. E estão uns dias à procura d’Ele pensando: “Mas Ele está aqui, está ali, não está! E quando o encontram no templo e Ele lhes diz “Não sabíeis que Eu devia estar aqui a fazer a vontade de meu Pai?” eles não sabiam… nem compreenderam o que Ele lhes dissera, não compreenderam de todo… mas voltaram juntos, e isso é também a beleza da família. Não se tem que entender completamente… muitas vezes, a família é o lugar onde se guarda a diferença, onde se guarda aquilo que não se entende, aquilo que não é a nossa vontade, aquilo que não é o nosso sonho, aquilo que não é a nossa idealização… mas é o lugar onde se guarda  isso, onde se acolhe e se faz caminho com isso: Maria e José não entendiam Jesus, mas Ele voltou com eles para casa e viveram juntos, e foram uma família! E o projeto da família também é este – não podemos pensar que a família é o lugar da fusão, o lugar do entendimento, o lugar onde nunca vai haver problemas, nunca vai haver questões, nunca vão surgir… não, nós sabemos que não é assim, pelo contrário! Todas as famílias são famílias feridas… feridas por dores, feridas por situações que não eram previstas, feridas por sofrimentos, feridas por doenças, feridas por tantas outras questões que têm a ver com as pessoas… E como abraçar isto sem perder a esperança? E como abraçar isto fazendo um caminho?

O outro aspeto da vida da família, penso, é a família não se fechar em si mesma, mas ter uma capacidade de acolhimento. Uma família só se reforça se ela não se torna um projeto fechado, se ela não é uma cápsula, mas é de facto uma escola de amor, uma escola de aprendizagem onde se aprende a amar, onde se aprende a abraçar, onde se aprende a respeitar, onde se aprende a ouvir, onde se aprende a cuidar dos outros… é esse lugar de aprendizagem para depois se praticar no mundo – porque não é só a “ minha família”… cada um de nós tem muitas famílias: os nossos amigos são também uma família, a nossa comunidade é também uma família, o lugar onde trabalhamos é também uma família, o mundo tem de ser para nós uma família… nós cristãos olhamos para o mundo dizendo que é “a família humana”, e nós temos de facto de levar ao mundo a arte de ser família, a arte de integrar, a arte de compreender, a arte de perdoar, a arte de promover, a arte de dialogar, isso é que temos de levar para o mundo!

Por isso queridos irmãs e irmãos, é tão extraordinário o projeto da família! Vamos pedir nesta Eucaristia pelas nossas famílias, e pela Família, que ela seja de facto este lugar por excelência onde se percebe o sagrado da vida – e como esse sagrado é sempre surpresa, é sempre alguma coisa inédita, para a qual nós temos de preparar, em continuação, o nosso coração – como temos de preparar o nosso coração para nos ajoelhar perante o mistério desta Família, a Sagrada Família de Nazaré, onde nasceu o nosso Salvador.

D. José Tolentino Mendonça, Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José

Clique para ouvir a homilia