Queridas irmãs e queridos irmãos,
Primeira nota: a importância no nosso crescimento humano e crente das dúvidas que são desejo de aprender, que é vontade de crescer, que é aprofundamento das nossas razões, de Deus, da própria Escritura. Sublinho a importância que Jesus dá hoje à dúvida deste escriba, a importância que as dúvidas e as perguntas têm na nossa aventura espiritual e humana, na nossa aventura de crentes. Temos mais dúvidas do que respostas, e quanto mais aprofundamos a nossa relação com Deus e a descoberta dos textos bíblicos, mais dúvidas surgem. E é bom.
Aparece, no texto do Evangelho, um homem, um escriba, cuja tarefa era comentar a Escritura. Atenção: é um técnico de escritura. É, portanto, alguém equipado tecnicamente para dar resposta. Aproxima-se de Jesus com uma dúvida: qual é o primeiro de todos os mandamentos? Porque, na complexidade da leitura judaica, havia 613 mandamentos. Dos 613 qual o mais importante: essa era a grande discussão. É interessante que este escriba tinha ouvido Jesus falar com os fariseus e com os saduceus e gostou do que ouviu. Aquele tipo fascina-me, vou-lhe apresentar uma dúvida. Aproxima-se, quase às escondidas: “ó Mestre, qual é o primeiro de todos os mandamentos? Eu ando a ler a Bíblia há tanto tempo e não encontro uma resposta.” As dúvidas são colocadas perante Jesus que nos esclarece. E esclarece-nos ligando a Escritura. Jesus esclarece esta pergunta cruzando dois versículos do Antigo Testamento. Não diz nada de novo, não inventa nada neste momento, mas ao ligar dois versículos está a criar uma forma nova de ler a Escritura. Essa forma nova de ler a Escritura é aquela que Ele transmite ao escriba e que nos transmite a nós. A vida crente orienta-se e cumpre-se em dois amores que são um só: amar a Deus com todas as forças, com toda a alma, com todo o ser, e amar o próximo como a mim mesmo. Esta é a síntese de toda a Escritura que Jesus propõe ao escriba e que propõe a nós. Jesus é o homem da síntese. Vai ao essencial, cruza dois versículos: um do Deuteronómio e outro do Levítico, e faz novo testamento. Está a deixar-nos o critério da nossa vida humana e cristã.
“Escuta Israel”: cada um de nós é a resposta a uma chamada. É a resposta existencial, sinuosa mas possível, a um apelo de ser, que nós dizemos que é o apelo de Deus. Cada pessoa na sua vida é a resposta concreta ao apelo de Deus que é um apelo à vida. Os caminhos existenciais pelos quais se cumpre esta resposta podem ser em algumas pessoas mais facilitados e em outras mais complexos, mas cada pessoa se cumpre dizendo: “sim”. E o “sim” é aceitar a vida. “Escuta” é um dos mandamentos mais importantes do Antigo Testamento. Põe-te à escuta de Deus, pondo-te à escuta do mundo. E quem se põe à escuta sabe que a primeira palavra não é a nossa palavra. A primeira palavra é a palavra que alguém me dirige, é a palavra que vem de fora. É um desafio, um repto, um apelo, uma evidência, um conhecimento. É a descoberta de alguma coisa ou a descoberta de alguém. É um sentimento que me habita, é uma vontade. E no segundo momento, eu digo “sim” a esse apelo. Ao dizer “sim”, e ao continuar a dizer “sim”, estou-me a cumprir.
“Escuta Israel, amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua força, com toda a tua alma.” Curioso, o verbo «amarás» está no futuro. Significa que é um trabalho para toda a vida, é uma promessa, é um mandamento porque o Senhor nos desafia a vivê-lo. Mas é um mandamento que se adapta às nossas circunstâncias, ao nosso crescimento, à nossa evolução. É uma promessa que nunca está concluída, é uma resposta que nunca está acabada. Por isso tem futuro. “Amarás o Senhor teu Deus.” Porque a Deus só se vai pelo amor. Deus só vem a nós pelos caminhos do amor. Podemos estudar muito Teologia – e hoje é o dia da Faculdade de Teologia, faz hoje 50 anos -, mas a Teologia nunca faz santidade. O amor é que faz a santidade. Porque o amor é a relação, é a procura, é a descoberta, é a resposta possível, por vezes hesitante, é o passo que se dá na procura do outro em que nós nos implicamos por inteiro. Reparem como o livro do Deuteronómio nos desafia: com todo o coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento, com todas as tuas forças. Não deixes nada de fora na tua relação com Deus. Façamos do amor a Deus o amor envolvente de todo o teu ser. Até dos nossos limites, das nossas fragilidades, das nossas dúvidas, das nossas hesitações, das nossas feridas, dos nossos desencontros. Tudo isto é para o unificar, é para o oferecer nesta resposta que nós queremos dar a Deus pelo caminho do amor.
Mas o amor a Deus não vale por si, completa-se no amor aos irmãos. A Primeira Carta de S. João sintetiza tudo isto num versículo muito provocatório: “Se tu dizes amar a Deus que não vês, e não amas o teu irmão que vês, que está a teu lado, és mentiroso.” Provocatória! Porque nos interpela. O nosso sentimento mais nobre, mais sublime que é a resposta a um apelo fundamental da nossa vida a quem chamamos Deus concretiza-se na nossa relação cotidiana com aqueles com quem vivemos, com quem nos cruzamos: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo.”
Conhecemos outra discussão a propósito desta passagem. Alguém pergunta a Jesus: quem é o meu próximo? Os meus amigos? Os do meu partido? Os do meu clube? Os da minha religião? Os da minha família? Os da minha etnia? São esses o meu próximo? … Jesus conta a história do samaritano, do homem caído em desgraça. O samaritano é o único dos três que passa, aproxima-se, cuida das feridas, carrega com ele na sua montada e leva-o para a hospedaria. Qual é o próximo? Aquele que teve compaixão, aquele que implicou o coração, o corpo e as mãos no socorro ao irmão. “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” que se traduziu num princípio fundamental da ética do Ocidente: não faças aos outros o que não queres que te façam a ti. Este princípio ético da nossa civilização ocidental tem aqui o seu fundamento. A vida ocidental, na sua negação aparente do Evangelho, é profundamente cristã. Eu não posso querer para mim uma coisa e não a querer para o meu irmão, para outro homem ou para outra mulher que tem a mesma condição humana do que eu.
Por aqui andamos, por entre apelos e respostas. Sintetizo, respondemos a um apelo de amor. É esse apelo que nos faz viver. Existimos para responder ao amor como dom de Deus, e mesmo quem não responde ao amor explicitamente como dom de Deus, responde porque é o apelo fundamental da vida. Este apelo fundamental da vida traduz-se em relações válidas, serenas, construtivas, de entendimento com o cotidiano das relações e das pessoas.
“Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” Este é um caminho com futuro a recomeçar em cada dia.
Pe. António Martins, Domingo XXXI do Tempo Comum
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