Em tempos como os nossos em que os pecados da Igreja, e mais em concreto os dos seus pastores, aparecem na praça pública de uma forma escandalosa, sem máscara nem ocultamento – e bem-, celebrarmos hoje o mistério da santidade da Igreja é um paradoxo. Não é uma contradição, é um paradoxo. Porque as notícias não esgotam a vida da Igreja. Nem esgotam a ação de Deus que faz pelo Seu Espírito, no interior das consciências e dos corações de todos os homens e mulheres e de cada um de nós.

Nós acreditamos que a Igreja é santa e ao mesmo tempo experimentamos em cada um de nós a condição de pecadores, e eu convosco. Em igualdade de circunstâncias, nos confessamos quotidianamente carentes e mendigos de perdão e de misericórdia perante Deus. Esta é a nossa verdade. Uma verdade pobre, uma verdade desnudada. Mas nesta miséria humana, que somos nós, Deus vai fazendo maravilhas; Deus vai derramando força, vigor, santidade. Vai fazendo com que nós, numa contínua luta “entre a carne e o espírito”, utilizando S. Paulo, numa contínua numa luta entre os apetites egoístas e o apelo ao serviço num amor fecundo, vamos vivendo um caminho de santidade. Vamos afinando a vida continuamente pelo diapasão do Deus Santo.

Podemos dizer que a santidade é a vida autêntica da Igreja que não é notícia. O pecado é notícia, a santidade não é notícia. Mas santidade é maior do que o pecado, porque a santidade é a força do Deus Santo no mundo, na Igreja e em cada um de nós. A redimir, a queimar pelo amor, a purificar e a tornar a nossa vida fecunda no serviço aos outros. Isto é possível, nós sabemos que é possível e a Igreja reconhece essa possibilidade apresentando o modelo de santidade de alguns dos seus filhos e filhas. Mas podemos experimentar isso, podemos e experimentamos em cada dia. A santidade passa pela alegria e pelo do cuidado aos irmãos, que começa pelo cumprimento de um horário de levantar cedo todos os dias para levar os filhos para a creche ou para a escola e ir busca-los ao final de um dia de trabalho. Por aqui vai a santidade, a fidelidade de tantos homens e mulheres à vida.

 A santidade passa também, para dizer com o Evangelho, por aqueles que põem a sua vida ao serviço da justiça: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque serão saciados.” A fome de Deus e a fome de justiça são a mesma fome. Nós dizíamos no salmo: “Esta é a geração dos que procuram o Senhor.” Procuramos todos a Deus, o Deus Santo e nunca O possuímos. A Deus vamos pelo desejo, pelo instinto, e quanto mais nos sentimos próximos, mais Deus está distante. A santidade é um caminho que nunca tem fim. É um caminho por instinto, por tentativa e por erro em que o Senhor, continuamente, não deixa de derramar sobre nós a força do Seu Espírito que vem em socorro da nossa fragilidade. “Esta é a geração dos que procuram.” Deus será sempre Alguém que nos foge, sempre Alguém que nos atrai e a santidade é o seu mistério no qual nós nos queremos mergulhar no profundo de nós mesmos. Mas esta santidade de uma vida crente traduz-se numa cidadania, numa política, numa ação cívica de serviço ao mundo. Porque também há uma santidade na política, também há uma santidade na economia, também há uma santidade no desporto e na cultura. Bem-aventurados aqueles que têm fome e sede de justiça e lutam pela dignificação dos seus irmãos. E não há um santo que tenha tido uma vida íntima com Deus, no interior do quarto, que não tenha tido um compromisso sério com os irmãos.

Recordo-me de um filme que vi há uns anos sobre S. Filipe Néri. São Filipe Néri foi contemporâneo de Santo Inácio de Loyola em Roma. Santo Inácio foi um santo intelectual, S. Filipe de Néri um santo cheio de humor. S. Felipe Néri dava-se ao luxo de se vestir de cardeal para brincar ao Carnaval com os rapazes de rua em Roma. Era um homem deste calibre. Nunca foi capaz de ler os Exercícios Espirituais de Santo Inácio porque aquilo era difícil. Uma vez, S. Felipe Néri foi convocado para discernir as visões místicas de uma santa freira. E o senhor, sem saber bem como é que havia de entrar naqueles assuntos tão altos, ele que era um homem prático dos meninos de rua, chega junto daquela senhora que estava em delírio místico e pede-lhe o para ajudar a descalçar as botas. Ela com muita altivez respondeu-lhe: “Eu sou serva de Deus não sou serva dos Homens.” Acabou-se a santidade. Porque aqui não há santidade: ser servo de Deus sem ser servo dos Homens não é caminho de santidade.

Brinco hoje convosco com um santo cheio de humor que nos ajuda a perceber e a viver que a santidade é um fascínio por Deus, mas, ao mesmo tempo, é bem-aventurança este cuidar dos irmãos e cuidar da terra. E reparem nesta passagem bonita do Livro do Apocalipse: “Não causeis dano à terra, nem ao mar, nem as árvores.” Isto pode ser lido em termos de santidade ecológica. A santidade hoje passa por não fazer mal à terra, nem ao mar, nem às árvores – está dito no Livro do Apocalipse. A santidade passa por esta justiça, esta firmeza à justiça, à misericórdia, à paz. Nós podemos traduzir “bem-aventurados” pela expressão: em frente, não desistam. Lutais pela justiça? Em frente. Quereis um mundo de consolação, consolai. Acreditais na pureza de coração? Em frente. Acreditais na paz? Em frente. Bem-aventurados aqueles que não desistem de Deus e não desistem dos irmãos. E por isso, o Senhor nos diz: “alegrai-vos e exultai, porque é grande no céu a vossa recompensa”.

Pe. António Martins, Solenidade de Todos os Santos

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