Queridos irmãs e irmãos,

Jesus estava espantado com a falta de fé daquela gente.

Pensemos um pouco no que significa ter fé. O que é ter fé? Ter fé é certamente ter fé em Deus, ter confiança em Deus. A palavra fé, “fides”, tem a ver com confiança – um ato de entrega, de abertura e de abandono à vontade de Deus, à possibilidade de Deus em nós, isso é a fé. Mas a fé não é apenas disponibilidade para o mistério de Deus. A fé, se existe verdadeiramente, torna-se a nossa maneira de ser, a nossa maneira de atuar.

Eu não posso ter fé em Deus e desconfiar continuamente dos irmãos; eu não posso acreditar no mistério de Deus e desacreditar completamente desse mistério que pulsa, que respira na vida, na história, nos acontecimentos… se eu tenho fé em Deus, então a fé é uma atitude de confiança fundamental, transversal, que está em todas as atitudes da minha vida: eu vou acreditar, eu vou acreditar!

Porque não aconteça que nós com mais facilidade acreditemos naquilo que não vemos do que acreditemos naquilo que vemos! A fé em Deus é uma escola, é uma escola de vida – no sentido em que forma o nosso coração, forma a nossa alma para depois confiarmos nos seus filhos e nas suas filhas, para confiarmos nos nossos semelhantes… mesmo que a situação pareça difícil, mesmo que o ponto de partida seja muito frágil, nós precisamos de dar aos outros também a nossa fé, o nosso ato de confiança.

E nós sabemos isto, eu penso que a vida e Deus através da vida mostra-nos isso: quando nós acreditamos e pomos fé, nós vemos milagres acontecer. Quando nós confiamos nos outros e fazemos os outros sentirem-se investidos de uma confiança, de um amor incondicional, então nós percebemos que há muitos limites que se superam, há muitas fragilidades que se transcendem e há muitos pontos de partida frágeis que depois se tornam outra coisa.

O que é que é necessário? É necessário a fé. A fé que o Criador tem quando olha para o barro ou que o escultor tem quando olha para a pedra – e não vê apenas o barro nem vê apenas a pedra, mas já vê a obra-prima que quer realizar. Miguel Ângelo dizia isso de uma forma muito bela, ele dizia: “Quando eu olho para o mármore, não vejo só o tosco mármore, eu vejo já a escultura e o que eu faço é libertar.”

Às vezes o nosso olhar, o olhar que damos uns aos outros não é um olhar que vê a obra-prima nos outros – mas vemos o tosco, vemos o limite, vemos a pedra, vemos o barro. Por isso a nossa relação fraqueja, a nossa relação perde qualidade humana, afetiva e espiritual, porque nós não vemos o outro como Deus o vê, não vemos o outro com os olhos de Deus, mas vemo-lo de uma forma mesquinha, de uma forma incompleta, de uma forma ressentida, de uma forma desacreditada.

Olhamos para os outros sem pingo de fé. Somos crentes em relação a Deus, mas somos ateus em relação aos irmãos.

Ora, é preciso uma fé na pessoa… as histórias mais belas, por exemplo da minha vida de Padre: ver mães e pais que não desistem dos seus filhos, e nós diríamos de fora: “é um caso perdido”; não, não é um caso perdido, não há casos perdidos, porque se há amor, se há quem acredita, aquele caso não é perdido, mas há uma energia de amor, há uma energia revitalizadora, há um milagre que pode acontecer em cada vida.

E esse milagre também depende da confiança que nós colocamos nos outros.

Jesus vai à sua terra e todos começam a dizer: “Mas ele não é o filho do carpinteiro? Mas então como é que ele está a pensar que é um profeta? Mas… nós conhecemo-lo bem, mas o que é isto?” E Jesus diz: “Um profeta não é aceite apenas na sua terra e na sua família.” E não pode realizar ali nenhum milagre.

Às vezes a familiaridade, às vezes a relação que temos com os outros impede que aconteça um milagre. Porque a relação que temos com os outros não é de admiração, mas é de posse. Não é de louvor, não é de fé, não é de confiança no bem que Deus pode fazer no outro, mas é no defeito, na imperfeição, no problema que nós identificamos.

Ora, a Palavra de Deus hoje é uma palavra que nos liberta e diz: Purifica o teu olhar em relação aos irmãos e abre-te àquilo que Deus pode fazer neles, abre-te àquilo que só Deus pode conseguir – conspira, sê cúmplice do milagre, em vez de seres um obstáculo a que o milagre da vida humana possa acontecer.

Porque os milagres não são apenas de doenças físicas, eu diria até que os grandes milagres são de doenças espirituais. E temos de dar muito valor a isso: as pessoas que conseguem vencer um defeito, vencer um problema, reconstruir-se depois de um desabamento. Que são capazes de dar um passo na direção certa depois de ter dado muitos na direção errada…

De facto, quem somos nós para julgar os nossos irmãos? Precisamos, antes, de investir neles esta fé… e vamos pedir ao Senhor que nos dê esta capacidade de acreditar uns nos outros, de transmitir aos outros este capital de confiança, sobretudo àqueles que estão mais próximos de nós. Nós sabemos, por exemplo, que em família isto às vezes é muito difícil de viver, porque antes que o outro abra a boca nós já sabemos todos os disparates que ele vai dizer, e custa-nos muito, e já não estamos para ouvir… e sem darmos conta, nós estamos a impedir que o milagre aconteça.

Temos de nos perguntar se somos favorecedores do milagre ou se somos obstáculos do milagre: na nossa família, entre os nossos amigos, nos nossos lugares de trabalho, na nossa comunidade, na relação uns com os outros, qual é a nossa atitude? É de facilitar, pela confiança, a que a transformação e o milagre aconteçam ou, pelo contrário, nós criamos um muro já de ideias feitas, de preconceitos, de juízos, e já não damos mais nenhuma hipótese…

É claro que é preciso um trabalho interior, não é fácil. Este discurso não é um discurso fácil, é um discurso exigente, que pede uma morte espiritual para nós próprios, porque não é fácil acreditar sempre, não é fácil! Não é fácil perdoar setenta vezes sete, não é fácil! Não é fácil dar mais uma oportunidade depois de todas as que nós demos, não é fácil! E, contudo, não podemos fechar a porta, porque se fechamos a porta somos nós que morremos, se deixamos de acreditar somos nós que perdemos a nossa vida, somos nós que perdemos a nossa esperança…

É muito interessante aquilo que diz S. Paulo na Segunda Carta aos Coríntios que hoje nós lemos, que é um pouco a espiritualidade ou a teologia da fragilidade: Um anjo colocou um espinho no corpo de Paulo. Os teólogos discutem muito o que é que será este espinho que Paulo trazia no corpo. Muitos dizem “É uma doença, Paulo era uma pessoa doente…” ( a imaginação cavalga um bocado e há muitas hipóteses de doenças).  Santo Agostinho dizia que era a concupiscência que Paulo trazia na carne, como todos nós trazemos na nossa carne e que esse é um espinho – quer dizer, não podemos pensar que somos anjos, não podemos pensar que somos o que não somos, não! Nós somos feitos de barro, somos tentados, somos provados, vivemos sempre na fragilidade e S. Paulo pede a Deus: “ Senhor, tira-me o espinho!” E Deus diz: “Não, não te vou arrancar o espinho, basta-te a minha Graça. Porque é na fragilidade, é na fraqueza que se revela a minha força.”

E às vezes, na nossa vida, nós pedimos a Deus: “ Senhor, arranca-me o espinho! Senhor, tira-me esta dificuldade! Senhor, tira-me este da frente, tira-me esta da frente, Senhor, resolve-me!” E Deus normalmente não resolve assim, mas ajuda-nos a fazer um caminho de confiança: “Basta-te a minha Graça”, porque é quando somos fracos que somos fortes…

Nós temos de aprender esta fraqueza, a abraçar a fraqueza, e nós não aprendemos isso senão no alto da cruz.

É contemplando Cristo de braços abertos e pregado na Cruz, é contemplando esta impotência de Jesus que nós aprendemos o que é o amor, e que aprendemos o que é o perdão, e que aprendemos o que é abraçar a própria fragilidade como caminho para o amor, como caminho para a esperança.

Vamos pedir ao Senhor que nos encha de fé! Encha-nos de fé n’Ele, no que Ele pode fazer em nós, no milagre quotidiano que Deus está disposto a fazer em nós! Mas que tenhamos fé uns nos outros, tenhamos fé na pessoa humana que se abeira de nós, que a olhemos com fé, com confiança, porque isso faz a diferença.

Uma coisa é olhar o outro com duas pedras na mão, na defensiva, outra coisa é olhar o outro e escutar o outro de coração aberto.

Quando fazemos isso, ganhamos sempre, ganhamos sempre…

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XIV do Tempo Comum

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