Queridos irmãs e irmãos,
A liturgia deste quarto domingo da Quaresma centra-nos no drama da renúncia, da recusa. Nós somos visitados, a nossa vida é visitada. Nós temos, no centro da nossa fé cristã, o Mistério da Cruz, Aquele que está levantado sobre a cruz. A imagem da serpente que Moisés ergueu na vara e que curava todas as enfermidades é apenas uma imagem, uma metáfora, desta realidade nova que é a do próprio Deus, do Filho de Deus crucificado na cruz, que nos cura e que nos salva.
Contudo, como diz o Evangelho de S. João, Ele veio aos que eram os Seus e os Seus não o receberam. É este o drama da recusa da fé, dos meios da fé, dos meios da graça, da visita de Deus à nossa vida que tantas vezes nos encontra cegos e surdos em relação à Sua passagem. Nós não estamos verdadeiramente disponíveis, criamos uma espécie de impermeabilização espiritual. Chove, a Palavra vem, o encontro eucarístico acontece mas verdadeiramente não nos molha, não nos transforma, não toca em profundidade aquilo que eu sou. Porque, sem eu me dar conta até ou de forma deliberada, mas sub-reptícia, eu construo uma estratégia de escape. É muito comum nós, cristãos, sermos escapistas profissionais em relação a Deus, em relação à Sua Palavra, à dimensão profética que nos critica e nos questiona. Nós encontramos sempre forma de escapar por entre os pingos da chuva e não ficar molhados, não ficar tocados.
Mas, este escapismo espiritual tem um preço e o preço é a nossa própria destruição. Nós não temos força de lutar contra aquilo que nos tenta, contra aquilo que nos sitia. E, quando damos por nós, somos como as muralhas de Jerusalém, as nossas muralhas, as nossas defesas estão todas em baixo, nós estamos completamente escravizados. Somos escravos, já não somos pessoas livres. Não temos desprendimento, não temos desapego. Dizemos: “Vou fazer.” Mas depois não fazemos. Dizemos: “Eu comprometo-me com isto.” Mas não somos capazes desse compromisso. Cremos, achamos, é por aqui. Mas depois não temos a força interior de ir por ali. Porquê? Porque estamos escravizados. Parece que vivemos em nossa casa, parece que cada dia chegamos ao nosso endereço, parece que somos senhores da nossa vida, mas não somos. Somos um joguete nas mãos daquilo que nos escraviza. Seja o que for. Seja o dinheiro, seja o poder, seja o orgulho, seja a autossuficiência, a autorreferencialidade, seja um erotismo mal vivido, seja a escravidão da internet, disto e daquilo. Tanta coisa que nos escraviza.
A História do Povo de Deus é, muitas vezes, uma história em que ele é escravo, em que ele está no exílio, em que perdeu a sua independência, em que a sua unidade, o seu território eclipsou-se, passou para as mãos de outro. E isso é uma imagem daquilo que acontece realmente na nossa vida. Porque, tantas vezes a chave da nossa casa, a chave do nosso coração, o elmo da nossa liberdade nós entregamos na mão de outro. E não temos essa capacidade. E olhamos para nós: custa-nos reconhecer mas somos fracos, não somos donos de nós mesmos, não fazemos aquilo que sentimos que devemos fazer. Acabamos por viver na espuma daquilo que é mais fácil.
Hoje, esta leitura do livro de Crónicas conta a ida do Povo de Israel para Babilónia. É um retrato chapado daquilo que nos acontece. Nós vivemos em Babilónia, grande parte da nossa vida estamos na Babilónia, não estamos na Terra Prometida, estamos submetidos a poderes que nós não tivemos a força de enfrentar, que nós não tivemos a coragem de dizer “não”. Dizemos um “nim”, tornamo-nos pragmáticos, achamos que conseguimos mas depois não conseguimos.
Por isso, é importante que cada um de nós entre dentro de si e faça um efetivo diagnóstico da sua situação. Porque, não são só os outros que estão no exílio, possivelmente eu também estou no exílio.
Aquilo que Sophia de Mello Breyner diz num poema: “Numa disciplina constante procuro a lei da liberdade medindo o equilíbrio dos meus passos, mas as coisas têm máscaras e véus com que me prendem e se eu um momento detida me esqueço, a força perversa das coisas ata-me os braços e atira-me, prisioneira de ninguém mas só de laços, para o vazio horror das voltas do caminho.” E é verdade, nós andamos assim. Somos prisioneiros de laços que não vemos, não vivemos na nossa terra, vivemos num exílio, numa pátria dividida. Como voltar? A questão da Quaresma, a questão da Páscoa é esta: como voltar a experimentar a liberdade? É possível sendo velho nascer de novo? É possível com todas estas escravidões, esta miséria, sentir um elan de um renascimento, de um rejuvenescimento interior? É possível que a primavera não seja só das tílias da minha rua mas seja também do meu coração, do meu interior? É possível isso?
Hoje a Carta aos Efésios e o próprio Evangelho de João centram-nos na fé, e dizem-nos isto: “Povo de Deus, acredita. Povo de Deus, tem fé.” Que é como dizer: “Maria, José, Manuel, João, Tolentino, Madalena, Duarte tem fé, acredita. Porque a fé é que te dá a capacidade de renascer, de recomeçar.” E este é o tempo para isso, o tempo para descobrir a força que é a fé na minha vida. Porque, não são as obras que nos salvam ou não é a nossa vontade que é tão débil, mas é a fé. Isto é, o acontecimento de Jesus Cristo na vida de cada um de nós determina um ser novo, qualquer que seja o estádio em que a nossa vida esteja. É possível. É possível porque a fé traz-nos ressurreição, a fé traz-nos vida nova. Por isso, temos de fixar os nossos olhos em Jesus. O tempo da Quaresma é um tempo cristológico, que nos enfoca na pessoa de Jesus e neste olhar de amor, de misericórdia que Ele dedica a cada um de nós. Deus está pronto a ir-nos arrancar ao exílio. Deus está pronto a ir-nos buscar ao exílio, Deus está pronto a ir buscar-nos, a arrancar-nos ao sepulcro, Deus está pronto a ir buscar-nos ao silêncio dos infernos, onde tantas vezes nós esgotamos a nossa vida. Deus está pronto a ir arrancar-nos.
E a Páscoa é isto. Um povo pascal o que é? É um povo acordado, é um povo desperto, é um povo que não se conforma a viver no exílio, é um povo que não se conforma à escravidão mas que tem ânsia de liberdade. E é assim: todos nós sabemos o que é isto. Em cada um de nós isto se traduz de uma determinada maneira. Mas agarremos esta oportunidade. A Quaresma é uma oportunidade, é a grande oportunidade para fixar os nossos olhos em Cristo e sentir que a cruz é a alavanca de uma mudança, de uma conversão, de um renascimento, de uma transformação espiritual que pode verdadeiramente acontecer em nós.
Rezemos uns pelos outros, para não ficarmos parados, para não acharmos que já não é para nós, para não acharmos que burro velho já não se converte. Mas pelo contrário, acreditarmos que é possível, para lá dos imbróglios, da frieza, dos muros que nos separam e atravancam a nossa vida e verdadeiramente não nos deixam ser, não nos deixam viver com autenticidade. Para lá disso há uma possibilidade que Deus inaugura para nós – é possível, é possível, é possível! Um homem velho pode nascer de novo? Pode. Digamos isto no fundo do nosso coração e esta certeza nos ajude a dar os pequenos passos da confiança, da procura, da misericórdia, de um caminho de libertação interior. Porque, só assim, naquele domingo em que nós vamos a correr ao sepulcro, nós encontramos um sepulcro vazio. E o sepulcro que é preciso esvaziar é o nosso, é o da nossa própria vida.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo IV da Quaresma
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