Queridos irmãs e irmãos,
Nesta liturgia do quarto domingo temos um conjunto de leituras que nos fornecem entradas no mistério cristão, mas também na construção da nossa própria identidade. Nós, como discípulas e discípulos do Senhor, temos uma forma de existência que se vai construindo no tempo e que se vai alimentando com a Palavra. Por isso, nós somos uma comunidade de leitura, nós precisamos de fazer este exercício de estar de pé ou sentados a escutar uma Palavra e depois permitir que essa Palavra ressoe dentro de nós. Porque é a relação vital, umbilical, com esta Palavra que também vai construindo a pessoa que cada um de nós é chamada a viver à medida de Jesus Cristo, à forma interior do próprio Jesus.
Sabemos que isso é um caminho, é um caminho de descoberta da própria proposta cristã e é um caminho de descoberta também de nós mesmos, daquilo que nós somos nesta relação com Cristo. Que não é uma relação estática, pré-determinada, pré-feita, mas é uma relação que se vai construindo. É uma vocação. É alguma coisa que se plasma, que se constrói, que se urde no próprio tempo ao longo da nossa vida. Há que colher três imagens destas três leituras, porque nós somos também muito construídos interiormente pelas imagens e as imagens trazem uma sugestão que não é apenas racional, mas também emocional, desce também às profundezas da nossa própria consciência.
Na primeira leitura do livro do Êxodo há uma imagem inesperada: Deus está a falar com Moisés, e Moisés vem fazer o relatório dos desejos de Deus. E um dos desejos é que Deus não se manifesta diretamente porque eles não aguentam. Não aguentam que Deus Se manifeste através de sismos, de labaredas, de vulcões, que mexa com a ordem cósmica. E pedem a Deus: Senhor, não Te queremos ver diretamente. E há a coisa espantosa, Deus diz a Moisés: “Eles têm razão.” Deus dá-lhes razão. É inesperado. O que é que Deus quer dizer com isto, que nós temos razão?
A revelação de Deus tem de se adequar à pessoa que nós somos, não se pode revelar de uma maneira que nós não consigamos suportar essa forma, ou que seja uma gramática ininteligível para nós. Não, a revelação de Deus, por vontade do próprio Deus, mas também por declaração das nossas limitações e da nossa singularidade, a revelação de Deus adequa-se. De maneira que Deus não fala uma língua estranha, uma língua que nós não sabemos, Deus não vai bater à porta onde nós não estamos e não passa no caminho que nós não frequentamos, não, Deus adequa-se, Deus vem ao nosso encontro. Deus quer falar uma linguagem que nós podemos acolher. Isso é muito importante na história que nós, mulheres e homens, vamos construindo na vida. Onde é que nós encontramos Deus? Às vezes pensamos: Deus é um mistério tão grande, Deus ultrapassa-me. Por um lado é verdade, mas por outro, Deus faz-se acessível, Deus torna-Se compreensível, Deus deixa-Se achar, deixa-se encontrar.
No livro de Isaías, que depois S. Paulo há de recuperar, há esta frase espantosa: “Deus deixa-Se encontrar até por àqueles que não O procuram”, quanto mais por aqueles que O desejam, quanto mais por aqueles que têm sede, têm fome do Seu rosto, da Sua revelação. Deus deixa-se encontrar. Por isso, tenhamos confiança, tenhamos confiança. Às vezes no fundo de nós sentimo-nos órfãos, sentimos que Deus está distante, sentimos a necessidade de uma palavra que não vem, de uma luz que não vemos. Tenhamos confiança. Deus manifesta-se de uma forma que nós podemos tocar. E, se a sua revelação parece demorada, aprendamos também a abraçar as demoras de Deus, sabendo que Deus é fiel à pessoa que nós somos. Deus é fiel. Deus manifesta-Se na nossa vida e manifesta-se de um modo que não nos emudece de medo, que não nos apavora de susto, mas manifesta-se de um modo que nós possamos colhê-Lo na Sua força, podemos dialogar com Ele.
Por isso, Deus instituiu os profetas, para falarem em Seu nome ao Povo de Deus e serem presenças de Deus, serem catequistas, transmissores da sua Palavra, da sua exortação. Isto é, Deus tem muitos meios, Deus chega à nossa vida através de muitas mediações. Por isso, a primeira palavra é uma palavra de confiança.
Depois temos esta leitura da Primeira Carta aos Coríntios, do capítulo VII, que parece um bocado estranha, aqui no nosso contexto. Quer dizer, a maior parte de nós somos casados e de repente é um elogio das virgens, das pessoas que ficam solteiras porque diz: esses podem preocupar-se apenas com o Senhor, todos os outros andam divididos. De maneira que parece uma leitura estranha para ser lida numa comunidade como a nossa, parece uma leitura que só poderia ser lida num mosteiro, num convento e não numa igreja aberta à vida e à existência como é a nossa.
O que é este capítulo VII da Primeira Carta aos Coríntios? Nós temos de ter em conta o contexto para poder entender o texto de Paulo. Que contexto é este? No mundo antigo não há espaço para o sujeito individual, um homem que nasce já tem o seu destino cumprido. E tem o seu destino cumprido porquê? Porque o Homem não se pertence a ele mesmo. A sua raça, a etnia em que nasce marca definitivamente o percurso da sua vida. E depois é o Estado, ou a Cidade-Estado, ou o Reino. A pessoa é propriedade do Estado, ou é propriedade de uma família e não há espaço para o indivíduo. O que para nós hoje é uma coisa absolutamente sagrada, consignada na Carta dos Direitos Humanos, é uma coisa muito nova e para a qual o Cristianismo deu um contributo absolutamente decisivo. Porque este texto, que nos parece um bocado alienado e patético de S. Paulo, no fundo, é um grande manifesto sobre a liberdade humana. O que Paulo está aqui a fazer é a defender a liberdade individual. O que Paulo diz é assim: não é obrigatório as pessoas casarem-se, o Estado não é dono do meu corpo, a família não manda em mim, eu posso ser livre para construir um destino alternativo, um destino diferente. O que Paulo está a fazer é a fazer o elogio, isto é, está a rasgar no mundo do seu tempo a possibilidade para a liberdade individual. Que é dizer: nós já não estamos sujeitos à lei do coletivo, nós não somos propriedade de uma raça ou de um Estado mas nós vivemos um chamamento que é individual. Então, cada pessoa tem de ter a possibilidade de viver o seu chamamento, de viver a sua vocação.
Então, Paulo não está a desclassificar as mulheres casadas que andam preocupadas com os maridos e não com Deus, ou os homens casados que querem agradar às mulheres e não a Deus, mas Paulo está aqui a transformar a sociedade do seu tempo, abrindo espaço para a vocação individual.
No fundo, este é um contributo civilizacional do Cristianismo. Hoje, muitas vezes, pensa-se que o Cristianismo coarta a liberdade individual, que o Cristianismo tem um discurso que impede os indivíduos de viverem as suas opções. Ora, isso é uma ignorância histórica porque na História do mundo, na História da nossa Civilização foi precisamente o Cristianismo que potenciou a emergência do indivíduo. S. Paulo – às vezes encontramo-lo com tão má imprensa – é de certa forma o fundador do sujeito. Um pensador a quem devemos textos fundamentais acerca do corpo, e daquilo que é a corporeidade fazendo o elogio daquilo que é próprio de cada um. Por isso, este texto é um manifesto da liberdade cristã. Reparem: S. Paulo esteve preso várias vezes por liberdade de pensamento. O Cristianismo começou por ser um delito, começou por ser crime de pensamento. Porque apareciam uns grupos, umas igrejas, umas associações a pensar completamente diferente do que a sociedade e a desmantelar a organização social daquele tempo. O Cristianismo está sempre associado à aventura de liberdade. E nós, mulheres e homens cristãos, temos de dar o testemunho de que o Cristianismo nos liberta, nos torna livres, potencia a nossa capacidade de ser. O Cristianismo abre espaço, abre espaço para a própria pessoa. Coloca no centro a pessoa e não o Estado e não o clã e não a raça. Não é por eu ter nascido judeu ou não-judeu que estou mais próximo ou mais longe de Deus, porque isso já não depende de uma eleição étnica, depende da identidade que eu vou construindo. Eu posso construir essa identidade seja eu quem for. Isto é uma revolução. É uma coisa completamente nova e que abre um espaço inacreditável para o mundo.
Por isso é que é muito importante o contexto. Porque assim percebemos que quando Paulo está a elogiar esta mulher que não se casa, no fundo, está a dizer: cada pessoa tem de ter a possibilidade de viver a sua vocação seja ela qual for. É um exercício de liberdade que Cristo nos dá e que deve continuar hoje a animar-nos. A Igreja tem de ser também uma escola de liberdade, que nos ensine liberdade, o que é o verdadeiro espírito de liberdade. Como diz Paulo na Carta aos Gálatas: “Cristo libertou-nos para sermos verdadeiramente livres.” Verdadeiramente livres.
Por isso, nós cristãos, temos de ter liberdade para pensar o mundo. Temos de ter uma criatividade, temos de ser uma vanguarda profética no mundo. Não somos apenas herdeiros de uma forma, de uma organização, de um modo de ser. Não, nós somos herdeiros de um Espírito, de um Espírito. Que muitas vezes nos faz perguntar: porque não? Porque não ir por ali? Somos herdeiros desse Espírito que nos faz olhar para o mundo com os olhos de Deus. Sem as grades, sem as margens, sem as classes, sem as estruturas que muitas vezes são caixas para arrumar e para dividir e para descartar partes da humanidade. Por isso, este manifesto da liberdade que Paulo nos dá, neste capítulo VII da Carta aos Coríntios, tem de continuar a animar as nossas vidas.
Depois temos o Evangelho, o maravilhoso Evangelho de S. Marcos. São 16 capítulos numa linguagem muito simples, mas parece que nós estamos a ler um romancista russo, parece que estamos dentro de um romance de Dostoiévski. E assim, nesta leitura que nós ouvíamos hoje, Jesus entra na sinagoga e há um endemoniado, há gritos, há um homem que se arrasta violentamente, há as entranhas que explodem, há os demónios que falam. Parece que nós estamos a viver um romance gótico e o Cristianismo também é isso. Porque é assim: o que é que é este encontro com Jesus? Até onde é que Ele vai? O que é que Jesus toca em mim?
O Evangelho de Marcos mostra-nos desde o princípio que Jesus vem tocar as profundezas do meu ser. Jesus não toca só a minha pele, Jesus não toca só o exterior ou não toca só o mental ou não toca só o religioso. Jesus toca a totalidade da pessoa humana no seu mistério, no seu enigma, na sua luz e na sua treva, na sua profundidade insondável. Jesus toca para resgatar a pessoa completamente, a pessoa na sua totalidade. Por isso, a salvação não é um exercício de manicure, um exercício de plástica, não é um melhoramento. É um encontro que resgata a pessoa na sua totalidade, na sua profundeza.
Deixemo-nos tocar por Jesus, deixemo-nos tocar. Se calhar há zonas de nós que nós nunca permitimos que Deus entrasse, que Deus descesse até elas. Deixemo-nos tocar na profundidade do nosso ser, naquilo que é mais denso em nós, deixemo-nos tocar. Que a Boa Nova do Evangelho chegue às profundidades do meu ser, do meu consciente, do meu inconsciente, do meu desejo, do meu sonho e que nos deixemos de facto evangelizar. Que a luz de Cristo chegue a todos os pontos da nossa vida. Porque Ele vem para isso. Salvar é resgatar por inteiro a pessoa que nós somos. Nas alegrias, nos nossos medos, nas nossas coisas altas ou no nosso rés da terra. É salvar tudo aquilo que nós somos.
Deixemo-nos ao longo deste ano chamar, tocar. Sabendo que Jesus não se escandaliza connosco. Jesus abraça-nos por inteiro, Jesus ama-nos. Jesus vem-nos trazer a misericórdia de Deus. Por isso, a Palavra que o Evangelho nos lança, descrevendo-nos estes encontros com Jesus, é de uma profunda confiança.
Vamos pedir por nós, por esta semana que começa, por este ano comum que estamos a viver para que seja uma grande oportunidade para a vida de cada um de nós.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo IV do Tempo Comum
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