Queridos irmãs e irmãos,

Hoje, na leitura do Livro da Sabedoria e no Salmo, temos duas imagens diferenciadas mas que expressam bem o que é o nosso caminho espiritual tantas vezes.

No Livro da Sabedoria temos o elogio da própria sabedoria, e que nos diz: A sabedoria é luminosa e deixa-se ver facilmente àqueles que a amam e deixa-se encontrar por aqueles que a procuram – podemos ir à procura da sabedoria e quando voltamos a casa ela está sentada à nossa espera, na soleira da nossa porta. Então, esta é uma experiência que fazemos: de que a sabedoria, a experiência do sentido, o saber viver, a clareza das ideias, o caminho iluminado diante dos nossos pés é uma experiência fácil – há uma evidência no próprio caminho interior que nós vamos percorrendo.

Mas temos também a imagem do Salmo 62, que diz: “A minha alma tem sede de Vós, eu Vos procuro como terra árida, sequiosa, sem água.” Então, esta experiência também é a experiência que nós fazemos, em que não é assim tão claro – nós procuramos e não encontramos, nós tateamos no silêncio, numa parede e não vemos abertura, não vemos surgir com aquela clareza que o nosso coração deseja, as razões, o significado, a resposta, a estrada que devemos percorrer.

Acho que estamos muitas vezes entre uma coisa e outra. Por um lado, momentos de grande claridade, de extraordinária evidência e, por outro lado, momentos de uma noite escura em que parece que a noite não se descose nunca, nunca surge a aurora e temos uma espécie de travessia num caminho de pedras, num caminho sem respostas.

Entre uma coisa e outra o Evangelho de hoje é um chamamento à espera, nós somos chamados a esperar. Porque, de facto, o nosso caminho nunca vai ser só evidência, nunca vai ser essa claridade, o nosso caminho, aqui na história, nunca atingirá esse nível de transparência que nós idealizamos. Mas temos de acreditar que não há de ser só noite escura, que não há de ser só um caminho de pedras, um caminho para o qual nós não encontramos sentido. Não há de ser uma coisa nem outra, nós vivemos no meio, vivemos uma espécie de intervalo entre um modelo e outro. E, esse intervalo que é a nossa vida, no aqui e no agora, é a espera. Nós temos de olhar para a nossa vida, a nossa existência, o nosso quotidiano, os nossos projetos, o nosso fazer, as práticas da nossa existência, como uma espera.

A espera é uma categoria espiritual muito importante com a qual nos precisamos também de reconciliar. Quem espera sente que está inacabado, que não está tudo concluído. Quer dizer, se eu me entendo numa autonomia total, eu é que vou decidir tudo sobre a minha vida, eu já estou resolvido, o que eu decidir é o definitivo, eu não estou à espera de nada. E às vezes também nós vivemos assim, como se estivéssemos já completamente acabados, como se não precisássemos de um resgate, de um Redentor, que desse sentido à vida. Então, a espera pede de nós esta consciência profunda de um inacabamento. Eu faço-me de tantas maneiras mas não estou concluído, não estou rematado, não estou acabado – sou habitado por uma tensão que é uma expectativa, que é uma espera de uma conclusão e de um cumprimento que não me cabe apenas a mim.

E este é o segundo ponto, o primeiro é de facto a consciência do inacabamento, e o segundo é esta espera do Outro. Porque, nós não esperamos por nós mesmos, esperamos do Outro, esperamos o Outro. Então, a espera coloca-me numa relação. Nós somos demasiado frequentemente ilhas, vivemos numa insularidade, cada um por si, cada um fazendo o seu, colocamos o nosso ego à frente do nosso coração e da nossa alma. Muitas vezes parece que já não esperamos por ninguém, porque não dependemos de ninguém e já temos as portas fechadas e a cabeça arrumada. E a espera é uma categoria espiritual que nos faz esperar por Alguém e perceber que relação é que temos verdadeiramente com Alguém.

Nesta relação, nós vivemos numa atenção. O Evangelho usa a palavra “vigilância”. Em Simone Weil é a Espera de Deus, expectativa de Deus (nome dado ao conjunto dos seus escritos, não é o nome dado por ela, mas é o nome que interpreta o pensamento dela).

Então, tudo aquilo que nós fazemos é uma espera de Deus. Mas como é que se traduz essa espera de Deus? Ela dizia: “Traduz-se em atenção.” Quem espera está atento aos sinais, está atento à vinda. Porque, porventura, Aquele que esperamos já está a chegar, já chegou, já está à porta da nossa casa como a sabedoria. Não está apenas numa espera indefinida, mas está numa realidade concreta que eu sou chamado a reconhecer, no aqui e no agora da minha própria existência.

O Evangelho e a tradição cristã usam um sinónimo de atenção que é: vigilância. Então, temos esta parábola que Jesus contou das dez virgens, cinco prudentes, cinco imprudentes. As prudentes são aquelas que levam não só a lâmpada mas também um recurso, uma almotolia com azeite, para garantir que a lâmpada não terá uma duração breve, mas terá uma duração longa. Nós temos de estar preparados para esperas longas. Quem espera por Deus não pode estar apenas à espera de correr cem metros. Nós temos de correr a maratona, nós temos uma espera longa pela frente, qualquer que seja o tempo da nossa vida, a espera de Deus é uma espera longa.

Por isso, a Palavra de Deus diz: “Meu filho, se entras para o serviço do Senhor prepara-te para as Suas demoras.” Deus demora, Deus tem o seu tempo. Nós precisamos de treinar esta espera. O treinar da espera é o treinar de uma vigilância, o treinar de uma atenção. Ter o nosso coração aceso, ter o nosso coração iluminado, ter os recursos espirituais para manter viva a espera. Porque nós cansamo-nos e, como diz o próprio Jesus na parábola, nós fechamos os olhos, começamos a cochilar, dormimos e, de repente, ouve-se na noite o pregão: “o noivo está a chegar!” E o que é que vamos fazer? Este pregão vai ouvir-se na noite da nossa vida. “O noivo está a chegar!” E como é que esse encontro se vai realizar se eu não estou vigilante, se eu não vivo essa atenção permanente? E a atenção é uma tensão, quer dizer, eu não me basto a mim mesmo, eu não sou a resolução, eu não sou a chave da minha vida, eu estou à espera de Deus. Ele, sim, é Aquele Outro que vem completar, que vem dar sentido, que vem esclarecer. Mas para isso eu tenho de estar nesta atitude de abertura, nesta atitude de quem espera. E por isso, nós somos sentinelas.

O Saint-Exupéry no Cidadela, que agora foi reeditado em português, medita muito sobre a figura da sentinela, que é também uma meditação sobre a identidade cristã. A sentinela está entre a chegada e o profundo deserto. A sentinela está ali sozinha muitas vezes, mas ele sabe que não está só, que ele é o representante de um reino. Às vezes, também na nossa vida, diante de nós está um deserto e atrás de nós está uma noite, e nós às vezes já não sabemos quem somos e o que é que estamos aqui a fazer e para que é que isto serve. Mas para que é que me serve rezar? Mas para que é que me serve ir à missa? Mas para que é que me serve acreditar? Estas perguntas vêm ao nosso coração, deixá-las vir é importante, é sabermos que somos representantes de um reino. Nas horas da nossa fragilidade, nas horas mais vulneráveis da nossa vida, nós temos que dizer a nós próprios: eu aqui sou representante de um reino. A sentinela é aquele que está muitas vezes só, mas é aquele que vê surgir os sinais da aurora.

Então, o vigilante é sempre premiado, porque ele acaba por ver a noite desfazer-se e os primeiros indícios da luz e como essa luz cresce. Por isso, vale a pena vigiar. Um dos motes muito importantes de um grande padre da Igreja, S. Basílio, era: “Vigia sobre ti mesmo, vigia sobre ti mesmo.”

Hoje Jesus convida-nos a viver uma vigilância, convida-nos a viver numa atenção que éuma tensão, a tensão das cordas de uma guitarra esticadas para poder tocar, ou então de uma flecha que a corda tem de ficar bem puxada para a flexa ir longe. Nós também temos de viver nessa vigilância, nessa atenção, não nos bastarmos a nós mesmos, não nos prepararmos para uma espera curta. Não, se entras ao serviço de Deus prepara-te para uma espera longa, porque Deus demora-Se, Deus demora-Se. Mas, esta demora de Deus também é o tempo que Deus nos dá para o acontecer da vida, o acontecer de tantas possibilidades. Esta demora de Deus é também as oportunidades que Deus nos dá para nos surpreendermos com Ele, pelo modo fantástico como Ele entra pela nossa porta dentro, como Ele Se revela na nossa vida, tantas vezes de uma forma inesperada. Mas que o nosso coração esteja atento.

Um dos grandes textos literários do século XX foi o do Samuel Beckett, A espera de Godot, porque diziam que o Godot é um jogo entre o inglês e o francês para dizer “Deus”. Godot é God + Ot , que é um sufixo aumentativo do francês, então era o “Deusão” ou o “Deus grande” ou o “Deusinho”. E seria a peça o diálogo de dois vagabundos que estão ali e que parece que estão à espera de ninguém e, no final, Godot não chega. E o que é que é a peça de teatro? É contar uma espera que é só espera, não é mais nada, é só um tempo. Porque, depois não chega aquele que esperamos.

O Cristianismo, de certa forma, é o anti-Godot, porque nós sabemos que Ele chega. Há um pregão na noite: “Está aí o noivo, esta a chegar o noivo.” E esse pregão é uma coisa que nos sobressalta já no aqui e no agora, porque nós sabemos que Ele vai chegar. Ao contrário desta experiência contemporânea que é: não há nada que nos salve, não há nada que nos resgate, não há nada que nos venha surpreender, não há nada que nos venha levantar disto, não há nada que venha trazer o eterno, não há ninguém. É isso que a peça de Beckett diz.

Nós acreditamos que há Alguém. E no fundo, o que faz a diferença na nossa vida, com toda a humildade, com toda a despretensão, é sabermos que do outro lado está Alguém. Eu acho que isso obriga-nos a viver a todos de uma forma diferente. Uma coisa era se estivéssemos à espera e não chegasse ninguém, outra coisa é estarmos à espera e sabermos que Alguém vai chegar e que esse Alguém vai iluminar por inteiro a nossa vida, vai revelar o sentido de tudo aquilo que somos, vai ser a chave. E vai dar a esta vida, que tantas vezes é terra árida, a fecundidade. Vai encher o nosso coração sedento da Sua luz, da água viva do Seu Espírito.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXXII do Tempo Comum

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