Queridos irmãs e irmãos,

É impossível para nós celebrarmos hoje a fé, lermos e meditarmos sobre a Palavra de Deus sem nos sentirmos tocados e iluminados pela passagem do Papa Francisco entre nós, pelo seu discurso, pelo seu testemunho, pelo seu silêncio de oração, pelo seu exemplo de peregrino que nas últimas horas nós pudemos acompanhar e que foi sem dúvida uma confirmação e um fortalecimento da nossa fé – o Papa que entre nós quis ser peregrino, que desceu do carro e quis ele próprio fazer o caminho até ao Santuário, recolher-se ali em oração e falar-nos como um pai fala com os seus filhos, como um pai na fé abraça e acompanha, estimula, exorta, entende os seus filhos. São para nós momentos de alegria muito grande, de alegria espiritual também, que sem dúvida não esqueceremos e que queremos hoje muito vivamente agradecer ao Senhor. Agradecer ao Senhor as imagens que nos encheram os olhos e o coração, que nos disseram tanto, agradecer ao Senhor o sorriso e as lágrimas das experiências que fizemos, agradecer a ternura deste Papa e a revolução da ternura de que ele fala, o ensinamento que ele nos traz, a tradução que ele traz do Evangelho na sua linguagem, uma linguagem para as mulheres e para os homens de hoje.

É muito importante que o Santo Padre tenha recuperado de uma forma tão viva a ideia da peregrinação: ser peregrino da esperança e da paz. Porque na experiência da peregrinação nós reaprendemos, de uma forma muito prática, esta Palavra de Jesus que hoje o Evangelho de S. João nos oferece como proposta: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida.”

Às vezes nós vivemos situações da nossa vida completamente bloqueados, em que perdemos a esperança, em que achamos que já não há remédio, não há solução, que já não vamos ou já não estamos a tempo. E a experiência do caminho é a experiência de um desbloqueador interno. É a grande surpresa que o peregrino faz na sua viagem –  é, a dada altura, ele compreender que há um caminho, que há um caminho. E esta palavra, só por si, é uma boa-nova, é uma palavra transformadora. É preciso dizer aos sem esperança que há um caminho, é preciso dizer àqueles que acham que chegaram ao fim, que não há nada a fazer se não o desalento das mãos caídas que há um caminho. E a experiência da peregrinação, faça-se ela onde fizer, nos caminhos de Fátima, nos caminhos de Santiago mas sobretudo nos caminhos quotidianos da nossa vida é esta certeza de que há um caminho e de que esse caminho nos fala. Esse caminho diz coisas ao nosso coração na medida em que damos tempo, na medida em que nos entregamos, na medida em que nos expomos radicalmente, em que nos entregamos. Porque a experiência do peregrino é entregar, é confiar. Ele não pode ficar parado num ponto da estrada, não, ele tem de confiar, tem de se atirar mais para longe e nas coisas da nossa vida também é assim. Não podemos ficar parados num tempo a marcar passo, ou numa situação, temos de caminhar, temos de caminhar. E é na medida em que fazemos esse caminho que descobrimos que o caminho se torna significativo, que o caminho fala e percebemos isto que Jesus diz: “Eu sou o caminho, Eu sou o caminho.”

A experiência do peregrino não é só chegar a um ponto, porque um peregrino não chega a um ponto visível, chega sempre a um ponto invisível, chega sempre a um centro espiritual, a um centro interior. E ele percebe que a experiência do próprio caminho é a experiência da revelação do próprio Jesus. Uma das coisas mais extraordinárias da homilia de ontem do Papa Francisco foi quando ele se dirigiu aos doentes, que no fundo somos todos nós – podemos não ser doentes físicos, mas dentro de nós estamos cheios de amolgadelas e disto e daquilo e coisas por curar e tratar. E ele disse: “Pensem nisto: quando subirem a uma cruz, Eu já lá estive primeiro. Quando passarem por um sofrimento pensem: Eu já estive aí. Quando passarem por um inferno, lembrem-se que Eu primeiro desci a ele e desci bem fundo para ser solidário convosco, para antecipar a vossa solidão, a vossa vinda a estes lugares.” Por isso, cada um de nós tem de se sentir acompanhado, na experiência de um Jesus completamente companheiro da nossa vida. E fazer do sofrimento, sofrimento físico e do sofrimento espiritual, um património, fazer desse sofrimento não apenas aquela fragilidade, aquele grito de socorro que precisa de ser ajudado (e que precisa mesmo) mas, ao mesmo tempo, perceber que esse é um património humano, que esse é um lugar, que esse é uma possibilidade ainda de oferecer, de encontrar outro sentido, de encontrar Jesus crucificado.

As palavras do Santo Padre centraram-nos muito na pessoa de Jesus. Maria não é superior a Jesus, disse-nos o Papa. Maria não é aquela porta mais fácil para chegar a Deus, porque o próprio Deus quer ser a porta. Jesus disse: “Eu sou a porta.” Deus é um Deus de misericórdia, Deus não quer o sacrifício, Deus quer a vida, Deus quer a plenitude e Maria é a primeira que entende isso. Mas Maria não vem para substituir um Deus julgador, pelo contrário, Maria é cúmplice de Deus, Maria é parteira de Deus nas nossas almas, nos nossos corações, faz acordar em nós a imagem e a certeza de um Deus que é misericórdia. E isto para nós é extraordinário porque é mobilizador, ouvindo isto nós de facto sentimos que há uma esperança, sentimos que há um caminho, sentimos que há uma verdade que acende a nossa vida e sentimos que há uma vida que não nos larga, há uma vida que não desiste de nós, que é a vida do próprio Deus, que é a vida incessante, incessante do Espírito em nós.

Por isso, nós compreendemos tão bem aquilo que diz esta Epístola do apóstolo Pedro. É uma carta interessante do final do primeiro século, é atribuída ao apóstolo S. Pedro mas, porventura, não terá sido ele mas um autor que se reportou à autoridade de Pedro. Mas, o que importa é isto: esta carta é dirigida aos cristãos que estão na diáspora. Reparem, nós estamos a falar de meia dúzia de mulheres e de homens ali na Ásia Menor, que não têm importância nenhuma e começam a ser perseguidos pela sua fé. O autor cristão escreve esta carta que é uma carta de conforto, mas também é uma carta para que os cristãos compreendam. E não é por acaso que nós lemos no tempo pascal esta Primeira Carta de Pedro. Porquê? Porque o tempo pascal é um tempo de autocompreensão para a Igreja, a partir daqui nós temos de nos compreender. Primeiro queremos compreender quem é este Jesus, morto e ressuscitado, quem é Ele. Mas depois também temos de compreender quem é que somos nós, quem somos nós este povo de batizados. Quem sou eu, homem que acredito em Jesus? Qual é o meu lugar? O que é que eu tenho a fazer? São as perguntas da Igreja neste tempo pascal. E é interessante a resposta que dá o autor da Primeira de Pedro, ele diz: “Substituí os sacrifícios materiais, pelos sacrifícios éticos, espirituais.”

O Cristianismo vem declarar o fim dos sacrifícios. Nós não somos uma religião ritualista, para nós o importante não é o rito, não é fazer isto, não é fazer aquilo. Não é matar um carneiro, não é ter de acender mesmo uma luz. Porque o Cristianismo vem declarar o fim do Templo, o fim do sacrifício, e vem falar da transformação dessa lógica tipicamente religiosa, a exterioridade, a ritualidade como fundamento. O Cristianismo critica e afasta-se disso para dizer o quê? Que agora o sacrifício é espiritual, o Templo é existencial e cada um de nós é uma pedra viva a construir um Templo.

Ora, isto parece que diminui a religião e ao mesmo tempo é o contrário, isto amplia a dimensão religiosa. Porque a dimensão religiosa agora hipoteca a minha vida. Eu sou, como cristão, uma mulher e um homem hipotecado ao Evangelho. Já não me pertenço a mim mesmo. S. Paulo há de repetir isto várias vezes: “Cristo comprou-te, tu és comprado, tu és pertença de Cristo.” E Paulo diversas vezes nas suas cartas se apresentava como escravo de Cristo. Porquê? Porque a sua liberdade e  a sua vida ele entendia como liberdade e vida hipotecadas ao projeto de Cristo. Por isso, cada um de nós também se sinta uma pedra viva deste Templo em construção. Palavras tão extraordinárias aquelas! Imaginem este grupo de perseguidos, de descamisados, de gente que sofria nas cidades da Ásia Menor e a Carta de Pedro vem em sua consolação e diz estas palavras tão extraordinárias: “Vós sois geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido por Deus para anunciar os seus louvores.” E é isso que nos é dito hoje, nós que andamos às vezes tão frágeis, tão limitados, tão coartados, tão suspensos, tão indecisos, tão dilemáticos. “Vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido por Deus para anunciar os seus louvores.”

Queridos irmãs e irmãos, o Vitorino Nemésio dizia isso sobre Fátima, que em Fátima a nossa humanidade passou a valer mais. Mas não é só com Fátima. Fátima é uma expressão daquilo que é o Evangelho em nós, o efeito da revelação de Deus em nós. Nós passamos a valer mais! Cada um de nós se sinta verdadeiramente precioso, cada um de nós sinta que Deus não nos descarta nem nos descartará nunca. Cada um de nós se sinta abraçado e amado pelo próprio Deus, por este Deus que é paternal e maternal, por este Deus que nos dá Jesus que visitou cada lugar, cada situação antes de nós para poder dizer ao nosso coração: “Tem força, acredita porque Eu já estive aí, Eu já passei por aí.”

Vamos nesta Eucaristia dar graças ao Senhor pela pessoa do Papa Francisco, por esta peregrinação que ele fez entre nós. Pedir ao Senhor que o seu exemplo nos toque, que nós percebamos o que é o importante, o que é o essencial, que nós sejamos capazes de relativizar aquilo que não é importante, de sacudir a nossa instalação, a nossa zona de conforto e nos tornarmos, agora que a peregrinação de Fátima acabou, peregrinos na vida de todos os dias.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo V da Páscoa

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