Queridos irmãs e irmãos,
Olhem para o sacrário, está aberto, está vazio. Olhem para o altar, não tem toalha, não há banquete hoje. Procurem a cruz, não está, desapareceu. Não há um único sinal cristão, tipicamente cristão. Nós estamos aqui como se estivéssemos entre escombros, como se estivéssemos num lugar vazio, como não houvesse um único sinal no mundo que nos falasse de Jesus, que nos falasse do Cristianismo, da nossa fé. Hoje é o dia da redução, às vezes nós vivemos a nossa fé com demasiadas coisas, agarramo-nos a isto, àquilo, temos tantas belezas e tantos símbolos que nos falam.
Hoje é o dia da nudez, hoje é o dia em que olhamos para as mãos vazias e não temos nada, vale tanto estar aqui como noutro sítio qualquer, nada nos distingue das outras mulheres e dos outros homens da terra. Nenhum sinal nós ostentamos senão as nossas mãos vazias. Hoje a liturgia começou com os presbíteros caídos por terra, em total silêncio. Essa é a nossa forma de oração neste dia, este dia e o dia de amanhã são os dias do ano em que não há Eucaristia, em que as Igrejas estão assim, como lugares vazios, como terra desolada. Essa é a lição da cruz.
Ontem nós agarrávamo-nos à pergunta que Jesus fez aos discípulos e faz a cada um de nós: “Compreendeis o que vos fiz?” Hoje esse exercício hermenêutico, esse tatear o enigma deste silêncio em que estamos mergulhados continua. Teremos nós compreendido o que Jesus nos fez? As duas últimas palavras de Jesus na narração do Evangelho de João que hoje nós lemos, a primeira “Tenho sede”, a segunda “Tudo está consumado”, parecem duas afirmações que se anulam. Porque “Tenho sede” quer dizer que está incompleto, quer dizer que falta alguma coisa, quer dizer que há o desejo ardente de vida. “Tudo está consumado” quer dizer que se chegou à plenitude, que o destino, que o desígnio se realizou. E a nossa vida habita como um hífen, como um intervalo estas duas frases de Jesus, que para nós são luz para o caminho que nós fazemos. Temos de descobrir que a nossa vida é uma vida que se deve consumar, que se deve realizar.
Já este ano desapareceu um grande sociólogo polaco, Zygmunt Bauman. Ele dizia muito na crítica da modernidade que ele faz que nós como sociedades sabemos muito bem o que é o consumir porque vivemos a consumir – a consumir recursos, a consumir bens, a consumir a nossa própria vida. Sabemos conjugar o verbo consumir e muitas vezes parece que não sabemos outra coisa. Porque, diz ele, “Desaprendemos, desistimos de conjugar o verbo «consumar»”, que é diferente de consumir. “Consumar” é realizar, é levar até ao fim, é concretizar da forma mais plena, é não guardar nada, é ir até onde se tem de ir.
“Tudo está consumado”, e nós vivemos uma vida onde tantas vezes dizemos: “Tudo está consumido”, mas não sabemos o que é estar consumado. Jesus é o Mestre para as nossas vidas, é o Mestre que nos ensina a realizar aquilo que somos, a realizar a nossa humanidade como um projeto que se cumpre, não como uma promessa que fica por realizar. Jesus ensina-nos a ir até ao lugar extremo, a esse lugar que nos deixa no vazio, no silêncio, sem nada como hoje nós estamos. Sem absolutamente nada, não temos nenhum símbolo. Nenhum símbolo mas sentimos que tudo está consumado. Agarremos nisto, agarremos nisto como caminho, como lição que Jesus nos dá. Às vezes ainda estamos agarrados a isto, àquilo, às vezes ainda nos perdemos no labirinto de tantas necessidades verdadeiras e falsas que são o sorvedouro da nossa vida, do nosso amor, do nosso desejo e a vida não se consuma, a vida não se oferece até ao fim. O que a cruz nos grita, o que a cruz nos diz é: ama até ao fim, ama até ao fim, consuma a tua vida, consuma, realiza, plenifica a tua existência. Não vivas a 50%, a 40%.
A Sophia de Mello Breyner dizia: “Meia verdade é como comer meio pão, é como receber meio salário, é como habitar meia casa.” Às vezes nós vivemos de meias verdades e não vivemos essa verdade total, essa verdade plena que é a lição do Crucificado para nós. Ele diz: “Tenho sede.” Porque Ele continua a ter sede, a ter sede daquilo que cada um de nós hoje pode realizar. Agora é a nossa vez, agora é o nosso lugar, agora é o nosso caminho.
No século XX, desenvolveu-se uma teologia muito ligada aos campos de concentração e às perseguições nazis, a teologia do Deus fraco que nós encontramos em vozes como de Dietrich Bonhoeffer, ou encontramos na mística de Etty Hillesum. Deus é fraco, Deus é frágil, Deus é vulnerável, Deus não nos pode salvar. O Deus que nós vemos levantado na cruz é um Deus fraco, um Deus fraco. E é um escândalo a fraqueza de Deus, é um escândalo. Porque nós estamos sempre à espera que seja Ele que resolva, estamos sempre à espera que seja Ele que deicida, estamos sempre à espera que seja Ele a fazer o que nós não conseguimos, ou o que nós não queremos, atiramos para Ele e Deus não pode fazer nada. Deus não pode, Deus não responde, Deus é o próprio silêncio de Deus, é este o enigma desta Sexta-feira Santa. Como olhar para este Deus pobre, para este Deus que não pode salvar?
Etty Hillesum abre-nos um caminho, ela diz: “Eu compreendi que tenho de ajudar Deus.” A fraqueza de Deus pode nos pôr a milhas. Podemos achar que esta palavra é uma palavra horrível e tapamos os ouvidos. Não podemos acreditar num Deus que seja fraco, nós queremos acreditar num Deus forte, no senhor dos exércitos, no Deus que tem a última palavra. Não é esse Deus que hoje nós estamos a celebrar com este vazio, com esta nudez. Não é esse Deus que nos vai ser mostrado daqui a pouco como um espetáculo, como um espetáculo desconcertante aos nossos olhos. Vamos descobrir Deus que está tapado e o que vamos ver é um homem crucificado. Isto é um escândalo!
Nós estamos habituados desde pequenos a olhar para a cruz, mas alguém que olhe pela primeira vez a cruz sente um desfalecimento. Então era isso? Então vamos destapar Deus? Era melhor tapá-Lo de novo. Para mostrar um Deus fraco? Não quero! E tantas vezes é isso que nós dizemos, e olhamos para a cruz sem ver a cruz, sem olhar para aquilo que está lá escrito, escancarado, documentado na cruz que é a vulnerabilidade de Deus.
S. Paulo dizia que isto é uma loucura, é um escândalo, que isto não se entende. E, de facto, não é do domínio do inteligível, é o paradoxo da fé cristã. Nós vamos adorar hoje a cruz, vamos inclinar sobre ela a nossa fronte, vamos receber o seu perfume na nossa vida. Mas, receber e adorar a cruz é compromete-se a ajudar o Deus fraco. Porque, na nossa vulnerabilidade, na nossa fragilidade nós podemos fazer muito, podemos fazer tudo por Deus, podemo-nos colocar ao Seu serviço. Uma mulher como Etty Hillesum no campo de concentração, um homem como Dietrich Bonhoeffer numa cela da prisão nazi, eles foram vozes de Deus em momentos completamente obscuros do século XX. E hoje, os justos que sustentam o mundo continuam essa tarefa de ajudar Deus sentindo-se cúmplices com a impotência de Deus, minorando-a, transformando-a em lugar onde Deus abraça as nossas feridas. Como, em Cristo, como se leu hoje na Carta aos Hebreus, nós temos um Sumo-Sacerdote capaz de se compadecer dos nossos sofrimentos, porque Ele próprio carregou a nossa culpa, carregou a nossa iniquidade. Ninguém se sinta só, ninguém se sinta só.
Muitas vezes até nos infernos que escolhemos percorrer é importante sentir que Ele está lá. Uma das frases mais extraordinárias aplicadas a Jesus pela Igreja primitiva e que nós encontramos no Evangelho é dizer: “Ele foi contado entre os malfeitores.” Ele foi contado, éramos um grupo de malfeitores e Ele foi contado entre nós, éramos um grupo de maldizentes e ele foi contado entre nós, éramos um grupo de miseráveis e Ele foi contado entre nós, éramos um grupo de condenados e Ele foi contado entre nós. Ele está sempre a ser contado entre nós porque é solidário com a fragilidade, com a vulnerabilidade humana. Esta solidariedade de Cristo ajuda-nos a ser, é a âncora, é a mão estendida à nossa humanidade mas é também um desafio a nós ajudarmos Deus.
Pe. José Tolentino Mendonça, Sexta-feira Santa, Celebração da Paixão do Senhor
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