No final desta passagem do Evangelho que nós proclamamos há esta pergunta de Jesus: “Compreendeis o que vos fiz?” E esta pergunta continua a ser uma pergunta para cada um de nós. Compreendemos o que Jesus nos fez?
Estamos a celebrar o ciclo pascal de 2017, cada um de nós tem um caminho feito com Jesus. Alguns de alguns anos, porque temos cinco, seis, sete anos ou menos, mas outros de muitos anos. “Compreendeis o que vos fiz?” Esta pergunta não nos larga, porque é muito importante que cada um de nós compreenda. E muitas vezes, nós atiramos esta necessidade de compreender para debaixo do tapete do mistério. Dizendo que é um mistério, que isto era uma coisa de Jesus que era Filho de Deus, que isto é uma coisa que não se percebe bem, isto é uma coisa para acreditar, não é uma coisa para compreender, isto é uma coisa que eu nunca vou chegar lá, isto é uma coisa que me ultrapassa. No fundo, tantas desculpas que nós damos, e, contudo, a resposta de Jesus vai no sentido de que nós possamos compreender. “Compreendeis o que vos fiz?” E mais, Jesus diz: “É importante compreenderdes o que vos fiz para poderdes fazer o mesmo aos vossos irmãos, para poderdes fazer o mesmo uns aos outros.”
Então, o que é que Jesus nos fez? O que é que Jesus nos faz? Jesus, olhemos para as coisas de uma forma muito simples, da forma mais simples, mais desprotegida que tenhamos. O que é que Jesus faz? Primeiro, junta-nos à volta de uma mesa. E uma mesa é um símbolo transversal a tantas culturas humanas. Há mesas mais altas, mais baixas, maiores, mais pequenas mas há sempre uma mesa. Nem que seja uma toalha deitada no chão, é uma mesa. Onde houver mulheres e homens há mesas, porque a mesa faz parte da construção da nossa humanidade. Nós somos o que somos porque passamos por determinadas mesas. Há uma história, há uma biografia de cada um de nós à volta de mesas.
E porque é que a mesa é tão importante? Porque a mesa, de uma forma silenciosa que a gente nem dá por isso, é um lugar que nos constrói. Porque é que é tão importante, porque é que é tão decisivo nos sentarmos à volta de uma mesa? Por exemplo, numa família, porque é que é tão importante comer uns com os outros? É importante, não apenas por razões económicas, porque fica mais barato, mas é importante porque nos alimentamos uns dos outros. Porque, à mesa mais importante do que comer o pão, ou comer o bife, ou comer a sopa, nós comemo-nos uns aos outros. Isto é, alimentamo-nos da presença uns dos outros, olhamos uns para os outros e isso reforça em nós a necessidade de amor, de presença que temos dos outros. Alimentamo-nos dos outros porque nos inspiramos dos outros, alimentamo-nos dos outros porque recebemos o dom de vida dos outros e precisamos absolutamente desse dom. Às vezes é bom comer sozinho, e muitas vezes nós temos de comer sozinhos mas mesmo quem come a maior parte do seu tempo sozinho sabe o que é comer em companhia, e percebe que aquilo que distingue um dia ordinário de um dia extraordinário, um dia comum de um dia de festa é podermos comer uns com os outros. Porque, comer uns com os outros é fazer circular o dom, é receber, é receber vida uns dos outros.
Jesus pega no pão naquela última ceia e diz: “Tomai e comei, isto é o meu corpo.” Pega no cálice com o vinho e diz: “Tomai e bebei, isto é o meu sangue.” Reparem, às vezes nós interpretamos isto de uma forma muito materialista. Claro que é fundamental acreditarmos que aquele pão é o Seu corpo e que aquele vinho é o Seu sangue, e cairmos de joelhos perante esse mistério. Mas esse mistério é um mistério divino, que é um mistério humano que todos os dias acontece ou pode acontecer connosco, porque também nós temos de ter a capacidade de transformar a matéria em vida, também a nós é pedido que transformemos o pão num laço de amor, que transformemos o vinho, ou que transformemos a água, o copo partilhado num laço de vida que nos ressuscita, que nos levanta do chão, que nos enche de esperança. Não tem nada de mágico, no fundo, o que temos em cada Eucaristia é o acontecer de uma dimensão antropológica, que está completamente próxima de nós, não é apenas o mistério de Jesus. Não, Ele encenou e viveu radicalmente, historicamente aquilo que é possível cada um de nós viver. E por isso nós dizemos: a Eucaristia é o centro da nossa vida. A Eucaristia é o útero da Igreja, é o seio de onde a Igreja nasce e renasce em cada dia. Porquê? Porque aqui nós temos a grande lição de Jesus.
E a grande lição de Jesus qual é? Criar uma mesa aberta, criar uma mesa sem fronteiras, uma mesa sem muros, uma mesa aberta a todos, de onde todos se podem aproximar e oferecer-se completamente como alimento, como dom. Entregar a sua vida, dar-se, dar-se aos outros a ponto de dizer: o que tu estás a comer não é pão, o que tu estás a comer é a minha vida; porque eu entrego a minha vida por completo nas tuas mãos.
“Compreendeis o que vos fiz?” Foi isto que o Senhor nos fez, é isto que o Senhor nos faz. E por isso, às vezes penso que as nossas mesas estão demasiado sequestradas, pela nossa insegurança ou pela nossa rotina, ou pelo nosso medo e acabamos por ser pão que fica duro no fundo do saco. A nossa vida muitas vezes é um pão que se perde porque não é dado, porque não é oferecido. Nós vimos à Eucaristia mas ritualizamos a Eucaristia. Ora, a Eucaristia é um rito, mas é um rito para ser vida, não é um rito para ser rito. É um rito para acordar em nós a capacidade de fazer o mesmo, de fazer o mesmo. E fazer o mesmo é termos a capacidade de juntar à volta da nossa mesa os nossos mas não só os nossos, ter capacidade de juntar na nossa mesa os próximos mas não só os próximos. Ter capacidade de juntar na mesa que é a vida, que nem tem de ser uma mesa, mas a vida, toda ela, é uma mesa porque estamos todos sentados à volta desta grande mesa que é a terra; a nossa atitude ser a atitude de quem serve, de quem dá, de quem oferece, a atitude de quem faz da matéria, dos bens, das coisas do mundo, da materialidade da vida, quem é capaz de fazer disso dom, dom.
“Compreendeis o que vos fiz? Fazei o mesmo uns aos outros.” No Evangelho de S. João nós não temos a narrativa da Ceia, temos a narrativa do Lava-pés. Jesus tira o manto, coloca-se de forma mais despojada e começa a lavar os pés aos Seus discípulos. E aquele diálogo com Pedro é muito verdadeiro. Porque Pedro diz: “Senhor, jamais me hás-de lavar os pés. Isso não faz sentido nenhum! Temos de ser nós a lavar-te os pés.” E de facto, não faz sentido nenhum, não é razoável, não é, não é. Mas Jesus ensina-nos uma coisa, que aquilo que resgata a nossa vida, aquilo que dá a ver, aquilo que salva a nossa vida não é apenas as coisas razoáveis que nós fazemos, mas é o excesso de amor que pode assinalar a nossa vida. O excesso de amor, nós somos salvos pelo excesso.
Eu às vezes digo aos pais que têm filhos pequeninos da minha equipa de casais, hoje tenho a alegria de ter aqui uma delas a ajudar-nos no canto, às vezes com os filhos eu digo muito: “Vocês vão ser pais imperfeitos. Convençam-se disso, se acham que nunca vão errar, não, vocês vão errar, vão falhar completamente como pai e como mãe, vão falhar. Há uma coisa que vos safa é se forem capazes de mostrar aos vossos filhos o vosso amor incondicional, em determinados momentos eles ficarem sem a mínima dúvida de que vocês os amam com um amor que não é deste mundo, com um amor maior do que tudo. Serem capazes da pura graça, da pura gratuidade deles sentirem que, pronto, é o amor, é o amor. E isso é através do excesso de amor. Façam coisas que deem a certeza aos vossos filhos desse excesso de amor. Isso vai salvar a vossa relação com eles.”
E é no fundo, isto que acontece no interior de uma família, mas acontece com cada um de nós e acontece com o grupo dos discípulos. Porque é que Jesus lava os pés aos discípulos? Para que nem lhes passe pela cabeça que Jesus não está disposto a amá-los cada um até ao fim, eles não terem a mínima dúvida de que Ele está disposto a dar a Sua vida por cada um deles. E é isso que Jesus diz a cada um de nós, que nem nos passe pela cabeça que Ele não nos ama até ao fim, até ao fundo, muitas vezes até ao fundo do nosso poço, até ao fundo dos nossos dilemas, até ao fundo do nosso inacabamento. Ele ama-nos até ao fim e até ao fundo. “Compreendeis o que vos fiz?”
Pe. José Tolentino Mendonça, Quinta-feira Santa, Celebração da Ceia do Senhor
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