Queridos irmãs e irmãos,
Na Carta de S. Paulo que hoje nós lemos ele fala de dois princípios que servem de bússola para a nossa vida. Muito na linguagem paulina nós temos de um lado a lei da carne, o caminho da carne, o princípio da carne e o princípio do espírito.
S. Paulo desafia os cristãos, os da sua comunidade e os de cada tempo, a viverem segundo a lei do espírito. Isto é, desobedecendo à lei da morte que se insinua em nós, desobedecendo à escravidão, à dependência que limita a nossa liberdade e atrofia a nossa vida; e estimula-nos, inspira-nos para acolhermos uma vida segundo o espírito. Isto é, uma vida em que, a cada momento, nós estamos conscientes de que somos filhos e filhos amados de Deus, que somos cuidados e encaminhados pela Sua misericórdia, que somos divinizados pelo Seu amor. E por isso, a nossa vida tem de ter o sentido, tem de ter a expressão desta vida divina aqui na terra. Viver segundo o Espírito é viver nesta relação permanente com Deus, nesta consciência a cada momento de que estamos perante Ele, perante o Seu amor.
Por isso, as pequenas coisas da vida não são pequenas, são o nosso modo de relação, são a oportunidade, a oportunidade de uma relação. Viver segundo o Espírito é considerar sagrado cada momento, é considerar uma grande oportunidade tudo aquilo que nos é dado, mesmo aquilo que a gente não espera ou aquilo que a gente não quer mas que está para ser vivido. Aceitar isso como oportunidade, como lugar de encontro, como via, como estrada, como caminho que nos conduz até Deus e viver isso segundo o Espírito. Isto é, numa atitude profunda, filial, de confiança. Como um filho pequenino se abandona no colo da mãe, no abraço do pai, nós somos chamados a viver essa entrega da nossa vida, essa confiança, repetindo continuamente: “Eu sou Teu. Eu quero ir para Ti. Ajuda-me a permanecer em Ti.” Libertar-se de um princípio da carne que é uma vida autocentrada, uma vida muito egoísta, uma vida à procura do próprio prazer, à procura daquilo que é o nosso eu para viver uma vida segundo o Espírito, experimentando essa liberdade, essa confiança, essa certeza do amor de Deus e sermos capazes de experimentar o desprendimento. Desprendimento de tudo aquilo que nos aprisiona, de tudo aquilo que nos prende.
A Quaresma é uma máquina de produzir desprendimento, de produzir desapego, é uma máquina de fazer liberdade, de fazer mulheres e homens livres que na oração, no jejum e na esmola encontram formas de se libertar, de pensar no outro, de sentir que a nossa vida é maior do que aquilo que nós somos capazes de construir, que a nossa vida não está apenas ao nosso serviço mas que é um caminho que tem de transbordar. É uma fonte, é uma cisterna que tem de espalhar vida em redor de si. Viver segundo a carne ou viver segundo o Espírito? O que é que nós verdadeiramente vivemos? O que é que estamos dispostos a viver?
Neste tempo da Quaresma, nós estamos já no quinto domingo da Quaresma, entramos na última semana. E a última pode ser a primeira. Não é mal nenhum, a última pode ser a primeira, podemos começar agora, o importante é que experimentemos este viver segundo o Espírito que é viver na escuta, viver na atenção, viver na paz, viver na generosidade, viver na mansidão, viver na reconciliação, viver no amor – este deixar-nos habitar pelo Espírito. Nós precisamos espiritualizar muito a nossa vida porque a nossa vida vive muito escravizada por aquilo que temos a fazer, pela pressão do dia a dia, pela nossa agenda, pelos acontecimentos, que muitas vezes são uma necessidade e outras vezes são uma desculpa para não estarmos em nós mesmos, para não estarmos diante de Deus. É importante parar, é importante colocarmo-nos a verdade de certas perguntas como esta que a partir de S. Paulo nos é feita: como é que tens vivido? Mais na linha do Espírito ou mais na linha da carne, mais na linha do mundo, mais na linha da tua autossuficiência e do prazer do teu eu? Tens vivido esse desapego? Tens-te deixado conduzir pelo Espírito Santo nas grandes e nas pequenas decisões da tua vida? Deus é o construtor da cidade onde tu habitas? Ou não pensamos nisso? Ou isso não é uma coisa que entra nos nossos cálculos, nas nossas discussões interiores?
A palavra que hoje nos é dita, primeiro em forma de promessa e depois em forma de realidade, é que Deus está disposto a tudo para vir ao nosso encontro. E cada um de nós tem de sentir isso. Deus está disposto a tudo para me manifestar o Seu amor. E por isso nós ouvíamos a palavra do profeta Ezequiel: “Eu vos farei ressuscitar dos vossos túmulos.”
O túmulo parece o lugar do irreversível, onde já não há nada a fazer. Lázaro estava morto há quatro dias, já cheirava mal. Muitas vezes na nossa vida há coisas que já cheiram mal, coisas que parece que já não há nada a fazer, já é mesmo assim, só se pode suportar, só se pode aceitar. E contudo, o amor de Deus diz-nos: “Não aceites o irreversível, não aceites a fatalidade da morte, da pequena morte que se insinua dentro da nossa vida, não aceites, não aceites, acredita na força da promessa: “Eu vos retirarei dos vossos túmulos.”
No Evangelho de S. João temos esta cena da ressurreição de Lázaro, está muito bem contada. Aí nós vemos a amizade de Jesus, vemos como Ele Se emociona profundamente, como Ele chora. Vemos profundamente a humanidade de Jesus em cena. Mas, quando Jesus ressuscita aquele homem, aquele amigo chamado Lázaro, o que é que Jesus diz? O que é que Ele nos ensina a ver? O que é que Ele nos leva, nos conduz a acreditar? Ele diz-nos: a morte não é a última palavra sobre o destino humano. Nós temos de atirar o nosso coração para mais longe, temos de atirar o nosso olhar para o infinito. A morte não é a irreversibilidade. Jesus desfaz o irreversível, Jesus desfataliza a nossa história, reabre o nosso assunto. Jesus diz: “Não, isto não é um assunto arrumado.” Vamos reabrir – reabre o processo da nossa vida no sentido da esperança, não para nos julgar mas para nos reanimar, para nos revitalizar, para nos dar uma outra vida no Espírito.
Queridos irmãs e irmãos, confrontemo-nos, cada um de nós, com estes textos – o profeta Ezequiel: “Eu vos farei ressuscitar dos vossos túmulos.”, S. Paulo: “Vivei, não segundo a lei da carne mas segundo a vida do Espírito.” E o que é isso viver segundo o Espírito? Jesus que disse a Lázaro e diz a cada um de nós, manietados tantas vezes pelas nossas mortes, numa vida que tantas vezes já cheira mal disto ou daquele assunto: “Sai para fora, sai para fora.” E tira as ligaduras que nos prendem e devolve-nos à vida. Isto é aquilo que Jesus está disposto a fazer na vida de cada um de nós. Deixemo-nos trabalhar pelo Espírito Santo na vida.
Um cristão é uma criação de Deus, é uma criação do Espírito. É verdade que há muito esforço nosso, há muito compromisso, há muita vontade, há sacrifício da nossa parte, há dádiva, há sonho, há utopia, há desejo profundo de ser. Mas, ao mesmo tempo, sentirmos que esta vida nova em nós é um dom, é um dom que Ele nos dá à partida, que não tem a ver com merecer isto ou merecer aquilo. Ele dá-te o dom. Nós somos filhas e filhos deste dom, somos recriados, transformados por este dom, reinventados pelo Espírito. Desobedeçamos, rebelemo-nos de uma vida que seja apenas um conformismo, uma fatalidade, um “não vejo como possa ser de outra forma”. E sintamos que há uma possibilidade, que há este desejo de Deus, esta fantasia de Deus que é capaz de recriar a mulher e o homem que eu sou, que é capaz de me tornar, eu que sou homem velho, numa nova criatura. Sintamos por isso as mãos de Deus, que moldam silenciosamente a nossa vida e abandonemo-nos com confiança a esse trabalho. Que esta última semana da Quaresma seja para nós um reacordar, seja para nós um entregarmo-nos, seja para nós um exercitar da própria confiança deste Deus que nos conduz pelo caminho do Espírito e nos reveste do Seu Espírito Santo.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo V da Quaresma
Clique para ouvir a homilia