Queridos irmãs e irmãos,
As personagens que os textos bíblicos nos oferecem neste tempo do Advento são personagens cheias de densidade. Não são personagens planas, são personagens que fazem um caminho de maturação, muitas vezes na apreensão, na dúvida, na incerteza porque eles não estão a ver como. São personagens de uma fragilidade, de um enigma, de um mistério. E também por isso são um espelho muito fiel das nossas vidas, das nossas contradições, dos nossos receios, das nossas dúvidas.
Nós caminhamos para o tempo de Natal, estamos a uma semana do dia de Natal, e com certeza no nosso coração há a pergunta: Como é que eu me vou abeirar de Jesus? Como é que esse encontro, neste ano de 2016, se vai realizar? Como é que o nascimento de Jesus há de constituir para mim próprio um nascimento? Como é que a Sua manjedoura há de ser ocupada pelo meu corpo, pela minha vida, pelos meus projetos? Como é que eu vou fazer da minha história pesada, atravancada em tanta coisa, cheia disto e daquilo, de luz e de sombra, de esperança e de desalento uma vida que nasce? Como é que eu vou transformar isto tudo? Como é que eu vou fazer dos anos que eu tenho um primeiro dia, um quilómetro zero? Como é que eu vou ser Natal? No nosso coração amontoam-se perguntas, coisas por esclarecer, coisas que confluem para uma expetativa quase sem rosto, quase sem palavras. Nesse sentido, nós vivemos uma situação muito paralela às das personagens das leituras próprias do tempo do Advento.
Na primeira leitura do livro do profeta Isaías nós temos a personagem de Acaz, que é rei de Israel. Tudo isto se passa no século VIII antes de Cristo e Israel está dividida em duas partes. Há dez tribos que estão unidas numa espécie de coligação e têm a sua capital na Samaria. É o reino do norte. E há o reino do sul que são duas tribos da qual a maior é a tribo de Judá e tem como capital Jerusalém, onde está o rei Acaz. Estas duas confederações de irmãos estão em conflito, estão em guerra, o norte contra o sul. O norte está posicionado para atacar o sul. E o que é que faz Acaz? Pensa fazer uma aliança com o rei da Assíria para se defender dos seus próprios irmãos. É aqui que intervém o profeta Isaías dizendo: “Isto não faz sentido nenhum, nós temos é que nos entender com Israel. Temos de resolver os nossos dilemas, os nossos egoísmos regionais e temos de criar uma confederação nacional. Porque nós temos uma herança comum, nós temos uma lei, nós temos uma terra, nós temos um Deus, nós temos uma aliança. Não faz sentido estar a procurar o apoio de potências estrangeiras para resolver conflitos que são nossos.”
Isaías tenta convencer o rei Acaz, vem ter com ele (é a leitura de hoje) e o profeta diz: “Pede um sinal a Deus para perceberes como Deus está do teu lado, como Deus quer de facto que a resolução seja pacífica e interna.” O Rei Acaz resiste e diz: “Não, não vou incomodar Deus.” E às vezes este é o nosso erro. Nós não queremos incomodar Deus. No fundo, nós não queremos que Deus seja mediador dos nossos conflitos, da reconfiguração da nossa vida, das nossas relações. Preferimos resolver ad hoc desta forma muitas vezes disparatada de buscar o apoio a potências estrangeiras, muitas vezes agravando o próprio problema, em vez de colocar Deus no centro da resolução da nossa vida. E é isso que Acaz não quer fazer. Então, o profeta diz-lhe: ”Olha, tu não queres pedir a Deus um sinal mas é o próprio Deus que vai dar um sinal. A Virgem conceberá e dará à luz um filho e o Seu nome será Emanuel, quer dizer: será Deus connosco.” Nós não queremos incomodar Deus mas Deus vem ao nosso encontro, Deus toma a iniciativa de tomar a nossa história, de plantar a Sua tenda no meio do Seu povo, de nascer no meio de nós, no nosso coração, no interior da nossa história, das nossas famílias, da nossa casa, da nossa cidade. Deus nasce, e nasce para nós podermos nascer, e nasce como foco de esperança, e nasce para tornar possível aquilo que tantas vezes nós julgamos que é impossível. Nasce para connosco resolver a nossa vida, nasce para connosco abater o murro de inimizade que nos separa e construir uma lógica de reconciliação e de paz.
A mesma coisa no Evangelho de S. Mateus que nós lemos. É interessante que nós temos dois Evangelhos da infância de Jesus, um contado por S. Lucas, um contado por S. Mateus. S. Lucas toma o ponto de vista de Maria, o anjo vem e anuncia a Maria. S. Mateus, porque é um Evangelho para responder às questões dos Judeus, é um Evangelho contado do ponto de vista do pai, porque em Israel somos filhos do pai. Então, é o pai que tem de ser a chave da identidade de Jesus. Por isso, o protagonista do Evangelho de S. Mateus não é Maria mas é José, e a anunciação é feita a José, só que não é o anjo Gabriel que vem mas é um sonho que José tem. E nesse sonho, como nos nossos sonhos, nós vemos emergir o quê? A nossa vida vulnerável, os nossos medos, as nossas inquietações, a nossa nudez. Os pontos de dor da nossa vida emergem nos nossos sonhos. Mas também o nosso desejo, mas também a nossa vontade de transformação – o sonho de José também é tudo isso. No sonho ele ouve a voz: “Não temas, não tenhas medo, aceita Maria por tua esposa e tu terás uma missão na vida deste filho, tu pôr-lhe-ás o nome de Jesus.” E José sai daquele sonho reconfortado, decidido a dizer “Sim”, decidido a arriscar, a tomar o risco de receber Jesus na sua vida com todas as consequências desse nascimento.
Queridos irmãs e irmãos, nós recomeçamos o ano litúrgico e recomeçamos com o tempo do Advento e o tempo do Natal. Nós estamos a reviver os mistérios centrais da nossa fé, estamos a reviver o mistério da encarnação de Jesus. Já passaram vários natais na nossa vida, se calhar nós já não temos a naiveté, aquela simplicidade de coração, aquele fascínio, aquele natal de um tempo de criança que é tão belo, puro sobressalto em que todos os símbolos falam. Se calhar neste momento os símbolos já não nos falam, achamos o Natal uma maçada, achamos que é um tempo até agressivo. Eu conheço pessoas que ficam doentes com o Natal, querem é fugir para uma terra onde não se oiça falar do Natal, que seja verão, que seja inverno, que seja o fim do mundo mas tudo menos o Natal. E se calhar têm razão, ou têm razões dentro de si. Mas a grande questão é que nós observemos que aquelas pessoas que detestam o Natal também têm paralelo naquelas pessoas que gostam muito do Natal mas o Natal quentinho, o Natal em que nos vestimos de certa maneira e comemos à mesa e repetimos os gestos e fazemos tudo e cumprimos o Natal. E depois, o Natal foi apenas uma tradição social, um ato de convivência e foi o mais inofensivo, o mais neutro possível. E isso também não é Natal.
No fundo, como é que o nascimento de Jesus interroga, interpela, mexe connosco? Mexe com aquilo que somos, mas mexe com as nossas inquietações, os nossos medos, os nossos desejos, as nossas expetativas profundas. Como é que o Natal nos molda como mulheres e homens de uma forma nova? E essa é a grande questão, essa é a grande questão.
Nós hoje lemos o início da Carta de S. Paulo aos Romanos, que é um dos grandes textos identitários sobre o que é ser cristão. A primeira frase da Carta aos Romanos é uma frase emblemática. Paulo diz assim: “Eu, Paulo, escravo do Messias Jesus.”, “Eu, Paulo, que me faço escravo, que me declaro escravo do Messias Jesus.” Paulo é um caso extraordinário na descoberta daquilo que significa Jesus, para ele Jesus é o Messias, e se Jesus é o Messias ele tem de viver de outra forma completamente nova. Quer dizer, começou o tempo do Messias, começou o tempo do fim. Isto é, a Lei, a regra, a lógica, a organização do mundo, as minhas conceções do mundo tudo isso foi superado porque nasce uma verdade maior que é a verdade do Messias. Agora tudo tem de ser interpretado à luz do Messias. E o que é que Paulo é? Paulo é um escravo disto, Paulo é um servo disto. Paulo amarra a sua vida à verdade do Messias, à verdade de Jesus, à verdade do presépio.
E no fundo, a grande questão do Natal é esta: como é que eu ligo, colo, amarro, ancoro, inscrevo a minha vida na vida do Messias? Como é que eu me sinto isto que Paulo se sente: instrumento, canal da alegria do Evangelho do Cristo Messias? É esta a expetativa fundamental no tempo do Advento.
Queridos irmãs e irmãos, o tempo do Advento não é só nosso, não somos apenas nós que temos a expetativa de Jesus. Reduzir Jesus apenas a uma alegria privada, a um assunto privado, é um erro. Nós somos apóstolos, nós somos discípulos, nós somos testemunhas, nós somos enviados. Como diz Paulo: “A criação inteira, o mundo inteiro espera a revelação dos filhos de Deus, espera o testemunho que nós possamos levar.” E por isso, a vivência do Natal não é só uma questão que me diz respeito a mim. Mas a expetativa para que o Natal verdadeiro aconteça é uma expetativa que nós encontramos em todos os corações, em todos os olhares e que depende de nós a resposta. Sintamos também a responsabilidade de estar a viver este tempo, esta hora, esta espera.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo IV do Advento
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