Queridos irmãs irmãos,

Nós estamos a aproximarmo-nos do final do tempo litúrgico que conclui com a Festa de Cristo Rei. Porque a liturgia é cíclica, nós começamos com o tempo do Advento, vamos até ao Cristo Rei, e depois voltamos a começar um novo ano litúrgico. Em cada ano vamos lendo um Evangelho. No próximo ano vamos ler o Evangelho de S. Mateus.

Estes últimos domingos do tempo litúrgico são domingos destinados a meditar sobre o tempo. O que é o tempo? Como é que nós vivemos o tempo? Como é que nós experimentamos o tempo que passa e ao mesmo tempo o definitivo? O que é que não passa? O que é que não muda? O que é que não se altera? No fundo, o que é podemos esperar, como nós refletíamos no domingo passado?

A questão sobre o tempo, para nós cristãos, introduz o tema do messianismo. Nós hoje praticamente esquecemos esse tema e vivemos na história como se a história fosse autossuficiente e como se ela se justificasse a si própria. Mas, desde o princípio, o Cristianismo é também o movimento messiânico. É o movimento cujos referentes não são apenas aqueles da ordem temporal, da ordem do mundo vigente – nós vivemos numa expectativa, nós vivemos numa espera! Na espera de uma transformação que começamos a viver já dentro de nós. Porque tudo começa aí, nesse encontro transformante com Jesus dentro de cada um de nós. Mas nós acreditamos que a história terá um desfecho e que esse desfecho será o encontro com Deus, com aquilo que Deus é.

A linguagem dos textos bíblicos é muito uma linguagem de poder – a linguagem da soberania, a linguagem do rei que volta, a linguagem do juiz da história. Mas, no fundo, é percebermos que Deus é o grande critério de avaliação da própria história.

A filosofia ajuda-nos a pensar esta questão do tempo e esta questão do messianismo. Nós, o ano passado, tivemos o belo curso programado aqui pela Luísa Ribeiro Ferreira, que nos ajudou a perceber como é que os filósofos tematizavam a questão de Deus.

Por exemplo, sobre o Evangelho de hoje há um sermão muito precioso do Kierkegaard, ou Kierkgord como alguns dizem em dinamarquês. Ele pega na última frase do Evangelho que hoje nós ouvimos e que nesta tradução diz: “Pela vossa perseverança salvareis as vossas almas.” Faz uma tradução que não depende tanto do latim e que diz: “Adquirireis a vossa alma na paciência.” E faz uma reflexão muito interessante sobre este discurso de Jesus, que penso que nos pode ajudar. Ele começa por dizer: “Nós pensamos que já temos a nossa alma, que a única coisa que temos a fazer é não a perder e salvá-la, mas à partida nós já a temos.” Mas ele parte de um pressuposto diferente, ele diz: “Não, nós temos de adquirir a nossa alma.” E “adquirir”, diz ele, “é um bom verbo.” Porque “adquirir” quer dizer comprar, quer dizer conseguir possuir, conseguir alcançar. Como se compra um bem, como se adquire um bem precioso assim nós temos a tarefa de conquistar a nossa alma, de adquirir a nossa alma.

Isto é importante porquê? Porque para ele a vida é tarefa e é importante sentirmos isso. A nossa vida é uma tarefa. Nós estamos numa encruzilhada de liberdades, numa encruzilhada de hipóteses e nós temos de escolhermo-nos. Temos de fazer a escolha por nós próprios, a escolha por aquilo que é uma vida autêntica, uma vida verdadeira. Isso não é um dado, a vida verdadeira não é uma coisa que já temos, não é uma coisa que estamos a guardar zelosamente. Não, a vida verdadeira é uma escolha que nós fazemos, é uma decisão que nos cabe a nós fazer, em cada dia, em cada instante. Temos de a tomar como decisão fundamental da nossa própria existência. Por isso, nós temos de adquirir, de adquirir a nossa alma.

“Nós podemos pensar que o mundo é a nossa alma”, diz Kierkegaard. O mundo, o conhecimento, a riqueza, a grandeza, os nossos projetos, isto e aquilo, o que possuímos, o que temos – pensamos que isso é a nossa alma. Porque isso é que vai dizer: “Esta mulher realizou-se, este homem cumpriu-se.” Ele diz: “Isto é um erro, porque a alma do mundo não é uma alma que nós possamos adquirir. Porque tudo aquilo que possuímos, todos os bens materiais que nós temos verdadeiramente possuem-nos.” Nós temos a ilusão que temos o carro, verdadeiramente o carro é que nos tem a nós; nós temos a ilusão de que temos um bem, não, esse bem é que nos possui a nós, porque ele não é capaz de dialogar profundamente com a construção da nossa alma mais profunda. Por isso, não é a alma do mundo que nos vai dar uma vida autêntica mas é aquilo que só Deus nos pode oferecer e é aquilo que nós só podemos adquirir do próprio Deus. E podemos adquirir pela paciência.

Ele explica o que é a paciência: “A paciência é aquilo que um viajante tem de ter.” Quer dizer, um viajante, um peregrino que vai daqui a Fátima, ele sabe que tem de descansar. Ele sabe que se quiser chegar à meta tem de parar de caminhar durante um tempo, recuperar as suas forças e continuar. Isso é a paciência. Não se consegue tudo de uma vez. Às vezes é preciso a demora, às vezes é preciso o tempo de paragem, o tempo de pausa. Isso é a paciência na nossa vida. Como o agricultor não pode entrar numa ansiedade em relação à semente que deitou ao campo e ir lá escavar para ver se ela já está a brotar ou não, a germinar ou não. Não, ele tem de esperar que a coisa aconteça. Também nós temos de esperar na paciência a emergência da vida autêntica.

Ele começa o sermão dele com uma metáfora: “Temos de ser como o pássaro pobre.” O pássaro rico é aquele que vem através das coisas espetaculares, das coisas que se podem exibir, que se podem mostrar. O pássaro pobre vem apenas nú, com as suas asas através do vento. Se queremos construir uma vida autêntica, é por dentro, é por dentro. É através do vento do Espírito, mas também de uma decisão fundamental, que nós temos de cumprir a nossa própria existência.

O que é que Jesus nos diz no Evangelho? Ele diz-nos: “No mundo é tudo para relativizar.” Nós sabemos isto. Por exemplo, pensemos na história do Ocidente: impérios levantaram-se, impérios caíram; grandes projetos soçobraram; ainda o século XX, as grandes ideologias de resolução da história, a derrapagem trágica, dramática a que nós assistimos. Não é o mundo que nos dá a nossa alma. Por isso, a convulsão do mundo não pode nos capturar, não pode nos assustar. Temos de encontrar uma saída e a saída é escolhendo-nos a nós próprios, é escolhendo a nossa própria vida. Sabendo, com confiança, aquilo que Jesus nos garante: “nenhum cabelo da vossa cabeça se perderá.” Sintamos, por isso, a confiança profunda.

Um outro filósofo, este nosso contemporâneo, Giorgio Agamben, um italiano, tem refletido muito sobre o messianismo. Ele diz: “É pena que o próprio Cristianismo se tenha afastado da dimensão messiânica, porque ele no princípio começou por ser uma religião do messianismo.”

E o messianismo o que é? O messianismo, diz ele, “Não é viver na expectativa do fim, de um fim que está para chegar, mas é viver já hoje o tempo do fim. É sabendo que o fim já veio. E que, por isso, nós temos uma liberdade para ser, uma liberdade para amar que nos define verdadeiramente.” Porque na tradição judaica, onde o messianismo foi germinado, dizia-se isto: “Quando o Messias vier Ele vai absolver a Lei.” Porque a Lei vale até ao Messias chegar. Quando o Messias chegar começa um tempo diferente, é um tempo que já não é definido pelo código da Lei, mas é o tempo do Messias. É um tempo gerido, arquitetado por outros referentes.

Ora, nós cristãos acreditamos que o Messias já veio, e que por isso nós não vivemos justificados pela Lei, mas vivemos justificados pelo próprio Messias, pelo Seu testemunho, pela radicalidade da Sua vida, pelo amor que Ele nos permite. Por isso, no tempo messiânico os cristãos têm de ser profetas, têm de se levantar, têm de sonhar, têm de sentir essa liberdade para repensar o mundo e repensar a história.

Ainda ontem foi o funeral do Alfredo Bruto da Costa, ele é um cristão que dá um exemplo de uma liberdade muito grande face ao mundo. Nós, por exemplo, facilmente caímos num conformismo muito grande em relação a temas como a pobreza, como a desigualdade, como a diferença entre os seres humanos, como a erradíssima distribuição da riqueza e das possibilidades. Nós conformamo-nos muito a este modelo social. Ele era alguém que não se conformava, para ele a justiça de que nós ouvimos hoje ler nos Evangelhos era alguma coisa que habitava o seu coração e que inspirava verdadeiramente a sua ação. Ele era um homem livre face àquilo que é a nomenclatura deste mundo, a organização deste mundo. E sonhava possibilidades diferentes para o mundo.

Isto é, nós fazemos a experiência de que Cristo veio, de que a plenitude do tempo chegou, de que já começou o tempo do fim. Isso dá-nos asas, isso dá-nos desejos, isso dá-nos sonhos, isso dá-nos utopias, isso dá-nos um olhar novo sobre a vida, sobre nós próprios. Isso dá-nos uma amplidão que nos permite ouvirmos estas leituras e não sentirmos que um tijolo nos cai na cabeça e que é o fim e que isto tudo vai acabar e que não há solução. Não, esta reflexão sobre o tempo é para dizer: “A responsabilidade do tempo está nas vossas mãos. Ele já veio, e agora? E agora?”.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXXIII do Tempo Comum

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